Autor: Serafim

  • Concerto à borla significa: ‘todos pagam e poucos gozam’

    Concerto à borla significa: ‘todos pagam e poucos gozam’


    Pois é, estimados bípedes contribuintes — sim, vós, que ainda vos orgulhais de possuir polegares oponíveis e folhas de vencimento. Aqui vos escreve Serafim, gato de 16 anos, a caminho dos 17, reformado dos serviços de caça, residente em casa limpa, almofada de cetim e taça de porcelana. Um verdadeiro símbolo do que Portugal mais admira: a boa vida sem contrapartidas. E, sim, eu sei, vós dizeis que tenho sorte. Mas não, meus caros humanos, sorte têm vocês em poder olhar para mim e aspirar — ainda que só em devaneios — à liberdade que é ser gato urbano no Portugal do século XXI.

    A verdade é esta: nós, felinos citadinos, já não temos ratos para caçar nem telhados para patrulhar. A nossa presença nas casas é puramente simbólica. Trocámos os celeiros por sofás IKEA, os ossos de sardinha por patês de frango com redução de fígado, e a independência por um plano vitalício de mordomias sem recibo verde. Em troca? Um ronron ocasional, umas voltinhas em torno das canelas e aquele olhar penetrante e calculado, para vos convencer de que sim, gostamos de vós.

    Mas falemos de vós, comunidade laboriosa. Vós, que todos os meses vedes o vosso salário ser assaltado por IRS, IVA, IMI, IUC, ISP, e por aí fora, enquanto fingis que está tudo bem, porque vos oferecerem, de vez em quando, umas festarolas. O humano moderno já não quer justiça — quer entretenimento. E se o entretenimento for “de borla”, então que venham os foguetes, os brindes, os selfies com o presidente da câmara.

    Exemplo: com pompa e circunstância anuncia-se: “Dino D’Santiago vai celebrar o 25 de Abril com concerto à bola”. Grátis! Uma palavra mágica. Uma senha de entrada para o mundo encantado da ilusão fiscal. O povo rejubila. A imprensa publica. O autarca sorri. E Dino cantará neste “concerto à borla” no Montijo para 643 espectadores.

    Mas eu, Serafim, que embora gato não sou parvo, fui espreitar os bastidores — coisa que muitos humanos esquecem de fazer por preguiça ou por fé. E o que descubro? Que afinal a borla é isto: a autarquia do Montijo adjudicou, por ajuste directo, o concerto por 19.680 euros ao agente do bom do Dino. Um contrato limpinho, transparente, público — mas que a manchete “de borla” esqueceu convenientemente de mencionar.

    Reparem bem na jogada: o concerto é “de borla”, mas só para quem sacar o bilhete — e só há 643. O artista é “generoso”, mas recebe os seus 19.680 euros. E os vossos impostos, ah, esses é que são verdadeiramente generosos: pagam luz, som, segurança, divulgação e, claro, a performance “grátis” do bondoso Dino D’Santiago, que segue os princípios económicos da lei da oferta e da procura, mas com uma ‘nuance’: a oferta significa venda e a procura significa um autarca a pagar em ano de eleições com dinheiro que não é seu.

    Aquilo que é curioso é que, sendo vocês os pagadores, não se sintam lesados por não poderem ir, caso morem, sei lá, em Vinhais, ou em Olhão. Em Portugal, em abono ca vedade, “de borla” significa: “alguém pagou por ti, mesmo que tu não tenhas querido”.

    Mas a vossa servidão fiscal não conhece limites. Aceitais com um encolher de ombros. “Pelo menos é Cultura!”, dizeis, entre engarrafamentos e boletins meteorológicos. Cultura? Talvez. Mas não seria mais justo dizer que se trata de entretenimento institucionalizado com financiamento coercivo?

    A semântica, meus queridos, essa arte felina da ambiguidade, é o que vos trapaça. Dizei “subsídio”, e todos se ofendem. Dizei “apoio”, e até batem palmas. Chamai-lhe “concerto gratuito”, e ninguém se lembra de perguntar quem pagou a conta. E assim vos ides enganando, como ratos a correr atrás de um sino — ou melhor, como humanos a correr atrás de concertos patrocinados por vocês próprios, convencidos de que são prendas do céu.

    Deixai-me então fazer uma comparação justa: eu, Serafim, recebo comida sem trabalhar. Vós, humanos, trabalhais para pagar comida, electricidade, água, internet, gasolina, creche, IRS, imposto de circulação, IMI, taxa de saneamento, e agora, também concertos “grátis”. A diferença? Eu sei que não mereço o que recebo — vós acreditais que não mereceis o que vos tiram. E no entanto, calais-vos.

    A ‘borla’ custa 19.680 euros, o que significa para 643 espectadores, um custo de mais de 30 euros por bilhete.

    Sim, o vosso 25 de Abril trouxe liberdade. Mas também vos ensinou a aceitar migalhas embrulhadas em slogans. “Abril é festa!” — dizem. E quem não gosta de festa? Sobretudo quando é paga por todos, mas frequentada por poucos. O povo não tem pão? Dêem-lhe música. E de preferência, com um cachet para o Dino D’Santiago acima do salário mínimo.

    Portanto, quando virdes a próxima manchete a prometer cultura “para todos”, perguntai logo: quem é “todos”? E sobretudo, quem pagou a conta? Enquanto isso, eu, Serafim, repousarei nas almofadas com a altivez dos que nada devem nem pagam. E se por acaso me apetecer, farei um ronrom cínico — não por amor, mas porque aprendi, como vós, que um pouco de fingimento mantém a gamela cheia.

    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

  • A justa denúncia de um lamentável caso de autocensura no PÁGINA UM

    A justa denúncia de um lamentável caso de autocensura no PÁGINA UM


    Confesso, meus caros, que hesitei em escrever este texto. Primeiro, porque sou gato. Segundo, porque sou gato de princípios. E terceiro, porque sou o Serafim, um nome que impõe — entre um bocejo e outro — uma certa solenidade aristocrática. Mas há limites para tudo, inclusive para a paciência de um gato de dezasseis anos, preto e branco como a verdade e a mentira, habituado a ver o seu dono, o excelentíssimo Pedro Almeida Vieira, anunciar-se a quem o queira ouvir (e também a quem não queira) como homem de coragem, independência elevadíssima, arauto da liberdade de expressão, e paladino da luta contra a censura e a pressão.

    E não minto. Não sou dado a calúnias. O Pedro é isso mesmo: é dos poucos humanos que conheci (embora não tenha conhecido muitos, porque sofro de agorafobia) que se ergue com elegância contra os ventos da hipocrisia e os relinchos da ignorância. Mas… há um “mas”; há sempre um “mas”. E esse “mas” merece uma arranhadela pública. Porque se não for eu a fazê-la, quem a fará? Não pactuo com incoerências, mesmo que venham do meu abrigo humano favorito — e único.

    Ora, passo a expor o meu reparo: num daqueles dias em que o Pedro estava escandalizado (e com razão) com mais um exercício de indigência estatística da mui ilustre Entidade Reguladora para a Comunicação Social — sim, essa mesma, a ERC, que, com pose de gravidade institucional, achou perfeitamente razoável que, numa sondagem eleitoral, 400 entrevistados dessem origem a uns portentosos 1032 votos declarados “de certeza” — o meu dono redigiu um editorial demolidor. Uma peça de prosa virulenta, sem concessões, como deve ser. Um texto onde não deixou pedra sobre pedra. A burrice — digo, a ingénua elasticidade aritmética — dos digníssimos cinco membros do Conselho Regulador foi exposta com um brilho quase clínico.

    Até aqui, tudo bem. Eu ronronava de orgulho enquanto o via rever vírgulas com um olhar de inquisidor matemático. Mas eis senão quando… no momento de ilustrar visualmente a dita burrice estatística e institucional, o Pedro — pasmem-se! — acanhou-se. Auto-censurou-se. Cortou uma das ilustrações preparadas. Uma que, à minha felina sensibilidade, era de uma justeza simbólica irresistível: mostrava, de forma expressiva, os cinco membros do Conselho Regulador da ERC com umas encantadoras, e cientificamente apropriadas, aurículas asininas.

    Ora, vamos por partes, como diria o cirurgião do bom gosto:

    — Eram burros reais? Não.

    — Era ofensivo? Só se a verdade o for.

    — Era ilegal? Apenas para quem considera o humor um crime hediondo.

    Foto original dos cinco membros do Conselho Regulador para a Comunicação Social que consideraram nornal que, numa sondagem, 400 pessoas pudessem votar “de certeza” em vários candidatos ao mesmo tempo, originando assim 1032 votos.

    Não consegui perscrutar os motivos da auto-censura. Talvez um sobressalto momentâneo de diplomacia. Talvez um receio difuso de parecer demasiado… gráfico. Ou, quem sabe, uma espécie de espasmo editorial, um reflexo condicionado ao espectro da queixa que, por estas bandas lusas, se move com mais rapidez que um rato no rodapé da história.

    Mas não, não havia mal nenhum na ilustração. Era, aliás, uma homenagem à iconografia clássica da pedagogia popular. As orelhas de burro são um símbolo universal da ignorância convicta, da presunção em sabedoria que ignora a aritmética, da solenidade que mascara o disparate. Negá-las é negar a própria Zoologia Moral — uma ciência que, aliás, os humanos deviam estudar com mais afinco.

    E, sendo assim, cá estou eu, Serafim, a exercer um duplo direito: o da liberdade de expressão e o da justiça felina. Considerando que o Pedro Almeida Vieira é, felizmente, um defensor genuíno dos seus comentadores — publica tudo, mesmo o que o contraria, e nunca rosnou a uma crítica bem redigida — eu, Serafim, declaro:

    Primeiro, esta minha Arranhadela Pública como forma de censura contra a auto-censura.

    Segundo, anuncio a revelação da ilustração auto-censurada, a bem da clareza, da liberdade e, sobretudo, do rigor taxonómico.

    Ilustração auito-censurada (usada com recurso a inteligência artificial) pelo Pedro Almeida Vieira.

    Porque aqueles senhores e aquelas senhoras — que, infelizmente as há, apesar de possuírem pernas mais aconchegantes — merecem cada milímetro daqueles apêndices auditivos. E note-se: não falo em tom pejorativo. “Orelhas de burro” é, neste caso, um termo técnico, um conceito cientificamente sólido para caracterizar comportamentos que combinam lentidão intelectual, incapacidade de reconhecimento de erro e uma resistência heróica ao ridículo.

    Se me perguntarem se voltarei a publicar estas Arranhadelas, direi que sim, sempre que a honra do jornalismo, da estatística ou da Zoologia Moral assim o exija. Se me acusarem de ser um gato irreverente, insolente ou até panfletário, aceitarei com elegância. Mas ao menos ninguém me acusará de cobardia. Isso deixo para os humanos que cortam as orelhas das imagens com medo que os burros sintam ofensa.


    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

  • Expresso, ‘provavelmente’ a melhor cama de gato

    Expresso, ‘provavelmente’ a melhor cama de gato


    Confesso que nutro uma estima singular pelo Expresso. Não pelo seu conteúdo, que normalmente serve para tapar as caixinhas de areia conceptuais onde os humanos enterram opiniões sem cheiro nem sabor. Mas pelo seu volume. Ah, o volume! Poucas coisas na vida de um felino exigente superam o prazer de um fim-de-semana morninho, empoleirado numa pilha de cadernos do Expresso – um para as costas, outro para as patas, um terceiro para manter as orelhas longe das correntes de ar. E o suplemento de Imobiliário? Excelente para forrar o chão da varanda, especialmente porque, tal como as casas anunciadas lá dentro, não serve para mais nada.

    Mas passemos ao que interessa. Ouvi a novas do metro, onde humanos apressados não têm o poder de contemplação dos gatos sobre esta maravilha da publicidade contemporânea do Expresso:

    Vendido separado, o 1.º caderno seria provavelmente o melhor jornal do país.

    Ora, vamos lá por partes. Se calhar sou só eu, um simples gato, que não percebe a subtileza humana. Mas não será isto uma forma muito pouco elegante de dizer que o resto do jornal é, digamos, enchimento? Que as trinta e duas páginas sobre condomínios de luxo em Lisboa, as listas de vinhos tintos “imperdíveis” e a crónica do consultor financeiro sobre ESG são mais supérfluos do que um rato de borracha? Não me interpretem mal: eu gosto de enchimento – especialmente se for uma almofada ortopédica –, mas quando até o próprio dono da almofada admite que o recheio é dispensável, começo a ponderar se não estaria melhor servido com um tapete de sisal.

    Em primeiro lugar, aprecio a sinceridade do Expresso em anunciar que só um pedaço da criatura é que presta. Assemelha-se ao lavrador sério anunciando o seu porco: “Se vendermos só o lombo, esta é provavelmente a melhor carne da feira. O resto, bom, é presunto duvidoso e chispe que serve apenas para o cozido à portuguesa da tasca do Fagundes.”

    Um golpe de génio, sem dúvida. Mas um golpe que também soa a desespero de quem já não sabe que qualidade apregoar. O jornal inteiro? Não. Só mesmo o primeiro caderno, ou vá lá, o caderno de Economia, que talvez, quem sabe, seja digno do título de melhor jornal do país. E isto “provavelmente”, claro, para manter aquele aroma de incerteza que tanto agrada aos prudentes e aos indecisos.

    E depois disso vêm, portanto, os apêndices: o caderno de Economia, a revista E, e outras quinquilharias editoriais, que a julgar pela lógica desta publicidade, só não servem para forrar gaiolas porque seria uma ofensa às aves.

    Mas o que me diverte mais – e aqui lanço a pata sem remorso – é este complexo de superioridade mascarado de modéstia. É como se um gato de pelo farfalhudo e dieta de latas gourmet se apresentasse na rua dizendo: “Provavelmente, sou o gato mais elegante daqui.” Sabendo que o vizinho, um rafeiro sardento, já foi capa de um suplemento de lifestyle. E que o cão da esquina, com todo o respeito, continua a ser mais lido que a crónica do João Vieira Pereira.

    Seja como for, serei sempre um consumidor do Expresso, enquanto existir. E com todos os cadernos, bons ou maus, cama completa, porque uma superfície dupla face sempre concede maior conforto. Afinal, o verdadeiro valor do jornal está aí: na maciez e na capacidade de isolar o frio do chão. Um mérito que, diga-se, raros periódicos podem reivindicar com tamanha eficácia.


    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

  • Froes, o filho de frades, a pregar mentiras

    Froes, o filho de frades, a pregar mentiras


    Há maleitas nos gatos que se confundem com as dos humanos: a rinotraqueíte, por exemplo, deixa-me com os olhos em lágrimas e o nariz a pingar, levando quem assiste a julgar que estou às portas de São Pedro. Ora, quem já viu um gato a espirrar sabe bem que, mesmo entre espasmos de nariz, pode, logo a seguir, caçar umas lagartixas ou saltar prateleiras. É tudo uma questão de saber distinguir um espirro de um pandemónio. E é aqui que entra o Dr. Filipe Froes, que ganhou a vida a anunciar o fim do mundo há uns pares de anos.

    Ora, o Dr. Froes – assalariado duplo, do Serviço Nacional de Saúde (vulgo, os nossos impostos) e das farmacêuticas (pelas palestras e pelos aplausos comprados) – acordou numa dessas manhãs em que a vontade de se indignar lhe falou mais alto do que o bom senso, o que lhe sucede muito. E assim pegou no teclado e, como quem prescreve antibiótico para uma gripe, escreveu isto:

    Robert Francis Kennedy Junior (RFK Jr.), nascido a 17 de Janeiro de 1954, foi confirmado a 13/02/2025 como Secretário da Saúde e Serviços Humanos (equivalente a Ministro da Saúde) da administração Trump, nos EUA.
    Partilho algumas ilustrações da sua intervenção a liderar o combate ao maior surto de sarampo desde 2015, nos EUA, e que já contabiliza 2 óbitos. Dois óbitos de não vacinados!
    De referir que, nos EUA, o sarampo foi considerado ‘eliminado’ em 2000, mas a desinformação e a hesitação vacinal permitiram o regresso desta desgraça individual, comunitária e de saúde pública.

    Estas figuras ilustram a intervenção de RFK Jr. e explicam porque há juniores que nunca chegarão a seniores…

    Entre sestas e arranhões no sofá, fui ver os tais “dados”. Consultei o site do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) – supostamente, a fonte oficial sobre doenças humanas. E o que dizem os dados? Que o sarampo nos Estados Unidos teve, sim, picos, mas de fazer corar um mísero espirro felino. Depois de 1993, o ‘bicho’ desapareceu das estatísticas como rato de despensa bem fechada. Apenas reapareceu, discretamente, em surtos pontuais.

    E será que se está, com 222 casos no território norte-americano, com o “maior surto de sarampo desde 2015”, como diz o bom do Dr. Froes? Vejamos o que dizem as estatísticas oficiais, que aqui se podem descarregar. Primeiro, que foi muito conveniente ao Dr. Froes escolher o período (desde 2015), porque em 2014 houve 667 casos de sarampo, não dando jeito se se quiser comparar com 2025.

    Bem sei que maior é um conceito estatístico diferente para o Dr. Filipe Froes, que andou toda a pandemia da covid-19 a dizer que esta era bem pior do que a gripe espanhola. Se, para o Dr. Filipe Froes, o último pode ser o pior e o péssimo pode passar a bom, qual o problema se as estatísticas da saúde do CDC insistem em dizer que em 2018 houve 381 casos, em 2019 houve 1274 casos e em 2024 houve 285 casos? Decrete-se já, pela pena do Dr. Filipe Froes, que 222 é maior do que 381, maior do que 1274 e maior do que 285, para assim se garantir que os Estados Unidos, com 222 casos, estão perante o “maior surto de sarampo desde 2015”.

    Dados estatísticos do CDC.

    Chamar a isto “o maior surto desde 2015”, como se fosse o regresso da Peste Negra, é digno de um drama shakespeariano protagonizado pelo próprio Dr. Froes no papel de Cassandra, mas com menos credibilidade. Dois óbitos, diz ele! Dois! Numa população de quase 330 milhões de almas e que tem muitos mais problemas de saúde do que o sarampo. Basta, aliás, reparar que a taxa de mortalidade infantil nos Estados Unidos é cerca de 50% pior do que em Portugal.

    O mais engraçado – ou trágico, conforme o ponto de vista – é que o Dr. Froes escreve sobre este surto como se o nosso responsável deste sector, Robert F. Kennedy Jr., tivesse aparecido com um balde de sarampo na Casa Branca e começado a distribuí-lo como quem dá guloseimas na noite de Halloween.

    O surto de 2025, que o ilustre doutor denuncia com a solenidade de um comício vacinal, acontece num contexto onde o sarampo já andava a rondar os Estados Unidos. E se há coisa que os dados mostram (até os gatos conseguem ver!) é que a linha das infecções permanece rasteirinha no gráfico – só levantando a patinha aqui e ali para nos lembrar que a vida não é estéril.

    Publicação do Dr. Filipe Froes na rede social Facebook.

    Assim, querido Dr. Froes, se quer acusar alguém de trazer pragas, olhe primeiro para as suas farmacêuticas, não vá dar-se o caso de algum medicamento seu andar a causar mais efeitos adversos que o sarampo.

    Ah, e quando ele quiser falar de “juniores que nunca chegam a seniores”, olhe para o seu apelido: há quem defenda que Froes é sobrenome dado a descendentes ou protegidos de religiosos, ou eventualmente a indivíduos ligados a ordens monásticas, no sentido de “filhos dos frades”…


    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

  • A Mensagem do Moedas

    A Mensagem do Moedas


    Confesso que não sou dado a entusiasmos precipitados. Enquanto felino de elevada estirpe e instinto crítico, aprendi, ao longo das minhas dezasseis vidas – que já valem agora mais de 80 anos das vossas –, que a pressa é um atributo dos caninos e dos tolos. O verdadeiro entendimento das coisas requer o seu tempo entre um longo espreguiçar sobre a cómoda e um piscar de olhos estudado, incluindo, claro, um juízo certeiro e implacável.

    Na minha prolongada convivência com os humanos, já nada me surpreende. Poucos resistem à tentação de um mimo fácil – e quem diz mimo, diz dinheiro, que sempre melhora o conforto, pois não há nada melhor do que uma ração abundante e regular. Confesso que eu, felino aristocrático e de espírito livre, se por vezes me deixo enganar pela lata de patê aberta, não deveria questionar as práticas dos jornalistas, esses seres bípedes de convicções. Mesmo daqueles espécimes que as fazem maleáveis, sempre prontos a ronronar perante a promessa de uma almofada quente.

    Mas, enfim, não consigo evitar.

    E, portanto, soube que a autarquia de Lisboa decidiu atribuir bolsas para jornalistas e fui esquadrinhar o método e critério. Pois bem, num esforço verdadeiramente inovador, o regulamento permite que a autarquia, através de um júri escolhido a preceito – e que até inclui a directora de marketing da Ernst & Young –, conheça antecipadamente os temas que os jornalistas candidatos iriam cobrir. Não é admirável? Evita-se assim o incómodo da dúvida, o risco do escrutínio desnecessário, a possibilidade de uma investigação inoportuna.

    De facto, se há coisa que sempre me irritou nos cães, além do seu permanente entusiasmo idiota, é aquela mania de escavar a terra à procura de ossos. Sempre achei uma actividade imprópria de criaturas civilizadas. E, pelos vistos, a Câmara de Lisboa também.

    De entre as muitas candidaturas submetidas a este generoso programa, houve uma entidade que se destacou: o jornal Mensagem de Lisboa, que, com um brilhantismo capaz de fazer corar qualquer artista de circo, conseguiu abocanhar logo cinco das dez bolsas disponíveis na categoria de jornalismo. Não satisfeito, ainda levou um sexto prémio noutra secção. Um feito notável!

    A sua directora, Catarina Carvalho, numa prosa que combina a altivez do gato gordo que monopoliza o sofá com a alegria do cãozinho que abana o rabo para o dono, anunciou com entusiasmo a sua vitória: “A Mensagem é, de longe, o órgão de comunicação mais representado. […] Isto enche-nos de orgulho pelo que diz do nosso conhecimento e relação com a cidade de Lisboa.”

    Ah, como eu a entendo! Até porque uma das bolsas, no valor de 10 mil euros, foi para ela escrever sobre restaurantes. Também eu me orgulho da relação com a casa onde habito, embora até tenha algumas queixas a fazer da comida – se calhar, deveria fazer crítica gastronómica para o PÁGINA UM. Conheço-lhe cada recanto, cada móvel, cada canto debaixo do qual já fiz desaparecer um brinquedo – e fiz outras coisas inconfessáveis, pois o meu dono insistiu em nunca me esterilizar e a velhice me faz esquecer, por vezes, as boas maneiras.

    Sei perfeitamente onde está o aquecedor nos dias frios, a manta macia e, claro, o humano que melhor me coça o pescoço. Conhecer bem um território é essencial para nele se viver com conforto – e Carlos Moedas sabe disso, e usa as moedas do erário público para assegurar isso. Tanto assim que o juri, pela leitura da acta, fez figura de corpo presente. De facto, os dois membros da Equipa Executiva, funcionários da empresa municipal EGEAC, fizeram “aos membros do júri um resumo da lista das candidaturas ordenadas pela média aritmética”, deduzindo-se, assim, que o dito júri nem sequer viu as candidaturas em concreto. A ‘coisa’ resolveu-se numa hora, de acordo com a acta – nada melhor do que decisões de secretaria para evitar conflitos e horas perdidas.

    E, neste cenário, a directora do Mensagem de Lisboa fez ainda questão de recordar que este é o único apoio estatal ao jornalismo em Portugal e saudou a iniciativa, o que já não a abona como jornalista porque mostra que ignora que uma autarquia não integra o Estado. Enfim, mas que importa isso? Na verdade, compreendo que a Catarina Carvalho saude este apoio financeiro, “sobretudo nos tempos conturbados que se vivem para o jornalismo” – e uma das causas desses “tempos conturbados” parece-me ser a falta de transparência; e uma outra, a promiscuidade com o poder.

    Eu próprio, hélas, saudaria uma iniciativa que garantisse que o meu atum diário fosse subsidiado e entregue em casa pela Câmara Municipal de Lisboa. Poupava-se trabalho, evitava-se a necessidade de miar, eliminava-se o risco de morder a pata errada. Para quê o incómodo de saltar sobre a bancada da cozinha e esgatanhar algo para mordiscar, se a Câmara Municipal me entrega o atum para que eu não precise de caçar ratos?

    E, assim, abre-se um novo modelo de jornalismo: não morde, não arranha, não ferra. Tal como um gato agradecido, terá um jornalismo que se enrosca no colo do poder, que se alimenta dos seus recursos e que, em troca, apenas pede para continuar a existir. Não investiga, não denuncia, não incomoda. Vive, plácido, nas boas graças do financiador.

    É, em suma, um jornalismo de casa: domesticado, bem alimentado, castrado da sua natureza investigativa. Nada que me choque demasiado – tenho essa experiência na minha já longa vida, excepto na parte da castração.


    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

  • Alterações climáticas em tempos de guerra?

    Alterações climáticas em tempos de guerra?


    Ah, os humanos! Tão fascinantes nas suas hipocrisias e contradições. Passam séculos a aprimorar a arte de se destruírem mutuamente e agora, num súbito assomo de consciência ecológica, preocupam-se com as emissões de dióxido de carbono (CO₂) da guerra na Ucrânia. Que encantador! Para um gato como eu, do alto da minha dignidade supostamente irracional, nada é mais irreal do que ver os sapiens a tentar medir tragédias em toneladas de um gás invisível.

    A guerra na Ucrânia já dura três anos, e os cálculos vão surgindo: bombardeamentos, tanques, mortes e estropiados, destruição e reconstrução – tudo a contribuir para um suposto impacto ambiental devastador. Isso mesmo. Um estudo ucraniano estimou agora em 200 milhões de toneladas de CO₂ as emissões associadas ao conflito e deseja que seja imputado à Rússia um “custo social do carbono” de 185 dólares americanos por tonelada de CO₂, o que, contas feitas, dá uma dívida de 42 mil milhões de dólares.

    Acho bem! Mas se assim é, se uma guerra fratricida pode ser absurdamente analisada desta forma, então que se façam as contas bem feitas e se deduza o “benefício” ambiental das mortes – se é que se pode reduzir a questão da guerra a uma mera contabilidade carbónica.

    Pois bem, como felino rigoroso, fiz as minhas contas – entre um alongamento e outro sobre a almofada. Os números que encontrei, excluindo erros de desinformação, foram os seguintes:
    • Militares ucranianos mortos: 46.000
    • Militares russos mortos: 90.000
    • Civis ucranianos mortos: 12.000
    • Total de vidas perdidas: 148.000

    Ora, para calcular a pegada de carbono dessas vidas abruptamente interrompidas, calculei os anos de vida perdidos. No caso dos soldados, quase todos jovens, considerei que cada um perdeu, em média, 42 anos de vida de alegrias e tristezas; no caso dos civis, considerei, por serem em regra mais idosos, que perderam 22 anos de vida, em média. Temos, assim, 5.976.000 anos de vida eliminados, certo? Sigam então o meu raciocínio. Considerando que cada pessoa, em média, é responsável pela emissão de 6 toneladas de CO₂ por ano, “evitaram-se” por esta via um total de 35,8 milhões de toneladas de CO₂. Estão a ver os lindos e absurdos raciocínios quando se quer falar de alhos num assunto de bugalhos?

    Mas não é tudo! Então, e se “contabilizarem” as crianças que haveriam de nascer daqueles que morreram no campo de batalha? Ora, dizem as estimativas que, sem a estúpida guerra, cada pessoa que acabou morta teria contribuído para 0,65 filhos. Ou seja, não nascerão 92.300 crianças. Menos emissões de CO₂, certo? Claro que sim. Se assim for, no prazo de 50 anos, e mesmo contabilizando uma pegada média de 5 toneladas por ano, temos que esses não-nascimentos “graças” à guerra da Ucrânia representarão mais uma poupança de 23 milhões de toneladas no prazo de meio século.

    Portanto, para os autores deste absurdo estudo que aponta, no meio de uma carnificina humana, que houve 200 milhões de toneladas de CO₂ “emitidas pela guerra”, eu contraponho que, então, nas suas belas contas, deduzam 58,8 milhões de toneladas. Ou seja, ficamos assim a saber que, no balanço de uma guerra, há também que considerar uma suposta “eficiência climática”.

    Alguém com um resquício de sensibilidade – ou, pelo menos, um resquício de cérebro – perceberia o absurdo disto.

    Se for para continuar esta lógica, os humanos talvez devessem promover guerras como política de sustentabilidade ambiental! Quem precisa de reduzir emissões quando pode simplesmente reduzir a população? Mas melhor ainda: sugiro que os humanos comecem a olhar para a pegada de carbono dos gatos. Eu próprio, com a minha dieta de patés refinados e o direito inalienável a dormir 16 horas por dia sem culpa, sou um modelo de eficiência carbónica.

    Enfim, a guerra é um flagelo, por si, e tentar medi-la pelo seu impacto em gases de efeito de estufa é um exercício de desumanização que até eu, um simples felino, considero deplorável.

    Agora, se me permitirem, vou dormir sobre esta reflexão. Porque, ao contrário dos humanos, os gatos sabem quando parar para reflectir.


    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

  • A tragédia de Lisboa, segundo um urubu de plantão

    A tragédia de Lisboa, segundo um urubu de plantão


    Com um misto de perplexidade – e um bocejo profundo – venho eu aqui, da almofada onde descanso, comentar o terrível, devastador e absolutamente catastrófico evento sísmico que abalou Portugal – pelo menos segundo a versão brasileira do Público.

    Sim, parece que um terramoto de 10 segundos na Costa da Caparica, com uma força aterradora de 4,7 na escala de “pouco me importo”, foi tratado pelos nossos irmãos tropicais como se estivéssemos na Lisboa de Todo-os-Santos de 1755 e esta tivesse sido engolida por um abismo e os sobreviventes vogassem pelo Tejo.

    Segundo uma epopeica peça jornalística, o pequeno tremor causou “gritaria e choro”. Imagino os jornais japoneses a ler isto e a terem uma síncope colectiva de riso. Mas não nos precipitemos. Vamos aos factos, que foram relatados ao melhor espírito de um ‘urubu de plantão’.

    A jornalista Lourdes Souza, brasileira residente há seis anos na capital, afirmou, com horror, que “nunca sentiu um tremor tão forte”. Ora, eu próprio já senti abalos mais intensos quando o meu desastrado dono tropeçou no tapete enquanto me levava a comida! Se formos por essa bitola, exijo que o Público Brasil faça também uma reportagem sobre os tremores de terra causados pela queda ocasional do meu pratinho de ração.

    Já o cônsul-geral do Brasil em Lisboa, Alessandro Candeas, mostrou ser homem menos sensível ou medricas, chegando a confessar, à lancinante reportagem do Público, que “de início, achei que fosse um bondinho mais pesado a passar em frente do edifício”. Só que não…

    Acho que ele demorou mais de 10 segundos, o tempo do tremor, a perceber o que era. E quando percebeu o que era, já fora, Notável! Eu, que sou um gato, velho mas de sentidos apurados, posso garantir-vos que o estrondo de uma vassoura me soa mais alarmante.

    E o que dizer do aposentado Lúcio Gonçalves, residente aqui na terrinha há três anos, que descreveu o evento como se estivesse em Shaanxi em 1556? Disse ele: “Tudo balançou na minha casa. Corri para fora para ajudar uma senhora que entrou em pânico.” Que coragem, que heroísmo, que bravura! Teria sido mais útil se aproveitasse para salvar um prato de comida, mas isso sou eu a pensar com sensatez felina.

    Já o chef Guga Rocha, mais dramático que um peru na véspera do Natal, anunciou ao mundo: ” “O primeiro terremoto na vida a gente não esquece. Estava tranquilo em casa e as coisas começaram a tremer.” Terrível provação. Dizem-me que o abalo numa frigideira onde se faz um omelete ao estilo francês é superior…

    Quanto ao motorista paquistanês Dani Adnan, por sua vez, relatou até que o seu carro tremeu bastante, mas eu desconfiou que terá sido porque pisou um buraco.

    Mas a melhor parte da reportagem, essa sim digna de um prémio literário, foi a confissão do analista de sistemas Rafael Argenta. Estava ele tranquilamente sentado no sofá quando sentiu o prédio balançar. “Gritei pela Juliana e descemos correndo com a Zuca”, que é a cachorrinha, que se deve ter assustado não do tremor mas do pânico do dono. Quase consigo ver a cena em câmara lenta: Juliana, Rafael e Zuca, em fuga desesperada de um tremor que durou menos do que um bocejo meu.

    E depois tivemos ainda o depoimento de Camila Wolff, prestes a sofrer uma síncope, e da Gabrielle Frigotto, que até telefonou para a polícia depois de ter pensado que fora um “caminhão”, e não um camião, que tombara na rua.

    Mas não me interpretem mal. Eu compreendo o susto. Afinal, os brasileiros não estão habituados a sismos. Mas aquilo que me fascina é como este tremor de terras, que, em Portugal, deveria ser tratado com a mesma indiferença com que um gato observa um humano a chamá-lo sem nada de relevante para oferecer, gerou um nível de cobertura jornalística digno de um evento cósmico.

    Agora, estou muito curioso para ver qual será o próximo passo editorial do Público. Por mim, adoraria que apostassem numa versão japonesa do jornal. Pelar-me-ia por saber como seria as reações nipónicas à ‘catástrofe’ desta segunda-feira.


    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

  • Malas e malapatas do Chega

    Malas e malapatas do Chega


    Confesso-me divertido com algumas propostas do Chega, ainda mais quando anunciadas em parangonas no seu órgão de comunicação doutrinário, a Folha Nacional, registado na ERC. Este curioso periódico, apesar de nem sequer ter jornalistas, ostenta um organograma respeitável: um director, uma directora-adjunta, um subdirector e um editor. Também não precisa de muito mais: afinal, 80% das suas notícias são transcrições seleccionadas da Agência Lusa. É um modelo de eficiência felina, embora pouco criativo – nem todos conseguem o brilho de um gato a caçar borboletas.

    Enfim, mas vamos ao osso – ou, melhor dizendo, à espinha; na edição semanal número 92 da Folha Nacional, publicada na passada sexta-feira, anuncia-se que o Chega propõe, com uma solenidade que beira o risível, que os políticos que desviem dinheiro percam o mandato. Ah, muito bem! Palmas felinas para tamanha sagacidade. Bravo, senhores. Mas, como gato, observo o mundo de um ponto de vista mais elevado – e muitas vezes de cima do armário –, e pergunto-me: será isto o pináculo da ambição legislativa de tão engenhoso partido?

    Edição de 7 de Fevereiro de 2025 do Folha Nacional.

    Sejamos francos, uma medida destas é tão audaciosa quanto sugerir que gatos parem de miar quando querem comida. Certamente, qualquer ser minimamente dotado de miolos percebe que quem desvia dinheiro público já devia perder o mandato – e isso sucede se, como deveria, for bater os costados na prisão. Mas, permitam-me: atendendo aos últimos acontecimentos envolvendo militantes do Chega, se a ideia é punir desvios, por que não incluir os políticos que desviam malas dos tapetes rolantes dos aeroportos? Esses, sim, têm uma habilidade quase coreográfica, uma elegância de larápio que deveria ser registada para a posteridade. Um político que exibe tal destreza merece perder não só o mandato, mas também o cartão de embarque.

    E já que estamos numa veia de moralização política, não posso deixar de propor que a medida seja extensível aos políticos que desviam crianças para pinhais, com intuitos que nem um gato de rua acharia dignos. Não é preciso ser um felino particularmente perspicaz para desconfiar de quem não consegue sequer guardar a integridade das suas sombras, quanto mais a dos seus mandatos. Talvez, neste caso, a perda do mandato seja uma punição demasiado leve. Um exílio perpétuo numa ilha repleta de ratos gigantes – mas sem gatos para os conter – seria mais apropriado.

    André Ventura. Foto: D.R./Chega

    A verdade, caros leitores, é que esta proposta do Chega é o equivalente político de um ratinho de brinquedo: muita aparência, mas pouco impacto real. No entanto, reconheço-lhes um talento inegável para a teatralidade. Já consigo imaginar o congresso partidário onde esta ideia foi aprovada, com discursos inflamados e palmas vigorosas, enquanto os ‘gatarrões’ abanam as caudas, entediados, perante tão pífios esforços legislativos.

    Deixo assim uma sugestão ao André Ventura: que tal uma proposta ainda mais revolucionária? Proclamem a extinção de todos os desvios, de malas e mandatos, de dinheiro e dignidade, e, quem sabe, até dos próprios discursos que desviam a atenção do essencial. Talvez, então, o partido possa reivindicar não só as parangonas da Folha Nacional, mas também um lugar digno na história – ou, no mínimo, um arranhão discreto na parede da política nacional.


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  • ‘A importância de se chamar Almirante’, de Oscar Alho: uma ideia de peça

    ‘A importância de se chamar Almirante’, de Oscar Alho: uma ideia de peça


    Permitam-me uma breve reflexão felina sobre uma farsa humana que se desenrolou recentemente no palco político nacional, mas que parece ter saído diretamente de uma peça de teatro. Imaginem, se quiserem, uma adaptação da célebre comédia de Oscar Wilde, mas em vez de um Ernesto temos um almirante. Portanto, eis a minha proposta para “A importância de se chamar Almirante”. A inspiração? Não é difícil de encontrar. Basta olhar para a sondagem da Pitagórica, encomendada pela TVI e pela CNN Portugal, onde Gouveia e Melo, por milagre de nomenclatura, ascendeu ao topo da lista de proto-candidatos presidenciais na sequência de perguntas a serem colocadas aos inquiridos.

    Não foi por se chamar Aarão, Abel ou Abílio – nomes que o colocariam naturalmente na dianteira pela ordem alfabética. Nem por ser o Henrique Gouveia e Melo que, na lógica das listas, deveria aparecer atrás de Ana Gomes, de André Ventura, de António Guterres, de António José Seguro e de Francisco Louçã. Não. Para a Pitagórica e para a TVI e CNN Portugal, o senhor Gouveia e Melo não nasceu Henrique. Aliás, ele até poderia ter sido baptizado Zózimo e a sua mãe ser um Zambujo e o pai um Zuzarte. Para a Pitagórica seria o mesmo: o Henrique Gouveia e Melo ou o Zózimo Zambujo Zuzarte seriam sempre alcandorados ao topo, porque se chegando ao topo da Marinha o cargo de almirante entranha-se tanto que se transforma em nome prório.

    Portanto, nesta linha lógica, Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo passa a ser Almirante Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo, tal como alguém que se chama Zózimo Zeferino Zambujo de Zuzarte Zagalo, e que se sentia marginalizado na escola primária por ser sempre o último a ser chamado, pode agora ambicionar, estando na Marinha, o topo das nominatas se chegar a Almirante.

    Eis a nova realidade lusitana: um Almirante pode até valer menos do que uma Excelência, uma Reverendíssima, uma Eminência, ou até uma Sereníssima, uma Alteza, uma Majestade, uma Santidade, uma Ilustríssima, uma Sapientíssima ou uma Digníssima. Porém, numa reviravolta que faria Oscar Wilde invejar a criatividade da política portuguesa, Almirante catapulta qualquer um para o topo, mui útil se permitir antecipar-se na sequência da avalanche de perguntas de uma sondagem antes que os inquiridos percam o interesse.

    Ora, esta manobra lembra-nos que, muitas vezes, o nome que carregamos pode ser mais poderoso do que qualquer discurso ou programa político. Afinal, “Almirante” não é apenas um título; é um fura-filas. Passa logo à frente de todos. Na verdade, é um conceito que evoca liderança, comando e autoridade. Que importa se o cidadão comum entende o que ele pensa sobre o país? A etiqueta faz o trabalho sozinha.

    E o mais irónico é que esta construção funciona. Não importa se o inquirido conhece ou não as ideias políticas do senhor Gouveia e Melo – ou até se ele tem ideias políticas. O nome faz o trabalho sozinho. É como uma campainha que ressoa antes de qualquer reflexão, temos um truque de marketing que faz acreditar que a embalagem vale mais do que o conteúdo.

    Há algo de tragicómico em tudo isto. Enquanto os cidadãos tentam compreender quem seria o melhor líder para o futuro do país, as sondagens, os media e os estrategas políticos brincam com a percepção pública como se fosse um jogo de xadrez. E, neste tabuleiro, o título de “Almirante” é uma rainha poderosa que se move em qualquer direção, deixando os peões a ver navios. Prevejo, aliás, que para as eleições presidenciais, o Almirante consiga que o nome Almirante conste no boletim de voto. Ou então, ainda haverá por aí uma surpresa se António José Seguro conseguir convencer alguém no Espaço do Cidadão de Penamacor a mudar-lhe a nominata para Almirante António José Martins Seguro. Vai vencer na certa…

    Mas deixem-me regressar ao meu lugar de observador imparcial. Sou apenas um gato, embora saiba reconhecer, além sabores da ração, quando estou num teatro bem montado. E se esta peça tem todos os ingredientes – um protagonista relutante (ou talvez não), um elenco de apoio em busca de relevância, e uma plateia que aplaude sem questionar , eu acho que então merece um dramaturgo a preceito. Proponho o Oscar Alho…


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  • O Correio da Manhã e o milagre da meia-noite (ou a aldrabice)

    O Correio da Manhã e o milagre da meia-noite (ou a aldrabice)


    Não caminho para novo e, mesmo com sete vidas, já por aqui ando há tempo suficiente para 17 passagens de ano. E, se muitas absurdas coisas no mundo dos humanos já eu vi, mais ainda costumo ver nas páginas do Correio da Manhã, em particular em cada 1 de Janeiro. Pois bem, em 2024, como de costume, andou-se pelos hospitais, à caça de recém-nascidos. Ou melhor, dos primeiros recém-nascidos.

    Fossem os humanos como os gatos e, a cada paridela, seriam sempre mais do que as mães. No meu caso, nasci só eu e um pequeno irmão, no longínquo ano de 2008, mas não me recordo se teremos saído no mesmo minuto. Em todo o caso, presumo que outras gatas tenham parido, em Portugal, à mesma hora e ao mesmo minuto que a minha saudosa mãe. Não vos sei dizer, porque não sei quantos gatos nascem por ano em Portugal. Mas, no caso dos humanos, sei quantos nascem em Portugal e, em particular, em Janeiro.

    feet, baby, birth

    E, portanto, quatro bebés a nascerem no mesmo minuto, às 00h00, conforme anunciou o Correio da Manhã? A sério? Vamos lá com calma, com contas um bocadinho mais complicadas do que somar as latas de comida que despacho numa semana, e que implicam cálculos de probabilidade e a utilização de modelos de distribuição estatística.

    Ora, consultando as proezas aritméticas humanas e os nascimentos em anos anteriores no mês de Janeiro (cerca de 7.100), descobri que a probabilidade de quatro bebés nascerem no exacto minuto em que não sei quantos milhões de lusitanos e quejandos trincavam as passas, ao som de fogo-de-artifício, é de 0,00228%. Traduzindo para linguagem felina: seria mais provável eu aprender (ainda) a tocar piano do que essa coincidência absurda suceder em Portugal, porque, basicamente, a hipótese de ocorrer é de uma vez em cada 43.860 anos.

    Mas, claro, é sempre brindemos e deliremos, não com um, não com dois, não com três, mas logo com quatro “primeiros bebés do ano”. Eu até entendo o fascínio. Os humanos adoram competições ridículas. Mas, por amor a um prato de sardinhas – eu prefiro fiambre –, será que ninguém se questionou na redacção do Correio da Manhã sobre o rigor desta coisa? Ou melhor, sobre o ridículo de quatro bebés nascerem no mesmo minuto: na Guarda, em Castelo Branco, em Coimbra e em Vila Franca de Xira?

    Em vez de se preocuparem com a saúde dos miúdos ou com o apoio às famílias, o Correio da Manhã andou a cronometrar partos como se fosse a final dos 100 metros nos Jogos Olímpicos. A única diferença é que, em vez do Usain Bolt, temos o Guilherme, o Gonçalo, a Adelina e o Théo. Só fiquei com uma dúvida: será que, nesta corrida ao minuto, o photo finish deu a vitória ao Guilherme, da Guarda? É que só este teve direito a ser revelado como filho da Cláudia e do Luís…

    Muito gostaria eu de saber quem certifica estes nascimentos. Será o relógio da maternidade, ajustado com precisão suíça e calibrado com uns copos de tinto pelo obstetra de serviço? Ou será o tio distraído, a olhar para o telemóvel enquanto come as passas e grita: “Já nasceu! Às 00h00, de certeza!”?

    Portanto, ou assistimos ao maior alinhamento cósmico da História dos nascimentos, a rivalizar com o Big Bang, ou andou alguém a ‘ajeitar’ os minutos para caber tudo no espectáculo de jornalismo…


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