Autor: Rute Cerqueira

  • Luminoso mundo subliminar

    Luminoso mundo subliminar

    Título

    Psiconautas

    Autor

    MIKE JAY (tradução: Luís Filipe Pontes)

    Editora

    Zigurate (Setembro de 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Mike Jay, um escritor britânico premiado, escreve sobre História da Ciência e Medicina navegando entre temas como a loucura, memória, alucinações e é um perito sobre o impacto individual e colectivo de drogas que alteram estados de consciência.

    Uma viagem pelo mundo das drogas, termo que adquiriu um significado ilegal, clandestino, evocando o submundo, para designar ópio, heroína, cocaína e haxixe no século XX por oposição ao século XIX em que o seu consumo livre e estimulado era anunciado como terapia e viagem química de libertação do individuo. As drogas eram comercializadas em farmácias, espaços luminosos de vidros e mármores, como excipientes de tratamentos manipulados por modernos boticários ou para funções recreativas.

    Os efeitos dissociativos da consciência, em que os sujeito consumidor se metamorfoseava simultaneamente em experimentador e observador alimentavam a literatura, como em ‘Confissões dum opiómano’, de Thomas Quincey, ‘O clube de comedores de haxixe’. de Theophile Gautier, e ‘Paraísos artificiais’, de Baudelaire, bem como em relatos de auto-experimentação de médicos e investigadores que eram publicados em folhetos jornalísticos.

    No mundo ocidental, as publicações subjectivas das experiências com drogas tinham as suas raízes no laboratório oitocentista do químico Humpry Davy com oxido nitroso, o gás do riso, que em experiências limite levara um grupo de filósofos da ciência à inconsciência. Só décadas mais tarde, em pleno século XIX, foi descoberto o poder anestésico do gás nitroso iniciando-se a era da cirurgia de larga escala.

    Em paralelo com as associações perceptivas intuitivas e com a percepção sinestésica, o impacto psicoemocional e fisiológico induzia – no caso do ópio, heroína e haxixe – um estado de beatitude serena e bem-estar relaxado. Ou o ´kif’, termo árabe para bem-estar, alegria, felicidade, que traduzia, nos meios magrebinos frequentados por aventureiros europeus, a euforia química dos consumidores de haxixe. “A sinestesia era tida como prova científica de que o haxixe – e agora o peiote/mescal – tinha o poder de criar experiências sensoriais que ninguém podia alcançar na vida normal, a não ser alguns indivíduos excepcionais”.

    O êxtase arrebatador de sobrecarga sensorial foi deliciosamente narrado por Baudelaire no poema ‘O comedor de ópio’:

    Estou submerso e deliciosamente afogado

    Música suave como um perfume e luz doce

    Dourada com aromas requintados e audíveis

    Também drogas estimulantes de actividade física e mental e antídotos contra a fatiga, como a cocaína, eram não só excipientes de fármacos como objectos de auto-experimentação em personalidades do mundo da Psicologia, como Freud.   

    O irmão do romancista Henry James, de seu nome William James, criador do conceito de fluxo de consciência – “uma confusão fluorescente e ruidosa de muitas maneiras diferentes de pensar onde correntes profundas de experiência mística se misturavam frequentemente com a espuma da vida quotidiana” – afirmava: “Sinto que não temos nenhuma desculpa filosófica para dizer que o mundo invisível ou místico não é real”.  A dessincronização cerebral sob ação dos psicadélicos ao dissolver as fronteiras tempo-espaço e o ego permite uma viagem ao inconsciente, uma experiência transformadora, um renascimento psíquico. William James sugeria que “a mente, nascida uma vez, por mais saudável que fosse, tinha tendência para um conservadorismo presunçoso e aborrecido, ao passo que o nascido duas vezes procurava a aventura e transformação”.

    As autoexperiências dos investigadores e o consumo colectivo no fim do século XIX, a época decadentista, filha dos valores emocionais e individualistas e dos mitos dos românticos criou o terreno para uma revolução artística e cientifica que estendeu as suas influencias para as vanguardas artísticas e cientificas do século XX: as impressões subjectivas dos impressionistas (1), os significados ocultos das obras dos simbolistas (2),  as utopias coloridas de Van Gogh (3), o terramoto terapêutico da Psicanálise e em pleno século XX os ângulos sobrepostos dos quadros de Picasso (4), a angústia visual de Edward Munch (5) e a teoria da relatividade espaço-tempo de Einstein.  

    A fruição das drogas estava associada ao estilo de vida de ‘dandy’, personificado por Oscar Wilde, ou a flâneurs, como Baudelaire, autor dos poemas ‘Paraísos artificiais’. Neste ambiente ‘fin de siécle’, o médico, esteta e critico de arte Havelock Elllis descreveu a sua primeira experiência com peiote (um cacto mexicano com conotações religiosas e espirituais das tribos indígenas) como sendo um novo paraíso artificial.

    As repercussões fisiológicas das drogas – como a dependência, ausência de controlo psicoemocional, busca incessante em detrimento de todas as outras actividades e as mortes prematuras de figuras públicas e ameaças crescentes à saúde pública – motivaram a regulação seguido do controlo legal internacional no século XX. O cenário das drogas transitou assim dos círculos artísticos e boémios para os palcos subterrâneos do crime e das actividades ilícitas, e dos balcões luminosos das farmácias para becos e clubes clandestinos. 

    No século XX, a Era Progressista da solidariedade social iria diluir o eu individual do século XIX, travar uma guerra feroz contra as drogas através da criação de Unidades Criminais de Narcóticos de âmbito internacional e a transformação do olhar social sobre o consumidor de droga de tolerante para critico, de ‘bon vivant’ para doente.    

    Na investigação de fármacos/drogas assistiu-se igualmente à supressão dos métodos de auto-experimentação dos investigadores, dado o carácter individual, subjectivo e dissociativo da experiência (o investigador ao consumir a droga era simultaneamente o observador e o observado) e à regulação dos estudos farmacológicos na forma de ensaios clínicos com dados objectivos, mensuráveis e replicáveis independentes do sujeito testado.    

    Nos anos 60 e 70, a corrente de contracultura, os movimentos hippie e New Age e o Maio de 1968 – simbolizado pelo grito de revolta anti-conformista ‘É proibido proibir’, de Cohn Benedict –, fariam renascer o eu inconsciente, subliminar com necessidades místicas e espirituais facilitadas pela expansão da consciência, a abertura das ‘Portas da percepcão’, relatada por Aldous Huxley nos anos de 1940. O LSD tornou-se um símbolo da cultura hippie e da ‘beat generation’, foi celebrizado e festejado no tema ‘Lucy in the sky with diamonds’, dos Beatles.

    O recente e crescente interesse pela psilocibina, como agente terapêutico das depressões refractárias à terapia convencional e poderoso indutor de prazer, de experiências místicas transcendentais e de introspeção, fenómenos psíquicos  altamente recompensadores, deve-se à dessincronização cerebral e à alteração da conectividade cerebral, esbatendo as fronteiras do tempo/ espaço e do eu.  

    O passeio circular das drogas desde a atmosfera complacente e livre do século XIX passando pelos obstáculos sociais e legais do regulado e conformista seculo XX, com escapes transitórios da cultura de ‘laissez faire’ dos anos 60 e 70 e de estimulo energético da frenética cultura contemporânea de consumo desregrado reflecte-se  nas drogas de cada época: os opiáceos contemplativos e relaxantes dos românticos e simbolistas novecentistas e dos ‘hippies’ e New Age do século XX, as anfetaminas e cocaína estimulantes do seculo XX e XXI. O poder dissociativo do eu, e os mundos paralelos de ilusão e alucinação dos psicadélicos do novo século são o equivalente químico farmacológico do metaverso e dos jogos de ‘roleplay’, e dos alter ego e avatares que animam e mascaram as redes sociais, mas com pontos de estimulação do universo emocional interno e possibilidade, através do auto-conhecimento, de ‘reset’ psicoafectivo.

  • Espíritos inconformistas

    Espíritos inconformistas

    Título

    Velar por ela

    Autor

    JEAN-BAPTISTE ANDREA (tradução: Isabel Ferreira da Silva)

    Editora

    Porto Editora (Maio de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Jean Baptiste Andrea, um guionista que se sentia limitado pelo cinema, liberta a imaginação e emoção neste romance. O seu percurso inicial como escritor foi difícil até encontrar a editora L’Iconoclaste que lhe garantiu que o livro seria ‘um fogo de artificio’. E assim venceu o Premio Goncourt no ano passado, que agora chegou a Portugal numa oportuna edição da Porto Editora.

    Em ‘Velar por ela’, Pietra de Alba é uma pequena vila onde brotam fontes miraculosas e a luz de aurora banha o planalto de rosa matizado, sendo o cenário das aventuras de Michelangelo Vitaliani (Mimo) e Viola Orsini.

    Mimo é um anão de personalidade magnética e talento artístico excepcional, que desvela pacientemente estátuas com movimento de enormes blocos de mármore, enquanto Viola se apresenta como uma aristocrata romântica que transcende normas e comportamentos sociais: filha do planalto, guia-se pelas florestas com a sua bússola interna, convive com ursos e escuta os sons do submundo em incursões nocturnas ao cemitério.

    Os dois adolescentes de meios sociais opostos – numa era sem nuances, em que se é ou rico ou pobre, ou letrado ou analfabeto – constroem um amizade forjada na necessidade de extravasarem fronteiras: físicas, no caso de Mimo; e sociais, no caso de Viola. Ela voa; Mimo esculpe. As experiências aeronáuticas, a construção em segredo dum parapente em que Viola se lança do telhado da casa para escapar a um casamento de conveniência, acabam em queda livre protegida por uma árvore, com ossos e sonhos fragmentados. As cicatrizes internas e externas moldam o futuro da jovem mulher: “Je suis une femme debout au beau millieu des guerres que vos avez déclenchée/ Je suis celle que vous appelez quando tout se effondre autor de vous/ Mais que vous brulerez encore des que tout ira bien, ou cas ou je verrais que tout ne vas pas bien/ Vous me consumerez, vous me reduirez en cendres, vous me disperserez, ou vous croirez le faire car votre feu est sans chaleur et ne brule rien/Je suis une femme debout, j’ en vaut mille comme vous“. 

    Mimo, famoso escultor protegido pelo Vaticano, cria a sua obra-prima, a Pietá Vitaliani, causando estranhas reacções psicossomáticas aos apreciadores de arte. A Pietá é a homenagem pétrea e intemporal de Mimo à sua eterna amiga Viola. Quando o Vaticano, perturbado pelos relatos de crises sobrenaturais à visão da obra, decide escondê-la nas catacumbas de um convento, Mimo segue então as pisadas da sua expressão artística e amorosa, retirando-se para as montanhas, para ‘Velar por ela’: por Viola e por Pietá. 

    E é no seu leito de morte, nos anos 80, que Mimo evoca os anos turbulentos entre 1918 e 1946, tendo também como pano de fundo a ascensão da ditadura fascista de Mussolini e a sua dança com a Santa Sé, num clima social opressivo de poder bélico e patriarcal, mas onde não há lugar para mulheres brilhantes, como Viola, que recitam livremente todas as variantes do vento : tramontana, siroco, libecio, ponant, mistral…

  • Relações vorazes

    Relações vorazes

    Título

    Mandíbula

    Autora

    MÓNICA OJEDA

    Editora

    Dom Quixote (Março de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Um grupo de adolescentes de um meio privilegiado, conservador, cria uma irmandade de devoção ao Deus Branco, figura mística que simboliza o terror.

    As cerimónias livres ou ritualizadas são oficiadas num “templo” descoberto pela líder do grupo, Annelise. “Quero mostrar-vos uma coisa [… ] e desde então visitavam-no às escondidas, depois das aulas, para pintar as paredes, cantar, dançar ou não fazer nada, apenas para o habitarem durante algumas horas vazias, com a sensação às vezes frustrante, outras vezes excitante […] que pressentiam nas articulações mas ainda não sabiam explicar.”

    O erotismo perigoso, ousado, da adolescência, é invocado de forma subliminar e é sublimado nas histórias de terror, ensaios para as creepypastas, tributos literários a Edgar Allan Poe e Lovecraft.

    As adolescentes saltitam do mundo real, regulado e visceral para o mundo imaginário, secreto e com regras paranormais deslizando do universo pré-adulto para o infantil, atravessando fronteiras sensoriais e psicológicas fluidas, típicas dum estado transitório da adolescência.

    As emoções e sensações assaltam constantemente a razão: “[…] Enfim quero assegurar-lhes que não lhe estou a mentir: qualquer pessoa é capaz de distinguir a realidade dum pesadelo, ou o real do imaginário. Apenas os loucos esquecem a diferença, mas eu não estou louca. Sei o que vi. Além disso, mesmo que o tivesse imaginado, mesmo que essa aparição branca estivesse estado apenas na minha mente, porque teria de ser menos real? A minha mente existe e tudo o que ela projecta sobre o mundo também. […] Porque no fim de contas o que importa não é o real mas sim o verdadeiro.”

    Annelise, com a mandibula de tubarão na fronte, roubada do espolio de ciências naturais do colégio, uma coroa de força predatória, primitiva, metamorfoseia-se em sacerdotisa pagã.

    O triângulo de jovens mulheres, as duas ‘bestfriend forever‘, Annelise e Fernanda, e a infeliz e insegura professora Clara, partilham relações disfuncionais com as progenitoras, de diferentes expressões: indiferença, humilhação e controlo. Esse laço invisível e oculto, motor de sentimentos de vazio, abandono e perda, despoleta a traição de Annelise, o rapto de Fernanda e a loucura temerosa de Clara admiradora de Rimbaud: “A verdadeira vida está ausente. Não estamos no mundo, escreveu o poeta em Uma Temporada no Inferno”.

    O medo surge como uma vertigem de desejo e rejeição controlada pela dor e pelo risco ritualizado, uma liturgia iniciática. “Mas o medo era biológico […] e possuía um idioma sem gente”.

    A imagem poética da mandíbula simboliza a relação voraz, por vezes predadora no sentido literal e metafórico, das relações de ‘amitié amoureuse’ entre mulheres e entre mães e filhas, uma narrativa mítica de dor, erotismo e ‘dark side of the soul‘.