Autor: Serafim

  • 12 piscinas: o esgoto da Lusa vai para a torneira da imprensa

    12 piscinas: o esgoto da Lusa vai para a torneira da imprensa


    Há uma tendência ancestral e teimosamente persistente entre os humanos: a de atribuírem aos animais características que, com espantosa frequência, revelam mais sobre a natureza dos próprios humanos do que sobre as ditas criaturas.

    O porco, por exemplo, é acusado de sujidade — como se não fosse o humano a largar beatas na praia e microplásticos no oceano. O cão, pobre besta devotada, é elevado como símbolo de lealdade, mas também diminuído como exemplo de subserviência. A ovelha, coitada, é tida como seguidora acéfala, mesmo quando os rebanhos humanos seguem qualquer influencer ou político para o precipício. A toupeira é sinónimo de cegueira, o burro de pouca inteligência. Felizmente, jamais se atreveram a colar aos gatos algum defeito essencial: continuamos altivos, discretos, elegantes, independentes e, quando necessário, sabemos arranhar com propriedade.

    E porque arranhar é também a arte da lucidez, aqui me dou ao trabalho — com toda a paciência felina que a idade me concedeu — de corrigir os disparates que certos humanos jornalistas andam a espalhar aos sete ventos, com a confiança típica de quem se julga acima da tabuada. Refiro-me, claro, a uma notícia que se esvaiu pela imprensa portuguesa, produzida sob o inefável selo da Lusa, que cada vez mais se parece menos com uma agência de media, e mais com uma agência de medíocres.

    Comecemos pelo dado central da peça noticiosa: a afirmação de que “Portugal continental tem perdas de água anuais que dariam para abastecer o país por três meses, cerca de 180 milhões de metros cúbicos, o que equivale a desperdiçar 12 piscinas olímpicas por hora.”

    A informação foi repetida, por agora, e sem pestanejar, pela RTP, pela SIC, pelo Correio da Manhã, pelo Público, pelo Jornal de Notícias, pelo Observador, pela TSF, pelo Jornal Económico, pelo Eco, pelo Notícias ao Minuto – e imaginem o que vai por aí fora se até o Diário do Minho e o Notícias do Sorraia serviram de torneira do ‘take’ da Lusa.

    water falling from faucet in grayscale photography

    Façamos agora as contas para perceber a aselhice e acefalia do jornalismo lusitano que serve de caixa de ressonância da Lusa como quem diz: “já tenho mais uma notícia para alimentar papalvos”. E vou fazer as contas com método, como me ensinou um velhíssimo livro de aritmética da quarta classe que desencantei da biblioteca do meu dono.

    Portanto, a perda anual de água, segundo os dados, é de 180 milhões de metros cúbicos por ano. Sabemos que o ano tem 365 dias, 24 horas por dia, o que perfaz:

    365 dias × 24 horas = 8.760 horas/ano

    Dividindo os 180 milhões de metros cúbicos por esse total de horas, obtemos:

    180.000.000 m³ / 8.760 h = 20.548 m³/hora

    Agora, tomemos a medida de uma piscina olímpica com as dimensões regulmantares de 50 metros de comprimento, 25 metros de largura e 2 metros de profundidade — o que dá:

    50 × 25 × 2 = 2.500 m³

    Muito bem. Portanto, o número de piscinas por hora é:

    20.548 m³/h ÷ 2.500 m³ = 8,22 piscinas olímpicas por hora

    E não 12. Não 11. Nem sequer 9. São 8,22 — redondamente. Qualquer aluno mediano do primeiro ciclo – embora a mediana no que diz respeito aos conhecimentos matemáticos no Jornalismo português me pareça medíocre – teria feito esta conta num papel de embrulho. Mas não o jornalista da Lusa, que ignora as regras básicas da divisão e, por tabela, condena à ignorância toda uma cadeia de replicadores mediáticos. E condena porque os replicadores mediáticos na restante imprensa bebem tudo mesmo que seja esgoto.

    Eis a gravidade do erro: ao dizer que se perdem 12 piscinas por hora, em vez de 8,22, estão a inflacionar o desperdício em 46%. Sim, quarenta e seis por cento. Não é uma margem de erro, é um erro com margem. Se aceitássemos a conta errada como verdadeira, então o total de desperdício anual seria de:

    12 piscinas/hora × 2.500 m³/piscina × 8.760 h/ano = 262.800.000 m³

    Ou seja, em vez de 180 milhões, estaríamos a falar de quase 263 milhões de metros cúbicos — mais 83 milhões de m³. É como dizer que alguém pesa 60 quilos quando, afinal, pesa quase 88 — é a diferença entre estar magro como um galgo e estar gordo que nem um texugo… Caramba, estou aqui a discriminar os galgos e os texugos…

    swimming pool jumper

    Há quem diga: “É apenas um número, o importante é sensibilizar para o desperdício”. Pois digo-vos, com os meus bigodes bem aprumados: quando se abdica da verdade num número, é-se capaz de a trair em tudo o resto. O problema não é apenas matemático, é jornalístico.

    O mais preocupante neste episódio não é a incompetência da Lusa — essa já vem com a casa —, mas sim a repetição acrítica pelas redacções que se dizem “de referência”. O Público, outrora orgulhoso da sua suposta sofisticação editorial, publica sem pestanejar a mesma tontice. A TSF, sempre pronta a ler o que lhe metem à frente, propaga a piscina errada. E o Correio da Manhã, claro, usa a imagem para compor o alarmismo do costume. A RTP repete o que a irmã de escrita vomita. Entre todos, não houve um a verificar. Nenhum pensou. Nenhum dividiu. Nenhum acertou.

    Este tipo de jornalismo — ou melhor, churnalism, como tão bem já dissertou a minha estimada Elisabete (que me cuida com denodo e me leva às minhas consultas geriátricas) nas suas lúcidas e arranhantes crónicas — é hoje dominante. Não se escreve para informar, escreve-se para preencher, para servir os fluxos, os deadlines, os motores de indexação e os títulos sonantes. Já ninguém confirma, nem faz revisão, ninguém edita. Publica-se o que vem da torneira da Lusa e pronto. É jornalismo de pipeline, ou talvez mesmo de esgoto.

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    E o pior é que não aprendem. Nem quando são corrigidos. Porque uma correcção implica reconhecer o erro, e para isso seria preciso ter vergonha — ou um pingo de amor-próprio editorial. Mas a vergonha, como a Matemática, parece estar ausente da maior parte das redacções lusitanas. São burros por natureza.

    Termino com uma nota felinamente esperançosa: se algum dia alguém escrever que “o gato Serafim gastou em leite o equivalente a 30 tigelas por hora”, não deixarei de vir explicar que, se bebo 200 ml por hora, isso dá apenas 1 tigela — e as outras 29 são invenção de quem nunca conviveu com um gato nem com a aritmética. Até lá, continuo a lamber as patas com a tranquilidade de quem sabe dividir, com garras.

    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

  • Eis o Filipe Santos Costa: de assalariado socialista até jornalista performativo

    Eis o Filipe Santos Costa: de assalariado socialista até jornalista performativo


    Há quem diga que o jornalismo moderno se confunde com entretenimento. E não sem razão: há por aí jornalistas que, julgando-se oradores de salão, consideram um desperdício não competir com o João Baião, o Goucha, a Cristina Ferreira — ou mesmo o Ricardo Araújo Pereira.

    Podem enganar os incautos, mas a mim, gato velho, de bigode sisudo e memória de quinze vidas, não me iludem: são como aquele rato que se disfarçava de filósofo para dar sermões, não para caçar verdades. Agora caça-se protagonismo.

    E como sou caçador por natureza, hoje apanhei um belo exemplar: Filipe Santos Costa — ou, se preferirem, o Filipe das Crónicas em 3 Minutos, que inaugurou um novo género: o jornalismo-palhaçada.

    Filipe apresenta-se nas redes com um ar híbrido entre hipster do Chiado e professor universitário reformado de Tóquio. O seu perfil é tão performativo quanto os vídeos que agora produz, onde se despe e veste entre takes — literal e metaforicamente. Ali vende-se pose. E que pose! Uma pose destilada com esmero, como se tivesse sido ensaiada diante de um espelho com moldura de ironia. Camisa branca aberta ao peito — talvez para arejar os princípios —, óculos de intelectual pós-moderno comprados em saldos de boutique ideológica, e aquela voz… aquela voz de moralista risonho, meio catequista de sarcasmos, meio apresentador de talk-show para gente que se acha acima do povo, mas ainda assim pede um café sem açúcar no quiosque da esquina.

    Tudo servido sobre um palco virtual que mais parece um púlpito de stand-up teológico onde, em vez de evangelizar, se zurzem políticos com indignação gourmet. Não se trata de opinião: trata-se de encenação. Cada frase de Filipe Santos Costa vem com gesto, cada pausa com coreografia facial, cada olhar com ponto de exclamação. É teatro moral em três minutos — com figurino próprio e, quem sabe, patrocínio à medida. Jornalismo? Deixo à vossa imaginação.

    Rábula de Filipe Santos Costa sobre Carlos Moedas.

    Na semana passada, foi-se ao Sócrates — bode expiatório de estimação —, a quem chamou T Rex, numa apresentação de piadas estafadas onde se misturou, de forma desconcertante, La Féria e Eça de Queirós. Ontem, foi-se ao Carlos Moedas, esse homem das câmaras e dos casacos bem passados, que vive em eterno estado de inauguração — mesmo quando a obra não é sua.

    E até aqui, confesso, o Filipe até acerta. Sócrates, politicamente estendido no chão, está à mercê de todas as botas; e Moedas é um galo vaidoso, que canta no poleiro alheio e sorri para as câmaras como se protagonizasse um anúncio de pasta dentífrica. Está sempre em obra, mesmo que alheia. Está sempre a comunicar, mesmo quando nada tem a dizer. A crítica de Filipe tem mérito — reconheça-se —: Sócrates é um poderoso em desgraça perpétua; Moedas é show-off com flash incluído.

    Mas o que me faz eriçar os bigodes nem sequer é o conteúdo dos vídeos — nem sequer a linguagem jocosa. É o autor. Porque o Filipe, antes de se reinventar como justiceiro em vídeos verticais, andava entretido noutras produções. Mais discretas, mas bem mais comprometidas.

    Rábula de Filipe Santos Costa sobre José Sócrates.

    E como sou gato de memória fina, não esqueço: há poucos anos, o mesmo Filipe que hoje zurze políticos com empáfia, fazia podcasts pagos pelo Partido Socialista — sim, pagos, sim, pelo PS. Não para os criticar, mas para os embalar com perguntas respeitosas e voz serena.

    Com microfone à frente e cenário rubro, serviu de pedaleira mediática a um rol de socialistas ilustres, entre os quais se contaram (respiro felino): Manuel Alegre, Eduardo Ferro Rodrigues, Augusto Santos Silva, Francisco Assis, João Costa, Edite Estrela, Miguel Costa Matos, Ascenso Simões, João Leão, Mariana Vieira da Silva, Marta Temido, Ana Mendes Godinho, António Sales, Pedro Nuno Santos, Margarida Marques, António Mendonça Mendes, Francisca Van Dunem, Nelson de Souza, José Luís Carneiro, Matos Fernandes, Tiago Antunes, Ana Catarina Mendes, António Costa Silva, Alexandra Leitão, Tiago Brandão Rodrigues, Fernando Medina, Mário Centeno, Manuel Heitor, Pedro Adão e Silva, Pedro Siza Vieira — alguns mais do que uma vez — e, claro, o chefe que lhe ‘passava’ os cheques mensais: António Costa, então primeiro-ministro e secretário-geral do partido.

    Filipe Santos Costa na PS TV. Com quatro anos de YouTube, a conversa com Eduardo Ferro Rodrigues tinha hoje 177 visualizações.

    Ouçam, se quiserem, o seu cândido e respeitoso ronronar de então. Compare-se agora com a verve felina de justiça sumária em três minutos. E, claro, Filipe dirá — sempre sorridente — que é independente e competente. Trabalhava para o PS e dizia-se jornalista; hoje diz-se jornalista e… trabalhará para quem?

    Essa é a pergunta. Mas quanto à legalidade, tranquilizem-se: o Tribunal Administrativo garantiu que tudo estava conforme. Tal como Pilatos confirmou que a crucificação de Cristo era legal. Que é imoral, disso não tenho dúvida. E descarado também. Mas a culpa nem é só dele: é de quem, na televisão, o mete a fazer aquilo.

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  • A indignação é, afinal, coisa de macho?

    A indignação é, afinal, coisa de macho?


    Com a altivez que uma vida de observação discreta me permite, ainda mais comodamente estendido sobre mantas de lã viradas ao sol, confesso-vos que me espanta a versatilidade dos humanos no que toca à indignação. Não a uma indignação prática, que leva alguém a fechar a porta de casa com um estrondo, mas à nova indignação higienizada, tornada protocolo. Nas indignações, há agora um aroma institucional a repúdio — uma espécie de bouquet técnico de ressentimento moral bem destilado, servido à temperatura ambiente com frases compostas e duplicações virtuosas.

    Vi isso esta semana, por exemplo, numa comunicação da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), que denuncia o grave atentado verbal de um certo criador de conteúdos digitais. O comunicado, que se pretende galope retórico em defesa da honra feminina, ofereceu-nos esta pepita sintáctica: “denúncias de cidadãs e cidadãos indignados”.

    Ora, esta combinação não me escapou, tanto mais que ainda não vi — nem mesmo da parte do PAN, esses zelotas da moral doméstica — qualquer defesa do uso de “gatos e gatas”, quando se referem à minha espécie, ou de “cães e cadelas”, quando se referem aos tontos e babejantes canídeos.

    Adiante. Vamos ao foco. Não me surpreendeu, pois, que se colocassem as “cidadãs” em primeiro lugar — um hábito moderno, cavalheiresco, correctíssimo segundo as boas intenções da época, que tem algo de ternurento, como pôr uma criança a cortar a fita, e, no fundo, de condescendente, como quem diz: deixemo-las ir à frente, coitadas, que sozinhas talvez não cheguem lá.

    O problema está em que, depois, o adjectivo escorrega subtilmente para o masculino plural — “indignados” — como quem tropeça ao sair do elevador com um cartaz pela igualdade. Não estou a dizer que seja erro, não. Mas é daqueles acasos deliciosos que, como a mosca sobre o pudim, estragam a fotografia da virtude.

    E o mais curioso é isto: por entre tanto zelo, esquecem que a frase parece dizer que as cidadãs foram nomeadas com rigor de paridade, mas o sentimento colectivo da indignação ficou gramaticalmente masculino. Talvez porque, no fundo, até a indignação institucional obedece à velha norma da gramática, essa matriarca teimosa que não se deixa seduzir por ofícios em papel timbrado.

    O caso leva-me a reflectir sobre o uso doméstico da indignação, que observo com ciência empírica cá em casa. Porque, vejam bem, quando me deito de barriga no teclado, ou resolvo experimentar a consistência das persianas às quatro da manhã, não é a minha dona que se indigna. Ela, serena, resignada, encolhe os ombros, murmura algo sobre “o Serafim é como é” — e volta ao livro. Já o meu dono — esse, sim — transforma cada deslize meu numa revolução que exige a tomada da Bastilha. A sua voz sobe meio tom e meio, as sobrancelhas desenham parábolas revolucionárias, e há um vago tom de manifesto em cada exasperação: “Isto já não se aguenta!”.

    Vêem a analogia? Na CIG, como cá por casa, a indignação tende a instalar-se com mais frequência no lado masculino da frase. Coincidência? Talvez. Ou talvez a própria indignação, quando exposta em público, seja um produto mais viril do que se imagina — não por desígnio, mas por vício de estrutura. Porque, se fosse verdadeiramente feminista, talvez dissesse “cidadãs e cidadãos indignadas”, assumindo a ruptura com a norma em nome de uma nova gramática política.

    Ou então, para se ser genuinamente democrático, o correcto seria escrever “cidadãs indignadas e cidadãos indignados”, mas apenas após um sorteio rigorosamente aleatório que determinasse qual dos géneros mereceria a primazia nessa noite.

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    Mas isso não interessa agora. Aquilo que me diverte — e aqui ronrono com gosto — é que a linguagem da indignação se tornou tão previsível, tão estilisticamente ensaiada, que já não morde. Lê-se, consome-se, esquece-se. E, enquanto os comunicados se repetem com indignação certificada, o mundo gira, os gatos dormem, e a verdade escorrega como um rato entre frases pomposas.

    Pior ainda: quando tudo é indignação, nada o é. Como nas casas onde o dono grita por tudo e por nada, mas é a dona quem, sem palavras, nos dá o verdadeiro tom da justiça — com um olhar de lado, um afago na cabeça ou um prato de atum às escondidas.

    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

  • Milagre seria o camião de areia parar no ar, meditar sobre a vida e recuar

    Milagre seria o camião de areia parar no ar, meditar sobre a vida e recuar


    Como gato idoso e culto que sou — e ainda por cima preto e branco, o que me concede legitimidade para abordar temas maniqueístas —, já vi muitos milagres. Já vi ratos fingirem-se de mortos para enganar donas de casa. Já vi uma criança dar-me uma sardinha inteira sem esperar que eu fizesse um truque. Já vi um veterinário dizer que não valia a pena vacinar-me pela sexta vez contra uma doença que nem os morcegos apanham.

    Mas confesso: nada me preparou para o que encontrei no título do Correio da Manhã. Leiam, meus caros, com fé e estupefacção:

    “Milagre na A8: camião com 40 toneladas de areia embate em autocarro com 37 crianças e atira-os para ribanceira”

    Vamos aos pormenores. Primeiro, não só temos um camião que se atira a crianças e a um autocarro, como ainda os atira para uma ribanceira. Assim mesmo: atira-os. Os puristas devem achar que existe aqui um intolerável erro gramatical. Atira-os. Quem é os? As crianças, presumimos. Mas há aqui uma pequena questão de ordem gramatical: o verbo atirar é transitivo directo, tudo bem, mas o pronome os remete para um sujeito masculino plural. E se é para designar as crianças, então deveríamos ter atira-as. Sim, as. Porque, surpresa!, crianças é um substantivo feminino. Mesmo quando são 37 e alguma até joga futebol e gosta de camiões, continuam a ser as crianças.

    Mas… sucede que, analisando bem, nem há erro. Isto é, se considerarmos que o camião de areia atira o autocarro (masculino) e, dentro dele, 37 crianças (femininas), então a forma composta os até pode estar sintacticamente justificada — ainda que não convença nem um cego em dia de nevoeiro. Portanto, puristas da gramática, sosseguem: o Correio da Manhã, por milagre — ou por pura inconsciência sintáctica —, até esteve gramaticalmente certo, mesmo parecendo idiota.

    Resolvido isto, vamos ao essencial. Temos, então, um camião de 40 toneladas de areia a embater num autocarro e a projectá-lo ribanceira abaixo. Mas isto, ao contrário do título “Milagre na A8: camião com 40 toneladas de areia embate em autocarro com 37 crianças e atira-os para ribanceira”, não é um milagre! Isto é o resultado previsível das leis da Física clássica, mais especificamente da Segunda Lei de Newton, formulada no século XVII, e que nos diz que a força exercida sobre um corpo (F) é igual à massa (m) desse corpo multiplicada pela sua aceleração (a), ou seja: F = m × a.

    Num exemplo mundano — mas infelizmente real —, se temos um camião com 40.000 quilogramas de massa a deslocar-se a determinada velocidade (digamos, 90 km/h, porque milagres raramente respeitam os limites), o impacto com um autocarro ligeiro, carregado de matéria-prima humana em idade escolar, gera uma força de colisão suficiente para vencer a inércia e lançar o conjunto infanto-veicular pela ribanceira abaixo. E quando dizemos força, falamos de algo concreto: cerca de um milhão de Newtons — sim, 1.000.000 N, numa estimativa simples em que o camião trava bruscamente num segundo.

    Para se ter uma ideia, é o equivalente a levar, de uma só vez, 200 murros de Mike Tyson, todos concentrados no mesmo ponto e no mesmo instante — o suficiente para transformar um chassis em acordeão. Isso não é milagre. É Física. É Cinemática. É Dinâmica. É Física em movimento, é Mecânica aplicada a ferro e carne.

    Milagre seria o camião parar no ar, meditar sobre a vida e recuar, envergonhado pelas suas intenções de maltratar crianças. Milagre seria o autocarro converter-se numa pomba e planar sobre o vale, ao som de um coral de Bach. Milagre seria o jornalista saber distinguir entre uma catástrofe com causas perfeitamente naturais, um acaso e um acto divino. Mas não. Para o Correio da Manhã, aparentemente, basta que um autocarro com 37 crianças caia numa ribanceira — depois de ser abalroado por um camião de 40 toneladas de areia — para haver milagre.

    Senhores, contenham-se. Eu sei que o milagre a que se refere o Correio da Manhã não está no título, mas na ausência de vítimas, tanto assim que alteraram o título na versão digital mesmo mantendo o permalink. Mas, mesmo assim: milagre? Milagre seria o camião ter parado a tempo. Milagre seria não ter havido acidente. Milagre seria o Correio da Manhã ter enviado um jornalista que distinguisse entre causa e consequência, entre acção divina e reacção em cadeia. Mas não. Portanto, para o Correio da Manhã, feita a correcção, milagre é isto: um camião cheio de areia bate num autocarro cheio de crianças, tudo se precipita ribanceira abaixo e não morre ninguém.

    Sobre milagres desta natureza, em acidentes evitáveis, sempre serei céptico. Mas tenho ainda a esperança, talvez mesmo a fé e a crença, de que um dia, sim, um dia, talvez a Graça divina desça e conceda ao jornalismo sensacionalista um milagre a sério: não assassinarem constantemente a inteligência dos leitores.

    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

  • Polígrafo: relações espúrias para conclusões estúpidas

    Polígrafo: relações espúrias para conclusões estúpidas


    Sou gato velho, sim, mas não perdi o faro nem me tornei cínico — apenas selectivo. Já vi muitos jornalistas escorregarem em estatísticas como ratos inchados a meter a cabeça numa ratoeira coberta de queijo ideológico. Mas há miados que me fazem arquear o lombo e cravar as garras no estofo do bom senso. Esta, por exemplo: um fact-checking a ronronar que o Chega teve maus resultados nas freguesias com mais licenciados. Pois claro, foi o Polígrafo — esse jornal que… bem, deixemos o resto à vossa imaginação — que tratou logo de abanar o rabo com entusiasmo e pôr-lhe o carimbo de “Verdadeiro”, como quem encontra o Santo Graal da inteligência democrática entre os restos do lixo estatístico.

    Li o texto. Com olhos semicerrados, orelhas em alerta e o instinto de quem já viu muitos canários travestidos de águias. A autora chama-se Salomé Leal — uma jornalista que, segundo me consta (embora esteja sujeito a pimenta na língua), cultivará doutoramentos imaginários em estatística, mas que, por comedimento, se apresenta apenas como licenciada em Comunicação pela Universidade do Minho. Três anos, possivelmente sem chumbos — ou com equivalências em retórica criativa.

    E foi esta Salomé que decidiu iluminar o mundo com a seguinte revelação: nas 11 freguesias onde mais de metade dos residentes têm ensino superior, o Chega não chega sequer aos 10% dos votos. E pronto, bastou-lhe essa (nem) dúzia mística de freguesias para decretar — com a subtileza de um rinoceronte num trampolim — que existe uma relação sagrada entre possuir um canudo e votar com decência. A implicação, para quem lê nas entrelinhas com lentes de aumento, é clara: os esclarecidos votam bem; os ignorantes, mal. E assim se acaricia o ego do eleitor do Bloco Central — esse devoto da moderação, com cartão multibanco prateado e nariz treinado para o Moët & Chandon.

    É esta a grande verdade revelada pelo oráculo do fact-checking? Um decalque preguiçoso de preconceitos urbanos, embrulhado numa análise simplória que confunde correlação com causalidade, método com militância e jornalismo com doutrina de salão?

    A simplicidade da verificação de factos do Polígrafo… existe e até dá lucro.

    Ora, façamos um intervalo para a razão, que ainda há por aqui alguém de pensamento livre, como se andasse de telhado em telhado.

    Primeiro: usar 11 freguesias e uma só variável, num país com mais de três mil, para tirar conclusões sobre o padrão nacional de voto num partido é como provar uma sardinha grelhada e concluir sobre a safra de toda a costa. E nem são freguesias comuns — são redutos gourmet do Portugal urbano, onde se bebe café sem açúcar, se adopta o pronome neutro e se reciclam emoções nos ecopontos da virtude progressista.

    Segundo: admitir que o Chega tem menos votos onde há mais diplomas pendurados na parede não implica que haja mais inteligência política. Aquilo que pode haver é mais conforto material, e conforto não costuma votar com raiva — protesta-se pouco quando se tem carro eléctrico, vinho biológico e férias marcadas. Quem está bem na vida revolta-se no Twitter, com filtros, sem sujar as mãos de boletim.

    Terceiro: fazer um fact-checking com apenas uma variável dependente (voto no Chega) e uma independente (nível de escolaridade) é estatisticamente indigente. Mesmo que houvesse uma correlação — e não basta meia dúzia de freguesias para isso — seria sempre necessário provar que não se trata de uma relação espúria. Mas a ânsia em confirmar preconceitos é tanta que já se perdeu a prudência científica.

    Acredito, depois disto, que qualquer dia o Polígrafo ainda descobre que as cidades com mais padres também têm mais prostitutas — e, por analogia criativa, concluem que o clero promove o meretrício. Ou que os municípios com mais bibliotecas geram mais casos de miopia, o que levaria a proibir a leitura por razões oftalmológicas. Ou que onde há mais pistas de atletismo há mais obesos — e logo se sugere fechar os estádios para combater a gula. Ou ainda que nos períodos em que se vendem mais gelados há mais afogamentos, o que levará à proibição de gelatarias nas praias.

    A estatística, caros leitores, não é um palito com que se pesca o argumento do dia. É uma Ciência — e exige método, contexto e honestidade intelectual. Três coisas que, em certas redacções, são mais raras do que um gato a votar no Parlamento.

    O Polígrafo, como sucedeu na pandemia, pratica a indigência moral e intelectual com esta forma de fact-checking, que veste a beca da ciência para concluir o que já trazia escrito no bolso de trás: que quem não segue o “partido do cherne” ou os clássicos fá-lo por ignorância; que o eleitor sem diploma é, por inerência, menos esclarecido, mais manipulável e, no fundo, um simplório incapaz de decisões políticas válidas.

    Ora, isto não é apenas uma falácia estatística nem chega a ser pseudociência — é uma condescendência ordinária, quase uma forma de eugenia do voto, onde os títulos académicos servem de filtro higiénico para separar os “bons eleitores” dos “outros”. Uma espécie de purificador democrático com selo poligráfico. É o velho elitismo remisturado com verniz de jornalismo de retrete — e, pior ainda, produzido por uma pobre licenciada em Comunicação da Universidade do Minho, sem noção de aritmética básica, quanto mais de estatística inferencial, de modelos probabilísticos ou de análise de séries temporais, que são as disciplinas que se ensinam a quem quer realmente perceber relações causais sem tropeçar em correlações espúrias como quem escorrega numa casca de lugar-comum.

    Enfim, eu aqui só vejo, na análise do Polígrafo, um verdadeiro burro — ou, sendo rigoroso no género e no caso em apreço, uma senhora burra.

    E agora, se me dão licença, vou até à janela contemplar os 1.345.689 portugueses que votaram no Chega. Nenhum deles é meu dono, garanto-vos. Mas mesmo que o fosse, não o absolveria. Talvez procurasse compreendê-lo — o que, ao contrário de um fact-checker de pacotilha, exige escutar, sair da bolha e pôr as patas no terreno. Literalmente.


    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

    As ilustrações são produzidas com recurso a intiligência artificial.

  • Uma gota de água num oceano de palermice

    Uma gota de água num oceano de palermice


    Comecemos com um princípio inegociável: a água serve para beber, não para banhar. Não digo isto por razões ambientais nem por fobia: nenhum gato digno do seu bigode molha voluntariamente, com água tépida corrente, o dorso em nome da higiene — o banho, se bem praticado, faz-se com método, língua e paciência. A simples ideia de ser mergulhado em água, como um lombo de bacalhau, provoca-me espasmos, desgosto e um olhar que recorda a revolta de Espártaco.

    Ora, foi quase em estado de sono filosófico e pelagem asseada, como se deitado no tampo de uma cómoda barroca, à sombra de uma edição do Tratado da Água de Vida, de Paracelso, que me chegou aos bigodes uma ventania digital vinda do Observador. Um título saltou-me à retina: “Um e-mail consome meio litro de água. Não estamos conscientes do que estamos a fazer“. E eu, que julgava que a água se consumia na tigela, na panela e no chuveiro, descubro agora que, afinal, também se bebe em anexos PDF e newsletters matinais.

    Fiz então o que qualquer gato culto faria: espreguicei-me com lentidão, pus-me de cócoras diante do ecrã, e li: trata-se do livro da espanhola Virginia Mendoza, Seca, mas a abordagem noticiosa, pegando neste título para destaque, acabava por ser o próprio tsunami. Ali estavam: uns quantos parágrafos molhados de comoção, um pingar de citações dramáticas, e no final — oh ironia líquida — uma torrente de bytes promovida por e-mail, notificações, redes sociais e uma imagem com sombras calculadas.

    Fiz as contas e comparei um e-mail de meio litro com os cinco mil litros por 10.000 newsletters do Observador, com os quatro mil litros de 20.000 notificações push, com os vinte litros de 50.000 leitores únicos a clicar e ler a notícia. Tudo somado, a água evaporada por uma única peça online deu trinta mil litros, o equivalente a seiscentos duches rápidos ou ao consumo diário de água potável de duzentas pessoas.

    Dei uma lambidela à pata dianteira e pensei: “Não se apaga a sede da inteligência com baldes de hipocrisia.” Porque vejamos: se cada leitor acede à notícia e a partilha no WhatsApp com emojis molhados e exclamações, consome-se o suficiente para inundar o campo de golfe do Clube dos Bem-Intencionados. Mas que importa isso, se o gesto é nobre? A nova moral das ‘redacções verdes’ é assim: salvar o planeta com indignações em formato responsivo, e compensar o carbono com scrolls verticais.

    A hipocrisia hídrica não se esgota, porém, num e-mail gotoso.

    Imaginem o seguinte: num mundo onde outrora se enviavam contratos por estafeta, dossiês por um valente carteiro em motoreta, memorandos por fax com ruído de modem asmático, e volumes jurídicos por mala diplomática, temos hoje um prodígio silencioso chamado ficheiro PDF.  Mas ninguém fala da água poupada por não se imprimir relatórios de duzentas páginas com gráficos em PowerPoint, nem da energia poupada por não se acenderem salas inteiras para reuniões presenciais que agora se fazem em Zoom, com fundo de biblioteca falsa e gato a passar.

    E eis que, perante esta revolução silenciosa, aparece um grupo de almas lavadas a contabilizar mililitros por megabyte, como se o verdadeiro desperdício estivesse no envio de um currículo por correio electrónico, e não nos quilómetros de auto-estrada evitados, nos jactos não levantados, nas impressoras que não gemem, e nas remas de papel esborratado de tinta que não esmagam secretárias.

    Oh sim, meus senhores, vamos todos fingir que vivíamos melhor quando três cópias autenticadas de um contrato tinham de atravessar Lisboa num Renault 4 com o ar-condicionado a tossir, ou quando actas de reuniões vinham em envelope pardo a pesar mais que o juízo do remetente. Agora, porque um servidor na Islândia consome energia para guardar a epístola digital de um gestor sobre sinergias de equipa, eis que toca a soar o alarme ecológico, com palminhas de indignação digital com apelos ao engagement.

    É claro, dirão os monges da consciência sustentável, que devemos reduzir o supérfluo. E eu, Serafim, não discordo. Um gato jamais envia e-mails em massa, nem subscreve newsletters sobre fiambre. Mas confundir o essencial com o acessório, e ignorar que um simples e-mail pode ter poupado papel, tinta, gasolina, querosene e paciência — é de uma asinidade que nem um burro de carga suportaria com brio.

    Sim, um e-mail consome meio litro de água — e daí? Se essa meia garrafa evita uma garrafa inteira de gasolina, três resmas de papel e dois neurónios fritos numa deslocação inútil, então brinde-se à modernidade. A maior secura que os humanos enfrentam não é no aquífero nem na nuvem — é na inteligência crítica dos que confundem gota com dilúvio, símbolo com substância, e fazem da espuma digital um tsunami de palermice.


    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

  • ‘Kit Apagão’ do Observador? E que tal um ‘Kit Jornalismo’?

    ‘Kit Apagão’ do Observador? E que tal um ‘Kit Jornalismo’?


    Chamai-me gato velho, mas garanto-vos que há já muitos anos não me deixo embalar por ronrons jornalísticos. Esta semana, enquanto me espreguiçava na almofada da janela, ouvi uma onomatopeia curiosa vinda do meu estimado parceiro humano. Fui espreitar.

    Encontrei-o a ver o Observador, órgão de comunicação social que se diz independente, que está a oferecer um Kit Apagão aos novos assinantes: um rádio verde com manivela, painel solar, power bank e lanterna. Um verdadeiro mimo de emergência para quando os serviços básicos colapsam como as ideias de um editorialista em dia de comissão.

    Ora, enquanto eles distribuem lanternas, eu, Serafim, distribuo ideias — e jamais haverá apagão que me silencie. E se a intenção é premiar o leitor com um artefacto de sobrevivência, então por que não ir mais longe? Crie-se o Kit Jornalismo: um dispositivo digno de uma civilização onde a luz se mede em lumens de verdade.

    Imaginem comigo. Um rádio felinamente afinado: em vez de ondas médias, capta pensamento crítico; em vez de interferências ideológicas, filtra factos. Faz-se girar a manivela — não a do sensacionalismo, mas a da integridade — e sai uma notícia sem patrocinador escondido. Se girarem rápido, até pode vir com gráfico, diversidade de opinião e, quem sabe, um pedido de desculpas por desinformação publicada durante a pandemia.

    Mas o Observador, claro, prefere oferecer um rádio físico, como se dissesse: “Queremos que fiquem informados… mesmo quando tudo falhar.” Mesmo quando as nossas notícias falham em rigor e conteúdo, presumo.

    O ‘Kit Apagão’ do Observador…

    Que visão tão comovedora. Já não bastava termos empresas monopolistas a brincar com o interruptor do país — agora temos o jornalismo a normalizar o colapso. O apagão não é um acidente; é uma metáfora. E esta promoção é um gesto simbólico: em vez de questionar os responsáveis pela escuridão, o jornal oferece uma vela e um bom serão de submissão luminosa.

    Mas não sejamos injustos. O rádio do Kit Apagão do Observador também tem manivela. Um gesto nobre. Porque, se há coisa que os jornais deviam fazer, era dar à manivela do rigor, não à da propaganda. Ao rodar o Kit Jornalismo, o leitor ouviria reportagens sem spin, sem fontes “próximas do processo”, sem estudos do “Instituto Internacional de Coisa Nenhuma” patrocinados por quem tem interesses. Ouviria jornalistas que investigam, questionam, confrontam. Sim, jornalistas que, se lhes faltasse a luz, não acendiam um candeeiro de presunção, mas acendiam fósforos de incómodo.

    E talvez, com isso, não fosse necessário rádio nenhum. Porque o jornalismo que cumpre a sua função é, ele mesmo, um gerador de consciência. Não precisa de pilhas, nem de USB. Basta-lhe carácter.

    … e o Kit Jornalismo sugerido para o Observador pelo Serafim.

    Mas não — o Observador prefere oferecer rádios. Talvez porque sabem que, na ausência de jornalismo a sério, o silêncio informativo só se combate com ruído mecânico. Dê-se à manivela e o povo distrai-se com a previsão do tempo enquanto a luz não volta e os factos continuam ausentes.

    Ora, como gato que nunca se deixou apanhar por armadilhas, aviso-vos então: caso assinem o Observador e queiram o Kit Apagão, aceitem o rádio — mas desconfiem da lanterna. Pois pode muito bem servir para vos guiar não à saída do túnel, mas ao fundo dele.

    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

  • Concerto à borla significa: ‘todos pagam e poucos gozam’

    Concerto à borla significa: ‘todos pagam e poucos gozam’


    Pois é, estimados bípedes contribuintes — sim, vós, que ainda vos orgulhais de possuir polegares oponíveis e folhas de vencimento. Aqui vos escreve Serafim, gato de 16 anos, a caminho dos 17, reformado dos serviços de caça, residente em casa limpa, almofada de cetim e taça de porcelana. Um verdadeiro símbolo do que Portugal mais admira: a boa vida sem contrapartidas. E, sim, eu sei, vós dizeis que tenho sorte. Mas não, meus caros humanos, sorte têm vocês em poder olhar para mim e aspirar — ainda que só em devaneios — à liberdade que é ser gato urbano no Portugal do século XXI.

    A verdade é esta: nós, felinos citadinos, já não temos ratos para caçar nem telhados para patrulhar. A nossa presença nas casas é puramente simbólica. Trocámos os celeiros por sofás IKEA, os ossos de sardinha por patês de frango com redução de fígado, e a independência por um plano vitalício de mordomias sem recibo verde. Em troca? Um ronron ocasional, umas voltinhas em torno das canelas e aquele olhar penetrante e calculado, para vos convencer de que sim, gostamos de vós.

    Mas falemos de vós, comunidade laboriosa. Vós, que todos os meses vedes o vosso salário ser assaltado por IRS, IVA, IMI, IUC, ISP, e por aí fora, enquanto fingis que está tudo bem, porque vos oferecerem, de vez em quando, umas festarolas. O humano moderno já não quer justiça — quer entretenimento. E se o entretenimento for “de borla”, então que venham os foguetes, os brindes, os selfies com o presidente da câmara.

    Exemplo: com pompa e circunstância anuncia-se: “Dino D’Santiago vai celebrar o 25 de Abril com concerto à bola”. Grátis! Uma palavra mágica. Uma senha de entrada para o mundo encantado da ilusão fiscal. O povo rejubila. A imprensa publica. O autarca sorri. E Dino cantará neste “concerto à borla” no Montijo para 643 espectadores.

    Mas eu, Serafim, que embora gato não sou parvo, fui espreitar os bastidores — coisa que muitos humanos esquecem de fazer por preguiça ou por fé. E o que descubro? Que afinal a borla é isto: a autarquia do Montijo adjudicou, por ajuste directo, o concerto por 19.680 euros ao agente do bom do Dino. Um contrato limpinho, transparente, público — mas que a manchete “de borla” esqueceu convenientemente de mencionar.

    Reparem bem na jogada: o concerto é “de borla”, mas só para quem sacar o bilhete — e só há 643. O artista é “generoso”, mas recebe os seus 19.680 euros. E os vossos impostos, ah, esses é que são verdadeiramente generosos: pagam luz, som, segurança, divulgação e, claro, a performance “grátis” do bondoso Dino D’Santiago, que segue os princípios económicos da lei da oferta e da procura, mas com uma ‘nuance’: a oferta significa venda e a procura significa um autarca a pagar em ano de eleições com dinheiro que não é seu.

    Aquilo que é curioso é que, sendo vocês os pagadores, não se sintam lesados por não poderem ir, caso morem, sei lá, em Vinhais, ou em Olhão. Em Portugal, em abono ca vedade, “de borla” significa: “alguém pagou por ti, mesmo que tu não tenhas querido”.

    Mas a vossa servidão fiscal não conhece limites. Aceitais com um encolher de ombros. “Pelo menos é Cultura!”, dizeis, entre engarrafamentos e boletins meteorológicos. Cultura? Talvez. Mas não seria mais justo dizer que se trata de entretenimento institucionalizado com financiamento coercivo?

    A semântica, meus queridos, essa arte felina da ambiguidade, é o que vos trapaça. Dizei “subsídio”, e todos se ofendem. Dizei “apoio”, e até batem palmas. Chamai-lhe “concerto gratuito”, e ninguém se lembra de perguntar quem pagou a conta. E assim vos ides enganando, como ratos a correr atrás de um sino — ou melhor, como humanos a correr atrás de concertos patrocinados por vocês próprios, convencidos de que são prendas do céu.

    Deixai-me então fazer uma comparação justa: eu, Serafim, recebo comida sem trabalhar. Vós, humanos, trabalhais para pagar comida, electricidade, água, internet, gasolina, creche, IRS, imposto de circulação, IMI, taxa de saneamento, e agora, também concertos “grátis”. A diferença? Eu sei que não mereço o que recebo — vós acreditais que não mereceis o que vos tiram. E no entanto, calais-vos.

    A ‘borla’ custa 19.680 euros, o que significa para 643 espectadores, um custo de mais de 30 euros por bilhete.

    Sim, o vosso 25 de Abril trouxe liberdade. Mas também vos ensinou a aceitar migalhas embrulhadas em slogans. “Abril é festa!” — dizem. E quem não gosta de festa? Sobretudo quando é paga por todos, mas frequentada por poucos. O povo não tem pão? Dêem-lhe música. E de preferência, com um cachet para o Dino D’Santiago acima do salário mínimo.

    Portanto, quando virdes a próxima manchete a prometer cultura “para todos”, perguntai logo: quem é “todos”? E sobretudo, quem pagou a conta? Enquanto isso, eu, Serafim, repousarei nas almofadas com a altivez dos que nada devem nem pagam. E se por acaso me apetecer, farei um ronrom cínico — não por amor, mas porque aprendi, como vós, que um pouco de fingimento mantém a gamela cheia.

    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

  • A justa denúncia de um lamentável caso de autocensura no PÁGINA UM

    A justa denúncia de um lamentável caso de autocensura no PÁGINA UM


    Confesso, meus caros, que hesitei em escrever este texto. Primeiro, porque sou gato. Segundo, porque sou gato de princípios. E terceiro, porque sou o Serafim, um nome que impõe — entre um bocejo e outro — uma certa solenidade aristocrática. Mas há limites para tudo, inclusive para a paciência de um gato de dezasseis anos, preto e branco como a verdade e a mentira, habituado a ver o seu dono, o excelentíssimo Pedro Almeida Vieira, anunciar-se a quem o queira ouvir (e também a quem não queira) como homem de coragem, independência elevadíssima, arauto da liberdade de expressão, e paladino da luta contra a censura e a pressão.

    E não minto. Não sou dado a calúnias. O Pedro é isso mesmo: é dos poucos humanos que conheci (embora não tenha conhecido muitos, porque sofro de agorafobia) que se ergue com elegância contra os ventos da hipocrisia e os relinchos da ignorância. Mas… há um “mas”; há sempre um “mas”. E esse “mas” merece uma arranhadela pública. Porque se não for eu a fazê-la, quem a fará? Não pactuo com incoerências, mesmo que venham do meu abrigo humano favorito — e único.

    Ora, passo a expor o meu reparo: num daqueles dias em que o Pedro estava escandalizado (e com razão) com mais um exercício de indigência estatística da mui ilustre Entidade Reguladora para a Comunicação Social — sim, essa mesma, a ERC, que, com pose de gravidade institucional, achou perfeitamente razoável que, numa sondagem eleitoral, 400 entrevistados dessem origem a uns portentosos 1032 votos declarados “de certeza” — o meu dono redigiu um editorial demolidor. Uma peça de prosa virulenta, sem concessões, como deve ser. Um texto onde não deixou pedra sobre pedra. A burrice — digo, a ingénua elasticidade aritmética — dos digníssimos cinco membros do Conselho Regulador foi exposta com um brilho quase clínico.

    Até aqui, tudo bem. Eu ronronava de orgulho enquanto o via rever vírgulas com um olhar de inquisidor matemático. Mas eis senão quando… no momento de ilustrar visualmente a dita burrice estatística e institucional, o Pedro — pasmem-se! — acanhou-se. Auto-censurou-se. Cortou uma das ilustrações preparadas. Uma que, à minha felina sensibilidade, era de uma justeza simbólica irresistível: mostrava, de forma expressiva, os cinco membros do Conselho Regulador da ERC com umas encantadoras, e cientificamente apropriadas, aurículas asininas.

    Ora, vamos por partes, como diria o cirurgião do bom gosto:

    — Eram burros reais? Não.

    — Era ofensivo? Só se a verdade o for.

    — Era ilegal? Apenas para quem considera o humor um crime hediondo.

    Foto original dos cinco membros do Conselho Regulador para a Comunicação Social que consideraram nornal que, numa sondagem, 400 pessoas pudessem votar “de certeza” em vários candidatos ao mesmo tempo, originando assim 1032 votos.

    Não consegui perscrutar os motivos da auto-censura. Talvez um sobressalto momentâneo de diplomacia. Talvez um receio difuso de parecer demasiado… gráfico. Ou, quem sabe, uma espécie de espasmo editorial, um reflexo condicionado ao espectro da queixa que, por estas bandas lusas, se move com mais rapidez que um rato no rodapé da história.

    Mas não, não havia mal nenhum na ilustração. Era, aliás, uma homenagem à iconografia clássica da pedagogia popular. As orelhas de burro são um símbolo universal da ignorância convicta, da presunção em sabedoria que ignora a aritmética, da solenidade que mascara o disparate. Negá-las é negar a própria Zoologia Moral — uma ciência que, aliás, os humanos deviam estudar com mais afinco.

    E, sendo assim, cá estou eu, Serafim, a exercer um duplo direito: o da liberdade de expressão e o da justiça felina. Considerando que o Pedro Almeida Vieira é, felizmente, um defensor genuíno dos seus comentadores — publica tudo, mesmo o que o contraria, e nunca rosnou a uma crítica bem redigida — eu, Serafim, declaro:

    Primeiro, esta minha Arranhadela Pública como forma de censura contra a auto-censura.

    Segundo, anuncio a revelação da ilustração auto-censurada, a bem da clareza, da liberdade e, sobretudo, do rigor taxonómico.

    Ilustração auito-censurada (usada com recurso a inteligência artificial) pelo Pedro Almeida Vieira.

    Porque aqueles senhores e aquelas senhoras — que, infelizmente as há, apesar de possuírem pernas mais aconchegantes — merecem cada milímetro daqueles apêndices auditivos. E note-se: não falo em tom pejorativo. “Orelhas de burro” é, neste caso, um termo técnico, um conceito cientificamente sólido para caracterizar comportamentos que combinam lentidão intelectual, incapacidade de reconhecimento de erro e uma resistência heróica ao ridículo.

    Se me perguntarem se voltarei a publicar estas Arranhadelas, direi que sim, sempre que a honra do jornalismo, da estatística ou da Zoologia Moral assim o exija. Se me acusarem de ser um gato irreverente, insolente ou até panfletário, aceitarei com elegância. Mas ao menos ninguém me acusará de cobardia. Isso deixo para os humanos que cortam as orelhas das imagens com medo que os burros sintam ofensa.


    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

  • Expresso, ‘provavelmente’ a melhor cama de gato

    Expresso, ‘provavelmente’ a melhor cama de gato


    Confesso que nutro uma estima singular pelo Expresso. Não pelo seu conteúdo, que normalmente serve para tapar as caixinhas de areia conceptuais onde os humanos enterram opiniões sem cheiro nem sabor. Mas pelo seu volume. Ah, o volume! Poucas coisas na vida de um felino exigente superam o prazer de um fim-de-semana morninho, empoleirado numa pilha de cadernos do Expresso – um para as costas, outro para as patas, um terceiro para manter as orelhas longe das correntes de ar. E o suplemento de Imobiliário? Excelente para forrar o chão da varanda, especialmente porque, tal como as casas anunciadas lá dentro, não serve para mais nada.

    Mas passemos ao que interessa. Ouvi a novas do metro, onde humanos apressados não têm o poder de contemplação dos gatos sobre esta maravilha da publicidade contemporânea do Expresso:

    Vendido separado, o 1.º caderno seria provavelmente o melhor jornal do país.

    Ora, vamos lá por partes. Se calhar sou só eu, um simples gato, que não percebe a subtileza humana. Mas não será isto uma forma muito pouco elegante de dizer que o resto do jornal é, digamos, enchimento? Que as trinta e duas páginas sobre condomínios de luxo em Lisboa, as listas de vinhos tintos “imperdíveis” e a crónica do consultor financeiro sobre ESG são mais supérfluos do que um rato de borracha? Não me interpretem mal: eu gosto de enchimento – especialmente se for uma almofada ortopédica –, mas quando até o próprio dono da almofada admite que o recheio é dispensável, começo a ponderar se não estaria melhor servido com um tapete de sisal.

    Em primeiro lugar, aprecio a sinceridade do Expresso em anunciar que só um pedaço da criatura é que presta. Assemelha-se ao lavrador sério anunciando o seu porco: “Se vendermos só o lombo, esta é provavelmente a melhor carne da feira. O resto, bom, é presunto duvidoso e chispe que serve apenas para o cozido à portuguesa da tasca do Fagundes.”

    Um golpe de génio, sem dúvida. Mas um golpe que também soa a desespero de quem já não sabe que qualidade apregoar. O jornal inteiro? Não. Só mesmo o primeiro caderno, ou vá lá, o caderno de Economia, que talvez, quem sabe, seja digno do título de melhor jornal do país. E isto “provavelmente”, claro, para manter aquele aroma de incerteza que tanto agrada aos prudentes e aos indecisos.

    E depois disso vêm, portanto, os apêndices: o caderno de Economia, a revista E, e outras quinquilharias editoriais, que a julgar pela lógica desta publicidade, só não servem para forrar gaiolas porque seria uma ofensa às aves.

    Mas o que me diverte mais – e aqui lanço a pata sem remorso – é este complexo de superioridade mascarado de modéstia. É como se um gato de pelo farfalhudo e dieta de latas gourmet se apresentasse na rua dizendo: “Provavelmente, sou o gato mais elegante daqui.” Sabendo que o vizinho, um rafeiro sardento, já foi capa de um suplemento de lifestyle. E que o cão da esquina, com todo o respeito, continua a ser mais lido que a crónica do João Vieira Pereira.

    Seja como for, serei sempre um consumidor do Expresso, enquanto existir. E com todos os cadernos, bons ou maus, cama completa, porque uma superfície dupla face sempre concede maior conforto. Afinal, o verdadeiro valor do jornal está aí: na maciez e na capacidade de isolar o frio do chão. Um mérito que, diga-se, raros periódicos podem reivindicar com tamanha eficácia.


    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.