Autor: Sérgio Luís de Carvalho

  • A primeira caricatura portuguesa sobre cerveja

    A primeira caricatura portuguesa sobre cerveja


    Introdução

    Quem, naquela 4ª feira, dia 3 de setembro de 1902 olhasse atentamente para os quiosques dos jornais poderia ver, ao lado dos respeitáveis O Século e O Diário de Notícias, uma curiosa caricatura a toda a primeira página no jornal humorístico A Paródia. A caricatura intitulava-se Os Direitos da Cerveja e era da autoria de um jovem desenhador chamado Celso Hermínio.

    E quem, naquele dia de fim de verão de 1902, comprasse esse jornal humorístico mais famoso da história do nosso jornalismo, decerto sorriria com a sátira que nesse cartoon se manifestava. Depois, talvez metesse o jornal debaixo do braço ou o fosse folheando ao caminhar para o Chiado onde iria tomar um café, uma orchata ou um capilé na Brazileira, ao mesmo tempo que olharia de soslaio para as elegantes que pululavam a rua Garrett com saquinhos de compras da loja Paris em Lisboa. Contudo, de um pormenor é que o nosso leitor não desconfiaria: é que aquele desenho era a primeira caricatura portuguesa sobre cerveja. E assim o nosso eventual leitor iria bebericando o seu cafezinho e comentando as novidades, desconhecendo que teria na sua posse um documento histórico.

    Ora é a história dessa caricatura e do seu contexto que iremos aqui esboçar…

    Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905)

    O jornal

    Comecemos por falar do jornal no qual a célebre caricatura ocupava toda a primeira página. Diga-se que não se trata de um jornal qualquer. Estamos perante o mais célebre jornal humorístico da história multissecular da imprensa portuguesa e que ainda hoje é amiúde estudado nos nossos cursos superiores de comunicação social.

    O jornal humorístico A Paródia começou a ser publicado em 1900. Era o quarto jornal satírico de grande referência publicado entre nós pelo célebre artista, escritor, jornalista e desenhador Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905), cujo retrato aqui mostramos.

    Depois de A Lanterna Mágica (1875), o António Maria (1879-1898) e Os Pontos dos is (1885-1891), A Paródia era um semanário de referência que, sob a direção de Bordalo, fazia as delícias dos burgueses e o temor dos políticos que se viam retratados nas caricaturas sem grande piedade. O periódico inspirava-se nos jornais satíricos que estavam em voga por essa Europa fora, como o inglês Punch ou o francês Charivari. Todavia, deve-se dizer que em nada ficava atrás daqueles dois famosos jornais. O nosso A Paródia era tão bom como os melhores de lá de fora… E só para se ter uma ideia da sua qualidade e atualidade basta passar os olhos pela primeira página do primeiro número (17 de janeiro de 1900), no qual a política era representada por… uma grande porca.

    O jornal A Paródia iria ser descontinuado em 1907. Contudo entrara já em lenta agonia após a morte do seu mentor e fundador, em 1905. Nos anos de 1906 e 1907 o periódico seria dirigido por Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, filho de Rafael Bordalo Pinheiro. Deve ser referido que o jornal A Paródia está disponível online no site da hemeroteca de Lisboa que em baixo indicamos.

    Pelas páginas de A Paródia passaram vários caricaturistas portugueses. Desde logo, claro, o incontornável Rafael Bordalo Pinheiro. Depois, o seu próprio filho, o já referido Manuel Gustavo. Em seguida, uma série de caricaturistas de que não ficou grande fama. A maior parte deles cumpria a sua função com eficácia e profissionalismo, mas não tinham o talento do seu diretor, valha a verdade. Um desses caricaturistas menos conhecidos, porém, prometia muito. Era um jovem em quem se vislumbrava algum talento e que o mestre Rafael resgatou do anonimato, empregando-o no seu jornal. Chamava-se Celso Hermínio e foi ele o autor da caricatura histórica de que aqui falamos.

    O autor

    No universo dos caricaturistas nacionais do início do século XX o nome de Celso Hermínio não aparece ao lado dos mais famosos, como Rafael Bordalo Pinheiro, Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, Stuart Carvalhais ou Leal da Câmara. Mas essa ausência não se deve a falta de talento, pois desde cedo que o rapaz mostrou ao que vinha. O problema é que Celso Hermínio faleceu ainda novo, com 33 anos, vitimado por uma pneumonia, maleita fatal ao tempo. Falemos um pouco do homem que nos deu a primeira caricatura portuguesa sobre cerveja e cujo retrato aqui reproduzimos

    Celso Hermínio (1871-1904)

    Celso Hermínio era filho de um militar, o general Gaudêncio Carneiro (também ele um homem de letras) pelo que a sua aprendizagem fez-se um pouco por todo o país, ao ritmo das colocações castrenses do seu pai. Foi em Ponta Delgada que o seu precoce talento desabrochou, fazendo as suas primeiras caricaturas num pequeno jornalito familiar chamado A Mosca. Mas como em Portugal as artes não davam (e não dão) para sustentar a vida, Celso prosseguiu as pisadas paternas e seguiu a carreira militar, ao mesmo tempo que frequentava o curso preparatório da Escola Politécnica de Lisboa.

    Mas a arte estava-lhe no sangue. Por isso começou a frequentar as tertúlias artísticas de Lisboa, dando nas vistas pela sua verve radical e panfletária a que se sucediam, segundo os testemunhos do tempo, alguns períodos de langor e de preguiça. O seu feitio, arisco e difícil, afastava-o das modas e apartava-o das multidões. Todavia, todos lhe elogiavam o traço e o humor, destacando-se os seus retratos satíricos que ao tempo se chamavam portrait-charge. Desse tempo dizia-se que o lápis do Celso não era um lápis, era uma moca

                A sua arte não passou despercebida ao olhar sábio de Bordalo Pinheiro, que o convidou para desenhador regular de A Paródia. Era um passo em frente, depois de anos a desenhar para jornais menores e pasquins de ocasião. E durante quatro anos Celso Hermínio publicou os seus desenhos naquele periódico, lado a lado com o seu amigo e diretor.

    No dia 8 de março de 1904, apenas um ano e seis meses depois de publicar a primeira caricatura nacional relativa à cerveja, Celso Hermínio pereceu, vítima de uma pneumonia dupla. Nas páginas de A Paródia escreveu-se: A morte prematura de Celso Hermínio privou a arte da Caricatura em Portugal de um dos seus cultores mais jovens, mas mais talentosos e fecundos. Graças a uma real aptidão e a um esforço incessante. Celso Hermínio, tendo feito uma carreira rápida e brilhante, alcançara já um lugar indispensável entre os humoristas do lápis, no nosso país. Era um bom caricaturista, com um grande poder crítico e uma technica absolutamente original…

    Mais comovedor foi o testemunho de um outro mestre das letras nacionais, Raul Brandão, que nas suas Memórias escreveu: O Celso morreu ha um mez n’um dia de chuva como este. Mas, quando o caixão chegou ao pé da cova, luziu o sol no alto. O ar parecia novo e no vasto campo dos túmulos agitaram-se as cabeças amarellas dos malmequeres. Os pássaros começaram a cantar. E viu-se logo o Brito Aranha, de pera branca, dar um passo em frente e fazer um discurso:—O amigo… o camarada… descança em paz.—Depois o Cunha e Costa falou na nossa decadência, e por fim o Carneiro de Moura mastigou também uma banalidade… Sentia-se que tudo aquilo era postiço. Mas os pássaros não cessavam de cantar—e a meu lado o D. João da Camara suspirou baixinho: —Quem me dera que quando eu morrer só o saibam meia dúzia de amigos!…

    Enfim, o autor da primeira caricatura portuguesa sobre cerveja não foi um qualquer. Nem sequer foi alguém que poderia ter sido, mesmo se é verdade que poderia ter sido mais conhecido e bem maior do que foi. É o destino. Mas ficou a obra. Como a caricatura de que agora iremos falar.


    A caricatura e o seu contexto

    Desaparecido o homem, temos a sua obra. Vejamos então a caricatura que saiu naquela 4ª feira, dia 3 de setembro de 1902 e que ocupou a primeira página de A Paródia:

    A caricatura intitula-se Os Direitos da Cerveja e exibe duas garrafas ricamente vestidas de damas finas. Nos rótulos as palavras Jansen e Pilsener são bem visíveis. As garrafas passeiam-se altivas e vão distribuindo dinheirinho a cinco guardas municipais (os antecessores da PSP e da GNR) e a dois cavalheiros bem vestidos. No canto inferior direito, temos a assinatura de Celso Hermínio. Em baixo, à laia de legenda, lê-se: Direitos que se entortam.

    Assim, sem mais nem menos, a caricatura pouco diz. Mas o próprio cabeçalho do desenho parece remeter para um artigo em páginas interiores. Folheemos então o jornal. Nas páginas 6 e 7 (que abaixo reproduzimos) temos então um pequeno artigo chamado A cerveja e a farinha e da autoria de Celso Hermínio. O artigo rezava assim (reproduzido segundo a grafia do tempo):

    A semana finda deu logar, depois da revelação do caso da farinha de trigo, à revelação do caso da cerveja.

    O caso da farinha de trigo era o caso da fraude contra o contribuinte.

    O caso da cerveja era a fraude contra o Fisco.

    Dizer que entre o fabricante de farinha e o fabricante de cerveja, o nosso coração hesita, é faltar impudentemente à verdade.

    Não! O nosso coração não hesita. – Elle vae todo para o fabricante de cerveja. 

    Por isso –porque não dizel-o?- as providências pomposas  adoptadas contra a fraude da cerveja chocaram o nosso animo, abalado precisamente pela ausência de providências contra a fraude da farinha, e quando se tornou publico que o dualismo Inspecção Geral dos Impostos e Juizo de Instrucção Criminal, se encontravam em conflicto, por motivo das referidas providências, nós regosijamos-nos e fizemos todos os nossos votos pela cerveja que é o Fisco, contra a Farinha, que é o contribuinte.

    Se estes votos podem implicar qualquer género de perseguições judiciaes, que ellas venham! Iremos perante a justiça do sr. Jeronymo de Vasconcellos declarar com hombridade e descaro que sim senhor, que nos são eminentemente sympathicos os fabricantes de cerveja e absolutamente odiosos os fabricantes de farinha.

    A terminar o delicioso texto de Celso Hermínio, à laia de rodapé, temos um pequenino desenho a preto e branco onde pode ver um popular a abraçar um criado que tem uma caneca de cerveja na mão, ao lado de outro popular que premeia um panificador com um redondo pontapé no traseiro.

    E logo mais abaixo, ainda nessa página 7, Celso Hermínio presenteia-nos com uma nova pequena pérola. Uma outra caricatura mais simples, intitulada Caras e Caretas, ocupa cerca de um quarto de página e exibe, a preto e branco, um homem gorducho claramente etilizado que, agarrado a um gradeamento, balbucia: É esquisito que tendo a cerveja tantos direitos, eu fique tão torto quando a bebo!

    (Nota: se bem que não venha ao caso e possa parecer espúrio, esta última caricatura lembra muito a célebre rábula de Vasco Santana embriagado a falar para um candeeiro no filme O Pátio das Cantigas, que seria realizado 40 anos mais tarde).

    Duas caricaturas e um pequeno desenho de rodapé referentes a cerveja no mesmo número de um jornal de 1902. É obra, pela raridade…

    A caricatura da capa e o pequeno artigo merecem um enquadramento histórico. O início do século XX vê acentuar-se a crise da monarquia liberal portuguesa. O rotativismo entre os dois principais partidos monárquicos (o Progressista de Luciano de Castro e o Regenerador de Hintze Ribeiro) revelava-se cada vez mais esgotado, o Partido Republicano crescia em influência e em verve, o ambiente político, social e económico deteriorava-se. A opinião pública lusa, macerada pelas crises, pelo não muito distante Ultimatum Inglês e pelo suicídio recente de um desiludido Mouzinho de Albuquerque, assistia estupefacta a vários escândalos, como as recorrentes falsificações da farinha com cal, gesso ou ferradura –facto que aliás A Paródia satirizava com frequência e a que também se refere Celso Hermínio no seu artigo-, as irregularidades financeiras, as trafulhices na banca, nas moagens ou nos tabacos, que por esses anos se desencadearam. E se decerto essas irregularidades são de todos os tempos, mais visíveis e doloridas se tornam em tempo de crise. Como naquele ano de 1902.

    Mas a que irregularidades se referirá Celso Hermínio? Segundo as notícias que até nós chegaram alguns fabricantes de cerveja teriam burlado o fisco, prejudicando assim o Estado português. Disso se faz eco Celso Hermínio, comparando jocosamente a irregularidade cervejeira com as irregularidades moageiras. Com uma diferença, todavia. As fraudes das farinhas prejudicavam sobretudo o consumidor, pois ao falsificar as farinhas para maximizar os lucros alguns moageiros e panificadores prejudicavam a saúde e a higiene públicas, ao passo que as irregularidades fiscais de algumas cervejeiras prejudicavam o Estado. Entre as duas fraudes, o coração do português não hesitava. As cervejas prejudicaram o Fisco? Abençoadas! As farinhas prejudicavam a população? Danadas!

    Um derradeiro apontamento para explicar brevemente o que era o panorama cervejeiro português no dealbar do século XX. Nessa altura existia, pujante e fornecedora da Casa Real, a Fábrica de Cervejas da Trindade, estabelecida na Rua Nova da Trindade em 1836, num antigo convento de frades trinitários (daí o nome) e que em 1935 integrou a recém-fundada Sociedade Central de Cervejas. Ainda em Lisboa existiam as cervejeiras Jansen (desde 1855) e a Leão (desde 1878). No Porto tínhamos a Companhia União Fabril Portuense, fundada em 1890 após a fusão de pequenas cervejeiras. Nas ilhas tínhamos a madeirense Empresa de Cervejas da Madeira (desde 1872) e a açoriana Melo Abreu (desde 1892), que aliás ainda existem.

    A qualidade das cervejas portuguesas já não era má, segundo um estudo publicado em 1900: Os donos das duas maiores cervejarias de Lisboa mandaram vir do estrangeiro mestres e desde então produzem cerveja que pode competir com a importada. São de facto boas e ligeiras as cervejas hoje fabricadas sobressaindo (…) a Pilsener da cervejaria Jansen e a Bohemia da cervejaria Trindade.” (Estudo de Carvalho Talone, em 1900 – adaptado).

    Foi deste restrito universo cervejeiro que saiu a fraude fiscal registada com arte (e com mal disfarçado carinho) pelo lápis e pela pena do malogrado Celso Hermínio.

    Registe-se por fim uma curiosidade. Esta caricatura que aqui historiamos retrata uma bebida ainda relativamente pouco consumida entre nós, ao tempo. Predominante e dominador, era o vinho que imperava. Daí que se percorrermos os jornais satíricos do tempo, se vejam poucas ou nenhumas caricaturas à cerveja. Sobre o pão, a carne, o vinho, o peixe ou os doces, há-as aos montes. Já sobre cerveja… Daí a curiosidade e o interesse desta caricatura em particular. Na verdade, só bem entrados na segunda metade do século é que a cerveja ultrapassaria o consumo de cerveja em Portugal.

    Mas isso já são outros quinhentos…

    Bibliografia sumária

    José-Augusto França, Rafael Bordalo Pinheiro – O português tal e qual, Livros Horizonte

    José Manuel Tengarrinha, História da Imprensa Periódica em Portugal, Ed. Caminho

    Manuel Paquete, A cerveja no mundo e em Portugal, Colares editora

    Raul Brandão, Memórias (vol. 1)

    Jornal A Paródia (1900-1907)

    Humorgrafe: blog de informação sobre humor e cartografia

    Museus de referência

    Museu Rafael Bordalo Pinheiro (Lisboa)

    Museu Nacional da Imprensa (Porto)

    Museu da Cerveja (Lisboa)

    Sérgio Luís de Carvalho é escritor e historiador


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  • Sermão da Senhora Ursula aos portuenses

    Sermão da Senhora Ursula aos portuenses


    No dia 13 de junho de 1654, em São Luís do Maranhão, o padre António Vieira proferiu o Sermão de Santo António aos Peixes aos brasilienses. Era dia de Santo António, santo propiciador na busca de objetos perdidos, padroeiros pobres e dos oprimidos, dos casais e das grávidas. 

    Trezentos e setenta anos depois, no Porto, a Senhora Ursula van der Leyen proferiu um discurso aos portuenses. Era Dia de São Norberto, que foi bispo de Magdeburgo, germânico como a Senhora Ursula e padroeiro da Boémia. 

    Durante o seu discurso no Porto, a Senhora Ursula foi confrontada com um grupo de jovens manifestantes que protestavam contra o alegado financiamento, feito pela Comissão Europeia, do “genocídio em Gaza”. Recordemos que a Senhora Ursula é presidente da Comissão Europeia, pelo que aquele protesto, concorde-se ou não com o motivo e com a forma, não parece ser totalmente deslocado. Os jovens foram, obviamente, detidos pela polícia, assim se provando a lendária hospitalidade portuguesa.

    Claro que a Senhora Ursula não deixou o protesto passar incólume. E de pronto, dirigindo-se aos jovens que nesse momento estavam a ser arrastados pela Polícia, afirmou, num tom onde alguma pedagogia se mesclava com algum desdém, que, afinal, aqueles jovens tinham muita sorte, pois se estivessem na Rússia acabariam na prisão em dois minutos. E, sob os aplausos gerais das pessoas presentes no comício, bem como sob o perfume geral de incenso que a rodeava, a Senhora Ursula passou a sua mensagem contra a Rússia e contra os manifestantes.

    Há 370 anos, o padre Vieira disse em São Luís do Maranhão:

    «O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, outra corrupção?»

    Há dois dias, a Senhora Ursula disse no Porto:

    «Se vocês estivessem em Moscovo, estavam na prisão em dois minutos»

    Duas mensagens fortes, dois estilos. Qual delas permanecerá para a posteridade? É ousado fazer previsões.

    Todavia, ainda no contexto de uma -quiçá abusiva- comparação entre os dois discursos, persiste uma dúvida. O padre António Vieira fez o sermão num momento em que o Brasil-colónia se debatia com o problema da escravidão dos povos indígenas e os litígios daí decorrentes entre os colonos e alguns missionários.

    A Senhora Ursula fez o seu sermão sobre a Rússia aos portuenses, a propósito de quê? Por outras palavras, o que tem a Rússia a ver com aqueles jovens que protestavam contra a política da Comissão Europeia em relação à Palestina? Que se saiba, a Palestina não é a Rússia, são coisas e causas diferentes, pelo que o sermão da Senhora Ursula aos portuenses me parece tão a deslocado (ao contrário da manifestação) como se o padre António Vieira, no sermão em São Luís do Maranhão, reclamasse contra a expulsão dos parlamentares ingleses adversários por parte de Oliver Cromwell, ocorrida no mesmo ano.

    Talvez eu esteja a exagerar. Afinal, entre São Luís do Maranhão e Londres são 7.306 quilómetros, entre o Porto e Moscovo é cerca de metade. Por outro lado, a dita expulsão levada a cabo por Cromwell dos parlamentares desafetos, só ocorreu meses depois do sermão de Vieira, pelo que o bom padre nunca o poderia citar. Eis porque acho que, se calhar, estou mesmo a exagerar.

    Mas a minha dúvida persiste.

    Porquê referir tão enfaticamente a Rússia contra jovens que se manifestavam em relação à Palestina? Dizer que a questão da Rússia é uma das mais marcantes questões atuais, não me convence. Há outras questões atuais tão marcantes como essa. Imagine-se como nos soaria deslocado se a Senhora Ursula se virasse para os manifestantes e exclamasse:

    «Se vocês estivessem na Amazónia, estariam a arder em dois minutos»

    Ou:

    «Se vocês estivessem num icebergue do Pólo Norte estariam a derreter em dois minutos»

    Pois, de facto parece-me deslocado. Mas isso sou eu, pronto…

    Talvez haja outras explicações.

    Será que a Senhora Ursula, como muitos dos seus conterrâneos norte-europeus, persiste na ideia de que os povos do sul da Europa (os PIGS, como solidariamente lhes chamam) precisam de pedagogia político-financeira como de pão para a boca? É possível. Afinal, a tradição já vem de longe. Há uns aninhos, o Senhor ministro holandês Dijsselbloem afirmou que os povos do Sul gastam tudo em copos e mulheres. Note-se que não estou a criticar o Senhor ministro Dijsselbloem. Afinal, basta olhar para ele para perceber que aquilo é homem que nunca gastaria um euro numa coisa ou noutra.

    Apenas trago à colação esta frase do Senhor holandês (agora neerlandês) para que se compreenda essa recorrente preocupação norte-europeia em instruir-nos, o que até será louvável. Por isso, aqueles jovens que, no Porto, protestavam contra o que se passa em Gaza, precisavam de ouvir a Senhora Ursula, alemã, a educar-nos com o exemplo da Rússia.

    Se se pensar bem, até que o sermão da Senhora Ursula terá sido bem escolhido. A Rússia é tema presente, omnipresente, aliás, e está mesmo ali à mão de semear. Se a Senhora Ursula fosse buscar outras comparações históricas, talvez os jovens manifestantes não percebessem a alegoria e a atualidade. Imaginem que a germânica Senhora Ursula lhes bramava:

    «Se vocês estivessem no meu país no tempo em que os alemães seguiam cegamente Hitler, estariam num campo de concentração em dois minutos».

    Pois… Talvez os jovens não percebessem. Afinal, os portugueses são incultos, desorganizados, improdutivos e gastam tudo em copos e mulheres. Não somos organizados e poupados como a nação do Senhor Dijsselbloem, que, solidária, foi a nação estrangeira que mais voluntários deu às SS no tempo em que os alemães seguiam cegamente o senhor Hitler.

    Bem, talvez eu esteja a ver mal as coisas. Não seria a primeira vez, não será a última. E talvez esteja a fazer uma comparação tola entre o discurso da Senhora Ursula aos portuenses e o sermão do padre António Vieira aos maranhenses. E daí, talvez não. A presidência da Comissão Europeia tem alguma tradição piscícola. Afinal, o antecessor da Senhora Ursula não era também conhecido pelo cognome de “o cherne”? Mas, lá está, se calhar estou de novo a exagerar…

    Sérgio Luís de Carvalho é escritor e historiador


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