Autor: Ruy Otero

  • O cabelo dos futebolistas como espelho da masculinidade mediática

    O cabelo dos futebolistas como espelho da masculinidade mediática


    Fade in

    Ao contrário do que gostariam os cronistas desportivos, os cabeleireiros de bairro e os comentadores que ainda dizem “à homem”, o cabelo dos jogadores de futebol nunca foi apenas cabelo. Foi sempre mais: disfarce, bandeira, extensão da psique ou mesmo assinatura visual. E, por vezes, tudo isso ao mesmo tempo — dependendo da década, da câmara e da audiência.

    Num jogo onde a cabeça serve tanto para pensar como para marcar golos e fazer cortes, o cabelo tornou-se palco, cortejo e camuflagem. Nunca inocente nem neutro. Porque a verdadeira disputa, como se sabe, já não é apenas com os pés. O cabelo a todos os níveis e em qualquer circunstância é sempre importante. Então no futebol…

    Durante muito tempo, a cabeça do jogador era um território em teoria disciplinado. Sóbrio, previsível e funcional. Cortes curtos, milimetricamente higiénicos, que cumpriam o código de uma masculinidade silenciosa, sem adornos nem desvios. Era uma ética do cabelo contido — como se uma madeixa fora do lugar pudesse pôr em risco o equilíbrio táctico da equipa.

    Bobby Moore, Beckenbauer, Eusébio: homens cuja relação com o cabelo era a de um técnico de equipamentos com a gravidade. Nada se arriscava. O corte era um contrato com a virilidade operária. Nenhum deles diria a palavra “estilo” sem tossir.

    Até que veio a explosão laranja — e com ela, o primeiro cabelo verdadeiramente subversivo. A selecção holandesa dos anos 70 levou ao relvado não apenas um novo sistema táctico, mas também uma estética que parecia saída de uma sala de ensaios da Island Records. Cruyff e os seus companheiros jogavam como se filosofassem e penteavam-se como se fossem sair numa capa dos Pink Floyd. A primeira equipa sem duvida a funcionar no colectivo a esse nível.

    Cabelos compridos, franjas despreocupadas, um toque de boémia estudada. Ali, a revolução já não se fazia apenas nos pés: fazia-se nas cabeças. Jogar bem e parecer alguém que podia recitar Rimbaud. A franja como armadilha conceptual. Não era apenas uma equipa com cabelos compridos: era uma estética colectiva em revolta contra o formalismo higiénico do futebol europeu da época.

    O cabelo era parte do sistema: a fluidez táctica do “futebol total” encontrava eco nessa fluidez  dos penteados que pareciam só fazer raccord com as micto revoluções de costumes da época mas o futebol até aí era visto como conservador e paladino dos regimes políticos.

    Enquanto os alemães tinham um Paul Breitner arrojado e os ingleses um George Best bêbedo e amalucado mais uma ou outra excepção, a laranja mecânica sem dúvida era também laranja psicadélica. Um movimento capilar táctico que antecedeu em décadas o conceito de branding visual, só que com charme, irreverência e zero gel, influenciando alguns jogadores portugueses como Victor Baptista do Benfica— o do brinco.

    Mas talvez o primeiro a fazer do seu cabelo e penteado um freak show  tenha sido mesmo George Best, que disse um dia que só tinha estado umas horas sóbrio na vida, mas que foram as piores da vida dele. Uma personagem especial.

    Já nos anos 80, o cabelo passou para outro plano. O futebol, transformado por televisões omnipresentes e contratos publicitários obscenos, descobriu o seu lado performativo — e o cabelo, outrora submisso, tornou-se símbolo de identidade mediática. Maradona foi o ícone perfeito dessa transição.

    A sua cabeleira não era penteada, era mais desalinhada ainda que certinha no arco. Um animal capilar, indomável, denso, insolente. Aquilo não era cabelo, era um manifesto com pernas e cocaína. Um acto de insubmissão. A cabeça de Maradona jogava o seu próprio jogo: um jogo de desobediência estética, de desordem gloriosa, de caos coreografado com talento de um anjo caído. Em Barcelona era conhecido como Pelusa Maradona.

    Os anos 80 foram também a década da franja curta à frente e do cabelo comprido atrás — o famoso mullet, corte de dualidade esquizofrénica.  Um penteado de fronteiras instáveis, muito usado por futebolistas sul-americanos e europeus, como se o pescoço tivesse vontade própria. Era o início de uma relação mais marcada entre masculinidade e estilo.                       

    Foi também a era do bigode e cabelo espesso, dos caracóis controlados a custo de mousse e dos cortes geometricamente desalinhados. A televisão a cores e os replays aproximaram as cabeças dos espectadores — e o cabelo teve de reagir, criar presença. Ainda não havia redes sociais, mas já havia replay em câmara lenta. E o penteado tinha de aguentar essa exposição a 24 frames por segundo

    A estética era uma mistura de virilidade televisiva e boémia moderada. Os penteados jogavam com alguma irreverência, mas sempre dentro de uma certa contenção: ousavam, mas não colapsavam. Paolo Maldini exibia um cabelo que oscilava entre o guerreiro grego e o galã de novela brasileira. Hugo Sánchez parecia aplicar laca com régua. O futebolista dos 80s ainda era, no fundo, um homem que queria parecer sério — mesmo quando se penteava como cantor de casino.

    Havia estilo, mas ainda não havia branding. Havia também vaidade, mas ainda não era bem um produto. O cabelo dos 80s era identidade, não se tratava ainda de mercadoria. A rebeldia vinha do estilo de vida — não do contrato publicitário. Era o último suspiro do jogador como ser humano quase privado.

    Depois os anos 90 aceleraram tudo. Aí é que foi um a ver se te avias  

    O cabelo dos futebolistas tornou-se uma espécie de carnaval forever, laboratório de estilos, catálogo de experiências com final infeliz. O futebolista já não se limitava a marcar presença no jogo: precisava de marcar posição na estética do tempo. Era preciso aparecer. E o cabelo passou a ser prova de vida, território de invenção e, muitas vezes, desastre programado. O ridículo deixou de ser risco: passou a ser método. Nunca a Isabel Queiroz do Vale tivera tanto trabalho, já para não falar do disparo de vendas do shampoo Vidal Sassoon tal a influência que começavam a exercer nos media.

    David Beckham elevou o processo capilar à categoria de fenómeno. Cada corte seu era um comunicado oficial. Da cabeça rapada ao moicano simétrico, do loiro platinado à franja calculadamente desalinhada, Beckham transformou a cabeça num outdoor rotativo.

    Era jogador, sim, mas também produto e figura de desejo. E o cabelo, respondia às exigências da indústria. A cada corte, um novo contrato com a fama. Beckham percebeu que, no futebol moderno, o talento dura 90 minutos. Mas a imagem, joga um prolongamento permanente. O estilo dandy choninhas estava na moda e agora já eram as séries tipo Marés Vivas a copiar o estilo visual de futebolistas. 

    David Beckham preconizou e encaixou no termo metrossexual que nem ginjas. Até parece que o termo usado pela primeira vez pelo jornalista Mark Simpson fora inventado para ele. Hoje é um termo pouco usado e substituído por muitos outros possíveis e cada vez mais refinados.

    O colombiano Valderrama será talvez o caso mais desafiante dessa estética que eleva os cabelos á condição de actor principal. Manteve sempre ao longo dos anos o mesmo estilo de cabeleira longa encaracolada mas estranha, sobretudo durante os democráticos anos 90. Uma loucura!

    Já no novo milénio, o cabelo tornou-se uma linguagem global. Uma mercadoria visual com gramática própria. Cristiano Ronaldo, Neymar, Pogba, Arturo Vidal: cada um com a sua assinatura capilar e com a sua identidade estrategicamente desenhada acompanharam a revolução chamada Internet que finalmente já era acessível a toda a gente. E aí a loucura foi total. Cabelos geometricamente rasgados, dégradés que pareciam obras de engenharia, colorações de laboratório. O futebolista já não era apenas jogador: era influencer, modelo, avatar. O cabelo deixou de ser natural — passou a ser curadoria.

    Neste cenário, jogadores africanos e latino-americanos transformaram o cabelo em afirmação cultural e política. Não era apenas estilo: era identidade em alta resolução. Das tranças fluorescentes de Taribo West às cristas neo-tribais de Cuauhtémoc Blanco, os cabelos tornaram-se gestos de presença. Contra a invisibilidade europeia, o excesso como resposta.

    O relvado tornou-se espaço de disputa simbólica. Havia uma rebeldia codificada em cada risco, em cada cor, ou em cada provocação capilar. Era também aí que se jogava o jogo — longe da bola, mas perto da história.

    Zidane, claro, fez o movimento inverso. A cabeça rapada talvez como recusa muçulmana. Um silêncio estético. Um apagamento deliberado da vaidade. A austeridade como posição ética. Não queria ser visto — queria ser compreendido. Mas foi com essa mesma cabeça, limpa de ornamentos, que desferiu a cabeçada mais célebre da história recente em Materazzi. Como quem diz: o cabelo pode não dizer tudo, mas a cabeça ainda pode falar. Um gesto como ruptura com o sistema da imagem?

    E ainda há o caso do Ronaldo Fenómeno — o único jogador que conseguiu fazer do cabelo uma piada internacional.

    No Mundial de 2002, deixou na testa um triângulo minúsculo e absurdo, uma provocação sem legenda, uma sabotagem simbólica que desafiou toda a lógica publicitária. Esse penteado ou lá o que era aquilo, não era bonito, nem coerente, muito menos prático e não fez moda. Era simplesmente um acto de nonsense. Um corte que parecia escrito por um surrealista bêbado sem dormir há dias. Um gesto dadaísta emitido em directo para três mil milhões de espectadores. E ninguém esqueceu porque a inutilidade, quando bem feita, é inesquecível. O filósofo espanhol António Escohotado disse um dia antes de morrer há três anos, referindo-se ao Fenómeno que já era presidente do Valladolid,  tratar-se sem dúvida de uma das pessoas mais inteligentes que tinha conhecido em vida.

    Foi uma surpresa agradável.

    Mas se os jogadores jogam com o cabelo, os treinadores jogam com a cabeça — literalmente. A estética  do treinador obedece a outra lógica: não quer bem seduzir, quer respeito. O jogador procura desejo, o treinador exige autoridade. E o cabelo, ou a sua ausência, é parte da táctica. Mesmo agora que são cada vez mais novos.

    Durante décadas, os treinadores preferiram a sobriedade capilar. Cabeças nuas, calvícies assumidas, riscas laterais discretas. A autoridade era incompatível com a vaidade. Guardiola, Sarri, Spalletti: carecas não por destino, mas por escolha estratégica. A superfície lisa como extensão de um cérebro onde a vaidade foi substituída pela geometria do pressing.

    Mourinho, por outro lado, criou um corte blindado à entropia. Cabelo sempre igual, sempre calibrado. Uma espécie de colete táctico para a cabeça — nem uma ponta fora de sítio, como se uma franja desalinhada pudesse pôr em causa a linha de quatro defesas. Muito militar. O seu cabelo diz muito do seu jogo.

    Mas nem sempre foi assim.

    César Luis Menotti que nos deixou à pouco, foi não só o arquitecto do futebol ofensivo argentino como o primeiro treinador rock’n’roll da história moderna do desporto. E foi campeão do mundo em 1978 com a Argentina, ainda que a jogar em casa e com uma vitória muito suspeita por 6 golos sobre o Peru sob uma ditadura militar de Videla. Mas isso é lance para outro penálti como dizem os filipinos.

    No entanto, via-se logo na cabeleira que o menino era diferente.

    Longe da austeridade militar dos seus pares, Menotti trazia um cabelo pop-glam ‘setentista’, comprido, ondulado, com entradas dramáticas mas sem abdicar do volume — como se tivesse saído directamente de uma jam session  dos Rolling Stones .

    Sempre com cigarro na mão, o seu estilo era uma antítese dos treinadores-furriel da época. Mais próximo de um poeta boémio do que de um gestor de balneário, Menotti fez do cabelo uma declaração de princípios. Um elogio à liberdade.

    O treinador que também havia sido jogador era magro, alto, desgrenhado e carismático — um pensador político do futebol com aspecto de guitarrista new age. E isso contagiava o jogo. Para ele, o futebol tinha de ser bonito, criativo, desobediente — e o cabelo, claro, dançava essa música.

    E há o caso do argentino Passarela que já nos anos 90 proibiu mesmo os jogadores da selecção de ostentarem cortes arrojados e instigava-os a não fazer a barba acreditando que assim a testosterona necessária para ganhar o jogo viria para o relvado sem passar pelo balneário. 

    Não resultou. 

    Hoje, com a moda dos transplantes capilares, o cabelo dos jogadores entrou na era da ficção clínica. Não se trata de questões de genética, mas talvez de investimento. Não é bem biologia. É mais tecnologia aplicada ao ego.

    De Istambul a Braga, de clínicas discretas a viagens com hashtag, os folículos são comprados como se fossem cláusulas de rescisão. O cabelo tornou-se prótese emocional. Uma negação da finitude. Até a calvície é agora opcional. O jogador moderno tem de ser completo: veloz, adaptável, resiliente  e esteticamente confiável até à ultima selfie.

    No fundo, o cabelo dos futebolistas é um campo de batalha simbólica, um espelho das ansiedades do tempo. É onde se negoceia o desejo, se encena a masculinidade, se mede o capital de atenção. Porque a cabeça, no futebol e na vida, está sempre em jogo. Quem controla o cabelo, controla o clique das câmaras. Quem domina a imagem, escreve o relato.

    Mas estranhamente o cabelo dos futebolistas nos últimos anos voltou a parecer-se com o dos primórdios. São quase todos iguais, rapado na zona da orelhas e do pescoço e depois um cabelo curto normalmente com risco ao lado a dar o volume. Eu diria, militarizado. Estranho. Provavelmente, tenha sido substituído pelas tatuagens e disso pouco sei.

    E talvez, em breve, vejamos o primeiro jogador com cabelo renderizado por inteligência artificial. Um penteado dinâmico, que muda conforme a intensidade do jogo, a emoção do público, ou a vontade do patrocinador. A cabeça como interface.

    E nesse dia pixelizado talvez percebamos que o último cabelo verdadeiramente livre num corpo aprisionado foi o de Maradona. Até aí o argentino foi diferente.

    Corte para fade

    Ruy Otero é artista media


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os actores

    Os actores


    1. Formação e Ideologia: A Representação como Resto

    A figura do actor, historicamente associada à mediação entre o real e o simbólico, entre o gesto e a palavra, encontra-se hoje num ponto de inflexão estrutural que ultrapassa em muito as transformações estéticas do teatro ou do cinema, revelando um processo mais vasto de reconfiguração da subjectividade artística no seio de um ecossistema mediático que se alimenta da exposição, da performatividade do eu e da substituição progressiva da experiência pela aparência.

    E isso é também comum a muitas outras áreas.

    Mas nesta em particular sobre a qual me debruçarei, o actor tornou-se, simultaneamente, o último elo da cadeia de produção artística — profundamente dependente de estruturas externas de validação e selecção e tirando todo o ecossistema técnico que também envolve a profissão — sendo o mais visível, precisamente por se encontrar exposto num mercado simbólico no qual a presença se confunde com existência e a visibilidade com legitimidade.

    O corpo é o seu produto também e o grau de exposição ao qual é sujeito é brutal, distinguindo-se assim de artistas plásticos, por exemplo.

    Esta condição paradoxal manifesta-se desde logo no processo formativo. Cada vez mais, os actores saem das escolas — sejam conservatórios ou cursos profissionais — com uma formação técnica fragmentada, fortemente voltada para a adaptação funcional ao mercado (castings, self tapes, agências, networking), mas muitas vezes desprovida de pensamento crítico, de base teórica ou de referências estruturantes sobre a história e a filosofia do teatro, do corpo, da cena e da linguagem. Nalgumas escolas as cadeiras teóricas são até opcionais.

    Claro que haverá excepções, que até conheço, de professores que fazem de outra forma — e serão certamente bastantes, quero acreditar — mas há limites para a docência, porque obedecem a programas.

    O desconhecimento de nomes fundamentais como Stanislawski, Brecht, Meyerhold, Grotowski, Ionescu, Beckett ou mesmo Shakespeare e muitos outros protagonistas da História, nos mais jovens não é apenas um sintoma de ignorância histórica; é um reflexo de uma pedagogia que favorece a operacionalidade à consciência e a repetição ao questionamento, que muitas vezes cede ao imperativo do entretenimento como valor absoluto, apagando o papel do actor enquanto sujeito pensante e realmente critico.

    Olhando para trás, parece que isso já foi mais efectivo, durante o século XX, sobretudo nas transições políticas ou mesmo com o fim de regimes totalitários, não sendo porém evidente. Precisaria certamente de outro estudo mas isso é texto para outra coluna.

    Nas estruturas, tanto espontâneas como oficiais ou paralelas, o pensamento prêt-à-porter “humanista” já lhes está intrinsecamente associado.

    As ideias de Gramsci venceram.

    A hegemonia cultural que antes era projecto estratégico tornou-se norma pedagógica. As escolas de arte, teatro e ciências sociais transformaram-se em templos do progressismo automático, onde a linguagem da inclusão, da representatividade e da resistência simbólica se tornou dogma — um novo catecismo afectivo travestido de crítica.

    Os alunos já são de “esquerda” sem saberem porquê, já são “anti-capitalistas” por reflexo, já operam dentro de uma matriz moral que confunde empatia com pensamento.

    E o actor, outrora sujeito trágico da cena, agente de tensão, de contradição e de gesto simbólico, é agora mascote ideológica de um sistema que lhe alimenta o ego enquanto esvazia o corpo. Substitui-se a crítica pelo posicionamento, a ética pela performatividade e a arte pelo simulacro bem-intencionado do que supostamente devia ser perigoso.

    Enquanto isso “as direitas” afastaram-se completamente de uma arte contemporânea em que não percebem a complexidade, apesar de tudo, do efeito Duchamp ou da conceptualidade por exemplo, e deixaram o papel da operacionalidade artística para outras zonas de mercados mais ambíguos e recicláveis conforme as ondas e marés.

    Mas direita e esquerda já não são para aqui chamadas, numa era em que uma existe para representar e ser o negativo da outra, como que por falência e graças ao meta-capitalismo estruturante desta nova dimensão (a)política.

    A maioria dos agentes culturais ainda vive nessa velha dicotomia capitalismo versus socialismo, como que por magia.

    O delay já faz eco.

    2. Tipologias e Fragilidades: O Actor na Era da Exposição

    Por outro lado, a profissão do actor tornou-se um campo especialmente vulnerável à lógica de mercantilização das emoções e das identidades, sobretudo numa época em que a representação não se limita ao palco ou ao ecrã, estendendo-se a todas as esferas da vida quotidiana através da auto-exposição digital e da contínua construção de avatares nas redes sociais.

    Neste contexto, o actor profissional deixou de ser o único a representar: todos representam, todos actuam, todos encenam versões de si mesmos para consumo público.

    Esta contaminação entre representação artística e performance social, esvazia o gesto do actor do seu potencial simbólico, na medida em que já não se distingue, com clareza, entre a arte de representar e a compulsão de se mostrar — sendo certo que o guião a seguir muitas vezes coincide.

    O que pode ser cómico para os cómicos.

    Acresce que o lugar do actor nas estruturas de produção cultural se tornou profundamente condicionado por factores extrínsecos ao seu ofício — critérios de representatividade, políticas de quotas, discursos identitários ou agendas de financiamento — que, embora tenham tido origem em reivindicações bastante legítimas e até urgentes, vão tendo um efeito boomerang e tendem hoje a reduzir a complexidade da arte à função ilustrativa ou pedagógica, transformando o actor num funcionário do afecto e da correcção simbólica aliando essa vertente a uma hipocrisia conhecida no meio artístico.

    Dando para rir entre o que é dito no público e no privado. 

    Mas este novo paradigma acentua a fragilidade estrutural do actor enquanto trabalhador precário, obrigando-o a adaptar-se constantemente às exigências de um mercado cada vez mais sensível à performance política do corpo e à sua legibilidade dentro dos discursos dominantes — muitas vezes em detrimento da qualidade estética, da ética artística ou da exigência crítica.

    É neste cruzamento entre fragilidade laboral, hiperexposição mediática e instrumentalização ideológica que o actor contemporâneo se encontra — e é precisamente aí que deverá ser repensado o seu “papel”.

    Há que distinguir entre os vários estilos e práticas de representação, sem cair na caricatura, mas também sem iludir os problemas.

    Existem inúmeros tipos de actores, entre eles destaco: o actor intuitivo, que depende exclusivamente do impulso emocional, frequentemente carece de ferramentas críticas para intervir sobre o material que trabalha, e é normalmente muito inseguro e emocionalmente dependente — a carência supera e ofusca o desejo, podendo torná-lo ridículo na sua prática.

    O actor técnico, que por sua vez tende a encarar o corpo como um dispositivo executável, desprovido de pulsão e de risco, funcionando normalmente por compensação económica. Pode ter ou não personalidade e conhecimento fora da sua zona de acção , mas normalmente conhece bem o sector e é calculista.

    Ainda existe, noutra geração, o actor do método, que mergulha perigosamente na biografia das suas personagens — mesmo que tenham sido escritas por uns tarefeiros de serviço — como se a experiência pessoal pudesse substituir a dramaturgia. Aqui dependem da experiência dos realizadores de televisão ou dos encenadores para moldar o seu conhecimento às exigências do produto em que normalmente não há tempo para experiências psicanaliticas.

    Para além de outros géneros existentes , sem dúvida, (não é para ser exaustivo), tanto que as gerações também são muito distintas em conhecimento, devo destacar ainda aquele que parece ser o mais problemático e vítima número um do deslumbre do fenómeno da Desconstrução: o actor pós-dramático.

    Este género bastante permissivo ao sabor do tempo, dissolve-se num formalismo estéril que abdica da construção simbólica em nome da presença imediata e da intuição, aliada a uma história muitas vezes inverosímil e distorcida da performance nas Artes Plásticas — sempre associada aos impulsos do corpo e dos sentidos — para normalmente cair num vazio pouco sustentado e frágil do ponto de vista argumentativo.

    Adora Marina Abramovich mas nunca viu.

    Esta tipologia pode ter tido origem no Living Theatre (é discutível) e tomou muitos caminhos, passando pelos efervescentes e oitentões La Fura Dels Baus — que foram depois muito criticados por abrirem os Jogos Olímpicos de Barcelona, na altura por se terem vendido ao capitalismo, segundo a esquerda dominante nas artes, numa era menos obscura, pré-internet, em que o discurso anti capitalista e anti americano moldava muitas cabeças, ainda que os actores nunca deixassem de pensar em Hollywood como um sonho a atingir. Não todos, claro.

    Um paradoxo de sonho… Ou pesadelo.

    Nenhum destes modelos é inválido, mas todos se tornam limitadores quando não acompanhados por um pensamento que os interpele, que os questione, ou que os coloque em relação com o mundo e com a história da representação enquanto acto político, ético e estético.

    Importa ainda afirmar que esta crise do actor é, também, uma crise do público.

    Um público deseducado, emocionalmente condicionado pelas narrativas audiovisuais dominantes e treinado para consumir identificação em vez de complexidade, já não reconhece o valor da representação como distanciamento, nem entende o artifício como linguagem. Sempre com excepções como é evidente. Falo também de Portugal, desconhecendo propriamente outros países. Mas não me parecem muito diferentes no seu modelo ocidental.

    A confusão entre arte e vida, tão promovida pelas culturas de massas e pelos dispositivos algorítmicos de selecção simbólica, transforma o actor num espelho vazio: reflecte aquilo que o público quer ver, não aquilo que precisa de pensar.

    Não é que o publico já tenha sido mais culto, mas com a fragmentação e o excesso cada vez mais evidente, já não são só os agentes da cultura e representação que desconstroem mas até o publico o está a fazer sem saber.

    Desconstruir até cair para o lado, parece ser essa a ordem crescente pregada de moral para consumo interno, sempre com a cumplicidade das indústrias farmacêuticas e psiquiátricas com homeopatias e acupuncturas pelo meio. Não é possível desconstruir mais sem depressões associadas, para ser irónico.

    Mas não é por isto que deixamos, como que por magia, de ver grandes “representações” e performances dos actores, tanto em televisão como no cinema ou no teatro.

    Nem tudo tem explicação. E o mundo não acabou.

    3. Narcisismo, Crise Simbólica e a Possibilidade de Representar

    A crise da representação não se exprime apenas em termos de condições externas, mas atinge directamente o núcleo da prática actoral: a sua relação com o eu, com o corpo e com o mundo.

    A figura do actor tornou-se, no contexto contemporâneo, uma das expressões mais visíveis do paradigma narcisista dominante, que transforma a arte da representação numa gestão contínua da própria imagem e da própria emocionalidade. Esta mutação arrasta consigo o esvaziamento simbólico da prática artística e a sua conversão em performance afectiva para consumo imediato.

    O actor, já não apenas como intérprete de papéis, mas como figura pública e marca pessoal, é chamado a sustentar uma identidade coerente, exposta, emocionalmente legível e esteticamente consistente.

    A distinção entre o espaço do trabalho artístico e o da auto-representação quotidiana dissolve-se num regime de visibilidade permanente. As redes sociais, ao exigirem uma narrativa constante do eu, impõem ao actor uma representação contínua, muitas vezes sem conteúdo, onde a vulnerabilidade se torna valor e a autenticidade é convertida em capital simbólico.

    As práticas performativas dominantes são reflexo desta transformação. Para voltar às tipologias anteriores: o actor intuitivo representa a valorização do afecto imediato em detrimento da construção simbólica; o técnico revela a conversão do corpo em dispositivo funcional e programável; o do método indica a fusão entre biografia e ficção, que compromete a mediação crítica; o pós-dramático manifesta a desmaterialização da linguagem e a aposta numa presença que, muitas vezes, abdica da significação.

    Talvez fosse bom de quando em vez voltar-se a penetrar Brecht ou imergir no livro de Robert Bresson com as suas insinuações sobre o actor, para não falar em Peter Brook, todos sempre actuais e pertinentes nas suas linhas, ainda que dogmáticas.

    Estas tipologias, apesar de distintas, convergem na recusa — ou na perda — da representação enquanto acto mediado ou mesmo construído e pensado — logo, por isso, político.

    Esta configuração é reforçada por um ecossistema simbólico que desvaloriza a crítica em nome do apoio emocional, que confunde empatia com complacência e que romantiza a precariedade como forma de resistência criativa. Até ver.

    O elogio constante e a ausência de exigência transformam o campo artístico num espaço de validação afectiva, impedindo o confronto com os limites e a profundidade do gesto artístico. O actor, nesse ambiente, é infantilizado enquanto trabalhador e idealizado enquanto figura pública — sem espaço real para errar, questionar ou resistir.

    O resultado é a conversão da arte da representação num espelho do desejo social, num reflexo imediato das expectativas afectivas do público e das lógicas algorítmicas de visibilidade.

    O actor, em vez de intervir simbolicamente sobre o real, é convocado a reproduzir narrativas emocionalmente aceitáveis, facilmente partilháveis e alinhadas com os códigos dominantes de sensibilidade.

    A arte deixa de distanciar para reflectir; o corpo deixa de significar para agradar.

    Repensar o lugar do actor, hoje, exige muito mais do que mudar práticas pedagógicas ou modelos de produção. Terá de vir dos próprios.

    Serão certamente os actores quem reagirá mais tarde ou mais cedo ao “cataclismo asséptico”, até provavelmente o poder detectar a convulsão. Ou não. Talvez a História ao rimar novamente encontre novas terminologias e o feitiço se vá voltando contra o feiticeiro. O mundo é um lugar dinâmico… Como sempre.

    Estou optimista.

    Exige é uma redefinição profunda do que significa representar, numa época em que todos performam. Significará sem dúvida devolver ao actor a sua dimensão crítica, simbólica, política.

    Dever-se-à quanto a mim, voltar a valorizar a linguagem, a narrativa e inscrever o corpo no pensamento e a sua presença num mundo que precisa de mais autonomia. Sobretudo autonomia, o que não é fácil, certo.

    E, sobretudo, recusar a transformação do actor em produto emocional de um mercado simbólico disfarçado de “humanista” totalmente em colapso, em que os “actores” principais  desta era também não sabem nada de Beckett , Ionescu ou Shakespeare, quer-me parecer.

    Daí o optimismo.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações: Ruy Otero


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Medo, suor, lágrimas… e um kit de sobrevivência

    Medo, suor, lágrimas… e um kit de sobrevivência


    Estou no carro e ouço pela rádio que, nos últimos dias, a União Europeia lançou mais uma recomendação digna de Independence Day: a criação de um kit de sobrevivência para 72 horas, destinado a preparar os cidadãos para cenários de emergência, incluindo desastres climáticos, guerras e pandemias… Ou (digo eu) a aterragem de um OVNI com “bonecada” lá dentro perigosíssima. Nada que os terraplanistas não tenham avisado.

    As 72 horas parecem uma versão reciclada dos 15 dias para aplanar a curva. Soa a briefing de um reality show: Survivor – União Europeia Edition.

    O alerta chega com um tom grave, quase apocalíptico, como se estivéssemos a entrar numa nova era de catástrofes permanentes. Segundo um amigo meu, já não é a excepção permanente, mas sim a sketchização permanente, como se nunca mais saíssemos de dentro de um episódio do Flying Circus.

    A questão que se impõe, porém, não é a necessidade de precaução – que sempre existiu – mas sim a insistência numa narrativa que reforça o medo como instrumento de governação. Nada de novo na frente ocidental.

    Mas estes ocidentais querem a guerra, ajudando a Ucrânia. E paz não?

    Sai mais barato.

    Bolas, ainda ontem vi O Herói de Hacksaw Ridge, um filme curioso e a guerra é assustadora.

    Que vá para lá o Macron ou o António Costa. Já não basta terem de arranjar 800 mil milhões de euros para a financiar?

    Agora a von der Leyen anda a brincar aos porta-aviões? Vendem-te a guerra e depois o kit. Gostava de saber o que é que a BlackRock acha disto. Senão pergunto à Vanguard.

    Antes de mais, convém recordar que a ideia de kits de emergência não é nova. Países como o Japão, habituados a desastres naturais, há muito que promovem medidas desse género.

    Antes da pandemia, a única catástrofe natural da nossa geração tinha sido umas horas sem luz. E pronto… A Grécia do Euro 2004 também.


    Ultimamente, é um ver se te avias infinito. Agora, a UE quer que tenhamos comida, água e mantimentos para 72 horas. Basicamente, um festival de música sem concertos e sem drogas.

    Mas, no caso europeu, a novidade está na amplitude do alerta, na conjugação de múltiplos riscos e, sobretudo, no subtexto da comunicação: uma sociedade em permanente estado de ameaça.

    A mensagem é clara: o cidadão deve estar preparado para sobreviver sozinho, pelo menos por três dias, porque não pode confiar que o Estado o proteja de imediato.

    Se estiverem 40 graus, o Estado não tem culpa. As pessoas é que consomem demais. Agora olha… três dias a ver o sol aos quadradinhos. O nosso dióxido de carbono dá cabo da floresta. Este é o oxigénio que a União Europeia amassou.

    De cortar a respiração…

    E nesses três dias de reclusão, haverá Wi-Fi? Aí, sim, em caso de corte haverá rebelião de certeza.

    Ao invés de um debate sério sobre resiliência social e infraestruturas de emergência, o que temos é um apelo individualizado à autossuficiência.

    A responsabilidade de garantir um mínimo de segurança desloca-se para o cidadão comum, que deve agora assegurar reservas de água, alimentos, medicamentos essenciais e até fontes alternativas de energia para ver na Netflix filmes sobre… catástrofes naturais, claro!

    O sossego devia ser uma palavra retirada do dicionário. Já não se usa.

    Na notícia, não há qualquer menção a reforços significativos nos serviços públicos ou a investimentos estruturais que tornem estas medidas desnecessárias. Apenas a exigência de um pequeno bunker portátil. Provavelmente feito na China. Outro inimigo.

    Haverá um kit premium? Com ostras champanhe e abacate?

    O que mais impressiona nesta narrativa é a sua lógica de escalada. Não falamos apenas de kits de emergência para inundações ou incêndios, problemas há muito reconhecidos e já integrados em planos de proteção civil. Agora, o espectro do risco é alargado para incluir cenários de guerra e novas pandemias.

    As gripes andam aí. É fácil um morcego enganar-se e comer um pintassilgo para depois o Rodrigo Guedes de Carvalho nos dar umas prédicas com kit completo incluído.

    Depois de uma crise sanitária global que serviu de ensaio para um controlo social em larga escala e em plena guerra na Ucrânia, a UE parece querer que todos os cidadãos se comportem como pequenos sobreviventes urbanos, preparando-se para um futuro incerto e perigoso que faz The Day After parecer o D’Artacão.

    Não será de estranhar que, em breve, surjam “packs certificados pela União Europeia” disponíveis no mercado, promovidos como itens essenciais para qualquer lar europeu consciente. O meu kit vou comprá-lo à feira do relógio. Traz de certeza uma bifana de bónus.

    As oportunidades económicas são evidentes: de fabricantes de alimentos liofilizados a empresas de purificadores de água, há toda uma nova indústria à espreita. No fim de contas, o medo é sempre um excelente negócio.

    Mas quem é que inventou esta palhaçada? Coitados dos miúdos que deixaram de jogar com a Intel e passaram a ser Incel. Se foi um palhaço, era do antigo Circo Mariano, de certeza.

    Não querendo com isto defender criminosos, claro. Mas generalizar?

    É legítimo questionar se este tipo de recomendações são realmente necessárias ou se fazem parte de uma estratégia política mais ampla.

    Num continente onde a confiança nas instituições tem vindo a deteriorar-se, fomentar o medo pode ser uma forma eficaz de manter a população numa espécie de obediência preventiva. A sensação de crise permanente reduz a capacidade crítica e fomenta um conformismo passivo: se a ameaça é inevitável, então resta apenas seguir as diretrizes das autoridades.

    Esta abordagem não é inédita. Durante a pandemia de covid-19, as mensagens institucionais oscilaram entre a necessidade de controlo social e a culpabilização individual, com a tentativa de venda do StayAway Covid pelo Paulo Portas na TVI sem grande sucesso.

    Agora, com o foco alargado para as alterações climáticas e conflitos geopolíticos, a fórmula repete-se. O cidadão não deve apenas ser responsável pela sua saúde pública, mas também pela sua própria sobrevivência em caso de colapso temporário dos serviços essenciais. O Estado não tem culpa nenhuma.

    Peçam o livro de reclamações à Rússia.

    O problema deste tipo de discurso não é a falta de fundamento, mas a ausência de soluções estruturais para lidar com os desafios que nos são apresentados.

    Não se trata de um jogo de Paintball em Belas, em que nos podemos safar sozinhos. Agora, trata-se mesmo de perigos que levam à morte. Aqui, a haver humor, é mesmo negro.

    Negro escuro.

    O Estado, em vez de garantir sistemas de saúde robustos, redes de abastecimento resistentes e uma política energética coerente, aposta na lógica do “faça você mesmo”.

    Ficou punk.

    Em última análise, esta narrativa de autossuficiência não é apenas um reflexo das preocupações com um futuro incerto, mas também um sintoma de um modelo político que se demite de certas responsabilidades.

    Na pandemia, muitos políticos (e pessoas) – como veio a saber-se depois – não cumpriram regras e divertiram-se à grande em festarolas de arromba. Daqui a uns anos, já não se verá o 24 Hour Party People, mas sim o 72-Hour Party People. E, em vez de ser na Hacienda, será em Buckingham.

    Em vez de roqueiros a cair para o lado, teremos chefes de Estado.

    Esta abordagem, além de criar ansiedade desnecessária, legitima políticas de desresponsabilização.

    O resultado sem duvida é um progressivo enfraquecimento da ideia de comunidade e de solidariedade social, substituída por uma lógica quase empresarial de gestão de risco individual. O famoso neo-liberalismo de esquerda. Estou já a ver a esquerda caviar a pedir kits para 100 horas em vez de 72, com o alto patrocínio do Infarmed.

    Fogo, quem não gostaria de estar fechado 100 horas com o Louçã era eu. Só de imaginá-lo a dizer piadas… Preferia 50 do Fernando Rocha contando com as mais estúpidas, que 2 do Louçã.

    Em suma, não se trata de ignorar a necessidade de precaução – porque, claro que desastres acontecem e a preparação é útil –, mas sim de questionar por que motivo as respostas políticas se centram cada vez mais na lógica do medo em vez da prevenção sistémica.

    Concluindo. O mais engraçado disto tudo é a transparência do modelo: primeiro criam-se as condições para o colapso – cortes na saúde, privatizações, precariedade energética – depois vendem-se soluções individuais para problemas colectivos.

    É um meta-capitalismo de desastre gourmet, agora numa versão mais higiénica, com selo europeu e talvez até uma estrela Michelin, se fores VIP. 

    A classe média já era. E agora fica só com 72 horas para apertar o cinto. Tipo jogo de computador.

    Mas vejam lá o Wi-Fi. Depois ficamos sem saber como é que o Gerard Depardieu sobreviveu numa cave sem Confit de Canard.

    Enfim, mais uma vez o Flying Circus encontra-se com o 1984 na Feira Popular para celebrar este admirável mundo novo que está a ficar velho.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações: Swimming Pool Project


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Adolescência (a série): um abismo sem plano sequência

    Adolescência (a série): um abismo sem plano sequência

    Aviso: Este texto contém revelações sobre a série Adolescência que podem comprometer o efeito de surpresa — se é que isso ainda existe.


    Vivemos um tempo cheio de buracos.

    E já que tratamos aqui de televisão, é curioso observar como a indústria cultural soube reconfigurar os dispositivos da catarse, não sendo apenas um reflexo da “realidade” mas tratando dela para a reorganizar num sistema de validação moral atractivo e muito dicotómico, embora perto do vazio.

    As séries contemporâneas converteram-se em repositórios de códigos éticos formatados, onde o espectador é conduzido por uma arquitectura emocional que não exige dúvida, mas um apelo à identificação.

    Daí talvez o sucesso desta série chamada Adolescência que foi filmada no norte de Inglaterra, entre South Kirkby, South Elmsall e Sheffield, e sobre a qual se debruça este texto.

    Trata-se da mais recente produção da Netflix com assinatura britânica, e que se inscreve exemplarmente nesta genealogia: uma obra que simula o abismo, mas opera sempre à beira da superfície; que quer parecer disruptiva, mas permanece meticulosamente dentro dos contornos do admissível pelo mainstream ideológico, como seria de esperar em tempos tão simulados e pouco rigorosos a roçar a hipocrisia, marca inevitável de quando só existem dois lados possíveis de escolha. 

    Na sequência do assassinato brutal de uma jovem estudante, Adolescência acompanha quatro dias decisivos na vida de Jamie, em que nem sempre ele está presente. Trata-se de um rapaz de 13 anos acusado do crime. Filmada em tempo real, a série mergulha no impacto psicológico e social do acontecimento, expondo as fragilidades da família, da escola e do sistema de justiça juvenil. Com uma narrativa densa e claustrofóbica, a série explora a culpa, o silêncio e o peso insustentável de crescer num mundo que parece ter pouco sentido, cheio de tensões e neurose  A título de curiosidade, a série é para maiores de 13 anos, a idade do protagonista. Tudo a condizer.

    A verdade é que o mundo colapsa, mas dentro de um guião. A série começa logo mal por se chamar Adolescência e não O adolescente (ou outra coisa). Fazendo passar um pelo todo, associação pertinente, o que é assustador. Como se na adolescência o normal fosse matar sem razão aparente. Esta série televisiva tem tudo o que se espera de uma tragédia contemporânea, pré-digerida para consumo emocional.

    É talvez no centro narrativo da série — o acto de Jamie de matar, visto pela câmara de vigilância — que se torna mais visível a escolha programática do argumento: não nos é dito porquê. Não há confissão, nem reconstituição, nem motivação dramática articulada.

    O espectador é mantido fora do momento do crime, não para pensar sobre ele, mas para sentir o seu eco. Quando se volta a estar com Jamie no terceiro episódio já passaram uns meses. E no quarto aparece a voz da sua confissão apenas.

    A consequência ocupa o lugar da causa. O gesto torna-se enigma, mas não no sentido trágico da palavra — apenas no sentido funcional.

    Jamie mata, não porque tenha razão, pulsão, trauma ou uma ideologia aparente, mas porque a narrativa precisa de uma figura sacrificial silenciosa, até omnipresente que active o colapso dos adultos à sua volta. O corpo do rapaz é o epicentro imóvel sobre o qual todos os outros orbitam em falência — pais, escola, justiça, e até a psicóloga esgotada no final da entrevista do terceiro episódio.

    E no entanto, a ausência de causalidade, tão elogiada pela crítica como sinal de maturidade narrativa, parece ser menos uma abertura ao abismo do que uma forma de evitar o pensamento.

    Ao recusar mostrar ou interrogar o gesto, impede-se o espectador de exercer a sua interpretação. O silêncio de Jamie não é ambiguidade, é controlo simbólico. E, pior ainda, é uma maneira de deslocar o peso do acto para o circuito emocional da culpa partilhada, onde a pergunta “porquê?” já não importa.

    Jamie mata, sim. Mas o que morre com ele é a possibilidade de uma dramaturgia que se arrisque a pensar o crime para lá do seu valor simbólico. E isso, mais do que a própria violência, é o gesto violento da série. Poderia ser uma actitude de provocação mas não é.

    Conhecendo minimamente a realidade inglesa, percebe-se que há ainda assim diferenças significativas entre os dois países — sobretudo na forma como a autoridade (ou a sua versão pseudo-autoritária) se exerce, e no peso que o Estado impõe às famílias, com a respectiva violência simbólica e estrutural. Portugal, ao lado dos anglo-saxónicos, parece um peso-pluma no velho índice foucaultiano, já gasto, sim, mas cada vez mais reactualizado com a televisão a servir de panóptico de fundo.

    Cada episódio é um plano-sequência: quatro blocos temporais contínuos, quatro actos de uma peça que quer fazer-se passar por realismo, como se esse género ainda pudesse ser mais estilizado, empregando um marketing crítico (se assim poderemos chamar), porque hoje as séries são avaliadas com o mesmo espírito que os produtos no Uber Eats: eficácia, satisfação emocional, identificação rápida envolta em likes e Emojis. 

    A crítica deixou de ser campo de pensamento e passou a ser validação simbólica, como se fosse uma extensão do marketing do filme, sempre com excepções, claro.

    Mesmo os jornais sérios vivem do clique, da partilha, do engajamento — e isso empurra para o consenso emocional e não para o pensamento incómodo.

    Dando uma vista de olhos pela crítica que se tem feito, percebe-se o entusiasmo em destacar a virtude da série por apontar a masculinidade tóxica como o alvo a abater.

    Supostamente, a culpa é da Net — encarnada numa conversa entre a mãe e o pai, que comentam as noites de luz azul acesa no quarto de Jamie até de madrugada. Mas a verdade é que a Net é hoje tudo, até o espelho. O próprio Governo,  surge maquilhado na narrativa como uma espécie de vítima inocente de uma abstracção digital incontrolável. Constatamos isso pelo esforço da policia e da impossibilidade da escola com os rapazes bullies a fazer das suas.

    Ironia suprema: a série é consumida na mesma Net que parece veladamente demonizar, e ali ficará a repousar como um cadáver bem maquilhado que já fez o seu trabalho num cemitério redundantemente zombie.

    Pode deduzir-se que o que se pede é mais regulação urgente e que os governos, coitados, são quase retratados como vítimas impotentes de um mundo abstracto que resvala para a anarquia. Mas a vida não é assim. As coisas estão hoje muito mais ensimesmadas e interligadas ao mesmo tempo, tornando-se a sua decifração tão blindada como um segredo de Estado.

    A arte, nesse contexto, parece muitas vezes remetida ao papel do chato funcionalismo público,  só que agora com a emoção da moral do bem, estrategicamente incrustada, como se isso lhe conferisse urgência estética.

    A câmara (e aqui começa o problema) não nos interroga — conduz-nos através do seu GPS afinado e convenhamos, fá-lo bem. Do ponto de vista da mise-en-scène formal parece-nos exímia.

    Mas por outro lado do ponto de vista intelectual, não parece exigir grande coisa aos espectadores num qualquer desvio que a câmara proponha, nenhum espaço onde se possa habitar a tragédia do ponto de vista da sua ambiguidade ou paradoxo e mesmo do livre arbítrio do espectador (se o tiver).

    Philip Barantini, o realizador, sabe dirigir actores e operar uma tensão formal com rigor mas tudo é demasiado operacional e afinado. É o teatro do naturalismo embalado numa estética condescendente com o próprio dispositivo televisivo, embora esta série se armadilhe de argumentos mais cinematográficos e experimentais como o tão falado uso do plano sequência, um doce para a critica especializada que parece já pouco sair à rua sem carpetes vermelhas.

    A escolha de filmar sem cortes aparentes cria uma armadilha: a ilusão da continuidade converte-se numa suspensão da complexidade. O tempo avança, mas não se transforma. A narrativa desliza sobre si própria. Às vezes parece não sair nunca do mesmo lugar, um artifício que pelos vistos funciona, ou não fosse esta a série da moda.

    Owen Cooper, no papel de Jamie, entrega uma fisicalidade apagada mas com fogachos como no caso da cena com a psicóloga em que invariavelmente se torna violento e ameaçador, como se o corpo estivesse sempre no rescaldo de um trauma que não nos é dado a ver, mas o actor fá-lo eximiamente e com uma representação típica do melhor dos britânicos neste tipo de encenação.

    Diria mesmo que no género são imbatíveis.

    Christine Tremarco, como mãe, transita entre o desespero e a impotência mas sempre dentro de um rigor que aflige positivamente. Stephen Graham, produtor e actor, encarna o pai com uma contenção que se pretende densa, mas que nunca verdadeiramente acende o fósforo, embora pareça que vai explodir a qualquer momento, para o bem ou para o mal da acção programática.

    Destaco ainda a filha, a psicóloga e o polícia que fazem jus à sua escola britânica  de forma brilhante e inspiradora, fazendo até esquecer outros aspectos menos interessantes, e não deixando instalar-se algum tédio inerente a uma obra sem cortes de edição.

    Jack Thorne, o criador, propõe um drama social que convoca o espectro de Ken Loach ou Mike Leigh, talvez, mas sem a coragem formal ou o radicalismo ético desses nomes.

    Não há confrontação de classes, nem análise de estruturas. Apenas psicologia e culpa. O sistema de justiça juvenil é pano de fundo, mas nunca é questionado. A escola surge como um lugar de passagem, não de formação. Será esta já a realidade? Pode ser, mas nesse caso chega-se ao fim de uma linha cujo dispositivo mediático pretende lavar daí as suas mãos. Já para não falar do comunicacional.

    A violência é um sintoma, mas nunca um fenómeno que se queira entender em profundidade. E aqui a série revela o seu coração: não é o mundo que está doente, são os indivíduos.

    O trauma substitui a ideologia. Em contraponto Elephant de Gus Van Sant é o exemplo do contrário já que se trata também de um filme de crime numa escola pública mas deixa os espectadores respirar nem que seja para dentro de uma saco de plástico escolhido por ele.

    Mais perturbador ainda é o desenho das personagens no plano simbólico. O masculino, em Adolescência, é sinónimo de ausência, ameaça ou fracasso.

    O pai é impotente, os colegas são predadores ou cúmplices. O assassino é um silêncio que mata. Em contrapartida, o feminino surge como espaço de escuta, contenção, empatia. A psicóloga, a irmã, a mãe: todas representam zonas de verdade emocional. Esta oposição, além de simplista, revela uma lógica binária que contradiz o próprio realismo que a série reivindica. Não há contradição nos corpos, nem ambiguidade nos gestos.

    Cada personagem está condenada ao seu arquétipo. Não há voz que escape ao destino.Não é por acaso que quem mata é masculino e quem morre é feminino. A organização simbólica da série é clara: o masculino como ameaça, silêncio ou falência; o feminino como escuta, dor e verdade emocional. Jamie, o agressor, não tem agência — é um corpo mudo que activa a queda dos adultos. A vítima, ausente, torna-se presença moral. É uma configuração que parece natural, quase inevitável, mas que revela a escolha de alinhar-se com uma narrativa binária, afectiva e funcional. Ao não tornar mais complexa esta divisão, Adolescência não interroga o seu tempo , apenas o confirma, pelo menos na sua percepção estereotipada.

    Não deixa de ser curioso que a serie é muito masculina na sua autoria incluindo Brad Pitt que  aparece como produtor executivo.

    Esta moralização do enredo seria menos problemática se a estrutura dramática oferecesse zonas de fuga, de interrogação, de ambivalência. Mas não: a série opera como um tribunal sem apelação. Cada gesto é carregado de um subtexto que se quer politicamente correcto como se a culpa fosse definitivamente de Jamie ou da sua família que apesar de tudo aparece como estruturada. Mas o mal surge da normalidade e parece querer enfatizá-lo ao estilo de Hannah Arendt mas sem sentido crítico.

    Curioso e também um pouco incompreensível ou mesmo enigmático é a palavra “pedófilo” aparecer escrita na carrinha de trabalho do pai, mesmo sabendo quem a escreve — mais uma vez rapazes prontos a armar sarilho doa a quem doer. A filha boa e generosa é apenas espectadora quando o pai bate num dos rapazes. É a violência explicita a entrar pela família adentro.

    O aparato técnico é irrepreensível deixando no ar uma certa magia não sendo óbvio perceber o seu dispositivo perturbador, sobretudo no episódio em que passamos para um ponto de vista do céu como se fosse o de um drone. A fotografia é sóbria, neutra, quase hospitalar. Tudo contribui para uma estética da contenção. Nunca há um verdadeiro risco.

    O plano-sequência, que poderia ser um dispositivo de descoberta, torna-se um mecanismo de controlo. 

    Funcionou, tendo em conta as audiências e a critica especializada.

    Também o Dallas no seu tempo.

    A crítica parece unânime no Rotten Tomatoes, ou no Metacritic na critica positiva. 100 por cento. Mas esta unanimidade revela mais sobre o estado da crítica do que sobre a série.

    Vivemos um tempo em que a adesão emocional se tornou critério de valor. Se um produto cultural afirma uma causa justa, isso basta para legitimar todos os seus defeitos. A forma tornou-se irrelevante, desde que a intenção seja correcta. O problema é que a intenção, aqui é estranha. Dizer mal ou criticar boas acções moralizantes acarreta os seus riscos no planeta das duas terras. Uma estupidez tramada, que acarreta medo e desordem.

    A adolescência — enquanto conceito — é, por definição, uma zona de conflito, metamorfose, risco, transgressão.

    Nesta série, é convertida num campo de purificação moral. Em vez de corpo em transformação, temos corpos culpados ou redentores. Em vez de afectos desregulados, temos sintomatologias. Em vez de pulsões, temos discursos.

    Nada escapa ao algoritmo narrativo.

    Não é preciso pensar, mas empatizar. Não há abismo. Não há interrupção. Apenas a certeza de que estamos do lado certo. E isso, num objecto cultural que se pretende desafiante, é o maior dos fracassos.

    Adolescência é também um exemplo acabado da cultura da segurança simbólica. É um produto com vocação de arte. Mas a arte, quando se limita a imitar a virtude, torna-se apenas mais um ramo da indústria — agora com plano-sequência e paleta neutra.

    Adolescência é, no fundo, um bom exemplo do que acontece quando a televisão tenta mimetizar algum cinema sem aceitar o seu risco ontológico mas tudo está submetido a uma lógica de continuidade emocional e controlo narrativo.

    A televisão, enquanto forma, vive da fidelização e da retenção — e mesmo quando se aproxima formalmente do cinema, não abdica da sua função principal de manter o espectador dentro do regime da identificação, da empatia, do reconhecimento e da compreensão, tudo aquilo que Twin Peaks não tinha, não deixando por isso de ser um sucesso de público e da critica mas num tempo em que a internet era só uma miragem. O cinema, por oposição, pode fracassar e desorientar. Pode fazer o espectador sentir que não está no lugar certo — e, justamente por isso, transformá-lo, correndo sempre riscos ideológicos ou morais.

    Alguns episódios de Black Mirror conseguem-no e aqui com mais alguns pormenores e com a intromissão  “diabólica” da tecnologia quotidiana, o primeiro episódio seria magnifico e poderia inscrever-se nessa dimensão mais aberta de Black Mirror que na verdade nunca pretende ser cinema nem usa fluídos cinematográficos pretensiosos que faça a crítica rejubilar.

    No final, talvez Adolescência deva ser lida não como um falhanço formal ou conceptual, mas como uma espécie de diagnóstico involuntário da própria televisão contemporânea. Nesse sentido é uma série que tenta emular a densidade do cinema de autor, mas acaba por cristalizar, com rigor quase académico, os limites internos da sua matriz televisiva.

    E é aí que se torna interessante: na tensão entre aquilo que pretende ser e aquilo que efectivamente é, dando prazer assistir.

    Não se trata de perdoar as suas falhas narrativas, nem de celebrar as suas virtudes técnicas, trata-se de reconhecer que a obra, na sua incapacidade de produzir verdadeiro abismo, revela com clareza o modo como a televisão actual opera: por sedução estética, por empatia emocional, por alinhamento moral. A sua forma — o plano-sequência — que poderia ser instrumento de desorientação, converte-se num dispositivo de segurança.

    A sua narrativa que parte de um trauma, nunca arrisca o desconforto real. A sua dramaturgia que invoca o realismo, encena apenas a previsibilidade ética do seu tempo. Queríamos mais e aqui estava uma excelente oportunidade.

    Nesse sentido, Adolescência não é uma má série: é uma série transparente à sua maneira. Se tivesse de atribuir uma nota daria 7 (10).

    Expõe os mecanismos de contenção simbólica da televisão pós-Netflix, onde tudo é coreografado para parecer radical, mas nada escapa ao regime do reconhecimento. Quase como se quisesse redimir em certos momentos onde a câmara deveria ir para ver mas não vai ficando talvez a sugestão. É evidente que gostaríamos de a ver entrar noutros sítios mais incómodos para o poder. Imaginem Kubrick ou Bergman.

    E talvez seja este o seu mérito maior — e mais perturbador: mostrar, com precisão, o que a televisão contemporânea pode ou não pode ser. Mostrar que o risco está simulado, que a densidade está encenada, que a arte está subordinada ao algoritmo narrativo da plataforma.

    A Netflix é mais que uma plataforma. É um espaço contemporâneo em que a dislexia e a neurose se evidenciam de forma apesar de tudo transparente.

    Adolescência, assim lida, é um espelho: não do mundo, mas do próprio meio que a produz. E nessa revelação inusitada, torna-se politicamente relevante. Porque nos diz até onde a televisão é capaz de ir — e até onde jamais ousará chegar, fazendo assim serviço público de relevância, mostrando-nos o aeroporto onde se pode aterrar em segurança.

    E a vida continua… Talvez como nos filmes de Kiarostami.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações: Swimming Pool Project


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O raspanete

    O raspanete

    Passaram umas horas depois do incidente que toda a gente viu, e Volodymyr Zelensky continua abatido. Entra no SUV ainda com o fantasma bem presente da impressionante conversa que tivera, horas antes, com Trump e J. D. Vance, com o mundo todo a assistir.

    Está apenas com o seu chaffeur na viatura.

    Passado uns minutos de silêncio, e depois de se aperceber da postura melancólica e cansada do político-actor, diz-lhe o chauffeur:

    — Não leve a mal, senhor presidente, mas numa coisa concordei com o que vi.

    Bem… Tu também?

    Se me permite senhor presidente…

    O que é que foi? — pergunta sem convicção o ucraniano, pusilânime e com alguma condescendência, consequência do cansaço acumulado. — Já não me bastou ter de levar com aqueles dois atrasados…

    Zel comendo um Chupa-Chups.

    — Sim, mas… — pigarreia para aclarar a voz.  — Senhor presidente, eu, se mandasse num país, e graças a Deus que não… — pigarreia novamente. — Não me vestia assim para uma cimeira, ou lá o que é que foi aquilo.

    Zelensky abana a cabeça e, com um olhar vago, fita a paisagem sem se fixar nela.

    O chaffeur continua:

    — Nisso a minha mãe tem razão: devemos ir sempre bem vestidos para os encontros importantes. Desculpe a arrogância.

    Mas tu achas que eu gosto de andar assim vestido? — responde Zelensky com uma nova e súbita energia. — Achas que eu ando assim porque quero?

    — Bem…

    — Achas que já não tenho problemas suficientes lá na Ucrânia para ainda ter de estar aqui a levar contigo?

    Eu não qu… — o motorista tenta interromper sem sucesso enquanto Zelensky continua no mesmo tom:

    — Achas que isto tudo é escolha minha? Já viste o que é que eu tenho de ouvir? Já percebeste que levei o maior raspanete da História da televisão? Achas que estou para isto? Também tenho honra, ou não?

    Zel ouvindo ‘Karma Police’ dos Radiohead.

    — Bem, senhor Zelensky, eu não queria estar na sua posição. Isso é verdade. Uma vez na escola levei cá um raspanete na aula, à frente de toda a gente, que ainda hoje me lembro. Foi cá uma vergonhaça!

    Zelensky recompõe-se.

    Agora multiplica essa aula por triliões. — diz, novamente, o politico, mas já com a voz normalizada.

    — Fogo! Eu nunca mais dormia. —responde o motorista, levantando os olhos.

    — Estás a falar das minhas roupas… Mas nem sequer sabes de que marca são!

    Isso é verdade. Lacoste não são, senão tinham aí o lagartinho. —diz o chaffeur, enquanto faz uma cara ameaçadora para um outro condutor que o acabou de ultrapassar.

    Zelensky continua:

    — Esta t-shirt custa para aí uns 500 dólares. Devias estar calado e guiar com atenção. E não penses que o Trump e o barbichas country vestem assim tão bem. A gravata do Trump estava suja de gordura.

    — Bem, senhor presidente… Desejo-lhe sorte agora, quando tiver de dormir sem comprimidos. A alma até dói depois de um raspanete destes. E o senhor já não é propriamente um adolescente.

    O motorista está ainda fixado naquele seu pequeno trauma.

    — Eu, só com aquele raspanete que levei na escola, demorei anos a conseguir dormir bem outra vez. E eram só uns 20 na sala. Mas foi cá uma vergonha. — reforça o homem.

    Zelensky, no entanto, aproveita a boleia da conversa para não pensar no seu assunto e diz:

    O que é que tinhas feito?

    — Tinha posto pimenta nas hóstias na capela do colégio, senhor Zelensky.

    O ucraniano por segundos esquece-se de Trump e ri-se.

    — E depois ?

    — Depois, durante a missa, as velhas, sobretudo, tossiram e espirraram muito e foi de morrer a rir vê-las.

    Zelensky tem um novo assomo de energia e parece divertir-se com a historieta do motorista.

    — Mas depois, lá no colégio interno, descobriram que fui eu. Fui delatado por um puto que me odiava. Olhe, presidente, imagine que era o Putin, tá a ver?

    — Sim, mas não é preciso fazer comparações.

    — Desculpe.

    Faz-se um silêncio e depois, de repente, o chaffeur atira:

    — Isto era mais fácil quando o Zelensky era actor, não?

    — Estás a brincar? Prefiro, ainda assim, ser presidente na vida real.

    — Mas lá não levava raspanetes destes…

    — Não, que não levava… Do realizador da série, era quase todos os dias. Eu sempre levei raspanetes na vida. Não como o de hoje, claro. Isto não foi um raspanete. Isto foi um ataque de um porta-aviões. 

    — Não foi um; foram dois.

    — Isso. Ainda pior.

    — Mas, se me permite, Zel… posso tratá-lo por Zel?

    Sim, estás à vontade. Até prefiro. Mete-me no meu verdadeiro lugar. 

    Zel chora.

    — Bom… O Zel também foi para lá com duas pedras na mão. — arrisca o homem. E continua:

    — É preciso muita coragem para chegar à Casa Branca e dizer o que o Zel disse. Ainda por cima àqueles dois. Bolas, eu não tinha essa coragem. No outro dia, na reunião do condomínio, quis também ter assim um pouco a sua postura, mas não tive coragem. E depois não sei se estava preparado para o raspanete certo da minha mulher.

    — Pois. Percebo isso.

    — Ainda tentei armar-me em duro, mas…

    Faz-se de novo um silêncio e Zelensky suspira como uma criança.

    O motorista olha pelo retrovisor e atira com ar amistoso de quem está a falar com alguém nitidamente fragilizado:

    — Se calhar, agora, o melhor era o Zel ir para o hotel descansar, porque nestes dias de raspanetes há sempre tendência de tudo piorar a seguir.

    — Sim, eu conheço a sensação.

    — Mas, bolas, eu nem quero acreditar que estou no mesmo carro com o homem que levou o maior raspanete da História dos raspanetes, em directo.

    — Já chega, está bem!

    — Sim mas mesmo assim, e se me permite Zel, você até teve muita coragem.

    — Obrigado.

    — O J. D. Vance fez-me mesmo lembrar o contínuo chefe da minha escola numa das muitas rabecadas que levei, em que percebeu que o director lhe estava a dar espaço e acabou por, através de mim que não tinha culpa nenhuma, mostrar o seu poder. Nessas situações estamos sempre lixados, sobretudo quando são dois ou mais a darem-nos cabo da cabeça. Mesmo que tenhamos razão. Tendemos sempre a fazer como o Zel fez, assim com os ombros em posição defensiva — imita —, e com a cabeça para a frente.

    — Olha para a estrada!

    Revi-me muito em si. — voltando a olhar para a frente — Provavelmente, eu e muitos milhões de injustiçados do mundo vitimas de reprimendas das antigas. É muito humilhante.

    — Já chega. Tudo o que estás a dizer é verdade. Mas se queres saber, já levei muito piores. Olha para a minha cara. Não se vê logo que tenho ar de quem levou muitas na vida?

    — Sim, por acaso, agora que penso nisso, tem sim. Mas ainda assim chegou a presidente.

    — Isso é outra historia que não interessa para aqui e é melhor não quereres saber.

    — Sim… BlackRock e não sei quê… A União Europeia a parecer uma equipa de natação sincronizado no que respeita à guerra é esquisito… Sim, sim. Percebo.

    — Então… Olha lá a confiança. Não vás por aí.

    Zel, já agora, queria dizer-lhe uma coisa… chata. — interrompe o motorista.

    — O que é que foi agora?

    — O Zel, quando se filma a si próprio e aparece na televisão…

    -Sim. E então?..

    O motorista pigarreia novamente para aclarar a voz.

    — … Bem… Não é muito bom a filmar-se. Não me leve a mal. Mas primeiro, não devia filmar-se na vertical, e depois devia de ter maior distância entre si e a lente. Não me leve a mal novamente, mas fica sempre com o nariz muito grande. Não é nada contra si. Mas eu estudei cinema.

    — Quando um homem está em baixo, toda a gente lhe dá pontapés. Tens razão. Vou pedir ao Spielberg para andar sempre comigo nessas situações. Deve levar barato.

    Não queria ofender. — responde o chaffeur.

    E Zelensky, visivelmente chateado insiste:

    Se calhar, também não gostas da minha maneira de falar!

    — Por acaso, não. Mas não me leve a mal. São gostos. O seu inglês é esquisito.

    Zelensky vai para responder, mas o seu telefone toca. Olha para o nome e atende. É Olena, a sua mulher.

    — Sim…

    — É só isso que tens para dizer? Sim. Sim o quê?..

    — O que é é que eu fiz agora?

    Com Olena quase aos gritos, a conversa torna-se perceptível para o motorista.

    — Tu nunca fazes nada! —ataca Olena. 

    — Estiveste a ver? —pergunta Zelensky, a medo.

    — Eu e mais três biliões de pessoas. Não tens vergonha? Olha para mim agora. Vai ser tudo a gozar comigo. 

    — Mas o que é que eu fiz? Estás mais preocupada contigo do que comigo?

    — Olha Linskinho, a tua sorte é eu estar aqui. Devias agradecer eu ainda estar aqui a falar contigo e não te virar as costas.

    — Mas eu não fiz nada de mal!

    — Vocês nunca fazem nada de mal!

    — Está bem. Entrei um bocado à bruta…

    — À bruta? Então tu vais para a Sala Oval armado em Stallone!

    — Não exageres.

    — Eles têm alguma razão. Sobretudo o barbichas country. Devias era estar agradecido por estares lá com eles. Já viste que, a esta hora, podias estar na televisão a fazer sketches estúpidos e a apresentar programas de merda tipo Big Brother?

    — Mas…

    — Não há aqui mas, nem meio mas… É mesmo assim. O que há é o que é.

    Zel faz balão com pastilha elástica.

    — O que é que isso quer dizer?

    — Não é o que isso quer dizer. Não fujas da conversa.

    — Mas eu não estou a fugir.

    — Já viste a sorte que tens de ainda estar aqui a falar comigo e eu estar a dar-te bola?

    — Olena, não sejas assim…

    — E, já agora… Anteontem deixaste a roupa toda no chão e saíste do quarto sem arrumar.

    — Desculpa mas isso não fui eu. Foi a Olga. Tu sabes bem.

    — Ai não? Ok. Sim…

    — Precis…

    — Não foste tu, mas podias ter sido. Vocês são sempre a mesma coisa.

    — Mas vocês quem? Estás a falar comigo.

    — Vocês todos. Tu não tinhas necessidade disto…

    O motorista interrompe com uma voz nervosa, no momento em que o ucraniano vai a responder:

    — Não leve a mal, senhor presidente, mas, se calhar, devíamos sair do carro.

    — O que é que foi? — pergunta o presidente, meio atordoado.

    — Já fiz asneira. O motor parece estar a arder, mas a culpa não foi minha. —diz o motorista, saindo apressadamente do SUV.

    — Foda-se!!! —grita Zelensky, enquanto tosse e bate com a cabeça no vidro.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Manuel Silva

  • Haing S. Ngor: o não-actor acidental

    Haing S. Ngor: o não-actor acidental

    1. TERRA SANGRENTA

    Em temporada de Óscares, quero escrever sobre um “actor” que levou para casa uma dessas estatuetas douradas. E, justamente no dia em que esta crónica é publicada, assinalam-se 29 anos desde que Haing S. Ngor ‘deixou’ Hollywood. Mais precisamente, a 25 de fevereiro.

    Mas para bom entendedor, meia notícia basta.

    E então comecemos pelo filme Killing Fields, que em português tem o titulo de Terra Sangrenta.  Foi produzido em 1984 e é pelo qual o protagonista deste texto é conhecido. A obra venceu vários Óscares e recebeu muitos elogios da crítica.

    Vejamos a sinopse:

    Sydney Schanberg (Sam Waterston), repórter do The New York Times, vai cobrir a guerra civil do Camboja. Lá torna-se grande amigo de Dith Pran (Haing S. Ngor), tradutor e também jornalista.

    Juntos testemunham atrocidades, tragédia, loucura e esperança.

    Schanberg volta para casa e ganha um importante prémio de jornalismo pela cobertura que ambos fizeram, enquanto o seu amigo Dith Pran encara um triste destino no país agora comandado pelos Khmer vermelhos: torna-se prisioneiro dos campos de morte, após não ter ido com a equipa para os Estados Unidos. Mas Shanberg faz tudo para voltar a vê-lo…

    Este filme era aparentemente difícil de vender e de filmar, não sendo óbvio os estúdios aceitarem a priori.

    Mas havia algo de inevitável nele. Um argumento realista, uma história na qual o horror não era fabricado, mas sim reflectido num espelho sujo de sangue.

    Bruce Robinson, o argumentista entregou-o ao produtor David Puttnam, que percebeu imediatamente que tinha algo valioso nas mãos, mas não seria fácil encontrar um realizador adequado para o filme.

    Vários foram equacionados, entre eles Costa-Gavras, mestre e veterano do thriller político, que parecia a escolha óbvia.

    Dizem que Stanley Kubrick mostrou interesse na história, mas depois desistiu. Não porque fosse impossível, mas porque a brutalidade dos factos dispensava qualquer artifício cinematográfico para o autor.

    Era preciso alguém que compreendesse que esta não era apenas uma história sobre guerra, mas também sobre amizade e sobrevivência no inferno dos campos de trabalho, já que tinha os ingredientes principais para a culinária de que é feito o cinema americano.

    E então apareceu Roland Joffé, realizador pouco conhecido na altura, que vinha do mundo da televisão.

    Joffé não queria apenas fazer um filme de guerra, com uma denúncia política. Seria, acima de tudo, um retrato da amizade entre dois homens de dois mundos distintos, ligados pela paixão à verdade, indo assim ao encontro das ideias do argumentista.

    Mas Hollywood queria nomes sonantes.

    Roy Scheider, Alan Arkin e Dustin Hoffman mostraram interesse, mas constava que Puttnam e Joffé já tinham Sam Waterson em mente.

    Os estúdios ainda pressionaram, desconfiados da escolha, mas o produtor e o realizador responderam deixando um aviso de que as filmagens seriam perigosas e não seriam para qualquer um.

    Se Waterston já era uma aposta arriscada, Haing S. Ngor seria uma loucura arrojada, no entanto os estúdios aceitaram.

    A Tailândia serviu de cenário para o filme, já que tem muitas semelhanças territoriais. O peso da história ainda se fazia sentir ali, e as autoridades tailandesas compreenderam a importância de se fazer um filme como aquele.

    Viram essa acção como um testemunho, uma forma de garantir que o mundo não esquecia aquela guerrilha.

    Coisas da política.

    Foi um filme caro. A cena da evacuação de Phnom Penh, por exemplo, precisou de 3.000 pessoas que não eram apenas figurantes. Muitos deles, eram sobreviventes da tragédia.

    A película ainda ardia por aquelas bandas.

    Puttnam, que produziu The Killing Fields, nunca teve dúvidas. Considera-o o seu melhor filme.

    O público e a crítica concordaram, tendo gerado uma receita assinalável.

    O final é inesquecível.

    The Killing Fields distingue-se ainda pelo seu uso consciente de técnicas cinematográficas que amplificam o realismo e o impacto emocional. A fotografia de Chris Menges, vencedor do Óscar, utilizou luz natural e cores terrosas, criando uma atmosfera densa, parecendo até um pouco televisiva para os padrões da altura, quase documental.

    Mas Joffé vinha da televisão, para o bem e para o mal. 

    Na cena em que os jornalistas esperam ajuda americana, os longos planos-sequência permitem que o espectador experimente uma certa ansiedade inabitual, sentindo o peso dos momentos sem cortes artificiais. Essa adrenalina também se faz sentir nas cenas em que Dith Pran tenta sobreviver aos campos de trabalho, não sucumbindo — como muitas vezes acontece em filmes deste género — ao lado mais espectacular do entretenimento.

    O som desempenha um papel crucial, com a banda sonora minimalista de Mike Oldfield a contrastar com o som diegético intenso — explosões, tiros, gritos — sublinhando a tensão constante. Foi uma escolha inesperada.

    Em suma, o filme evita ritmos frenéticos, optando a edição  por cortes lentos que reforçam o impacto emocional, especialmente nas cenas de separação e sofrimento, privilegiando enquadramentos que isolam os personagens, simbolizando a solidão e o desespero, e planos austeros que evidenciam a desolação dos campos cambojanos.

    A ausência de artifícios estilísticos confere autenticidade, equilibrando entre uma estética algo fria e uma narrativa profundamente humana, tornando-se um marco do cinema político e humanitário.

    Nem parece um filme de Hollywood.

    Fade.

    2. O JORNALISMO

    Agora baralhemos o jogo para ter mais piada.

    Houve um tempo em que a palavra ‘genocídio’ era um corte — uma fissura no discurso que exigia pausas para respirar. Hoje, tornou-se um fragmento descartável, um artefacto linguístico que circula incessantemente, sem jamais se fixar. Uma palavra que fica bem e que, pelos vistos, não se percebe bem o que traduz. 

    The Killing Fields retrata o horror dos Khmer vermelhos, mas a sua ressonância ultrapassa o tempo e o território: poderia ser qualquer fronteira, qualquer conflito ou arquivo digital em que o sofrimento é armazenado, etiquetado, diluído e, sobretudo, desrespeitado. 

    A brutalidade de Pol Pot — que não aparece directamente mencionado, mas que está omnipresente no filme — não é uma relíquia: é o espelho deformado de uma contemporaneidade que, ao rejeitar aparentemente os extremos, os reproduz com uma nova sofisticação.

    Aparentemente, a brutalidade hoje é mais descomprometida, mas só na aparência. Uma guerra é uma guerra.

    Os Khmer vermelhos aboliram o indivíduo pelo excesso de controlo; hoje, e para fazer uma analogia, elimina-se pela saturação.

    O conhecimento já não é extinto pela força, mas pela redundância.

    No Camboja, bastava ostentar-se um par de óculos para se ser condenado à morte; hoje, basta um desvio do discurso predominante para se ser apagado, sobretudo quando a doença aperta.

    Não por censura explícita, mas por dispersão — um desaparecimento elegante entre fluxos intermináveis de dados cada vez menos de tabuleiro, inseridos num xadrez cada vez mais complexo.

    A terra que pertencia ao povo tornou-se, agora, o espaço simbólico que pertence à cloud, na qual o indivíduo é fragmentado, redistribuído e finalmente… Esquecido.

    The Killing Fields é menos um retrato histórico do que um ensaio fílmico sobre a vulnerabilidade da memória. O jornalismo que Schanberg e Pran representam não é apenas um acto de coragem, mas de resistência ontológica, enfrentando o esquecimento como destino inevitável.

    O filme recorda-nos que a verdade não desaparece apenas sob regimes totalitários; desaparece quando a sua velocidade de circulação a impede de ser compreendida. A informação, muitas vezes não rima com o humano. 

    Hoje, o jornalista de um órgão mainstream já não desafia o poder; depende dele. Dorme na mesma cama cujos lençóis parecem estar à vista, onde os cobertores já não protegem a audiência, aquecendo-a.

    O jornalista deixou de ser o observador incómodo para se tornar, muitas vezes, o marketeer cúmplice do poder, ou vítima da saturação de dados.

    A narrativa jornalística deixou de ser uma construção lenta e dolorosa para se tornar um reflexo instantâneo, tão rápido que se desfaz no mesmo momento em que surge.

    Não quer dizer que aquele mundo fosse melhor e que o jornalismo salvasse fosse o que fosse, mas a ética ganhava mais Óscares. É fundamental não se perder de vista a História, incluindo a do Cinema. Mesmo que tenha sido feita, como é normal, pelos vencedores e que até haja muitas Histórias para confrontar.

    Um bom filme é sempre intemporal. E pode ultrapassar todas as condicionantes. Nunca se sabe.

    Nos anos 70, para muitos profissionais, o jornalismo era uma arte lenta e meticulosa, movida pela obsessão com a verdade factual.

    Repórteres como Schanberg, retratado em The Killing Fields, arriscavam a vida para documentar realidades que o poder preferia ocultar, sobretudo o estado-unidense que também aqui é posto em causa, mostrando uma realidade vulnerável e mentirosa.

    A informação era escassa, preciosa, e a construção de uma notícia envolvia tempo, investigação rigorosa e confrontos com a censura e o silêncio.

    Hoje, talvez o jornalismo seja mais um reflexo instantâneo, moldado pela velocidade e pelo volume. As redes sociais ditam a agenda, e o que outrora exigia dias de apuramento, agora dissolve-se em segundos, num ciclo contínuo de headlines efémeras.

    Mas, paradoxalmente, e de acordo com o Comité para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), 2023 foi um dos anos mais mortíferos para jornalistas, com 99 profissionais mortos. É o número mais alto desde 2015. Em contraste, nos anos 70, o número de jornalistas mortos era significativamente menor, ainda que os dados dessa época sejam mais escassos e menos sistematizados.

    Nunca nada é só uma coisa e a percepção engana.

    Fade.

    3. A REALIDADE

    Haing S. Ngor não era um actor. Pelo menos, não no início. Nunca quis ser estrela de cinema. Nunca sonhou com Hollywood. Mas o destino colocou-o lá. E ele fez história.

    Nasceu no Camboja, em 1940. Cresceu num país aparentemente tranquilo. Tornou-se obstetra. Salvava vidas e acreditava no futuro.

    Em 1975, o regime de Pol Pot tomou o poder.

    Quando os soldados dos Khmer vermelhos chegaram, Haing S. Ngor escondeu a sua historia. Se descobrissem que era médico, seria morto. Rasgou os diplomas e enterrou os instrumentos cirúrgicos. ‘Deixou’ então de ser médico e tornou-se prisioneiro do regime.

    Foi enviado para os campos de trabalho. Lá viu o horror, a fome e a tortura. Perdeu a mulher que estava grávida e que morreu porque ele não podia ajudá-la; caso o fizesse, descobririam que sabia de medicina.

    Morreu nos braços dele.

    Ngor sobreviveu contra todas as probabilidades. Passou quatro anos no inferno, mas conseguiu fugir em 1979 para a Tailândia e depois para os Estados Unidos.

    Tentou reconstruir a vida em Los Angeles.

    Trabalhou como tradutor, mecânico, tudo o que aparecesse, até que foi parar a um casting de um filme sobre o seu país.

    Roland Joffé, o realizador queria um sobrevivente. Alguém que conhecesse essa realidade e que não tivesse de fingir.

    Haing S. Ngor fez o casting impressionando toda a gente e ganhou o papel de Dith Pran. A experiência do médico, não era muito diferente da do jornalista que iria encarnar, tendo até muitas coincidências.

    A realidade é sempre o melhor actor da realidade.

    Foi a primeira vez que ‘representou na vida’, mas a performance foi arrebatadora e quando o filme estreou, o mundo ficou em choque com a realidade anunciada e a credibilidade da obra. Sobretudo Ngor: fascinava pelos silêncios nada comuns para Hollywood.

    Ganhou o Óscar de Melhor Actor Secundário em 1985 e foi o primeiro asiático a vencer nessa categoria. O segundo na história dos Óscares.

    Mas o prémio não era só dele. Frisou-o bem. Subiu ao palco e dedicou a vitória à mulher e à filha que morreu antes de nascer.

    Haing S. Ngor usou a fama repentinamente adquirida para denunciar o regime de Pol Pot que ainda se mantinha nesse período, embora  em guerrilhas com o Vietnam no seu próprio território.

    Continuou sempre a falar sobre o massacre e escreveu um livro.

    Hoje, essa tragédia é considerada a maior em número da História conhecida e documentada, tendo esse regime chacinado 25% da população.

    Ngor criou várias fundações para ajudar refugiados e nunca deixou de se sentir um sobrevivente.

    Ainda fez outros filmes pouco relevantes, mas nunca quis ser apenas actor.

    Foi a voz dos seus compatriotas anónimos.  

    O seu percurso — de obstetra a prisioneiro, de sobrevivente a estrela acidental — é a narrativa que o cinema contemporâneo raramente consegue recriar, uma que não precisa de artifícios para ser devastadora.

    Talvez conheçamos melhor Dith Pran papel que ele ‘representa’ que o próprio Ngor.

    O jornalista cambojano, como aparece numa nota no fim do filme, tornou-se fotógrafo do The New York Times. Uma recompensa armadilhada, se pensarmos na metamorfose que o jornalismo que Ngor acreditava veio a sofrer.

    Fade.

    4. THE END

    Em 1996, a tragédia voltou à casa do médico.

     

    Três homens aproximaram-se do seu carro e disseram que era um assalto, mas ele recusou-se a dar o fio de ouro que tinha ao pescoço, no qual guardava a imagem da mulher.

    Deram-lhe um tiro na cabeça e morreu.

    A polícia disse que foi um crime banal como muitos outros naquela época.

    Mas muitos duvidaram.

    Ngor tinha inimigos, continuava a denunciar os Khmer vermelhos. Sabia demasiado, tal como no Camboja, e isso podia ser fatal em qualquer circunstância. Algum tempo depois, os assassinos foram apanhados e presos sem mais detalhe.

    Fim da história.

    A sua morte, tão banal quanto suspeita, é o último plano de um filme que nunca chegou a ser rodado: a verdade, afinal, não é derrotada apenas pelo totalitarismo, mas também pela indiferença de uma outra que se multiplica tão depressa que já não consegue olhar para si mesma.

    No entanto, algumas histórias não foram ‘feitas’ para caber num ecrã e muito menos num artigo de jornal. A realidade, ainda assim pode ser mágica, ainda mais que o cinema.

    Arrisco eu, refém que sou dela.

    Haing S. Ngor tinha 55 anos. Sobreviveu aos Khmer vermelhos, mas não sobreviveu à América.

    Ironia.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações: Ruy Otero


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  • Hollywood burns (I)

    Hollywood burns (I)

    O título deste modesto texto poderia ser, sem dúvida, o título de um hipotético filme de John Carpenter, em que, assim como no Escape From L.A., há um mundo que chega ao fim. E todos os finais são trágicos, como nos mostra a literatura universal e o bom cinema.

    Não querendo dizer que alguns não possam ser finais libertadores e até desejáveis.

    Quantas vezes não vi The End escrito na parte final dos filmes, mesmo antes do genérico aparecer…

    Sobretudo quando jovem, havia filmes em que desejava que a legenda final nunca chegasse ao ecrã, tal era o prazer de ver cinema e de estar refastelado numa sala, com os condimentos necessários para que sonhássemos à grande e à… Americana.

    Nesses cinematográficos anos 80, não havia Internet e a RTP (tanto a 1 como a 2) encerrava a emissão por volta da meia-noite. Quem quisesse sentir mais um bocadinho da energia dos raios catódicos ainda tinha a chance de ficar a olhar para a mira técnica — e era uma sorte, porque, ainda assim, havia população que nem sequer um televisor em casa tinha e via o Passeio dos Alegres no café ou na colectividade.

    Aos sábados, as emissões prolongavam-se um pouco mais, chegando a ter as fantásticas noites de terror com filmes de Cronenberg, John Landis ou mesmo de Tobe Hooper. Uma série B que dava baile a muito cinema mainstream, carregado de moralismo americano e patriótico.

    Para mim, os anos 80 foram de grande respeito pela indústria de entretenimento, quando me começo a lembrar de Indiana Jones e dos Goonies, por exemplo, dos Gremlins, passando pelo Cotton Club de Coppola e por Richard Gere a fazer de músico, ou mesmo Mad Max, com o católico e “garganta funda” Mel Gibson a dar cabo de toda a chungaria que lhe aparecesse à frente no deserto.

    Vivia-se num mundo cognitivo que tinha o lema de “com a verdade me enganas” a assumir o comando e o controlo das operações, já que, inevitavelmente, iremos parar, como se está a ver, ao incrível mundo das conspirações, senão mesmo das auto-conspirações, para ser freudiano.

    O que pensávamos existir por trás dos filmes era, sem dúvida, um mundo longínquo, inalcançável e de sonho, certamente. A Internet e as redes sociais ainda estavam a anos-luz, por isso o mundo parecia mais com aquilo que o Expresso ou o Diário de Notícias escreviam.

    Mas um fim é sempre um fim. E há o fim da história, com inevitáveis happy ends, e o fim que quer dizer que o filme acabou.

    Os happy ends tendem a ser desagradáveis e moralistas, e a chavalada dos anos oitenta já tinha mergulhado num cinismo new age através da música e do Spectrum ZX, e já não se alimentava de happy ends desoladores.

    Era, para Portugal, o início de uma pós-modernidade que chegava tarde, mas a boas horas.

    O actor português Joaquim de Almeida fazia inveja a muita gente porque conseguia uns papéis de mafioso latino em Hollywood, contracenando com estrelas dessa indústria. Tanto que a alcunha muito portuguesa desse actor no meio audiovisual lusitano era Quim Hollywood. Boa alcunha, diga-se.

    Hoje, tudo é diferente. Podes ser facilmente amigo do Richard Gere no Facebook e até ter pena dele no Instagram. E o Joaquim de Almeida ainda vai tendo trabalho no outro continente, mas é também a voz do Alerta CM da CMTV.

    Como se vê, o glamour do actor latino vai ficando nas ruas da fábrica da amarguinha e não nas do Château Pétrus.

    É assim a vida. Ouvi dizer.

    Aqui, na nossa realidade, que também cada vez mais se assemelha a um filme de série B, parece que estamos a chegar ao fim de um mundo que nos acompanhou, para o bem e para o mal, durante tanto tempo, chamado Hollywood, e a pista para lá chegarmos é, entre outros mafiosos, Diddy Combs.

    Jeffrey Epstein já tinha aberto o apetite para o mergulho na torrente de lascívia do mundo oculto, trazendo para a esfera alguns nomes sonantes de alguma elite, tanto política como artística, embora, para a maior parte das pessoas, Hollywood ainda esteja mais viva do que nunca e seja consumível até ao volante de um Uber, com um passageiro lá dentro, sendo até os filmes descarregados para telemóveis e tablets, continuando a destilar glamour pelas revistas.

    Os actores principais são até cada vez melhores pessoas e lutam permanentemente pela igualdade, até a dormir (cheios de soníferos).

    Muita gente consome até as novelas que o Moniz amassou.
    É assim. Consomem tudo e não deixam nada.

    Para muitos, os actores e actrizes continuam lindos, elegantes e cheios de saúde.
    Normalmente, a sua apreciada benevolência chega tanto a África como às vítimas de violência doméstica, apostando, para isso, no activismo e na filantropia, passando pelo Tibete e pelo Dalai Lama, que até parece ser guia espiritual de alguns, já para não falar da pertença à Igreja da Cientologia, que deixa sempre as suas marcas por onde quer que meta o bedelho.

    Mas esse tema fica para outra crónica dos bons malandros.

    Quanto ao eventual charme de Hollywood… Nada de mais errado.

    Hollywood arde e as estrelas aparecem cada vez mais chamuscadas aos olhos de uns quantos que não acreditam nas conspirações oficiais, que normalmente rivalizam com as não-oficiais.

    Nem mesmo muitos Canadairs apagariam as chamas que já ardem há umas temporadas (para ser fiel às séries) pelos lados das florestas californianas e que já chegam a chamuscar com fumo negro Nova Iorque (não a suja da era pré-Giuliani, mas a clean pós-11 de Setembro).

    As estrelas são a carne de que é feito o canhão do cinema, parecendo mesmo que têm andado carregadas de pólvora e de sangue ultimamente, tendo mesmo literalmente visto as chamas reais e a queimar a chegar às suas mansões apetecíveis, o que até faz parecer um argumento de um filme.

    Um filme dentro de um filme, embora aqui a legenda final antes do genérico não seja tão importante quanto o próprio genérico.
    Pelo menos para o FBI.

    Nomes. Vá!

    O mundo quer nomes e eles só vão saindo ao passo de uma cadeira de rodas.

    Já no caso Epstein, que inclui o Lolita Express e a Ghislaine Maxwell (que foi condenada, estando hoje presa), os nomes são de difícil aceitação e divulgação para os media mainstream em geral, parecendo que ainda é uma mera teoria da conspiração, mesmo com o julgamento da angariadora e cúmplice Ghislaine Maxwell terminado há algum tempo e tendo ficado condenada a prisão efectiva.

    Hollywood é cool, humano, humanista e, pelos vistos… Pedófilo.

    Mas é cool, sobretudo.

    Os seus actores e estrelas ainda são exemplos a seguir, mesmo que as revistas em geral também mostrem, aqui e ali, o mundo sombrio em que essa gente deambula.
    Mas, claro, paradoxalmente, o mundo sombrio vende bem, porque nos faz pensar, alimentando-nos da ideia de que não somos ricos, mas, pelo menos, somos melhores pessoas que esses taradões. E que talvez até a riqueza seja má companheira e pouco progressista.

    Todo um paradoxo existencialista.

    Vivemos, sem dúvida, num estranho planeta-terror que nos vai atarantando a cognição desde que nascemos, e talvez por isso já não possamos passar sem este mundo feito de cinzas.

    Mas a verdade é que, no universo champanhe hollywoodesco, a passadeira vermelha vai ficando cada vez menos colorida, e mesmo a qualidade do champanhe começa a deixar dúvidas.
    No planeta conspirativo, cool quer dizer satânico para muitos.

    E assim chegamos a Diddy.

    [CONTINUA]

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações: THE SWIMMING POOL PROJECT


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  • Um fim de um mundo

    Um fim de um mundo

    Seria a identidade e toda a sua doença contemporânea associada, uma questão de branding, fruto de uma necessidade quase patológica de pertença?

    Nessa época conturbada que já vinha de há muito (talvez mesmo desde a Origem dos Tempos ou mesmo do Tempo só), muitas pessoas não sabiam bem quem eram, tendo a necessidade de comprar a sua identidade, ao invés de terem simplesmente uma…

    Porque sim.

    Ela podia estar num iPhone, numas Levi’s 501 de ganga, nas músicas de uma banda do momento, mas que rapidamente passará de moda, na pertença a um grupo de runners conhecidos na rede que vestem verde-luz para fazer-se à estrada e que gostam de correr das 23 horas em diante, ou ainda podia mesmo residir no cartão de sócio de um clube de futebol cotado em bolsa mas cuja direcção nem um rosto corrupto visível tem para uma hipotética selfie com o presidente.  

    Podia estar também numa mota, num skate, num blusão de cabedal como no filme de David Lynch Wild at Heart, ou estar ainda plasmada nuns ténis ou meias do Lidl, e mesmo numa vacina da Pfizer ou da Moderna, para lembrar um passado recente.

    Enfim, aquilo que dava sentido de pertença às pessoas podia ser tudo isto e muito mais, mas raramente seria possuir um pensamento claro, genuíno ou mesmo arrojado.

    Ter uma identidade não custava muito, as redes sociais encarregavam-se de ser a caderneta para a colecção dos cromos identitários que por aí pululavam e quanto mais barata custasse a identidade, melhor seria.

    Depois também havia as identidades espirituais e religiosas, como o eco-espiritualismo, a ioga, o sexo tântrico, budismo, hinduísmo, neo-paganismo, meditação no zoom e muitas outras.

    Se se pertencesse ao ramo das artes, então nesse caso seria crucial ter uma à séria, mas mais sofisticada.

    Ser-se humanista era muito valorizado neste ramo da sociedade, mas não um humanismo à século XX pela via do Socialismo ou da Social Democracia, esse já tinha os pés para a cova. Hoje era exigida uma alavanca mais cultural. E era bom dizer-se e escrever-se de vez em quando “alavancagem” ou “igualdade”, o que por si só não seria nenhum problema.

    Já ser pelos “trabalhadores” era considerado démodé e seria marca e identidade do Partido Comunista ainda que estivesse a perder de ano para ano cada vez mais votos.

    Falar na pobreza já não assegurava deputados, mesmo que a sociedade estivesse mais pobre.

    Os velhotes andavam a morrer em barda e parecia que já ninguém queria saber deles.

    Mesmo os mais desfavorecidos não acreditavam que algum partido político fizesse alguma coisa pela sua situação, alguns acreditavam mesmo mais na Cristina Ferreira e na TVI, ou ainda pior, no Cláudio Ramos e na sua incrível “honestidade intelectual” como se ela fosse salvívica.

    O esquema desse tempo era outro e o futuro não parecia contar muito com os mais pobres.

    Eram abstratos de mais e não trabalhavam, atrapalhavam até.

    A sociedade do Bem (mal) Estar estava a ficar desumana, sem duvida.

    Aos olhos dos menos pobres, os mais pobres não queriam trabalhar, não se percebendo muito bem de onde vinham essas ideias.

    O novo paradigma era cultural e climático.

    Muitas vezes bastava ser-se cisgénero ou do género binário e querer acabar com o carbono e queimar todos os carros à face da terra, ou mesmo ter novamente o hino nacional e o ódio à emigração muçulmana a viver no Tik Tok para se ter uma identidade, consoante a pseudo-geografia por onde se esteja a ver, que isso certamente já seria música para os ouvidos das redes (anti) sociais, que cada vez mais tinham as orelhas maiores, tipo lobo-mau.

    O novo bilhete de identidade já não era carimbado pelo Governo, mas por um canal de You Tube ou por uma conta de Instagram. O carimbo era um like.

    Que mundo!..

    Não se podia era não se ser nada.

    Se se fosse artista mas se se identificasse com a direita mais clássica, corria-se o risco de acabar nas galerias do Casino Estoril a pintar casas de férias com paisagens naïves que desencantam sempre riachos e moinhos vindos não se sabe de onde, sobretudo as pessoas mais velhas que ainda acreditavam em valores clássicos e tradicionais.

    Mesmo assim, isso era ter uma identidade. Os cromos de Cascais fechados no seu gueto de camurça anacrónico também tinham o direito à vida e muitas vezes o objecto ou o gadget que dava o passaporte identitário encontrava-se em saldos.

    Já não havia assim tantos ricos para que prescindissem dos saldos.

    E desta forma chegamos ao Ricardo Campos de Almeida, o pequeno herói desta historia que achava também que era hora de nos alimentarmos de livros em vez de informações digitais. Era hora de lembrarmos o humano em vez de imaginarmos o transumano. Sabia muito bem que conquistar um direito podia demorar um século mas perdê-lo, podia ser numa hora.

    Para ele estava na altura de valorizar a inteligência natural novamente em prol da inteligência artificial e de pensar. Portanto… De existir, para transformar.

    Este rapaz era um clássico, mas para a frentex, achava ele.

    Fosse o que fosse, pensasse o que pensasse, disparatasse o que disparatasse, não se identificava na totalidade com grupo algum.

    Em qualquer era das trevas, foi sempre a centelha da razão que fez a humanidade renascer para reconstruir o presente e imaginar o futuro. Parecia que nesse tempo o acto mais revolucionário era pensar diferente.

    O Ricardo Campos de Almeida pensava diferente. Achava que perder-se na maré da ideologia ou no oceano da ignorância nada mais era do que o conforto de ter destinado a função de pensar para os outros, e ter apenas o impulso de agir. Age, não penses, era a frase lapidar da New (brand) Age.

    O mundo que se avizinhava era impensável de certa forma, em que as grandes empresas de investimento e multinacionais estariam aparentemente ainda mais com as minorias, com os pobres, e com os injustiçados em geral.

    Tipo Black Rock e Vanguard que davam cada vez mais cartas no jogo absurdo da economia política. Uma estética que podia ter os dias contados.

    Interessante, desafiador, cómico, e claro… Mentiroso. 

    Portanto, o Ricardo Campos de Almeida compenetrava-se de que simplesmente pensava e contrariava as tendências que não só povoavam o subconsciente global mas também o próprio consciente colectivo, se assim se poderia dizer.

    E isso era satisfatório. Era o autor e o publico ao mesmo tempo, mas era incapaz de motivar fosse quem fosse com as suas ideias.

    Havia dias em que nem ele próprio acreditava minimamente naquilo que tinha pensado no dia anterior, denominando-se facilmente essas pessoas, de indivíduos com transtorno bipolar aos olhos do directório de saude mental americano (DSM). O directório europeu ainda não sucumbira totalmente às novas sensibilidades psiquiátricas.

    Pensar e sentir coisas opostas podia ser sinónimo de um transtorno bipolar, sobretudo se ao sujeito-vítima-de-si-próprio que sofra desse mal, a coisa o esfrangalhasse sem contemplações e passasse os limites do sofrimento, e essa pessoa podia não ser apenas vítima de uma conjuntura.

    Mas embora o Ricardo Campos de Almeida o soubesse, não se considerava assim.  

    Era apenas inseguro e sabia não ser uma pessoa extrovertida ao ponto de recuperar facilmente das agruras do dia anterior só porque falava do assunto. As coisas eram substancialmente mais complexa, mas ele dava-se bem com isso, achando ser natural. Pelo menos até ter sido observado por um médico especializado-em-nada, que o contrariou.

    O Ricardo Campos de Almeida era controlador aéreo e isso obrigava-o a estas acções de controle médico de rotina.

    Mas desta vez o especialista parecia ser diferente do anterior, sendo novo na empresa já que o antigo que o observara durante anos, bastante mais velho, tinha-se retirado devido a uma crise nervosa aguda.

    Mas esse era pouco exigente e estava lá mais para conversar sobre cinema, o que normalmente agradava ao controlador aéreo já que ambos eram admiradores de Eric Rohmer e dos seus filmes palavrosos.

    O novo e dinâmico especialista em saúde mental contratado pela empresa, era de outra estirpe mais perigosa e incisiva, tinha a escola toda e fora certamente bom aluno. Era um bom cão-de-fila das novas sensibilidades médicas e psiquiátricas seguindo protocolos atrás de protocolos sem pô-los minimamente em causa.

    Apesar de tudo, o Ricardo Campos de Almeida era uma pessoa bem-disposta, ria-se bastante em geral e tentava não andar triste, embora fosse titubeante para fazer raccord com um mundo cada vez mais inseguro, tendo até confessado essa sua característica ao médico que disparando de rajada, assegurou que essa consideração fosse anómala.

    Para o especialista, a boa disposição poderia estar a esconder uma depressão profunda, ainda que o Ricardo Campos de Almeida o negasse, confessando também que lia bastante e que isso tinha um efeito positivo nele quando estava mais triste.

    O especialista afirmou que isso também não era normal, parecia saber bem o que era a normalidade.

    O tipo de literatura que o controlador aéreo lia não podia pôr uma pessoa bem-disposta, já que se tratava de uma literatura intelectual e difícil, à base de filosofia com clássicos tipo Dostoyevsky no cardápio literário.

    Aconselhou-o a ler uns livros mais leves, literatura light, essa sim fá-lo-ia esquecer a dura realidade e torná-lo-ia mais ligeiro, menos problemático e mais apto.  

    Mas o especialista achou estranho o especialista anterior não ter anotado essa anormalidade na sua ficha clínica.

    Para o Dr. Paulo Souto e Silva o que o Ricardo Campos de Almeida precisava era de uma boa dose de ligeireza.

    E, se tomasse o que lhe receitava, poderia trabalhar sem problema.

    Saiu da consulta de rotina medicado com o patrocínio da Bial.

    Foi para casa, agora sim melancólico e meio deprimido e ainda passou pela farmácia para aviar as estranhas receitas, mas jamais pela livraria, não iria tão longe.

    Assim poderia continuar a agradar à entidade empregadora que o contratara e que andando em restruturações já se tornavam visíveis as mudanças.

    Recentemente a empresa tinha posto a bandeira colorida do Arco-íris na sua entrada e garantia publicamente estar a fazer guerra ao carbono embora estivesse ligada aos transportes aéreos.

    Rumou até casa a pé e achou estranho a cidade estar tão calma, como se estivesse a meditar sobre si própria. Tinha estado a chover, mas uns raios de sol típicos de Abril, penetravam por entre o cimento dos prédios e o plástico dos automóveis, convertendo-se num cenário fílmico e até poético. Foi uma caminhada sem tempo definido tal o turbilhão de pensamentos em que a cabeça do homem se encontrava.

    Chegou a casa, mas ao invés do comprimido receitado, tomou um duche rápido e depois ligou a televisão enquanto preparava umas almôndegas.

    E mal ligou o aparelho ficou atónito com o que viu. Ainda mais que àquela hora de almoço do dia 11 de setembro de 2001 quando foi comer a casa da mãe no intervalo das aulas.

    A SIC Notícias estava em directo de Washington, porque uma bomba explodira na Casa Branca. 41 mortos já contabilizados.

    Nada disto podia estar a acontecer. Pensou que podia ser uma brincadeira já que era dia 1 de Abril, o dia das mentiras.

    Mudou de canal e foi parar à TVI 24, que fazia um directo também, mas a partir de Bruxelas. Por envenenamento várias pessoas que trabalhavam no Parlamento Europeu, sucumbiram, entre elas o próprio presidente da Comissão Europeia.

    Não podia ser.

    Alguma coisa estava errada. Mas com isto das fake news todos os dias eram dia 1 de Abril. Tentou pesquisar na Internet mas estava extremamente lenta ao ponto de voltar aos canais convencionais.

    Passou para a RTP3, e em rodapé por baixo de um jornalista que vociferava uns disparates imperceptíveis, informava que a sede da Google havia sido bombardeada com uns drones verdes e estranhíssimos que deram cabo do edifício num ápice, vitimando pelo menos 88 pessoas. Mesmo sendo dos poucos que ouvira falar do projecto Blue Beam e do Cyber poligon, não estava a acreditar na ocorrência.

    Noticiavam também que o novo Zuckerberg que tinha passado a ser pela liberdade de expressão estava em paradeiro incerto, tendo o seu avião particular sido encontrado no meio de uns penhascos californianos, sem ninguém lá dentro.

    Mas pareciam tudo suposições embora lembrasse uma alucinação colectiva.

    Ainda em grandes parangonas lia-se que a casa do presidente Orban da Hungria tinha explodido com o próprio lá dentro, o que afastava a possibilidade de ser um atentado da extrema-direita, segundo a RTP.

    Tentou os canais internacionais. Nada de mais, pareciam as mesmas notícias copiadas mas nos contextos desses países. Mal por mal antes Portugal e voltou à SIC, mas desta vez aparecia chuva no seu plasma. Uma chuva analógica e a fazer lembrar outro tempo televisivo.

    Experimentou a CMTV e diziam com um directo mal-amanhado, que os estúdios da SIC haviam sofrido uma espécie de atentado, mas a jornalista estava atónita e mal conseguia falar.

    Deslocava-se para lá, mas parecia estar drogada. Não enchia chouriços, enchia malas de viagem com estupefacientes.

    O mundo enlouquecera e ele é que tinha de tomar comprimidos? Baixou até ao silêncio o volume da televisão, fitou os medicamentos que ainda não tinham saído das embalagens correspondentes, e pensou no especialista que lhe receitara aquilo. Estaria ele também a seguir a novela da terceira guerra mundial em directo, enquanto bebericava um gin tónico? Da terceira não! Para aí da quarta ou da quinta, já lhe perdera a conta.

    Divertiu-se com a imagem e decidiu não tomar os medicamentos.

    Foi até à janela ainda com a toalha de banho pela cintura e com o cabelo húmido, viu o entardecer quase a abraçar a noite que ao invés daquilo que as televisões mostravam, era belo e sumptuoso, contrariando totalmente a adrenalina vigarista espelhada no som estridente do seu plasma.

    Para ele o pior era o som. As imagens por si eram inofensivas sem o áudio. Até podiam ser cores em movimento. O som era o inferno.

    A ultima voz que ouviu foi a de um comentador de geopolítica que estava a chorar em directo e a jurar que tinha avisado desta catástrofe humana mas que nunca ninguém o ouvia, nem a mulher. O pivot muito conhecido aproveitava para pedir desculpas ao público pelos seus últimos trinta anos de teatro, assumindo-se como um mau actor. Pedia de joelhos à audiência para que não o deixassem acabar como Gaddafi, arrastado pelo chão de Tripoli. Parecia mesmo o fim do mundo.

    Abriu a janela e o silêncio mostrava-se de uma beleza comovedora. Ao longe via-se a linha do horizonte que dividia o azul do rio com o azul alaranjado do céu. Parecia uma pintura digital. A paisagem e a sua beleza sempre foram a sua aspirina e foi atingido por uma lufada de ar que trazia o aroma primaveril de terra fresca.

    O rio, lá em baixo, estendia-se preguiçoso, numa dança silenciosa com os prédios envolventes.

    Não havia pressa no cair da noite – era um entardecer sem a mínima intenção de chegar a lado algum.

    O Ricardo Campos de Almeida enquanto desfrutava do silêncio envolvente, acendeu um cigarro e percebeu que voltava a estar bem disposto.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Swimming Pool Project

  • Os pobres

    Os pobres

    Aquele jornalista era sem dúvida o mais cão-de-fila de toda a cáfila jornalística que pululava pelas principais redacções de televisão.

    Tinha uma postura agressiva sempre que o seu entrevistado parecesse estar numa posição antagónica à sua. Se estivesse então conotado, ou fizesse mesmo parte daquilo que é hoje considerada a nova direita, mordia.

    Era agressivo, mal-educado, interrompia, sentia-se a vontade insolente de cuspir para cima do interlocutor e isso verificava-se num franzir de olhos bastante nervoso, sendo mesmo acometido por esse movimento muscular frequentemente, sobretudo defronte de entrevistados alvo.

    Mas o jornalista era baixinho e parecia não ter físico que garantisse em caso de luta, uma vitória fácil, mesmo que se tratasse de uma mulher.

    Para estes feministas de estúdio, ser mulher não interessa se não partilharem das mesmas ideias. Nesse caso o universo feminino não é para defender.

    Imaginava-se até que fosse medroso e provocador tipo “Ò Evaristo tens cá disto?” 

    Um toca-e-foge sempre que não tivesse as costas quentes de um estúdio ou de uma voz gélida a dar ordens no seu auricular.

    Mas desta vez a entrevistada vinha do Partido Socialista e era Presidente de Câmara de uma pequena cidade. A realização da entrevista devia-se à senhora ter gerado alguma polémica por ter proferido na rádio local da sua cidade que existiam muitas pessoas dessa região a usufruírem de subsídio, quando se sabia que algumas ostentavam casas com piscina, ou vivendas caras, ou mesmo carros de luxo, incluindo Teslas e Audis.

    A Presidente da Câmara denunciava-o de uma forma até convencional, pausada e calma, sem grandes oscilações térmicas tanto na voz como nas expressões faciais. Parecia querer aproveitar o facto de estar na televisão para apelar a que se resolvessem este tipo de situações que muito prejudicavam os verdadeiros pobres. Não denunciava nenhuma etnia em particular e embora fosse uma política ligada a um partido do Poder, parecia querer mostrar alguma sensibilidade para com o problema e queria torná-lo público.

    Queixava-se também de certa forma do pouco orçamento que a sua autarquia tinha para poder ajudar a resolver o assunto.

    Queria apenas que se investigassem essas pessoas, de forma que a investigação se certificasse de onde provinham os sinais de riqueza dos suspeitos para que se pudesse fazer justiça e uma outra redistribuição mais equitativa e justa pelos mais necessitados.

    Pelo que parecia, era uma socialista convicta.

    Mas o jornalista não estava a gostar da conversa. Interrompia constantemente e alegava com razão eventualmente, não fosse o seu tom, que as pessoas podiam ter smartphones e serem pobres. Não estava a perceber muito bem onde a Presidente queria chegar. Será que a senhora pretendia denunciar alguma etnia em particular?

    No entanto percebia-se que a senhora queria sobretudo alertar os espectadores para essa situação anómala e desprestigiante para o ser humano. Isso era claro.

    Infortúnio que o jornalista se recusava a aceitar como sendo prática comum e até parecia duvidar se alguma vez isso poderia vir a ocorrer, chegando mesmo a evocar a possibilidade caso acontecesse, de ser uma excepção com a qual não nos devíamos preocupar para assim se confirmar a regra da não existência desse tipo de abusos. O Estado é hoje um dos grandes financiadores das televisões.

    Percebe-se.

    Mas, no entanto, não deixa de ser absurdo.

    No meio da entrevista sob o fundo verde-croma, a senhora entrevistada respondeu a uma pergunta idiota e ainda acrescentou:

    —… Até lhe digo mais… Há por lá pela cidade um caso muito conhecido de um cidadão que aufere desse subsidio, mas que no entanto ostenta um Audi, eléctrico e tudo. Portanto é até um cidadão com cuidados ecológicos por sinal.

    —Mas não pode, é?

    Perguntou o jornalista cão-de-fila, mal ouviu falar em ecologia.

    —Nada disso. Apenas estou a dizer que normalmente esses carros são mais caros e que pessoas muito necessitadas nem sequer se podem dar ao luxo de ter prioridades ecológicas por muito que o queiram.

    Por momentos parecia até que o jornalista estava a deixar passar a ideia de que não gostava de pobres, tendo nesse caso uma doença chamada aparofobia, e é sabido que hoje muita gente padece dessa patologia. Até pobres.

    Aparecia o reino do nonsense mais uma vez para pautar uma entrevista grotesca. Coisa comum hoje em dia nos canais televisivos cheios de estagiários, embora não fosse este o caso. Este jornalista já se arrastava há uns anos pelas cadeiras de pivot.

    —Mas então como é que a senhora sabe que o carro não é emprestado?

    Perguntou o jornalista convicto de estar a fazer a melhor pergunta de sempre.

    A Presidente fez uma cara de espanto não querendo acreditar naquilo que acabara de ouvir e antes que pudesse responder, houve um apagão geral. Uma parte do mundo ficou sem energia. Podia ser um simulacro também.

    Um Cyber Polygon.

    Assim de um momento para o outro.

    Trássss!! Puffff!!!

    Vários sons estridentes e desconhecidos potenciaram o frenesim generalizado das pessoas que se encontravam na redacção e no estúdio.

    Mas mesmo depois de o jornalista constatar que já não estavam no ar, começando a sentir-se o caos associado a um apagão de grande extensão, com quase tudo às escuras, em off ainda insistiu com a senhora autarca:

    —Sim, responda-me. Como é que a senhora sabe que o Audi do cigano não é emprestado?

    Hum!!!

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Ruy Otero


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  • A fonte

    A fonte

    Aquele número que ali estava diante de si, no seu smartphone, era inteiramente novo para a Cátia que odiava ter de atender números desconhecidos que não lhe diziam nada. Tinha medo.

    Mas o aparelho até parecia que estava mais nervoso que o habitual e mesmo o som aparentava estar mais estridente e intenso.

    E a proveniência podia muito bem vir do seu ex-namorado, o que seria um problema, pensou ela. Já em tempos o fizera, ligando de uma velha cabine perdida no tempo, achava ela.

    Não queria falar com ele por nada deste mundo, e suspeitava que o rapaz pudesse estar muito bem a ligar de outro telemóvel, embora ele soubesse de antemão, que Cátia raramente atendia quando os números eram de origem desconhecida.

    Desligou o som.

    Para ela, ele era um stalker, mas, para ele, ela também era uma stalker.

    Mas isso é outra história.

    Ficou a olhar para o telemóvel a vibrar enquanto se decidia.

    Já tinha tido problemas por não atender chamadas, sobretudo quando se tratava do campo laboral, tinha noção disso, e pagou um preço bem caro da ultima vez por ter investido nessa opção arriscada do não atendimento, mas era a pior coisa que lhe podiam fazer, e jamais queria ter de voltar a ouvir a voz do Marco, o seu stalker, isso é que não. A acontecer só no tribunal caso chegassem a esse ponto. 

    Tinham namorado dois anos e a relação acabara em violência doméstica segundo os dois e teriam mesmo acabado em tribunal, não fosse o aparecimento da pandemia mediática. Mas hoje ela pondera fazer queixa  novamente. E ele também. São, até prova do contrário, ambos vitimas de “stalkerismo ”.

    Estranho mundo o nosso.

    Na altura ele fez queixa dela, alegando que levara um tareão à antiga, invocando que ela era cinturão castanho em Full Contact e até era mais alta que ele.

    Mas ela sempre o negou. Ele era apenas cinturão verde em Judo.

    Naquela altura atípica e singular da pandemia e de confinamentos loucos e radicais, cujas regras mudavam dia sim dia não, os advogados chegaram a acordo para não levarem o caso a tribunal. Nenhum dos quatro se via de máscara nas audiências. Áí estavam todos de acordo.

    Mas isso é também outra história.

    E agora que tudo aparentemente passou, o Direito e a verdade eram de novo uma hipótese de voltar à carga para ambos.

    Mas talvez seja tarde. Os tempos mudaram.

    Cátia era uma reincidente em não atender números anónimos, mas com algum desconforto, e depois de pensar bem, atendeu a chamada.

    Era da Agência Funerária que estava a tratar da lápide do pai que já morrera há um ano, e só agora a família tinha decidido fazer uma, com uma inscrição a recordar o bom homem que o Sr. Américo Santos tinha sido, uma enorme mentira, uma vez que nenhum dos quatro filhos tivera entretanto qualquer tipo de saudades do pai, nem mesmo a mulher, que rejuvesnecera dez anos após a morte do marido.

     O Sr. Américo tinha sido uma má pessoa e até um pai ausente, fazia tudo à sua maneira, não ouvia ninguém, era malcriado, gordo, corrupto e mil coisas mais bastante negativas por sinal, no entanto tinha sido em vida católico e a família estava a ser forçada pela outra parte da família para que essa lápide ganhasse vida.

    No que resta do mundo católico, é assim.

    Cátia ficou aliviada quando percebeu a origem da chamada.

    O processo já tinha avançado, já estava até a maquete feita, e era por isso mesmo que esta ligação se estava a efectuar.

    A senhora da Agência disse:

    – Estou a falar com o Sr. Timóteo?

    – Não! Sou a Cátia. O Timóteo é o meu irmão.

    – Olá, eu sou a Dulce da funerária Anjos. Pode ser consigo também. Já trocámos uns e-mails.

    A Cátia estava descansada naquele momento, não era nenhum desconhecido, nenhum stalker, nenhum ET, nenhum vampiro. E de forma calma respondeu:

    – Sim, sim.

    – Olhe, é porque a fonte de letra que me está a pedir nós efectivamente não temos.

    – Não tem a Helvética?

    – Não. Sabe, essa não tem muita saída. Nós trabalhamos com a Comic Sans. Normalmente os clientes ficam satisfeitos com essa. Não leve a mal, mas para mim também é a mais gira de todas. Eu uso-a para quase tudo… E aconselho.

    – Sim. Mas eu trabalho na área do Design.

    Interrompeu a Cátia, irritada.

    – E não quero essa letra. Não tem nenhuma Garamond?

    – Gara… quê?

    – …Mond. Garamond. É um tipo de letra. Não conhece?

    – Pois. É o que lhe digo. Nós aqui não trabalhamos com a Garamond. Pois… Se a senhora trabalha nessa área, deve ser mais exigente. É como eu com a Fórmula 1. Vej…

    – Então trabalham com quais?

    Interrompeu.

    – Não lhe sei assim dizer. É que é a primeira vez que alguém se queixa da fonte.

    – Sim, mas eu queria saber com que fontes trabalham, se não se importa. Até porque essa aí não tem nada a ver com a situação. Estamos a falar de uma pessoa morta não é!

    – Pois. Estou a perceber. Queria assim uma coisa… Como dizer?.. Mais, vá… Pesada!.. Vá!

    – Não é pesada. É ajustada.

    – Pois. A Comic é assim mais leve e simpática. Mas percebo. Quer assim uma coisa…

    – Mas diga-me, com quem é que posso falar aí da Agência que saiba do assunto?

    Interrompeu a Cátia novamente, ainda mais irritada.

    – Com o Sr. Alves mas está com covid em casa. Pelo menos ele acha que é. Está sem olfato e está muito irritado. Está isolado, sabe!.. Eu já lhe disse que não era preciso o isolamento mas é teimoso o raio do homem. E não quer falar com ninguém. Ainda há pouco tentei comunicar com ele e quase me ofendeu. Tente mandar um e-mail para o Sr.Alves.

    – Dê-me o e-mail então.

    Simultaneamente a Cátia recebe entretanto uma chamada na outra linha e o número é outra vez desconhecido, até diz sem ID, o que faz com que fique ainda mais nervosa.

    – Espere, estou aqui à procura. Mas olhe, entretanto vi aqui qualquer coisa no nosso catálogo sobre isso das letras, quer que lhe diga?

    – Sim.

     Entretanto a chamada anónima caiu.

    – Arial. Gosta?

    – Não.

    – Verdana?

    – Também não. É horrível.

    – Também acho.

    – Bold.

    – Isso não é fonte. Isso é quando se quer a letra mais marcada. Mais escura.

    – Ai sim? Que engraçado. Mas fica muito gira, assim mais escurinha.

    – Diga mais.

    – Vicking.

    – Não acredito que têm essa. Para que é que a usam?

    – Pois, não sei. Tem de perguntar ao Sr. Alves. Deve ser para cartões. Aqui em Arouca usa-se muito. É assim… Dinâmica!

    – Isso é absurdo.

    – Só temos aqui mais uma, que é… Deixe ver… Ah!.. Times New Roman.

    – Tem essa?

    – Aqui diz que sim. Não é do meu departamento, repito. Isto é mais com o Sr. Alves. Mas pelo menos é o que diz aqui. Mas eu se quer que lhe diga, gosto muito da outra dos Comic Sans. É muito gira, mesmo para lápides. Torna assim a coisa mais leve sabe?.. Quando eu morrer q…

    – Mas isto não é para ser giro.

    Interrompeu a miúda novamente, e desta vez ainda de forma mais abrupta. Continuou:

    – O meu pai está morto. Estamos a falar de uma lápide.

    Aparece novamente a inscrição sem ID no telemóvel. A rapariga começa a ficar muito ansiosa.

    – Olhe eu vou pensar melhor e mando um e-mail para vocês a dizer a nossa opção. Vou reunir com os meus irmãos e com a minha mãe. Mas por favor reencaminhe para o Sr. Alves a nossa opção.

    – Já agora. Podia avaliar a minha prestação?

    Sugeriu a empregada.

    – Como?

    – A seguir vai receber um inquerit…

    – Agora não. Obrigada.

    – É o meu irmão que vai ligar. É uma voz verdadeira. Nã…

    Desligou e ficou a olhar para o telemóvel que entretanto já estava com o som do toque activo, cada vez mais estridente. Cada vez mais agudo. Até lhe pareceu que era a primeira vez que ouvia aquele toque.

    E num ápice atendeu.

    – Sim. Com quem falo?

    Perguntou.

    E o telefone ao fim de uns segundos desligou-se mas ainda se ouviu uma voz ao longe, meio cavernosa e imperceptível, embora com um tom bem marcado mas dúbio.

    Estranho.

    A Cátia ficou branca. Não queria acreditar no que achava que acabava de ouvir.

    Foi à cozinha beber um copo de água. Sentiu um ligeiro frio interior que normalmente anunciava quebra de tensão e sentou-se numa cadeira da cozinha.

    Ía jurar que era a voz do pai a pedir a Comic Sans.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Ruy Otero


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