Autor: Rui Araújo

  • A ilha

    A ilha


    Nesta reportagem, Rui Araújo desvenda as mágoas, os tesouros e memórias da ilha mais pequena do arquipélago dos Açores.

    No Corvo há histórias de corsários e de baleias. E de milagres.


    O (meu) velho e o (meu) mar, parafraseando Ernest Hemingway. (Foto: Rui Araújo)

    É quase noite.

    Lá fora, o mar está chocalhado.

    Eles juntam-se, aqui, quando chegam das terras de cima ou do mar. Eles. Elas, não.

    Antes, há uma data de anos, o ponto de encontro dos pescadores e dos lavradores na ilha do Corvo era o Largo do Outeiro.

    Café Traineira
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    Agora, é o Café Traineira.

    Os náufragos da vida e os outros que deram à costa — a porta permanece sempre escancarada até às oito ou coisa que o valha — já não tomam resoluções. Matam o tempo. Mas há mais coisas que mudaram…

    Inácio Pimentel: “Agora, já está tudo relva“.
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    Antigamente, as pessoas trabalhavam muito mais. Agora, não. Agora, o senhor vai para cima todo o dia e vê um ou dois lá em cima. Não vê mais ninguém. Já não é como era. Trabalhavam… Agora, já está tudo relva… — conta-me Inácio Pimentel.

    — E porque é que já não trabalham as terras?

    — Já não trabalham porque não querem. Não têm falta. Querem o gado e mais nada. Já está tudo relva…

    — E a pesca? Mudou muito?

    — A pesca… Antigamente, eles apanhavam muito peixe porque havia muito. E havia muitas lanchas. Agora, só há duas ou três. Passa-se dias e dias que nem sequer vão ao mar. Pronto, já não é como era…

    A conversa e os pleitos, quando os há, são entrecortados por filmes de telemóvel. Histórias do mar. O que é que havia de ser?

    Lá ao fundo, o televisor sem conserto dependurado na parede debita ruído. Ninguém liga.

    De qualquer forma, o essencial (à semelhança da insularidade) raramente se resume a palavras.

    Às vezes, a felicidade (por mais efémera que ela seja) tem a forma da rotina dos dias numa ilha, longínqua ou nem por isso. Ou passa por histórias de baleias ou de lobos do mar. Hemingway, Melville, Conrad e London que o digam. Ou Vitorino Nemésio ou Raul Brandão…

    Corvo: uma ilha com gente rija, sobretudo os mais velhos.
    (Foto: Rui Araújo)

    Mudança de cenário.

    O nosso destino é o cemitério.

    E deixamos sempre uma parte de nós no caminho, mas no Corvo ainda há quem teime em honrar o passado. E se reconheça em Deus e na amargura da ausência. Com ou sem mortificação…

    O cemitério à beira-mar.
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    José Inácio de Fraga. A lápide não diz, mas era mais conhecido por José Augusto.

    José Inácio de Fraga, mais conhecido por José Augusto.
    (Foto: D.R.)

    O “trancador” faleceu a uma dezena de milhas do Corvo na manhã de 21 de Julho de 1955. Tinha 29 anos. Deixou 4 filhos mais um a caminho.

    A campa, o nome — a memória — e o rosto ajudam-nos a ser quem somos — diria Torga.

    Era baleeiro. É o único corvino que morreu na caça à baleia.

    O padre e os 51 fiéis abalam.

    Lá atrás, o manto sombrio do horizonte esconde as campas anónimas dos 17 romeiros — os peregrinos de Santa Cruz das Flores e da Fajã Grande, que morreram ao largo do Corvo aquando do naufrágio da lancha “Senhora das Vitórias”, mais conhecida por “Francesa”, a 13 de Agosto de 1942 .

    Sem a morte a vida não teria sentido.
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    É noite funda não tarda.

    Vila do Corvo.
    (Foto: Rui Araújo)

    Corvo.

    É a ilha mais pequena dos Açores.

    Terá sido descoberta por Diogo de Teive, escudeiro do Infante Dom Henrique, em 1452.

    O povoamento definitivo ocorreu quase um século depois, em 1548.

    O isolamento e a ausência de um porto seguro (sem contar com a dependência em relação à vizinha ilha das Flores) são uma explicação…

    O espesso mato e o arvoredo de outrora — pau branco, loureiro, tamujo, azevinho e cedro — aqui a norte, no Caldeirão! — por exemplo, desapareceram há séculos.

    Mesmo assim, o Corvo, denominado outrora a “ilha negra”, é reserva da Biosfera desde 2007. Um galardão excepcional da UNESCO.

    Mas… vamos por partes:

    Área: 17 quilómetros quadrados bem contados.

    Altitude máxima: 718 metros.

    População: 459 habitantes (mais 129 do que há seis anos), maioritariamente corvinos.

    Os outros são oriundos do arquipélago, do continente, da Madeira, de Cabo Verde, de Espanha, do Brasil e até dos confins da Ucrânia.

    Vivem todos, ali em baixo, na única povoação da ilha: Vila do Corvo.

    Principais actividades: empregos públicos, produção de gado — necessariamente com apoios comunitários que um dia destes acabam! —, no Corvo há 997 vacas, o que dá duas cabeças por habitante — algum turismo e a pesca…

    Taxa de desemprego: zero por cento.

    A ilha.
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    É uma manhã invernosa, mas com horizontes.

    No porto, à beira da vila, é a azáfama do costume — ou quase. O guincho está avariado. A grua móvel faz o serviço: mete a embarcação de pesca local “IASALDE” na água.

    Comprimento de fora a fora: 24 pés (dá 8 metros!).

    Arqueação bruta: menos de 3 toneladas.

    Velocidade máxima: 7 ou 8 nós. O motor dá o que pode…

    A pesca à linha (com anzois nº 8), aqui, é a do goraz, pargo, cherne, garoupa e… peixe-porco nos dias azarentos.

    O isco usado normalmente é o “bonito”, mas como já não há desde Janeiro… vai chicharro «bago».

    Tripulação: dois homens.

    O mestre é Eugénio de Freitas. 50 anos. 36 de mar. É corvino de gema.

    O pescador dá pelo nome de João Andrade. Tem 52 anos. É natural de outra ilha: Fogo, Cabo Verde.

    O pescador João Andrade.
    (Foto: Rui Araújo)

    Rumo: 160 ou 165: Esguilhão do Incenso.

    Se lá não der, vamos para o Pico João de Moura e a Pedra Nova.

    E, passado um bocado, cedemos à tentação de mudar de ares… o sulco ora é azulado ora é prateado, as cores como o resto dependem do céu?

    Apanhamos 3 peixões.

    É o momento do exame de consciência em voz alta ou da confissão improvisada…

    Mestre Eugénio de Freitas.
    (Foto: Rui Araújo)

    — A pesca antigamente era mais fraca porque havia muito peixe mas não havia venda para ele. Agora, tem muita venda para peixe e é assim… Onde há muito ferro há pouco carvão. Isso é sempre assim…, diz Eugénio de Freitas.

    A pesca já não é o que era. Tem dias…

    Como se não bastasse, chegam a estar semanas a fio sem poder ir para o mar por causa do mau tempo.

    O vento ruim sopra sempre de nordeste.

    E a tarde está a cair…

    A voragem do tempo não poupa nada nem ninguém…

     Sonho com o meu marido e pouco mais. Já não tenho mesmo aquela vontade de querer. Eu posso limpar os olhos? — indaga Odete Vieira.

    A senhora Odete Vieira
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    — A gente está bem e de uma hora para a outra desmorona-se tudo. Vai-se tudo embora. Ele adoeceu e depois de ele adoecer a minha vida perdeu o rumo…

    O marido morreu-lhe na manhã de 21 de Abril. Eram 5 e meia da manhã. Parece que foi hoje.

    O marido da senhora Odete Vieira.
    (Foto: D.R.)

    Odete Vieira. Nascida e criada no Corvo.

    — Antigamente, o Corvo era fraco em tudo. Tínhamos miséria. Não padecíamos da fome, mas… pão, leite nunca nos faltou. E queijo, que a gente fazia-os em casa. Mas de resto havia pouco. Hoje em dia, é que há a modernice das hamburgers e da batata doce. Dessas comidas assim…

    — O que é que mudou nestes anos todos?

    — O cacau! O dinheiro!

    Dona Odete é católica e praticante. Tem fé em Deus, Nossa Senhora dos Milagres e Nossa Senhora de Fátima. Mas… mas a sua especialidade são os altares do Espírito Santo e os presépios.

    Seguimos caminho.

    A memória preservada.
    (Foto: Rui Araújo)

    Logo a seguir à igreja, damos com dois velhotes.

    José Alferes Pedras, 75 anos. É corvino. Foi guarda florestal.

    A mulher, Maria José, tem 72. É florentina. Era lavradora.

    O casal tem 4 filhos e 5 netos.

    É o primeiro encontro inopinado.

    José Alferes Pedras, um homem sem papas na língua
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    — Essa casa era da filha do padre. O padre casou e fez essa casa para moradia para ela… — conta José Alferes Pedras.

    O cepticismo da idade está em harmonia com o falar.

    Metemos conversa.

    — A vida, aqui, agora é malandrice… que eu já estou reformada. E este também… — confessa Maria José Pedras.

    Os hábitos e as tradições mudam mais depressa do que as mentalidades.

    — Mas a senhora gosta de viver cá. Ou não?

    Ela acena que não.

     Se não gostasse, já se tinha ido embora! — acrescenta José Alferes Pedras.

     É uma coisa assim, mas não é da ilha que se gosta. É das pessoas! — diz a mulher.

    Há gente que não renuncia à humanidade.

    Mais palavras para quê?

    Os cimos verdejantes e desertos.
    (Foto: Rui Araújo)

    Outro encontro.

    O sujeito que vem por aí acima a passos arrastados tem cara de poucos amigos. Mesmo assim, metemos conversa.

    João Grevis. 62 anos. Foi lavrador, carteiro, deputado e presidente da câmara.

    — Ó senhor, o futuro do Corvo… Eu não vejo grande futuro para a ilha… Portanto, acho que a ilha está um pouco estagnada. O empreendimento é pouco. Os jovens já não têm muita garra para se dedicar a muitas coisas… Procuram um emprego. Um emprego… e os sectores produtivos estão praticamente abandonados. Portanto, a lavoura devia ser um pilar forte, aqui, na ilha… praticamente, a lavoura está a desaparecer. Estão as pessoas já de idade. Jovens que se dediquem à agricultura são muitos poucos… — garante João Grevis.

    Há, aqui, alguns jovens acomodados que se contentam de um emprego fictício. A servidão por mais mal remunerada que seja não os incomoda… mas quem somos nós para os julgar? É um lugar-comum, mas… ninguém faz o que quer!

    — Antigamente, já do meu tempo, tínhamos um navio aqui de 3 em 3 meses. Depois, passou a vir de mês a mês e antes de mim muito menos do que isso. E era assim. As pessoas estavam completamente isoladas, mas eram pessoas que se inter-ajudavam a si próprias, uma comunidade entregue a si própria, mas uma comunidade de grande garra e que… toda a gente sabia fazer qualquer coisa.

    A deferência do timbre é enganosa…

    João Grevis recusa o comodismo e a lisonja gratuita.

    Está reformado. Agora, entretém-se a sonhar com outro futuro para a ilha e a viver: cuida das hortaliças e pesca uns chernes e uns gorazes.

    O Corvo selvagem…
    (Foto: Rui Araújo)

    O mundo mudou. 

    E esta gente mudou…

    — O meu trisavô, o meu bisavô emigraram a bordo de uma baleeira. Trabalharam um ano a bordo. Depois, foram para os Estados Unidos. Naturalizaram-se americanos. Depois de terem a vida mais ou menos arranjada, regressaram. Compraram mais uns bocados de terra e fizeram a sua vida cá — conclui João Grevis.

    — E, como eles, houve muitos…

    — Sim. Sim. Como eles… quase todas as famílias do Corvo têm descendentes que foram baleeiros e tinham nacionalidade americana.

    A caça da baleia requeria força e coragem.
    (Foto. Captura a partir de imagem do Museu da Fábrica da Baleia do Boqueirão)

    A caça à baleia acabou em 1987 com a morte de 3 cachalotes ou em 1984, quando fechou a última fábrica dos Açores.

    Os corvinos pararam muito antes, logo no início do século 20.

    A falta de um varadouro decente complicava as manobras de varar e de arrear.

    A baleia dava de comer a muita gente em todo o arquipélago dos Açores.
    (Foto: D.R.)

    24 de Julho de 1896.

    Depois de uma passagem pela ilha das Flores, o Príncipe Alberto do Mónaco desembarca, pela segunda vez, no Corvo.

    O ancoradouro de Nossa Senhora do Rosário era isto aqui.

    Nossa Senhora do Rosário, hoje Vila do Corvo.
    (Foto: Musée Océanographique de Monaco)

    A povoação mencionada nas chapas é “Rosário”. Hoje, Vila do Corvo.

    O soberano permanece 3 dias na ilha e almoça no Caldeirão a 25 de Julho, um dia depois de chegar.

    O almoço da comitiva do Príncipe Alberto.
    (Foto: Musée Océanographique de Monaco)

    É a segunda visita do soberano à ilha. A primeira ocorreu 7 anos antes, em 1879.

    Imagem do passeio de três dias.
    (Foto: Musée Océanographique de Monaco)

    A 24 de Novembro de 1981 é caçado o último cachalote nas águas do Corvo por baleeiros florentinos.

    A memória das quimeras e dos dias de servidão – a fúria do mar, as preces e as lágrimas de sal —… a memória… com o vento de Oeste parece resistir ainda mais ao tempo.

    O meu amigo Pedro Melo Lindo.
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    — Eu queria era apanhar baleias para o patrão ter o seu lucro e a gente ter o nosso. Às vezes, dá-me saudades.  Dá-me saudades…

    Era caçador de baleias.

    — Se eu voltasse para trás, se eu fosse mais novo, que eu já não tenho idade para a pesca da baleia, se eu fosse mais novo eu hoje ainda ia. Gostei muito daquilo. Foi o melhor tempo que eu tive na minha vida. Foi a pesca da baleia.. Porque foi uma das coisas que me levantou a minha vida, está a perceber? Que ganhei dinheiro para me poder manter a mim e a minha mãe. O meu pai quando morreu eu tinha 7 anos. Perdi-o. Tive de começar a trabalhar muito novo. Está a ver?

    O mar — ao contrário da terra — une os homens.

    Pedro Melo Lindo, 77 anos, caçador de baleias aos 14.

    Um homem sério e humilde, que se respeita.

    Hoje, vive numa casa sombria com a mulher e um filho. Paredes meias com a melancolia de antanho e a paz do dever cumprido.

    Mata o tempo a cuidar de um porco e de 36 vacas (de carne), mas não são os raciocínios economicistas que o animam.

    O mar engrandeceu esta gente rudimentar…

    Acompanhamos o caçador de baleias aposentado lá acima, à Lomba da Rosada.

    Esta manhã, é preciso mudar a cerca dos bezerros — mudar de pasto.

    Passamos pela Lomba do Feno.

    E esperamos…

    Pedro Lindo espera.

    O filho e um amigo andam à cata dos bichos.

    Aparecem dois. O desfecho é normal. Amanhã, procuram mais…

    Cada bovino tem direito a nome: Galho PartidoTrigueiraMourataLavradaCalçada

    Eles lá sabem. É assim. E desde sempre.

    Damos de caras com o carteiro.

    — Tenho, aqui, uma carta para si…

    — Não deve ser boa coisa… Da minha namorada não deve ser… (RI-SE) Ela está divorciada há muito tempo. deixa ver…

    Orlando Rosa. 46 anos. É o carteiro do Corvo. O único.

    Faz a distribuição e o atendimento.

    Dona Hélia? (O carteiro abre a porta e deixa ficar a carta).

    — Como vêem, ninguém tem, aqui, número de porta e quando para cá vim há 20 anos tive de decorar todos os nomes das pessoas que cá viviam. Dos que cá viviam e dos que vinham para cá trabalhar. Tive de decorá-los todos!

    — Sónia? Tem uma porção de coisas aqui. Jornais…

    — Muito obrigada!

    — Como vêem, as casas, aqui, no Corvo não têm número. Quando cá cheguei, há 20 anos, levei mais de um mês a decorar o nome de toda a gente. Foi difícil na altura, mas agora já sei o nome de toda a gente. Já está resolvido!

    A solidez do sistema postal passa pelas pessoas e pelo código postal que começa em Lisboa e acaba aqui: 9980.

    Esta parte tem de cortar! (O carteiro ri-se) Deixa ver se tenho, aqui, cartinhas para ti, Teresinha.

    O carteiro do Corvo é do Pico. Orlando Rosa veio por um ano. Está cá há 20.

    — Sempre a trabalhar. Tenho, aqui, uma cartinha para si. Até logo!

    Encontros e desencontros instrutivos.

    A harmonia é aparente, mas há paz e sossego.

    Um sol baço ilumina o burgo.

    A última fronteira.
    (Foto: Rui Araújo)

    A escola do Corvo tem 42 alunos e 20 professores (todos de fora).

    Há turmas com um aluno. A maior tem 7.

    Aula de geografia.

    — Estava muito habituada a ter indisciplina na sala de aula e acabava por ser um bocadinho como um desafio. Aqui, não tenho esse desafio, mas tenho outros… outros desafios, que é o facto de estar a lidar com 1, 2. 3 alunos e trabalhar ao ritmo deles, mas também tendo a noção que… uma parte dos alunos não tem a ambição que, se calhar, noutros… noutros lugares, noutras escolas eles têm.

    Esta juventude perde-se. Com emprego garantido (independemente das vocações e dos resultados dos estudos), deixa de sonhar. Ou acomoda-se.

    As perspectivas destes jovens são magras, mas quem somos nós para os julgar?

    — O futuro da ilha do Corvo passa obviamente por três… três pilares: a pesca, a agricultura e a agro-pecuária e o turismo. E o turismo, queremos que seja um turismo selectivo e, como eu costumo dizer, o Corvo é para ser vivido e não visto. Portanto, precisamos de turismo que venha vivenciar aquilo que foi a nossa História e aquilo que é o nosso presente. E que, provavelmente, continuará a ser no futuro. E espero que os jovens sejam capazes de perpetuar isto… — palavras de José Manuel Silva, presidente do município.

    É possível que o futuro da ilha também passe pelo turismo cultural…

    Esta gente arranjou sempre soluções para sobreviver neste pedaço de terra cercada de mar.

    A destrinça entre natureza e História, aqui, é por isso mesmo impossível.

    — A caça à baleia era uma maneira de eles fazerem dinheiro para sustentar a família. E eles caçavam a baleia, aqui, entre a ilha do Corvo e das Flores… — refere Maria Luísa Pimentel.

    — Há histórias tristes. Morreu um rapaz aqui do Corvo. Morreu um rapaz que era daqui do Corvo. Ele era trancador. Trancava a baleia e o meu pai não estava no bote que ele estava. Estava noutro. Eles juntavam-se, os das Flores com os do Corvo, e depois punham a companha da maneira que era preciso. E… E ele trancou a baleia quando não devia ter trancado a baleia. Eles tinham que esperar a maneira melhor de trancar a baleia e ela  não fazer mal a eles. A baleia é um animal mamífero que não faz mal nenhum… Se vai ver uma baleia passar pode passar a mão por cima que ela não faz mal. Mas trancaram-na, já se sabe, feriram-na. Ela levantou o rabo e entrou o barco. O barco era de madeira e não era muito grande. E… E feriu o rapaz. Ferido morto. Morreu imediatamente.

    — A cabeça e a cara não se sabia que era uma pessoa.

    A ilha mais pequena dos Açores…
    (Foto: Rui Araújo)

    No lar da vila encontramos Fernando Pimentel. 85 anos. É o cunhado de José Augusto da Fraga, o jovem “trancador” corvino sepultado no cemitério à beira do mar que não o viu morrer.

    O velho homem assistiu ao drama…

    Fernando Pimentel – a outra face da coragem…
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    — Eu pensava que estava vivo. Ele estava todo rebentado. Ele tinha um golpe na cabeça. Eu quando fui ao pé dele… um golpe na cabeça. Depois a gente foi para as Flores. Depois, veio para o Corvo. Eu perdi a fala naquela altura. (Chora)

    — Lembra-se como se fosse hoje…

    — Lembro!

    Há mortes que são uma desgraça.

    Muitos açorianos emigraram para escapar à miséria. Alguns — e não foram poucos — foram parar aos Estados Unidos…

    Dona Guiomar e o marido, Raúl Trindade, chegaram a New Bedford (Massachusetts), no dia 8 de Julho de 1972.

    Ela arranjou trabalho numa fábrica (que, entretanto, fechou). Ele foi para cortador de peixe.

    — A gente estivemos na América quase 16 anos. Quase 16 anos… Eu estava a gostar muito. Muito. Eu adorava a América. God Bless America! É o que eu queria dizer, mas o meu marido deu-lhe aquela pancada como costuma dar à maioria deles, quis vir para o Corvo. Ah, senhor. Foi um balde de água fria para cima da minha cabeça. Que.. foi um balde de água fria para a minha cabeça…

    Escreve à filha e aos netos. Faz a mesma coisa que a sua avó fazia em 1983 quando vivia em New Bedford.

    34 anos depois, repete-se a cena da carta da “Grande Reportagem” de Miguel Sousa Tavares, emitida na RTP.

    (Foto: Arquivo RTP)

    À semelhança da avó, Guiomar Trindade deixou na América da prosperidade ou da felicidade (pouco importa agora) uma filha e três netos.

    As palavras de ontem são como as de sempre…

    Minha querida filha, netos… E netos. Muita saudinha a todos. Por cá, … vamos na forma do costume. Fomos ao Faial. Graças a Deus, mais ou menos correu tudo bem. Ah, Temos muitas saudades vossas principalmente nesta… nesta época da festa de acção de graças e o Natal…

    É a sina de muitos emigrantes.

    E esta prosa em letra redonda cheia é tudo menos oca…

    — Agora, com a idade, eu ando é com a minha muleta. Não é com o anel de diamantes nem é a pulseira de ouro. Ando com a muleta para a muleta me aguentar.  O senhor sabe…

    — E…

    — …

    — Mas continua a sonhar…

    — Bem, eu… Sonhos grandes, grandes não. Eu já não os tenho. Não. Mas, senhor, os problemas da vida são muitos…

    Igreja de Nossa Senhora dos Milagres:

    É a hora da missa.

    Esta imagem de Nossa Senhora do Rosário (que passou a ser, entretanto, denominada Nossa Senhora dos Milagres) terá dado à costa do Corvo no século 16.

    A devoção à santa padroeira da ilha é real.

    A igreja terá sido edificada em 1795.

    Curiosidade: os bancos de carvalho eram de uma sinagoga dos Estados Unidos da América. Foram comprados na década de 60 por um emigrante de New Bedford…

    É noite cerrada.

    Temos Lua cheia e firmamento (mais ou menos estrelado)…

    O céu confunde-se com o mar. E as estrelas, lá ao longe, parecem, agora, mais ilhas perdidas. Têm nomes de princesas ou de bichos fabulosos ou de coisas.

    No restaurante Metralha é noitada de bola e de comunhão.

    O pitéu é especial: alcatra de cabrito com batata doce regada de branco do Pico.

    A ideia é de Alirio Andrade, lavrador, ilhéu do Fogo.

    — Eu não vou à missa. Eu sou católico, mas não praticante. Para a igreja mexericar na vida dos outros, eu não vou. Eu não tenho pecado. Não matei. Não roubei. E não devo nada a ninguém…

    — E hoje…

    — Hoje, é comer e beber.

    — E sente-se mais corvino que cabo-verdiano ou…

    — Eu saí de Cabo Verde com 17 anos e já tenho 32 anos. É mais corvino ou mais cabo-verdiano? O senhor que é juiz… diga uma coisa: eu sou mais corvino ou cabo-verdiano?

    Não se belisca ninguém sem razão, que seja o que Deus quiser.

    Mudança de assunto: a parte dos sonhos com Cláudia Reis, filha do Metralha. 

    — Eu gostava de ser cabeleireira e estética, ou seja, fazer um salão a nível de tudo: ter massagistas, pedicure, manicure, aqui, no Corvo porque, aqui, temos uma que corta, mas é em casa. Mas não faz assim penteados radicais, não… para casamentos não há maquilhadoras, não há assim gente profissional, mas temos uma rapariga actualmente a fazer as unhas, mas é só manicure…

    Na mesa ao lado, entre a sobremesa e o café, mais um testemunho.

    Fábio Ferreira, encarregado dos resíduos, toma a palavra.

    — Façam-me um favor: separem o lixo. os restos de comida num saquinho à parte. Embalagens, garrafas de água, pacotes de leite, pacotes de massa, num saquinho à parte, não custa nada. Vocês estão a ajudar-me a mim, mas estão a ajudar o meio ambiente. É só isso que eu peço. Obrigado por tudo.

    — E, agora, uma pergunta: este jantar tem história?

    — Tem.

    — Qual é a história deste jantar, aqui, esta noite?

    — Isso... (Cala-se) Eu não vou responder a isso…

    — A história de uma grande amizade…

    — Eu não vos responder a isso, não consigo. ” (Chora)

    Inventariar as mágoas… às vezes, é preciso. Por mais atordoada que a consciência fique.

    Juntaram-se no Metralha para homenagear um amigo. Ruben tinha 29 anos. Faleceu no dia 14 de Outubro.

    Fim do convívio.

    As crianças salvam as aves marinhas.
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    O primeiro passo para proteger as aves marinhas da poluição luminosa é dado na ilha mais pequena dos Açores a 3 de Outubro de 1991.

    Só 4 anos mais tarde, o resto do arquipélago segue o movimento.

    Partida das brigadas “SOS CAGARRO”.

    A poluição luminosa de noite é um perigo para as aves.
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    Vão armados de lanternas, luvas, colete reflector, caixas de papelão e… boa disposição, claro.

    Vão correr, durante, pelo menos, duas horas, as canadas — as ruelas da vila e recolher aves marinhas encandeadas.

    No espaço de um mês, em 2016, foram resgatados e salvos na ilha 1.020 cagarros — é a designação local para a pardela de bico amarelo.

    Esta manhã a liberdade.
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    11 da manhã.

    A cena da libertação dos cagarros repete-se à beira da falésia, lá para as bandas dos moinhos.

    3 em cada 4 cagarros nidificam nos Açores. Estamos a falar de qualquer coisa como 200 mil casais.

    Vivem 40 ou 50 anos. Reproduzem-se a partir dos 7.

    Este tem 3 meses.

    Daqui a 5 ou 6 anos volta ao Corvo — a ilha que o viu nascer.

    — Eu quando abro a caixa sinto felicidade porque sei que ele vai voltar ao seu habitat natural e vai viver a sua vida.

    — É bom para o meu ser… que eu quero ser bióloga marinha e terrestre. Ajuda-me a fazer coisas. penso melhor na minha vida e ajudo eles. — jura a menina Clara Sofia Lindo. 

    A partir de agora é o mar, imenso como os sonhos das crianças.


    Reportagem originalmente transmitida na TVI

    Fotos de Rui Araújo


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  • Quatro dias, uma moto e uma mochila

    Quatro dias, uma moto e uma mochila


    Em 2018, Rui Araújo fez uma ‘peregrinação’ sem destino traçado nem etapas definidas, a partir de Lisboa, em cima da sua então nova mota, apenas pelo prazer da viagem e de encontros imprevistos. Estava para ser uma espécie de ‘viagens à minha terra’ versão motorizada, mas atravessou a fronteira, e não se satisfez apenas com Espanha, galgando o País Basco, até à francesa Baiona, nos Pirenéus Atlânticos. O importante é a viagem, não o destino – e um diário para que a memória se mantenha.


    LISBOA. 

    É uma viagem (essencialmente por estradas secundárias) sem acompanhantes. E, sobretudo, sem destino.

    VENDAS NOVAS.

    Decido abandonar a A6. Há estradas que parecem autênticos túmulos desolados a céu aberto. E faz um calor de rachar.

    MONTEMOR-O-NOVO.

    O importante não é o destino. Chegar é, aliás, irrelevante. O que importa é partir, viajar. É a peregrinação. Dou comigo a matutar, sem querer, que andar de moto é como navegar. E, se não é, parece…

    Penso na primitividade das minhas desventuras da pesca do tubarão, entre o arquipélago de Cabo Verde e a linha imaginária do Equador. Cheguei a narrá-las na revista LUZES (A Corunha).

    O meu mar…

    Essa reportagem acabava mais ou menos nestes moldes:

    Depois da faina da pesca do tubarão, a nossa conversa em torno da mesa do pesqueiro Intrujão é, necessariamente, filosófica: grogue e putas.

    — Depende da qualidade. Mais barata é 250 escudos [2,5 euros]. Depois, há 300 escudos [três euros]. A diferença é a qualidade. A chinesa é de 500 [cinco euros] para arriba. Badia, há a todos os preços… — explica Magrás.

    — São Vicente é mais caro do que a Praia. Mamada a 500, fodas a 1.000 é o mais barato — acrescenta Mendonça.

    Ti John coça o pescoço, vagarosamente.

    — Hoje, é dia de foder a mulher de cada um, não é dia de puta… — adianta.

    — Se o senhor quer uma mulher em São Vicente, eu arranjo… — propõe-me Magrás.

    Acabamos por atracar no Mindelo. O pescador ferido, Luís (Malulula), é transportado imediatamente para o único hospital da ilha de São Vicente. 

    Largamos amarras (há pescadores que preferem a expressão «largar cabos») segunda-feira, às duas da tarde. Serão mais três semanas sem avistar terra, se tudo correr bem. De resto, sinto-me  melhor no mar. E não estou aqui a fazer nada…

    O pescador Luís Malulula aprendeu a ler e a escrever comigo. Três semanas de mar e uma tempestade foram suficientes para ele conseguir gatafunhar o nome e dois ou três verbos a acabar em «ar». Morreu no dia em que atracámos no Mindelo. Teve um desastre. Tinha 40 anos. E deixou uma família por sustentar e muitas histórias de mar para contar, pelo menos isso. Não é nada e é muito…

    Luís Malulula: depois da pesca do tubarão as aulas de português.

    PASTANEIRA.

    Apesar da grandiosidade da planície bravia, dou graças ao destino por ter nascido junto ao mar. Esta paisagem árida, poeirenta e monótona atordoa-me.

    ARRAIOLOS.

    Paro no Forjador... Café e cigarro. As especialidades do restaurante são as empadas de galinha e os bolos tradicionais.

    ESTRADA NACIONAL 4. 

    É, portanto, mais uma tarde canicular. E os dias largos ainda nem sequer chegaram.

    Vimieiro e, em seguida, Estremoz. Em Borba, hesito. Tenho gasolina para mais 100 quilómetros.

    Badajoz? Ou meto pela N255 em direcção a Monsaraz? Eu adoro aquela vilazinha medieval alegre e buliçosa alcandorada sobre um cabeço. Do esplendor de antanho restam as casas caiadas e uma calçada bruta de xisto. O castelo. O muro da cerca, que esconde com parcimónia a melancolia daquela terra poeirenta e abrasadora e uma luzidia albufeira verde-doirada que se estende até ao horizonte. No burgo ninguém me espera…

    MONSARAZ.

    Parece que foi ontem. Fiquei na Casa Pinto, uma pensão situada diante da sumptuosa igreja de Nossa Senhora da Lagoa, ao lado de um pelourinho de factura oitocentista. Deus e a Justiça dos homens no mesmo espaço. Era o local ideal para mim, o zeloso e fiel combatente da infâmia e dos actos de arrepia-cabelo que corroem a normalidade envergonhada (?) da sociedade bem-pensante ou tão simplesmente do fingidor de jornalista.

    Eu recordo-me. A porta baixa de linhas austeras da pensão estava entreaberta. Entrei. A casa, que tinha sido restaurada pelo novo dono, um tipo mais triste do que taciturno, preservara o decoro devido à tradição. O resto não é para aqui chamado. Morrer mal é a mesmissíma coisa que morrer…

    No fim de contas, opto por Elvas. Não dá para matar o Diabo, mas teimar em correr atrás de fantasmas é doentio…

    ELVAS.

    Entrada da cidade. Depois da operação da GNR (ao lado da rotunda do costume, claro!). Faço uma paragem imprevista. E esboço um gesto de repulsa assaz patético, mas sincero. O raio da viseira está repleta de insectos . Puta que os p…

    Limpo o capacete e arranco ou, por outras palavras, invisto contra a soalheira, tão rija que faz calar as cigarras (como diria Aquilino Ribeiro).

    CAIA.

    É na fronteira desolada (edifícios do Estado abandonados e comércios fechados) e cada vez mais simbólica (apesar da propagação dos populismos por essa Europa fora) que começa a E-90/A-5, uma via idêntica a qualquer autoestrada nacional. A única diferença é o preço: é gratuita.

    BADAJOZ.

    E a seguir? Podia enveredar já pelas estradas secundárias, mas não o faço apesar de serem as mais interessantes porquanto permitem descobrir um país quiçá desconhecido e «escutar o canto dos pássaros». 

    A natureza disciplinada acompanha os grandes eixos rodoviários, aqui como em Portugal. 

    As aldeias antigas e vazias, desertas de gente, por estas bandas, proliferam dos dois lados da raia.

    A 120, a velocidade legal (a CB 1100 só dá 190), chego rapidamente ao El Torero.

    LOBÓN.

    A via rápida passa perto da vila, situada a 35 quilómetros (praticamente a meio caminho entre Badajoz e Mérida). A escassa circulação rodoviária em Portugal  sobretudo de camiões e carrinhas  contrasta com o movimento daqui. E as velocidades praticadas.

    El Torero está fechado. O café é estupendo e o patrão uma pessoa afável. É, quem sabe, um filósofo. A mensagem pintada em letras garrafais no espelho diante do balcão é peremptória: «Por muito alta que seja uma montanha, há sempre um caminho até ao cimo. Tudo é muito difícil antes de se tornar fácil.» Do outro lado do pilar, meio escondido, acrescentou: «O segredo está na vontade.»

    Acabo por ir parar à esplanada do café/lar da vila. As veredas da vida estão muitas vezes onde menos as procuramos. Os velhotes sentados à minha volta conversam ou dormitam, tanto faz, aninhados nas recordações ou no esquecimento.

    TRUJILLO.

    No cimo de um prédio arcaico ou decrépito da Plaza del Campillo, a passarada encastelada bate asas e some-se. À hora do crepúsculo cada qual acoita-se onde pode. Empurro a porta do Hotel Victoria. Fico no quarto 109. O 110 é mais bonito, mas está ocupado.

    Deambulo, vagueio para matar o tempo e apaziguar a memória atordoada. Somos todos iguais, regemo-nos pela mesma cartilha. Discorremos como armaduras vazias e mutilamos o sentir, com trapaças ou futilidades, tornando-o inexprimível.

    Tienda de Isidro – Chorizos Caseros fica no outro passeio, paredes meias com o Hostal – Restaurante Julio.

    O lugar está mergulhado na obscuridade. Dou as boas tardes. Uma cliente bem-parecida observa algo numa prateleira. Um velhote, magrinho, ágil, que arruma latas, mete conversa comigo. É o pai de Isidro, o dono. Tem 90 primaveras ou outros tantos invernos. Faz parte dos encontros improváveis. Conta-me que foi operário da construção civil e que agora passa as tardes no estabelecimento. E que só arreda pé na hora do fecho.

    — E de manhã? — indago.

    — De manhã, estou no mercado.

    Isidro confirma com os olhos as palavras do pai.

    — Temos óptima patatera…

    — Estou mais interessado no queijo do que nos enchidos… — informo.

    — Tenho um curado de cabra, aqui, da Estremadura que é fenomenal…

    Duas velhotas descoradas, trajadas de negro, passam diante da porta. Parto.

    — Há alguma livraria em Trujillo? — pergunto por perguntar.

    A da esquerda acena que sim. A outra nem por isso.

    — Só temos uma. É na Calle Tiendas. É antes de chegar à Plaza Mayor. Fica no lado direito de quem sobe…

    Agradeço a resposta ou a doçura do tom. A doçura das espanholas é uma realidade.

    — E como é que é a vida aqui?

    — Há cada vez menos gente em Trujillo. Já não há trabalho. Os jovens partem para as grandes cidades e para o litoral, que são o futuro…

    — São? — pergunto como quem não quer a coisa.

    Elas não respondem. Limitam-se a sorrir. É um recado silencioso: lamúrias e queixumes não é com elas. Ou com os velhos…

    «A velhice é isto: ou se chora sem motivo, ou os olhos ficam secos de lucidez», escreveu Torga.

    Instalo-me num mesón que conheço perto da Plaza Mayor (a da estátua de Francisco Pizarro, conquistador do Perú). Peço migas. Já comi melhores, designadamente num restaurante perto dos bombeiros de Grândola. Cada região da península ibérica tem as suas. Desde sempre ou quase… já que a gastronomia resiste ao tempo e à distância.

    As ruelas esguias e acanhadas do lugarejo estão desertas, mas aquilo que  incomoda mais é o silêncio. É a mudez ensurdecedora dos manequins clonados tristes que nos macaqueiam nas montras e nos escaparates.

    O sol peneirado invade o quarto. Espreguiço-me, espreguiço-me, espreguiço-me. Como quando era puto. Depois do duche e do pequeno-almoço na cafetaria, subo ao castelo, compro um livro («Tecleo en vano» de Pilar Galán, Editorial de la Luna Libros, Mérida) e visito uma capela esplêndida porquanto os palácios aristocráticos continuam a ter dono…

    A meio da manhã, arranco de luto na alma. Isto é muito mais do que uma mera viagem improvisada: é uma peregrinação, amarga e solitária, feita de memórias desarrumadas, de saudade e de mais saudade. Penso muito no meu pai, que partiu há dias. Não me habituo. Jorge Araújo «partiu» porque as pessoas só morrem mesmo quando deixamos de pensar nelas.

    «A minha alegria em velho consistiria em ter aqui meu pai para falar com ele. Não é só saudade que sinto: é uma impressão física. Agora é que acharia encanto até às lágrimas em termos a mesma idade, conversarmos ao pé do lume e morrermos ao mesmo tempo…» Palavras do imenso Raul Brandão em 1908 e que permanecem actuais. Para mim, claro…

    TALAVERA DE LA REINA. 

    Estaciono à frente do restaurante El Monasterio (na Avenida Real Fábrica de Sedas, 3 – Ronda Sur). Subo seis degraus, ocupo a única mesa vaga da esplanada e encomendo leitão assado (cochinillo). O Tejo, alheio aos ruídos do mundo, corre tranquilo, ali à minha frente.

    Para fugir dos camiões e dos carros dos caixeiros-viajantes, abdico do caminho mais curto para Madrid. Dou preferência a uma estrada municipal que vai para Norte. É menos frequentada e, lá ao longe, dá para acompanhar a linha da Sierra de San Vicente (Cerro de San Vicente: 1.321 metros).

    NAVAMORCUENDE. 

    Após Cervera de los Montes, Marrupe e Los Jarales (um complexo de turismo rural para famílias numerosas com animais e para casais felizes) subo a encosta (770 metros) e entro (pela CM-5006) no município.

    O encanto do lugar é relativo. Devidamente decepcionado, chego à arreliadora conclusão de que a igreja é a única salvação de Navamorcuende. 

    Tomo um café morno. E parto como cheguei: com sossego e sem esperança. Madrid fica a 126 quilómetros (M-501). Serão mais duas horas a arder de solidão amorfa entre montes e vales…

    MADRID.

    É uma cidade incrível. E é ainda — ao contrário de Lisboa — uma capital europeia. Continuo a deslumbrar-me com as suas avenidas, praças, jardins (estou a pensar no parque del Buen Retiro) e nas esplanadas (como a do Cinco Jotas na Jorge Juan – C/ Puigcerdà, s/n). E com a movida. Os espanhóis podem ser danados, mas são acolhedores, alegres, menos formais e bem mais cojonudos do que nós.

    Despeço-me de Madrid. E, do mesmo modo, das minhas intenções gastronómicas: jantar no galego O’Grelo (C/ Menorca, 39). Desta vez, não fico no Petit Palace Savoy Alfonso XII (C/ Alfonso XII, 18, Retiro – Puerta de Alcalá), não compro livros na Pérgamo (esquina da C/ de Lagasca com a do General Oráa), não…

    Depois da peleja impossível para escapar ao tráfego madrileno sigo para Guadalajara (recordo que a autoestrada com portagem é a pior solução!) e chego lá em menos de uma hora.

    GUADALAJARA.

    Preciso de procurar o Norte. Tudela? Tudela soa-me a caça e pesca e a Bardenas Reales (um parque natural selvagem e semi-desértico).

    Decido ir em direcção a Tudela. Percorro a E-90/A-15/CL-101 (256 quilómetros de desolação monótona) ou a E-5 (337)? Hoje é a vez da primeira, que margina a aridez. Coincide com o meu estado de espírito. A E-90 será pois o meu miradouro para a outra Espanha. E a admirável terra sacrossanta de que(m) eu gosto é estimulante até nos seus mais ínfimos recantos. O desabafo é sincero, mas não me levem a sério. E não me peçam lucidez. O calor embrutece e embriaga…

    Paro num saloon de «moteros» no meio de nenhures. Feitas as saudações da praxe, entro e bebo uma água suja do imperialismo norte-americano, vulgo cola. Pago na caixa à saída – a troco da entrega de um papelinho manuscrito.

    «Na minha terra sou quem sou; na terra alheia sou quem vou», reza o ditado popular…

    TUDELA. NA-8703. 

    Os candeeiros da ponte sobre o barrento rio Ebro são iguais aos de Lisboa. E se não são, parecem. O centro da cidade é à esquerda. Como há coincidências (apesar de Fernando Pessoa não acreditar), desrespeito a sinalização. Todas as inépcias vão dar ao mesmo…

    CADREITA.

    Cinco da tarde. Está mais do que visto: é aqui que fico. A intuição raramente nos engana. Procuro a pensão. Desgraçadamente, La Casa de la Abuela (Calle Aralar, 2, Cadreita, Navarra) está fechada a sete chaves. Milagre crucial: descubro um contacto atrás do toldo esverdeado que tapa a porta. Ligo.

    — Podes ocupar o quarto 3, cariño… — diz-me dona Esperanza, solicíta.

    — Pois… mas como é que eu entro? ¬— indago.

    — É fácil…

    — E a mota?

    — Pode ficar na rua. Aqui ninguém mexe no que é dos outros…

    — Mas eu não estou habituado a esse regime…

    — Falamos às sete. Não te preocupes…

    — Ya veremos...

    Louvo Deus. Entro. Esperanza é uma optimista genuína que conseguiu preservar o que as gentes do interior têm de bom. Coloco a mochila, o capacete e as luvas no meu quarto. Está uma tarde bonita. Em desespero de causa, entro no primeiro bar que encontro.

    Triángulos (C/ Bardenas, 37) dá para aconchegar a alma e matar a sede. E o espaço é hospitaleiro.

    — Hola! — dispara o dono.

    — Buenas tardes…

    O Triángulos

    Sensação estranha: sou um perfeito forasteiro aqui, mas sinto-me como em casa. Há encontros felizes. Falamos de Pamplona (a capital da fiesta taurina de San Fermín, narrada, designadamente, por Hemingway em Fiesta) e de Arguedas, a povoação das imediações, conhecida sobretudo pelo deserto e as suas cuevas, autênticas cavernas escavadas na falésia, que chegaram a estar habitadas nos séculos XIX e XX.

    O convívio é cordial, mas ficar aqui parado ou quiçá pasmado não me interessa. Devoro duas excelentes omoletes com presunto e vou deitar-me. Mas só depois de arrumar a moto no pátio da cunhada de dona Esperanza, claro.

    CADREITA.

    Às 10 parto para Arguedas. Na rotunda ao fundo da rua, dou com Milagro (milagre, em português). Confesso que depois de Esperanza e de Milagro sinto um misto de curiosidade temperada de esperança apesar de crer que o pretenso destino é coisa que não existe.

    ARGUEDAS.

    Comarca de Ribera Navarra. 2.400 almas. Percorro a vila em segunda. Os vecinos idosos sentados num banco ao pé do cemitério fitam-me com olhos de espanto. Sorriem. Saúdo os velhotes com um gesto da mão.

    Arguedas, Navarra

    De um lado, a planície do rio Ebro, os soutos e os arrozais. Do outro, a Sierra del Yugo e a Bardena Blanca. Independentemente das tentações, há terras luminosas onde não me importava de viver. Se Arguedas tivesse mar ou chovesse mais esta seria uma delas. Há serenidade aqui. E pena, sabe-se lá…

    Calle la Peña – Arguedas

    A igreja paroquial de San Esteban (dos séculos XVI e XVII) está encerrada. Ignoro a liturgia. Desato com imprecações sonoras. Porque necessitamos do sagrado?

    CADREITA.

    Um duche. Um copo no bar. E dois dedos de conversa com dona Esperanza sobre o jornalismo de guerra e a solidariedade (ou a ausência de solidariedade) e a desistência moral. O resto é conversa de desbocado que não interessa…

    Arguedas – Las Bardenas Reales, território árido e semi-desértico.

    IRUN.

    Esta manhã, parto para França. Opto pela estrada nacional, que passa por Pamplona. Padeço tormentos com o frio e a chuva miudinha nos Pirinéus.

    Os redutos separatistas continuam a ser uma realidade mesmo em lugares recatados do País Basco. Mas não há tempo para questionar identidades.

    Pirinéus

    HENDAIA.

    Os engarrafamentos propiciados por ridículas limitações de velocidade sucedem-se e repetem-se para mal da minha paciência.

    Fronteira

    CIBOURE.

    Paro na primeira padaria que encontro. Papo um croissant (de manteiga, se faz favor!).

    BAIONA.

    É uma cidade bonita, preservada. Mas a prioridade é visitar o cemitério (obviamente privado) judeu. Muitos judeus de Baiona eram oriundos de Portugal. Nos editais da monarquia francesa eram denominados, aliás, a «Nação Portuguesa». Tinham o seu próprio bairro, Saint Esprit. Hoje, já ninguém dá pela sua presença…

    Compro chocolate belga e um ensaio do filósofo francês Michel Onfrain (Zéro de Conduite, Editions de l’Observatoire, França) sobre o bando de jornalistas sem olfacto a soldo de Maastricht e do político Emmanuel Macron, inventado pelos media e o mercado. A decomposição do jornalismo e da democracia está em marcha…

    PAMPLONA.

    Decido regressar a Lisboa pelo mesmo caminho. E hoje. São 1.016 quilómetros. Com este calor, a indolência deixa de ser defeito.

    LISBOA.

    Sol sem calor. A ponte sobre o Tejo é a minha fronteira. Circulo na faixa do meio porque no meio é que está a velocidade. 

    Penso que por muito que me esforce não vou escapar à saudade antecipada da minha próxima peregrinação: Santiago de Compostela para jantar com o meu amigo Xosé Manuel Pereiro (da revista LUZES) na Casa de Xantar (onde se fala, aliás, português!) O Dezaseis.

     Apertas, meu.


    Reportagem originalmente publicada no site Autoportal, já inactivo

    Fotos de Rui Araújo


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Dois portugueses nas prisões tailandesas

    Dois portugueses nas prisões tailandesas


    No passado mês de Março, dois portugueses foram detidos na Indonésia por tráfico de droga.

    Mas, em 1982, dois outros jovens lusos foram condenados a uma pesada pena de prisão na Tailândia, um dos piores lugares do mundo para se ficar detido.

    Nesta reportagem publicada em 1983 na Revista ABC, o jornalista Rui Araújo segue os passos de “Márcia” e “Luís” e relata como o destino dos dois jovens se revelou sombrio e sem esperança, entre os muros de duras prisões.


    Nesta edição assume particular relevo a reportagem realizada por Rui Araújo, em que se conta a história dramática de dois portugueses, presos desde Maio do ano passado em prisões tailandesas, por tráfico de heroína.

    Um trabalho em que, mais do que os nomes, pretendemos levantar a questão da falta de um acordo de repatriação entre Portugal e a Tailândia — e assinalar o destino a que estão votados dois elos de uma cadeia mais vasta.

    António Mega Ferreira – Director da revista ABC

    Fevereiro de 1983


    Márcia, portuguesa, 24 anos: mais 24 anos à vista numa prisão tailandesa

    Em 7 de Maio de 1982, dois jovens portugueses eram detidos no aeroporto internacional de Banguecoque. Na bagagem, um quilo de heroína. 

    ABC conta como vive, na prisão de Bangkhen, Márcia, nome suposto de uma portuguesa identificada pela nossa reportagem.

    Capa da Revista ABC de Fevereiro de 1983 com destaque da reportagem sobre os dois portugueses detidos nas prisões tailandesas. (Foto: D.R.)

    É curioso. Nunca pensara poder suar tanto. Do outro lado,  eles sabiam. Mas davam-lhe mais uns minutos. Estavam só à espera que ele escrevesse o nome na ficha de embarque. Mas é claro que sabiam. Um policiamento paranoico, absurdo. A liberdade estava a escassas centenas de metros. Depois da inspecção das bagagens. Mas aqui, no hall, começara o pesadelo. Porque eles sabiam. «A viagem até ao fim do inferno». A morte, talvez…

    Os dedos tremiam. Olhou em redor. E acabou por quebrar a regra: dirigiu-se a ela. Pediu-lhe uma caneta. Em português. Não valia a pena esconder. Eles sabiam. Gritou o nome dela. E transpirava cada vez mais. E no momento seguinte já não havia nada a fazer: um «speak english?» anasalado fê-lo sobressaltar. «Hey, you too, stay here, understand?» Nesse instante, os potentes altifalantes transmitiram a última chamada para o voo Banguecoque – Bruxelas. Dia: 7 de Maio de 1982.

    As malas —  dele e dela — foram abertas. Cada um transportava meio quilo de heroína pura dentro de dois livros. A ideia não era má. Excepto que ninguém vai a Banguecoque para comprar literatura. A Tailândia é mais o país de sonho para quem pretende assistir a um «banana show», a um «fucking show», a um «lookie-lookie», passar uns momentos com um travesti ou uma criança. É isso «enjoy Thailand», para a grande maioria. Com uma massagem especial porque «we offer our heart». Mas a Tailândia é também símbolo de droga dura…

    No gabinete da polícia, ao lado do retrato oficial da família real tailandesa, um poster visivelmente ultrapassado ainda preconiza 100 anos de prisão para os exportadores de estupefacientes. Hoje, o crime é punido com a pena de morte.

    Luís e Márcia, correios de droga, portugueses, pouco mais de 20 anos de idade, caíram na armadilha. E sem dinheiro não há sequer hipótese de suborno. Os poucos dólares de que ainda dispunham para os cigarros da free shop não chegam para comprar a polícia. Os dois jovens tornam-se um número de processo. Um extenso dossier é enviado à Drug Enforcement Agency (DEA), um outro à INTERPOL. A Polícia Judiciária portuguesa fica para outra altura. Os detidos, depois de longas horas de espera, acabam por ser enviados para o Centro de Detenção de Banguecoque. «Uma pocilga nojenta», diz um familiar de Márcia.

    Aeroporto Don Mueang. O antigo aeroporto internacional de Banguecoque serve hoje como aeroporto regional. (Foto: D.R.)

    Oito meses depois de ter sido detida no Aeroporto de Banguecoque, Márcia está reduzida a um simples número: 519-25. Um número que corresponde a 24 anos de idade, completados na prisão; 24 anos e uma história que explica (talvez não completamente) quais as razões que a levaram ao aeroporto internacional de Banguecoque naquele dia 7 de Maio do ano passado.

    Márcia nasceu algures em Lisboa de um terceiro casamento do pai, um homem de tradição aristocrática que se ligara à família de um banqueiro judeu, numa operação muito ao  gosto do tempo. «Foi para disfarçar a miséria franciscana», comenta um familiar.

    Tal como o pai fizera na sua juventude, também Márcia foge de casa. Foi há oito anos e a jovem decidiu então ir viver para casa de um irmão, no Estoril. Acabara de fazer 16 anos e deixava atrás de si algumas más recordações. «Menina mimada, introvertida, sobretudo até ao fim do 1.º ciclo da adolescência», diz um familiar à ABC, «ela começa a chumbar anos. É expulsa do Liceu Charles Lepierre e começa uma vida de café».

    Aos 18 anos, encontramo-la a viver em Paris com um namorado. Quando regressa a Portugal, em 1978, pouco depois da morte do pai, procura emprego. As dificuldades são grandes, mesmo para uma rapariga bonita e de boa família. Márcia envolve-se então progressivamente numa boémia lisboeta que desconhecia em parte.  Ataca as «ervas daninhas» (marijuana) e vai subindo. Faz uma pausa na cocaína e chega ao «cavalo» (heroína). Primeiro, «snifando», depois «shootando».

    Se é verdade que ela se drogava, não é menos certo que não precisava de forma alguma ir a Banguecoque para obter «cavalo». Tinha algum dinheiro e podia contar com o seu fornecedor habitual, com o qual traficava de há seis anos para cá. A razão da sua deslocação é apenas mais uma peripécia. Mais um nó. «Digamos que genial — mas superficial», se é correcta a forma como Márcia é definida por um dos seus irmãos.

    Márcia não teve consciência do risco que corria. «Quis recusar, mas…». Mas foi… Mas o que a levou a Banguecoque? Meia dúzia de dólares, nem mais. Porque é disso, de dólares, que se trata efectivamente…

    Dealers e 6 dólares

    Em 1983, os itinerários tradicionais utilizados pelas grandes redes de tráfico de droga, como a chinesa ou a turca, já não significam absolutamente nada. O esquema clássico Amesterdão-Copenhaga-Banguecoque, com um «stop» em Moscovo, tornou-se demasiado académico para o traficante. Para o «dealer». Para o aventureiro.

    E, no entanto, foi esse o percurso dos dois portugueses agora detidos.

    Márcia e Luís não pediram qualquer visto ao Consulado da Tailândia em Lisboa, garantiu-nos o próprio Cônsul honorário. Dr. Borges de Pinho. Não estavam sequer na «lista negra» que cada consulado tem na sua posse e que é uma relação dos indivíduos considerados «personæ non gratæ».

    De facto, os dois portugueses transitaram por Amesterdão. Em seguida, foram de comboio até Bruxelas, de onde apanharam um avião para Banguecoque.

    Vão ficar na capital tailandesa 10 dias, como simples turistas. Progressivamente, mergulham na vida da cidade. Vivem experiências sórdidas, nos bairros de lata, nos bairros de juncos. Neste «lupanar». Naquele salão de ópio. Nos templos. E acabam por ir dormir num hotel repleto de «babas», «junkies» e pequenos traficantes.

    Estiveram no Malaysia Hotel, reputado pelos anúncios «dramáticos» que inundam as paredes sujas e gastas. «Doente, triste, sozinha, sem um tostão, precisa de remédios e de uma injecção contra a cólera. São, pelo menos, x bahts, digamos 13 dólares. Helena. Estou no quarto 209.»; ou «vendo bilhete charter barato contra 10 cigarros de cavalo e 100 dólares.»

    Ou foi talvez no Patpong. É indiferente. Banguecoque, para quem dispõe de meios reduzidos, é o «flash» permanente. Mesmo para o tipo mais «cool» do mundo.

    Em cada esquina surgem propostas «aliciantes» para todos os gostos. Faz-se «deal» por toda a parte. Ora é uma dose de «cavalo» ou de «brown sugar» do melhor na loja de um ex-GI. Ora é o espectáculo mais «sexy» da cidade: imaginem para que serve uma garrafa de coca-cola, ou uma miúda de 11 anos disposta a tudo no único «waterbed» do bairro.

    people sitting on chair near store during night time
    Banguecoque. (Foto: D.R.)

    Neste universo fantástico, mirabolante, de dimensões quase inimagináveis, dois jovens portugueses são apenas dois minúsculos pontos negros.

    Márcia e Luís não são «junkies». Ou, pelo menos, não é nessa condição que vão para Banguecoque. A Tailândia representa para eles um punhado de dólares. Um quilo de heroína pura — ainda que comprada para outrem — corresponde a 10 quilos de produto comercializável em Lisboa. Vale, pelo menos, 45.000 contos. A «heroa» pura é misturada com sacarose e/ou estricnina. Rende o que rende e o que der a qualidade, mas no «mercado» português a proporção é de 10 para 1. Números redondos, quando foi presa em Banguecoque, Márcia «pesava» mais de 20.000 contos.

    Só que comprar a mercadoria na capital tailandesa, para além de ser mais caro, é perigoso. A polícia revista os quartos de hotel e chega mesmo a levar consigo a droga que quer lá encontrar. A multa varia em função da nacionalidade e do sexo. Até os motoristas de táxi chegam a levar directamente o cliente à esquadra mais próxima. E é inconveniente não esquecer os encontros de passagem: uma prostituta é sempre um denunciante potencial, a troco de uma comissão de 50 bahts (1 baht = 3 escudos) por grama confiscado, dizem os conhecedores.

    Por isso, Márcia e Luís partem para Chiang Mai. 24 horas após o regresso a Banguecoque é o choque da detenção. E a necessidade psicológica de se convencerem que a jogada ainda tinha uma hipotética solução. A menos grave. E, logo a seguir, o vazio completo. Salvo um cheiro tremendo a urina e duas tigelas diárias de arroz infecto. Com bichos, em forma de complemento, sofisticado. Um, dois, sete dias e nada…

    (Foto: D.R.)

    A ligação do triângulo

    A última colheita de papoila branca foi excelente no Triângulo de Ouro, uma zona com 220.000 quilómetros quadrados, que cobre o norte da Tailândia, o norte do Laos e o norte da Birmânia. E isto, apesar da «guerra do ópio» desencadeada pelos homens da Border Patrol Police tailandesa contra o «Rei do Triângulo» e chefe da Shan United Army, o exército de libertação dos Shan, Mister Shan Khun Sa (que controla 75% do tráfico) e os seus 4.000 homens. A produção de ópio teria atingido em 1982 as 600 toneladas (em vez das 200 de 1980), que representam mais de 90 milhões de dólares no mercado americano.

    Khun Sa, personagem digno dos melhores romances de aventuras, é um mistério. A sua idade ronda os 49 anos. O local do nascimento é uma incógnita. Ou quase. A tese da província de Yunnan, no Sul da China, que ele teria abandonado em 1949 depois da vitória comunista, é a mais plausível. O que é certo é que Khun Sa apareceu na zona do Triângulo de Ouro na década de 60. Era o chefe de um grupúsculo que reclamava a independência dos Estados Shan (no Nordeste da Birmânia) e lutava contra as forças birmanesas. Um rebelde político? Um visionário? Um defensor de uma causa?

    O único objectivo de Khun Sa era ser o «Padrinho» incontestado do Triângulo de Ouro. A região pertencia nesse momento a um general chinês, Wen Huan, cujas tropas, verdadeiros destroços das 4ª e 5.ª divisões do Kuomintang (exército nacionalista que se opôs a Mao), que se refugiaram no Norte da Tailândia, depois de serem derrotadas pelos comunistas chineses. Khun Sa desafia os «Senhores da Guerra»: ataca as caravanas de ópio protegidas pelo exército de Wen Huan.

    Violência, detenções, acordos secretos com generais corruptos acabam por fazer a fortuna de Khun Sa. Em 1977, ele é incontestavelmente o Rei do Ópio. Controla 10 refinarias de heroína na fronteira entre a Tailândia e a Birmânia. O  seu mercado é enorme: Estados Unidos, Canadá, Austrália e, bem entendido, a Europa. O seu poder aumenta. As suas provocações também. Dá entrevistas, faz libertar um dos seus homens na prisão de Banguecoque…

    drugs, addict, addiction
    (Foto: D.R.)

    Os americanos, que pretendem desorganizar as culturas, aconselham os tailandeses a porem a cabeça de Khun Sa a prémio: 25.000 dólares. O Rei responde «pondo a prémio a cabeça dos agentes americanos». Um deles é abatido. A DEA entra em pânico.

    Em Outubro de 1981, o primeiro-ministro tailandês, General Prem, avista-se com Ronald Reagan em Washington D.C.. Nesse mesmo dia, as agências noticiosas anunciam que as autoridades tailandesas tinham atacado uma caravana com 200 mulas carregadas de ópio escoltadas por 700 homens de Khun Sa.

    Os Estados Unidos, inquietos com as proporções da vaga mundial de droga, acentuam as pressões sobre os tailandeses. Tentam utilizar no Triângulo de Ouro a mesma estratégia que adoptaram na América Latina em relação à cocaína. Fornecem dinheiro, helicópteros, armas e apoio humano. E assim inicia-se mais uma fase da guerra contra a droga, que abrange todos os continentes. Tanto o pequeno dealer como o grande traficante são procurados. E nem sempre na rede vêm os «tubarões».

    Hoje, o Rei do Ópio está de novo em fuga. As autoridades não conseguiram, contudo, apanhar um único grama de heroína no seu acampamento, com piscina, hospital e perto de uma dezena de laboratórios — que foram destruídos. Nove outros ainda estariam em actividade no sul do país. Neles trabalham antigos oficiais do exército chinês, reconvertidos no ópio e na luta anticomunista.

    Neste universo fantástico, mirabolante, de dimensões quase inimagináveis, dois jovens portugueses são apenas dois minúsculos pontos negros. Sigamo-los.

    O inferno tailandês

    Ao fim de uma semana que durou séculos, Márcia e Luís foram enviados para o enorme complexo prisional de Banguecoque: Bangkhen. Aí, foram separados. Entretanto, as autoridades tailandesas contactaram a Embaixada de Portugal, em Banguecoque. O processo começa a correr. O diário «Bangkok Post» publica uma curta notícia sobre a prisão dos dois jovens. As famílias são avisadas do sucedido.

    Os dois traficantes portugueses são julgados no tribunal de Banguecoque  em 20 de Setembro de 1982. Nada ou quase nada foi dito no decorrer da audiência. Neste tipo de processos a sentença já vem muitas vezes escrita antes do julgamento. Márcia e Luís viram as suas penas reduzidas. A condenação à morte inicialmente proferida transforma-se — por razões jurídicas diversas — em 50 anos de prisão maior. Pouco tempo depois, nova e última redução de pena: 25 anos, a pena mínima na nova legislação tailandesa. No código anterior teriam apanhado apenas 10 anos…

    Mas, 15 dias após o julgamento, em princípios de Outubro, Márcia é chamada à Procuradoria da República. As autoridades desejam aumentar a pena. Esta acção é sistemática desde que iniciaram as negociações sobre os tratados de repatriação. Quatro anos de permanência nas cadeias tailandesas é o tempo mínimo para que um estrangeiro possa ser repatriado. Estrangeiro, sim, mas só se for francês ou americano. Os italianos e os nossos vizinhos espanhóis estão em negociações com vista à adesão à proposta que foi adoptada (a francesa). O Canadá também estaria a negociar a assinatura de um tratado semelhante. Portugal, por estranho que pareça, ainda não tomou qualquer iniciativa concreta.

    Inexplicavelmente — e ao contrário do que sucede com as outras representações diplomáticas de países europeus em Banguecoque — Portugal não tem sequer um serviço de acompanhamento dos cidadãos nacionais detidos nas cadeias tailandesas. Márcia só tem apoio médico, apesar da gravidade do seu estado físico e psicológico, porque o médico da Embaixada de França está na disposição de a assistir a título humanitário sem qualquer retribuição.

    O mesmo já não se pode dizer dos advogados. Para defender a prisioneira portuguesa, a família de Márcia teve de recorrer aos serviços da Embaixada da Grã-Bretanha, que indicaram o advogado responsável pela defesa da jovem portuguesa. Com a diferença de que, aqui, os serviços não foram gratuitos.

    As prisões da Tailândia, sabe-se, são terríveis. Os depoimentos da rapariga a um familiar que a visitou no Verão passado, confirmam-no.

    Na cela de Márcia encontram-se exactamente 25 mulheres. Duas delas são estrangeiras, as outras são tailandesas, acusadas de homicídio, roubo, crimes políticos, delito comum. Na prisão, vivem 36 estrangeiras. Os maiores contingentes são de americanas, francesas, italianas, espanholas e até uma austríaca.

    Em virtude das péssimas condições de vida e da corrupção existente, a heroína nunca falta na prisão. Muitas vezes é o próprio chefe da secção, o Building Chief, que traz a droga para vendê-la a bom preço às prisioneiras que ainda possuem algumas notas. As outras viram-se para o Romilar — um medicamento preventivo contra a tuberculose — em doses industriais: 20 comprimidos para uma curta evasão daquele espaço asfixiante, sob todos os pontos de vista. Tensão psicológica elevada. Forte disciplina. Distanciação cultural e  idiomática. Temperatura que chega a atingir, no Verão, os 45º, com uma taxa de humidade de 98%.

    No «negócio» participa toda a gente. Os guardas são naturalmente vendedores. De heroína, em primeiro lugar, já que uma onça de pó dá para 20 doses engarrafadas, coisa para durar 10 dias a quem tivesse dinheiro para tanto. Só que o dinheiro é coisa que não abunda, enquanto não chega o vale de correio enviado pela família. Sobrevive-se com empréstimos a juros que chegam a ser de 300%; e aos maus pagadores, esquecidos ou ignorados pela família, resta a hipótese dos trabalhos menores — a limpeza das retretes, por exemplo.

    A família de Márcia envia-lhe regularmente dinheiro e encomendas com géneros alimentícios. Segundo os regulamentos de disciplina da prisão de Banguecoque, nenhuma detida pode receber mais de duas remessas por mês.

    Nestas condições, corrupção é a vida. Não ter dinheiro significa basicamente confrontação com a realidade, descida ao inferno. Muitas vezes, ao fim da viagem está a morte, ou pior: a loucura.

    Uma carta escrita na prisão em francês, para que a censura compreenda. (Foto: D.R.)

    Excerto de uma carta de Márcia

    “Não é sempre que há uma pessoa condenada à morte e quando penso que era EU!!!!”

    “Vai fazer 6 meses que estou aqui. A minha saúde está boa, mas tenho febre todos os dias desde que estou aqui. Este clima põe-me inconfortável. É muito pesado o tempo todo! E os meus nervos, há dias em que gostaria de desaparecer e porque não deixar-me levar para o país onde reina a loucura. É possível que os malucos sejam mais felizes se não derem conta daquilo que os rodeia…”

    Reza a história que um «dealer» alemão ficou mudo. Agredia os colegas e comia os próprios excrementos. Os guardas, fartos das extravagâncias do ocidental, levaram-no de rastos para a enfermaria. Partiram-lhe os dentes com os casse-têtes. Injectaram-lhe uma boa dose de Valium e deixaram-no morrer. São casos idênticos que amaldiçoam os sonhos dos presos. Com ou sem «trip»…

    Diferenças de interpretação

    Márcia e Luís (este último está hoje numa prisão fora de Banguecoque) são acompanhados pelas respectivas famílias. Márcia, desde Lisboa. Luís, de Macau, para onde foi viver a sua mulher. Assim está menos longe dela. Mas ambos os presos são acompanhados também pelo Cônsul português em Banguecoque, um goês, que está há 18 anos na Tailândia. «Por razões humanitárias», disse à ABC o representante consular José de Sousa, não por uma questão de funções. Mas a sua margem de manobra é demasiado limitada. E como nos disse um familiar de Márcia, «há visita quando há». O Embaixador de Portugal em Banguecoque, Dr. Melo Gouveia, é de opinião diferente: «Márcia é visitada  periodicamente pelos funcionários. No último Natal, foram lá vê-la».

    As diferenças de interpretação entre o Embaixador e a família não são as únicas que existem relativamente a este caso. A nível do Estado português também haveria algumas divergências de pontos de vista, designadamente  no que respeita ao famoso acordo de repatriação. Se não, vejamos: no princípio de Novembro de 1982, o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Paulo Marques, deslocou-se à Tailândia para negociações comerciais, aproveitando a oportunidade para informar as autoridades Tai do interesse que Portugal teria em assinar o acordo. «Paralelamente, o responsável da pasta dos Negócios Estrangeiros, Futscher Pereira, manifestou grande interesse pela questão dos portugueses detidos», confidenciou à ABC uma fonte diplomática. Foram, então, dadas instruções nesse sentido ao Embaixador, mas até ao momento não se tem notícia de qualquer «démarche» do representante português em Banguecoque. «Não é o momento oportuno», declarou-nos, sem explicar as razões desta afirmação. Uma falta de iniciativa que pode ser explicada por uma «extraordinária» confiança no perdão real. Mas até hoje o perdão só foi exercido três vezes…

    Márcia está numa «situação dramática», diz em Lisboa a família. A jovem portuguesa sofre de anemia crónica e de febres; o corpo inchou-lhe desmesuradamente; a inactividade é praticamente absoluta; a sobrevivência pode ser uma questão de tempo: «É provável que não morra, pelo menos, este ano…», disse a ABC o irmão que a visitou em Bangkok.

    No entanto, em conversa telefónica com o jornalista, o Embaixador Melo Gouveia manifestou opinião contrária: o estado de Márcia é «saudável» e a prisão de Banguecoque «aceitável». Mas, se os presos resistem «bem», como diz o embaixador português, como explicar a morte, em 1979, de um rapaz português na Penitenciária de Banguecoque, antes mesmo de ser julgado? Aos 28 anos, José Cid foi apanhado, encarcerado, provavelmente torturado. Sabe-se apenas que morreu, que foi enterrado num pequeno cemitério da capital tailandesa, porque não apareceu ninguém a reivindicar os seus restos mortais.

    Se o anonimato de José Cid permitiu que até hoje a sua morte tivesse sido ignorada, a situação de Márcia, portuguesa, de 24 anos de idade, e de Luís, 23 anos, é diferente: para já, porque há coisas pouco claras em todo este caso. E depois, porque, qualquer que seja a culpabilidade dos dois portugueses, é difícil admitir que, com esta idade, o horizonte de dois jovens esteja reduzido à expiação de uma pena de 25 anos, algures, numa cadeia sórdida, no país onde a heroína faz, de há muito tempo a estar parte, o papel do vilão. E nem sempre os vilões são chamados à cena. Lá, como cá.

    NOTA POSTERIOR DE RUI ARAÚJO: Márcia, depois de ser libertada, foi viver para o Canadá. Luís terá falecido. Estará enterrado no Algarve. O advogado português que lhes encomendou o “serviço”, nunca foi incomodado…


    Reportagem originalmente publicada na Revista ABC, Número 3, em Fevereiro de 1983.


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  • Vida de cão

    Vida de cão


    As queixas de lisboetas relativas a problemas com cães, incluindo devido a dejectos na rua e também ao ruído, levaram o jornalista Rui Araújo a fazer uma reportagem sobre o tema, a qual foi publicada n’ O Jornal Ilustrado em 1989.

    Mas o que fica gravado na mente do leitor não são as queixas dos munícipes, mas o olhar de cães abandonados vistos pela lente de Inácio Ludgero, que generosamente disponibilizou as fotos originais para a republicação desta reportagem no PÁGINA UM.


    «O cão está a mijar-me na jante, mas se mando vir sou logo tratado de mafioso ou de facho… tá bem tá, isto é uma indecência, pá!»

    O rapaz até é capaz de ter razão. E não é o único revoltado. Há cada vez mais lisboetas a queixarem-se da chatice dos cães. Aos vizinhos e amigos. À PSP, à GNR e à Câmara. Cartas e mais cartas. Um rol de críticas e insultos.

    Um cão é algo estimulante. vivo, próximo.
    (Foto: Inácio Ludgero)

    O problema canino é, hoje em dia, uma das principais causas de protesto epistolar ao município. As mesmas críticas, os mesmos apelos… e as mesmas respostas à reportagem traduzem uma revolta generalizada. Há mesmo gente em situação desesperada. Muitas das missivas enviadas ao Departamento de Higiene Urbana e Resíduos Sólidos da Câmara Municipal de Lisboa já não denunciam apenas o chichi, o cocó, as doenças, o ruído ou o medo: «… no 2 dt.º habita uma senhora chamada Odete e um filho de 11 ou 12 anos em que têm desde há 4 anos um casal de cães, e agora desde uns meses para cá mais 2 cães filhos do casal que já tinha, portanto desde há 4 anos que habita esta casa, nunca levou qualquer dos animais a rua, fazendo estes todas as necessidades em casa, o que ocasiona além do ladrar e uivar a toda a hora, um cheiro horrível, o que torna impossível viver ali nessa situação. A Polícia já veio aqui pela 3.ª vez a meu pedido, julgando eu que a senhora resolveria as coisas sem grande problema, mas em vão, pois ela nem sequer abre a porta a ninguém. Numa altura em que as doenças desconhecidas como a CIDA (sic) e outras aparecem e desenvolvem—se em ritmo acelerado como as combater? Com uma higiene assim não se pode esperar outra coisa. (1) Termino pedindo…»  Ou fazendo sugestões.

    Porque também há quem as faça. Algumas são até bem imaginativas. «Porque não rebocar também os animais e as pessoas acompanhantes; quando andam pela Avenida de Roma e Rua Frei Amador Arrais a fazer aquelas porcarias? Montes de fezes de cães — ou cadelas, claro está — em plenos passeios, que quase não nos deixam espaço para pôr os pés. As crianças, então, espezinham tudo, que é nojento! Como se pode tolerar tais cenas…?»

    É verdade. Apesar de 10% das queixas recebidas na Câmara — na opinião de Manuel Boavida, responsável do Departamento de Higiene Urbana e Resíduos Sólidos da CML — não terem qualquer fundamento.

    Os funcionários da CML apanhavam os animais com estas redes…
    (Foto: Inácio Ludgero)

    Os cães devem estar a aumentar. À medida da cruzada anti canina. E ninguém sabe ao certo quantos rafeiros — do Alentejo ou não —, perdigueiros, caniches e demais bicharada canina existem por essa Lisboa fora. Um elemento do Instituto Nacional de Estatística (INE) confessa exasperado que contar os cães (era só o que faltava). A contagem do gado já dá um «trabalhão». Sondagens e estimativas, é coisa que não existe. A Câmara Municipal de Lisboa anuncia apenas 5 mil licenças em 1988. Os cães não licenciados e/ou não vacinados tanto podem ser 20 mil como 200 mil. É como as taxas da RTP… Mas pouco importa, agora. Não haverá assim tantos cachorros como isso. A única certeza é que o número de cães está directamente associado ao nível de vida. Daí que os países da Europa com mais cães sejam a França, a Grã—Bretanha e a Alemanha.

    O número de cães e gatos continua a aumentar.
    (Foto: Inácio Ludgero)

    Ai solidão!

    E as razões conscientes — ou não — para terem bicho? Os citadinos europeus têm cão por necessidade de companhia, snobismo, segurança ou aventura. É o que afirmam os psicólogos. É o que dizia McLuhan: as pessoas têm cão para relembrarem que também vivem… Pelo menos, nas cidades: num prédio de 15 andares é mesmo uma necessidade vital. Seja como for, por cá as razões serão as mesmas.

    «O desejo de adquirir um cão pode estar ligado ao consumismo: o cão torna—se então um objecto exibitório. A sua raça é importante», resume um psiquiatra do Hospital Militar de Lisboa. Mas há ainda outras motivações. «O cão funciona como algo que aumenta a segurança» e é conveniente não esquecer que para muita gente a presença do animal «anuIa a sensação de impotência social». É uma explicação. Não será porventura a única. Há também quem tenha cão por razões de tradição ou mais prosaicamente de eficácia. É o caso dos cães de guarda no campo. Joaquim Manuel Pedro, proprietário de meia dúzia de terras de cultivo dispersas lá para as bandas de Pernigem (Sintra) desde sempre teve cães de guarda. Cães de raça e agora rafeiros. Labuta fora. Os animais guardam casa e terreno. «A minha Paquita e o meu Pantufas são dos rafeiros mas para me guardar a casa serão até bem melhores do que muitos cães de raça», afirma sorridente, sem complexos, enquanto os animais saltitam à sua volta. Contentes. Com o repórter do outro lado do muro.

    Mas os cachorros podem significar mais do que simples elementos do modo de vida: uma imagem de marca. Carolina de Mónaco possui o Onyx, um pastor e a Tiffany, um Yorkshire, que as colunas sociais apadrinharam.  A pacatez lisboeta não vai, contudo, tão longe. Aníbal Cavaco Silva não tem, oficialmente, cão. Mário Soares idem. Torres Couto tem um cocker de um mês (ainda sem nome) que parece não ter. Só Carlos Carvalhas reconhece ter um animal.

    O cão é o companheiro dos tais laços profundos de dedicação. «E o cão pode ainda funcionar como o elemento anti—solidão, o filho, o companheiro tanto dos solitários como dos marginais, crianças e velhos, gente com genuína disponibilidade afectiva», acrescenta o psiquiatra. Um cão é algo estimulante, vivo, próximo. Os publicitários utilizam de resto extremamente bem essa imagem para nos convencer a comprar latas de comida, jornais ou tão simplesmente votar num general com cão emprestado para o efeito. Mas afinal onde termina a moda e começa a necessidade? O desenvolvimento dos cães na cidade poderia traduzir uma recusa da forma de sociedade — a da urbe. Mas se a tal existência harmoniosa é para muitos citadinos um mito não é menos certo que a cidade não está nada preparada para a presença de tantos animais domésticos: cães, gatos, pássaros, etc. E ninguém faz praticamente nada…

    A ineficácia das leis

    O Governo está, aparentemente, pouco preocupado com o fenómeno da proliferação dos cães nas cidades. E mais concretamente em Lisboa. A Lei Base do Ambiente (11/87 de 7 de Abril) é um extenso documento de 52 artigos. Ignora pura e simplesmente a questão da poluição canina. A legislação complementar (Artigo 51) necessária à regulamentação (eventualmente dos resíduos sólidos) será «obrigatoriamente» publicada no prazo de «um ano» a partir da data de entrada em vigor do diploma: 1987. Já lá vão mais de 2 anos e nada…

    Os avisos nos passeios de pouco ou nada servem.
    (Foto: Inácio Ludgero)

    Resta o Decreto—Lei 317/85 (2 de Agosto) (2), ou, por outras palavras, um insólito documento sobre Raiva, Abandono, Crueldade e Sevícias. Em teoria, as câmaras municipais «sempre que razões de salubridade ou tranquilidade da vizinhança o imponham, poderão determinar a remoção de quaisquer cães ou outros animais de companhia». É o artigo 10.º. É o mais problemático. Até hoje — e já lá vão mais de 3 anos — nenhuma ordem da Câmara foi cumprida… E ainda não há qualquer penalização por não acatamento da decisão da Câmara. Os homens da Câmara não podem entrar em casa dos donos ou detentores dos animais. Os recursos — possíveis — nem sequer chegam a ser elaborados. «Uma solução talvez possa ser o crime de desobediência», adianta Manuel Boavida sem grande convicção. É que o problema — esquecido até 1988 — não é de fácil resolução. Desde o princípio do ano a Câmara já instaurou uns 80 processos. A Polícia Municipal também terá alguns… Sem resultados concretos. Pelo menos até agora…

    O número de cães em Lisboa não será, apesar de tudo, preocupante. A gravidade da situação resulta sobretudo da inexistência de condições. A capital dispõe de 1.600 quilómetros de passeios cuja largura média ronda os 2,25 metros. O orçamento da Câmara Municipal para a limpeza urbana — resíduos sólidos— tem vindo progressivamente a aumentar no último triénio: 2.179.845 contos em 1985, 2.689.254 contos em 1986 e 3.932.723 contos em 1987 — últimos dados disponíveis (3). Estes valores reflectem as imputações de Despesas com Pessoal, Despesas Correntes e Despesas de Capital. Limpeza, limpeza… o dinheiro nem é assim tanto como isso.

    «A questão dos animais esteve adormecida durante largos anos e as verbas que nos são agora destinadas estão de acordo com aquilo que se fazia: muito pouco», comenta Manuel Boavida para quem o problema não é político mas técnico. E está decidido a pedir mais meios. Para limpar mais e melhor. E sensibilizar a população — à semelhança do que foi feito com os caixotes do lixo cor de laranja. Uma operação com algum sucesso.

    Pernas de carteiro, um petisco

    É um cálculo curioso. E impossível. Ninguém sabe quantas toneladas de resíduos sólidos e líquidos (de cães) são depositadas diariamente na via pública. Mas qualquer pessoa dirá quais os inconvenientes da negligência. Os mais infelizes poderão mesmo apresentar a factura da clínica ou do hospital onde foram tratados por terem sido mordidos ou vergonhosamente escorregado no cócó de cão. As companhias e o Instituto de Seguros ignoram a dimensão do drama. Até porque em Portugal «o fenómeno da responsabilidade civil ainda é um mito», como costuma dizer Vasco Pardal, um especialista de seguros. A esperança — também neste domínio — é 1992. Até agora não foi formulado um único pedido de indemnização. «Mas estamos a encarar a hipótese de ir mais longe através da criação de um seguro de vida para cães.» A sua instauração depende da prontidão com que o Instituto de Seguros de Portugal despache o pedido.

    As raras estatísticas existentes referem apenas as inesperadas aventuras dos carteiros dos CTT. Trinta e cinco carteiros acidentados por causa dos cães em 1988 — contra 45 no ano anterior. Consequências: 19 carteiros incapacitados ou 394 jornadas de trabalho perdidas. Os homens do giro apeado são injustamente as principais vítimas dos cães: 26. Os carteiros motorizados são muito menos maltratados: 5. A maioria dos acidentes teve lugar na via pública, Os cães preferem — visivelmente—os membros inferiores (25 agressões) e pouca apetência parecem ter pelo tronco…

    Os CTT criaram mesmo instruções para evitar problemas aos carteiros provinciais. «Os CTT podem determinar a suspensão da distribuição postal domiciliária em locais situados dentro de recintos vedados e protegidos por cães à solta que possam ameaçar a segurança dos carteiros». Esta medida tem sido pouco aplicada. Toda a gente sabe que os homens que não gostam dos cães parecem feitos de uma matéria seca e duvidosa…

    Um canil privado nos arredores de Lisboa…
    (Foto: Inácio Ludgero)

    Direito à vida

    E animais maltratados há muitos. Embora António Nunes, encarregado do canil municipal afirme que os animais sejam mais vítimas do desleixo do que dos maus tratos o facto é que as poucas posturas e leis são letra morta para muitos donos.

    Os portugueses seriam mesmo — na opinião de um veterinário da Linha — um dos povos que «pior» trata os cães. «Muitos nem sequer sabem educar e tratar dos filhos, quanto mais dos pobres dos animais…», conclui. Cães abandonados em autoestradas, atropelados e voluntariamente estropiados perto da Docapesca (Pedrouços), enforcados na linha de Sintra, envenenados ou abatidos a tiro.. uma triste banalidade.

    «Há os amigos dos animais e o amigo do animal», conta Francisco António da Silva, presidente da Sociedade Protectora dos Animais. O amigo do animal «quando lhe aparece um rafeiro pela frente prega-lhe um valente pontapé, dá-lhe uma chicotada, tira-lhe uma perna!».

    Alguns dos exageros da Sociedade Protectora dos Animais são confirmados nomeadamente pelas cartas recebidas na Câmara. «A inquilina do 1.º andar direito tem 5 corpulentos cães, sem quaisquer condições sanitárias tanto de higiene como de vacinação que não existe, provocando cheiro nauseabundo muito difícil de suportar dado que fazem todas as necessidades dentro da habitação. Alguns dos cães encontram-se bastante doentes» e a dona nada faz.

    A Sociedade tenta ajudar como pode. Mas os 3.000 sócios, os parcos meios também não dão para muito: um canil de 20 lugares na Barão de Sabrosa, alguma assistência jurídica e um centro de saúde onde uma consulta — de psiquiatria, ainda não as há em Portugal (4)— custa 300 escudos, uma extracção de dentes 140 escudos, uma amputação de dedos entre 70 e 170 escudos, um parto entre 300 escudos e 420 escudos. Para sócios. Os outros pagam um pouco mais caro. Mas será sempre mais barato do que nos raros canis privados existentes e logicamente sempre cheios — de Lisboa e arredores.

    São apanhados durante a noite, vão para os canis municipais, onde, se ninguém os reclamar dentro do prazo estipulado, morrerão por choque eléctrico ou com duas injecções.
    (Fotos: Inácio Ludgero)

    O Canil Municipal (Hipódromo do Campo Grande) apesar de decadente — a sua transferência já está prevista há mais de 10 anos — (5 ) também oferece alguns serviços clínicos como a vacinação anti-rábica ou a esterilização das cadelas. (6 ) Ou ainda a morte. Por injecção ou electrocução. Teoricamente, três dias depois de serem apanhados sem identificação. Ou 8 dias depois, para aqueles que trazem uma coleira. 28 cães para abater aguardam num pátio de cimento dividido em terreiros cúbicos com um metro. Há de tudo. Cães de raça e rafeiros. Animais velhos saudáveis e doentes. Animais novos. E Eduardo Figueiredo, tratador/apanhador.

    — O senhor trabalha aqui no canil…

    — Os prazos aplicados pela gente não são bem esses. O costume é só abatê-los 5 dobros (sic) depois da data prevista. Eu estou nos bichos há 20 anos. Sou até a favor que os bichos andem em liberdade…

    — Mas…

    — Eles têm o direito a viver como qualquer pessoa.

    — Mas quem os mata é o senhor?

    — Pois sou! Mas não gosto disto! Não gosto mesmo nada disto…

    (Foto: Inácio Ludgero)

    Os cães são apanhados sempre durante a noite. E são apanhados cada vez mais. Exactamente 1.273 em 1987 e no ano seguinte 1.379. Uma pequena percentagem é restituída aos donos: 197 em 1987 contra 253 em 1988. Os outros são abatidos. (7 ) Sempre às seis da madrugada. Através de choque eléctrico ou de duas injecções: uma para anestesiar e outra para provocar uma paragem cardíaca. Se não houver atraso ou ninguém os recuperar. . Momentos antes.

    Dona Maria Manuela: «As pessoas são ingratas, um animal nunca nos abandona.»
    (Foto: Inácio Ludgero)

    Melhores que as pessoas

    Maria Manuela, 59 anos, reformada, benfeitora da União Zoófila já recuperou muitos porque «matar os nossos melhores amigos é o crime mais horrível que se possa imaginar». Também não se conforma com o facto de os animais do canil apenas receberem uma refeição por dia.

    Apareceu mais uma vez no canil da CML para «salvar» um pastor alemão «velhinho e abandonado». Em casa tem um cão. Confessa que na sua rua apoia mais cinco ou seis animais «desprotegidos». Aproveita para lançar uma mensagem aos «homens de boa vontade»: «os portugueses precisam de alguma ajuda educacional para tratar bem dos animais. Gostam deles quando são pequenos. Depois, abandonam-nos. São atrasadíssimos… Devem tratar bem os cães!» Ouso perguntar se também ajuda pessoas.

    — Ajudar pessoas? Ora essa! As pessoas são ingratas. Um animal nunca nos abandona… São verdadeiros. Profundos. Amigos. Até têm uma alma se bem que diferente da nossa— segundo a teoria de S. Francisco de Assis.

    Só morrem quando nos esquecemos deles…
    (Foto: Inácio Ludgero)

    «Louvado sejas, ó meu Senhor, com todas as tuas criaturas». Cântico do Irmão Sol. S. Francisco de Assis. A lápide é peremptória. E no Cemitério dos Cães do Jardim Zoológico raras são as campas sem lápides a louvar a docilidade — a amizade — dos cães ou o Senhor. Lorde, Lady, Cracky, Paju, Pantufinhas, Palhaço, Faruk, Kimba, Boby «grande amigo jamais te esqueceremos», Lorde «amigo dócil e fiel, como tu não há, a nossa saudosa homenagem», Carocha «minha querida, a saudade não tem fim nos nossos corações, a casa está vazia, tudo nos fala de ti», Pushak (Born Saigon, Vietnam 10-1969. Died Lisbon, Portugal 1-1983».

    Há algumas campas em que o número do anonimato é quebrado por um cravo ou um malmequer de plástico. E se os cães tivessem alma? Mesmo sem ser no sentido teológico…

    Há quem se reserve o direito de acreditar que os cães têm alma e lhes reserve uma última morada condigna. (Foto: Inácio Ludgero)

    Acertar o passo

    Entretanto os cães lá se vão propagando apesar da acção do Munícipio. E da legislação inadaptada — Código Penal (o animal é uma “coisa”), Código Civil (propriedade) e Decreto—Lei 3 17/85. A esterilização não tem sucesso. A sujidade aumenta. Ao contrário do que sucede por essa Europa fora.

    Exemplos: campanhas de contracepção na Holanda e Noruega. Taxas específicas na Áustria, Bélgica e Suíça. Multas por poluição nos EUA (100 contos de multa por deixar o cão fazer cocó nos passeios de Nova Iorque) e, na Suíça… (Os «azulejos» para cães instalados nos passeios das Avenidas Novas em Lisboa tiveram um êxito relativo). A Islândia optou por uma solução deveras radical: baniu completamente os cães da capital. «A deportação maciça provocou ulteriormente a morte de muitos animais porque os exilados devastavam o gado». Outras políticas dissuasoras: a URSS adoptou uma severa taxa especialmente para cães — porventura por razões de penúria. Derradeira solução: em muitos países asiáticos como a China, Tailândia, Filipinas, Vietname (para não citar o caso de Macau) os cães são abatidos por uma questão puramente gastronómica.

    Toneladas de resíduos sólidos e líquidos (de cães) são depositados diariamente na via pública, apesar dos avisos, que se não dirigem, claro, aos caninos… (Foto: Inácio Ludgero)

    Cócó de cão, rasteira traiçoeira…

    Soluções? Até agora em nome do interesse geral (ou talvez mais prosaicamente dos votos) ninguém teve vontade e coragem para contrariar os proprietários. Agir. O responsável do Departamento de Higiene Urbana e Resíduos Sólidos da CML afirma que não tem de se «limitar a apanhar cães». É preciso fazer mais. Dispor de uma legislação coerente. Sensibilizar rapidamente a população e técnicos — através de uma operação conjunta da Associação dos Municípios, Direcção-Geral da Pecuária e da Liga Portuguesa dos Direitos dos Animais. Apelar para a responsabilidade das pessoas. Para que não sejam uma vez mais os animais a pagar o preço da nossa inconsciência cultural. Como dizia um «chien» francês: «Lâchez-nous les pattes!» (Deixem-nos em paz…).

    O JORNAL ILUSTRADO n.º 749 – 30 de Junho a 6 de Julho de 1989
    (Foto: Inácio Ludgero)

    CUIDADOS

    Os animais são nossos companheiros, devemos tratá-los bem e respeitá-l0s. Não abandone o seu cão ou gato, eles são seres vivos que sofrem. Mesmo quando for de férias, se não os puder levar consigo, peça a um amigo que cuide deles ou instale-o num hotel para animais. e deveres

    E DEVERES

    Registe os seus cães e tire a licença na Câmara Municipal da sua residência. Coloque a chapa metálica na coleira. Caso o seu cão se perder e os serviços da câmara municipal o apanharem, o proprietário será rapidamente contactado. Desparasite e vacine os seus animais. Dê—lhes condições de higiene e de habitação. Mais vale ter um animal bem tratado de que vários mal estimados.

    No canil municipal de Lisboa há vacinas à disposição de todos os cães. Foto: Inácio Ludgero

    ILEGALIDADES

    «Amarrar aos cães (…) objectos que os mortifiquem e façam correr (…), e bem assim lançar fogo a animais, untando—os com petróleo ou verter sobre eles substâncias corrosivas, água quente, etc…». DL 5864.

    «Para evitar o bárbaro processo de envenenamento empregado frequentemente na extinção dos cães vadios, e para incutir no sentimento público o respeito pela vida de todos os seres: manda o Governo (…) recomendar às autoridades competentes que, quando seja necessário a extinção de cães vadios, se usem meios rápidos e suaves, em recintos apropriados e ocultos» . DL 3512.

    «É proibido ao pessoal empregado na apanha de animais de raça canina usar para com eles de maus tratos, e a sua apreensão será feita, sempre que seja possível pelos membros menos sensíveis, de forma a proporcionar-lhes o menor sofrimento» . CPM.

    «Considera-se como maus tratos aos animais (…) obrigar cães a acompanhar veículos em marcha». SPA.

    «O abandono de cães e de gatos por parte dos seus proprietários ou detentores, para além das sanções previstas neste diploma, constitui contra-ordenação contra a saúde pública e animal e de desprezo censurável pelos animais e como tal punível com coima de 1.000$ [escudos] a 200.000$ [escudos] a aplicar pela Direcção—Geral da Pecuária». DL 317/85.

    O abandono… (Foto: Inácio Ludgero)

    NOTAS:

    (1) Os cães podem transmitir ao homem doenças parasitárias — as mais frequentes — como a equinococose (quisto hidático) ou a ascanidiose (lombrigas) e doenças infecciosas como o tétano (mordedura ou arranhão) ou a raiva (irradicada em Portugal).

    (2) Rectificado no «Diário da República», 1.ª Série, n.º 251, de 31/10/85, 3.º sup.

    (3) Orçamento global da CML: 12.561.952 contos em 1985, 15.393.593 contos em 1986, 18.915.846 contos em 1987.

    (4) Os cães e gatos já dispõem, contudo, de cabeleireiro e manicure em Lisboa. Psiquiatra para cães, só nos EUA. Professor de yoga para gatos, só no Japão. Restaurantes macrobióticos ou vegetarianos para cães, só nos EUA.

    (5) Há 3 anos foi lançado o processo visando a empreitada de recuperação. Já se pensava nessa altura na construção de um novo canil adaptado às realidades caninas. A opção foi feita: Monsanto, onde foram efectuadas as terraplanagens. A Comissão de apreciação das propostas está neste momento a apreciar o projecto que prevê um canil — hotel para cães e gatos, incinerador, pavilhão de quarentenas, laboratório e centro médico—veterinário. Ao todo, uns 80 lugares contra os 50 do actual canil. Tudo depende agora da burocracia. De qualquer modo os prazos adiantados pela Câmara para a sua concretização parecem altamente utópicos.

    (6) As cadelas não esterilizadas sofrem um agravamento (20%) da taxa camarária.

    (7) Foram ainda apanhados mortos 1 101 cães em 1987 e 1287 em 1988.


    Reportagem originalmente publicada n’ O Jornal Ilustrado n.º 749 – 30 de Junho a 6 de Julho de 1989, da autoria de Rui Araújo com fotografias de Inácio Ludgero, a quem o PÁGINA UM agradece a autorização de republicação.

    NOTA POSTERIOR DE RUI ARAÚJO: Inácio Ludgero teve a a amabilidade de me facultar os originais das fotos de ilustração. O meu bem-haja a um grande Senhor da Fotografia com quem tive o prazer de trabalhar.


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  • Mórmons estão a microfilmar os arquivos portugueses

    Mórmons estão a microfilmar os arquivos portugueses


    O Governo português autorizou a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias – ou Sociedade Genealógica do Utah – a microfilmar os assentos paroquiais dos portugueses. Mas esta autorização foi legal? Quais são as suas implicações para os portugueses?

    Uma reportagem do jornalista Rui Araújo publicada na Revista ABC, em Dezembro de 1983 (com fotos actualizadas).


    O carteiro, habituado às deambulações oficiais, entra no n.º 23 da Avenida António Serpa, em Lisboa, e deposita na caixa da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias uma carta dirigida à Sociedade Genealógica do Utah.

    «A Sociedade Genealógica do Utah está autorizada a microfilmar os assentos paroquiais dos arquivos distritais, referentes a baptismos, casamentos, óbitos, e outros registos de fundo genealógico, do período compreendido entre as datas mais antigas e o ano de 1900».

    Este poderia bem ser o texto do ofício enviado em 19 de Julho de 1979 pelo então Secretário de Estado da Cultura, David Mourão Ferreira, à seita religiosa norte-americana, em resposta a um pedido nesse sentido.

    Mas, afinal, em que ficamos? Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias ou Sociedade Genealógica do Utah? Seita religiosa ou instituto de estudos genealógicos?

    Entrada do ‘Granite Mountain Records Vault’, localizado nas montanhas que rodeiam Salt Lake Valley (Estados Unidos) (2010). (Foto: D.R.)

    De facto, o pedido dirigido à Secretaria de Estado da Cultura fora feito pela Sociedade Genealógica do Utah. Mas a Sociedade é apenas um instituto criado pela Igreja, a forma institucional assumida pelos mórmons.

    Hoje, passados três anos, os mórmons já microfilmaram os registos dos distritos de Aveiro, Évora, Faro, Leiria, Portalegre, Setúbal e Viseu. Estão a negociar os últimos detalhes relativos a Lisboa.

    E, dentro de alguns meses, todos os portugueses com mais de 82 anos, bem como os seus antepassados, (pelo menos estes) terão a sua ficha na fita magnética de um computador instalado em Granite Mountain, Salt Lake City, Estados Unidos.

    E porquê? A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias — ou a Sociedade Genealógica do Utah — dizem utilizar os microfilmes para «funções de tipo cultural», embora não tenha havido qualquer referência prévia ao facto de que os dados obtidos constituem parte importante de um ficheiro computorizado.

    «Funções de tipo cultural»: para que, como nos disse o responsável americano da Igreja em Portugal, Harold G. Hillam, cada pessoa possa reconstituir a história da sua vida. «Os Profetas antigos da Bíblia guardavam suas histórias e nós devemos considerar os registos do Passado como Sagrados», adiantou Hillam, num português ainda tímido.

    Vantagens dos cidadãos portugueses? As que resultam do facto de, dentro de alguns anos, os portugueses terem «a possibilidade de obter a sua genealogia, porque vivem num país onde a liberdade religiosa é uma realidade.» — acrescenta Hillam.

    Harold G. Hillam. (Foto: Imagem capturada de um vídeo de um sermão proferido em Abril de 2005)

    Porém, as operações de microfilmagem custam muitos milhões de dólares. O dinheiro vem das caixas americana e alemã da Igreja Mórmon. São, aliás, técnicos da RFA que estão a dirigir os trabalhos em território português. Os filmes impressionados são imediatamente enviados para a sede da seita, em Salt Lake Ciry, onde serão revelados. O original vai para o cofre da montanha e a cópia (excepto em alguns casos) para o arquivo de origem.

    «Na minha opinião, é a história do pobre e do rico», disse à ABC a Conservadora dos Arquivos do Distrito de Viseu, Dra. Maria Fernanda Mota, uma das raras pessoas que em Portugal têm conhecimento do assunto.

    Mas se esta história «é positiva, em alguma medida, para os arquivos nacionais — dado o estado de penúria em que se vive — não é menos verdade que há elementos subjectivos para além dos que estão no contrato, e o interesse do Arquivo não seria certamente idêntico ao da Sociedade Genealógica do Utah».

    Elementos subjectivos? E quais? A Conservadora não o disse, mas é possível analisar alguns, mais adiante. Em todo o caso, a «ofensiva» mórmon já atingiu praticamente o conjunto da Europa Ocidental e, seguramente, a Polónia. O que coloca algumas perguntas: afinal, quem são os mórmons? Ou, por outras palavras: Quais os seus objectivos?

    Uma funcionária a converter microfilme para formato digital no ‘Granite Mountain Records Vault’ (2011). (Foto: D.R.)

    Era uma vez uma vez um adolescente visionário…

    A história dos mórmons é, ao mesmo tempo, uma Epopeia lírica e uma aventura de «cowboys». O desafio lançado pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias começa numa manhã primaveril de 1820, quando um jovem camponês, Joseph Smith, tem uma rara visão: Joseph isolara-se uma vez mais num bosque perto de Palmyra para, «sob o olhar vigilante de Deus», meditar sobre as disputas entre as várias formações religiosas e a sua adesão a esta ou aquela doutrina.

    Dois anjos apareceram diante dos seus olhos. Foi-lhe «dito» que não se unisse a nenhuma igreja, porque todas estavam «erradas». Os credos eram «abomináveis» e os mestres «corruptos». Anunciaram-lhe que seria chamado para «reconstituir a Igreja Cristã Primitiva na sua integralidade», uma vez que esta tinha perdido a Verdade.

    Um dos anjos volta a surgir exactamente três anos depois. Desta vez revela-lhe algo deveras surpreendente. «Disse que havia um livro despotiado, escrito sobre placas de ouro, acerca dos antigos habitantes deste continente, assim como sobre a origem da sua precedência», escreveria ulteriormente Smith.

    Depois de uma terceira visão, em 1827, Smith recebeu as duas pedras mágicas que lhe davam o conhecimento necessário para poder traduzir o Livro de Ouro.

    «A tradução foi concluída em 1829. O anjo veio então recuperar as pedras mágicas e as placas de ouro. E é por essa razão que nunca ninguém as conseguiu ver, excepto um fazendeiro e dois colegas amigos de Smith, futuros membros da ainda inexistente Igreja Mórmon.

    A partir daqui, a história das primeiras décadas da Igreja Mórmon é a história de uma quase interminável migração.

    Como a Igreja Mórmon precisava de uma base geográfico-política para ser reconhecida, o Profeta decretou a edificação de «um Estado teocrático dirigido pelos dignatários da Igreja assistidos pelo clero, formando um governo descendente de Deus» e com um poder real.

    Profetas e fiéis partiram do Estado de Nova Iorque com destino ao Ohio. Chegam a Kirtland em 1831. Mas a simpática povoação será, no fim de contas, apenas uma etapa. Apesar da criação de uma Estaca. O destino reservara-lhes outros êxodos.

    Foram para o Missouri. Mas lá, o nortista era um homem suspeito. E suspeito era o mórmon. Que aparecia com teorias revolucionárias. Com idealismos. Em suma, era um anti-esclavagista…

    No Inverno de 1833/34 é dada a ordem de partida. Conseguem chegar a Independance, mais tarde denominada Nova Jerusalém. Mas voltam a ser expulsos. Vão para Oeste e criam a cidade de Far West. E, desta vez, são as revoltas internas que põemem causa a paz da comunidade. Agitação. Desordem. E nova partida para longe.

    Em nome do ideal fundam Nauvoo. E eis que Terra Prometida lhes dá por fim acesso ao Estado teocrático sonhado. Com o poder executivo, legislativo e judiciário. Com uma universidade e um templo. Comum exército comandado pelo guia supremo da Igreja, Joseph Smith, que, por  falta de inimigos, vai dedicar o seu tempo à organização espiritual. Aquela que ainda hoje está em vigor.

    À cabeça da Igreja está o «Presidente, Profeta, Vidente e Revelador». Ele é assistido por dois conselheiros. As visões são aceites pelo «Conselho dos Doze Apóstolos», responsável da obra missionária mundial. Em seguida, há os sete presidentes do «Conselho dos Setenta», criado em Fevereiro de 1835.

    O credo mórmon decretado por Smith não foi modificado. Tal como Moisés, o Profeta Smith constituiu a sua «Tábua da Lei».

    (Foto: D.R.)

    E Deus criou a poligamia

    Joseph Smith era, sem dúvida alguma, um visionário. Com algumas particularidades: por exemplo, de Deus «recebeu» a obrigação de introduzir, na casta Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, nada mais nada menos que a poligamia. E ainda hoje há quem diga que aquela revelação era dos diabos…

    Emma Hele é talvez a «culpada» da visão do Profeta. Emma, uma mulher bonita e inteligente, era a esposa de Smith. O marido apontava-lhe um único defeito: a sua falta de apetite. Sexual, está claro. Emma não conseguir jugular a grande sensualidade do marido.

    O mórmon que se respeita diz que a poligamia (denominada oficialmente «casamento plural») foi criada para garantir a existência da colónia e contentar as mulheres, que são em número superior ao dos homens.

    As más línguas sustentam que, como Smith não tinha bastante ousadia para ultrapassar, tanto as tentações como o terror do adultério, decidiu um dia fazer um apelo a Deus para o livrar de todos os escrúpulos possíveis.

    E quem espera, sempre alcança… No dia 12 de Julho de 1843 teve uma visão sobre a «Eternidade do Convénio Matrimonial e do Casamento Plural».

    A argumentação da Igreja relativamente a esta questão é um excelente pedaço de antologia místico-macho-sexual. Senão, vejamos: «Durante anos, depois de ter conhecimento de tal doutrina através da revelação Divina, Joseph sentiu-se impossibilitado de pô-la em prática ou ensiná-la a outros. (…) Muitas mulheres teriam de viver e morrer solteiras, privadas da oportunidade de desenvolvimento proporcionado pelo casamento. (…) Os melhores membros da Igreja e as melhores pessoas do Mundo surgiram através do casamento plural».

    Smith aconselhou, portanto, os seus discípulos a seguirem as leis do Senhor. E eles obedeceram. Por Brigham Young, o sucessor de Smith, homem de acção e de muitas mulheres que, curiosamente, contribuíram de forma significativa para a sua fortuna.

    Estátua de Joseph Smith e Hyrum (Illinois, Estados Unidos). (Foto: D.R.)

    Joseph Smith e o seu irmão Hyrum faleceram em 1844 na cidade de Nauvoo no decorrer de uma manifestação antipoligamista. Os mórmons partiram para perto do Lago Salgado, no ano de 1847. Durante 22 anos, vão criar as bases de um estado independente: o «Deseret» (abelha), que será integrado na União em 1850, depois da construção da via férrea do Pacífico, sob o nome de Território do Utah.

    A poligamia viria a ser retirada das obrigações religiosas por imposição da lei federal e por decisão do Profeta Young em 1890. Mas 65 anos depois, alguns dissidentes excomungados restabeleciam a poligamia no México e nos EUA. Com algum sucesso, aliás.

    Seis homens telecomandados pelo Papa dissidente Ervil Le Baron, chefe de um grupo polígamo, mataram no dia 10 de Maio de 1977 o seu rival do Utah, Alfred Vernon, fazendo sete viúvas e trinta crianças orfãs. Na cidade de Colorado, no Estado do Arizona, a Polícia teria descoberto recentemente mais de 5 mil homens polígamos.

    Mas se é verdade que a poligamia desapareceu quase por completo da comunidade ortodoxa mórmon, que se desenvolveu rapidamente e tem hoje cerca de 6 milhões de membros espalhados pelos cinco continentes (com uma taxa de crescimento de 150 % desde 1963), não é menos certo que ser mórmon em 1982 é ser ainda, em larga medida, machista.

    A esposa virtuosa deve ter, pelo menos, 5 filhos. Deve ficar em casa e efectuar todas as tarefas caseiras. A feminista Sonia Johnson foi excomungada em Dezembro de 1979, ao pôr em causa determinadas regras impostas às suas congéneres, como a necessidade de serem boas mães. Boas vizinhas. Boas donas-de-casa. E virgens antes do casamento.

    Uma fonte de poder

    Honestos, metódicos e rigorosos por natureza os mórmons têm boas situações e representam uma força política importante, sobretudo nos Estados Unidos. Eisenhower teve um ministro mórmon. Kennedy, idem. Nixon, três.

    «Ainda não há de momento nenhum ministro mórmon em Portugal…», confidenciou-nos o Presidente Hillam. Sorrindo. E tem de quê. A adesão dos portugueses à Igreja mórmon está em progressão. Em Novembro de 1975, data da sua instalação no nosso país eram uns seis. Hoje, são mais de 6 mil. E dois milhares de pessoas aderem cada ano à Igreja. São, na sua maioria, médicos, advogados, e algumas pessoas de origem mais modesta.

    O Irmão Xavier, 22 anos, natural do Porto, solta um «Puxa Vida» e retira a folha da máquina de escrever. É mórmon há três anos. Antes, era empregado de escritório e estudava à noite. Andava a tirar um curso de «Artes do Fogo« na Escola Soares dos Reis. Deixou a terra, a família, o emprego e a religião católica, «por amor à mesma religião, mas por melhores princípios».

    «Contactaram-me na rua. Depois, assisti a sete palestras e aderi à Igreja. Embora os meus pais não compreendessem a minha atitude, devo dizer que o mesmo não aconteceu com os meus dois irmãos que também já cá estão», contou-nos o Irmão Xavier, antes de inserir outra folha na máquina. «E se os meus vizinhos não são mórmons é porque é difícil deixar de fumar e de beber…», concluiu.

    Se o mormonismo sobreviveu depois de tantas peripécias e acabou por se desenvolver de forma tão notória em muitos países, não foi devido unicamente à sua arte de comunicar a palavra de Deus. Há também o «sucesso da colonização do Utah (onde 75 % da população é mórmon), o trabalho, a riqueza e uma vida familiar digna», como afirma uma especialista francesa.

    O Templo de Kirtland (Ohio, Estados Unidos) foi o primeiro templo construído pelos mórmon (Foto: D.R.)

    A taxa de divórcios no Estado do Utah é a mais baixa dos EUA; a delinquência juvenil a mais reduzida. A taxa de frequência escolar e universitária é das mais elevadas do país. A Universidade Brigham Young, em Provo, no Utah, com 15 mil estudantes, é a maior universidade norte-americana pertencente a uma igreja.

    Mas a Igreja Mórmon representa também um poder financeiro indiscutível. É muito rica. Os seus rendimentos anuais ultrapassam os mil milhões de dólares, só com os 10 % dos ordenados anuais dos membros. A Igreja possui ainda 160.000 hectares de terrenos, uma grande parte dos prédios de Salt Lake City, 383 milhões de dólares nas companhias de seguros, um jornal, várias revistas, 11 estações de rádio, 2 canais de TV, uma sociedade de produção de açúcar, acções num grupo de grandes armazéns, etc, etc.

    Em Portugal, o orçamento dos mórmons deve atingir centenas de milhares de contos. E como a Igreja não paga impostos e pouco gasta com o seu pessoal e instalações, como e onde é investido o dinheiro? Com que finalidade? Perguntas às quais não obtivemos qualquer resposta. Constantemente nos vimos confrontados com uma forma de segredo, que não é mais, afinal, do que a defesa «instintiva de toas as instituições contra o olhar do próximo». A seita parece ignorar o direito à Informação… concreta. Porque, quanto aos dados histórico-metafísicos, aí sim, ela é pródiga em detalhes.

    Bem-estar, sobrevivência e salvação

    18:10. Avenida Gago Coutinho, em Lisboa.

    Um dos 33 centros da Igreja em terra portuguesa. Três garotos brincam no átrio do palacete do número 93. Um cântico invade a obscuridade.

    Alguns dos 2.000 mórmons residentes em Lisboa assistem neste 13 de Novembro, um domingo, a mais uma reunião da seita. Depois do Hino e da Oração há o programa do Bem-Estar. Criado há alguns anos atrás para garantir a sobrevivência dos adeptos, «sobretudo em relação ao Governo». Na realidade, em relação à guerra.

    «O programa é tão bom que o governo americano estaria neste momento em negociações com a Igreja Mórmon com vista à adopção do Plano de Bem-Estar», diz-nos o Irmão Amorim, um jovem brasileiro mórmon.

    «Plano de Bem-Estar significa independência. Felicidade. Em primeiro lugar, a família é responsável pelo seu auto-sustento. Em segundo, é a Igreja».

    Mas o Plano de Bem-Estar, nesse domingo, é também a evocação dos Estados Emocionais, a Tranquilidade, o Armazenamento (de víveres), a Sobrevivência em qualquer situação, os homens do deserto, e… uns cantares e danças.

    Movimento messiânico (puro), o mormonismo anuncia para amanhã («ou depois de amanhã») o regresso de Cristo e prepara os seus membros para afrontar o Juízo Final. Em dados concretos, os mórmons como, sobretudo, muitos norte-americanos, vivem condicionados pelo medo, pelos novos medos. Como a ameaça atómica, por exemplo. Ou como a guerra, toda e qualquer espécie de guerra.

    Perante as ameaças de um mundo exterior, hostil e militarizado, como é possível alcançar a Salvação?

    «Quem crer e for baptizado será salvo; mas quem não crer será condenado». São Marcos. 16:16. O Presidente Hillam fecha o livro sagrado e desenvolve a ideia: «As pessoas têm de ser baptizadas pela Autoridade, mesmo os mortos, porque o que é essencial é a família».

    Hillam, meio businessman, meio padre (elegante) de província, insiste. Faz perguntas. «Se Deus é justo, o que vai acontecer às pessoas que não foram baptizadas ?» Silêncio. O monólogo continua. «Deus disse que sem baptismo não há Salvação. Por isso, nós devemos ter as informações sobre as pessoas».

    Perante o nosso pedido para gravar as suas declarações, Hillam desculpa-se com a má qualidade do seu português. E ataca de novo. Jesus volta à baila. «No tempo de Jesus, foi ensinado que nós temos uma responsabilidade para com os nossos antepassados. Cremos profundamente que eles são importantes e que não devem ser esquecidos».

    Esquecidos pela Igreja Mórmon? Hillam limita-se a dizer que não serão obrigatoriamente baptizados pelos mórmons. Então por quem? A reposta evasiva não faz sentido. «Por outras igrejas…»

    Surge então a questão das pessoas que não têm o seu nome nos arquivos existentes. Hillam replica como dever para todos os que «estão» nos arquivos. E sublinha uma frase do «Nosso Pai Celeste»: «Faz o que podes fazer». E os católicos? E os muçulmanos? E os ateus? Estarão interessados em ser baptizados, mesmo postumamente, pelos mórmons?

    Em plano século XX, os meios tecnológicos disponíveis facilitam o trabalho dos mórmons. Já ninguém se lembra de copiar pacientemente, linha após linha, os milhares de livros de registo civil existentes nos arquivos portugueses, desde que a obrigatoriedade do registo foi decretada em 1532.

    Por isso, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, ou, directamente a Sociedade Genealógica do Utah, recorrem ao microfilme e, inevitavelmente, à computarização dos dados. Os objectivos parecem ser transparentes: são de natureza religiosa. Mas, nesse caso, porquê utilizar o nome de uma sociedade subsidiária da Igreja que constitui a sua razão de ser? Ou, inversamente, se a Sociedade Genealógica do Utah é um instituto cultural, como articular a sua actividade com os objectivos confessionais proclamados pelos mórmons?

    David Mourão Ferreira (1985). (Foto: D.R./António Duarte/Museu do Fado)

    A operação de microfilmagem dos arquivos e registos portugueses foi autorizada em 1979, pelo então Secretário de Estado da Cultura, David Mourão Ferreira. Mourão Ferreira fazia parte do Governo de Mota Pinto, mas quando o seu despacho relativo à pretensão da Sociedade Genealógica do Utah foi lavrado, em Julho de 1979, o escritor limitava-se a assegurar a gestão dos negócios correntes, já que o IV Governo perdera a confiança da Assembleia da República.

    Três anos depois, contactado por ABC, David Mourão Ferreira diz não se recordar desse despacho, nem das circunstâncias em que foi lavrado. Provavelmente, o secretário de Estado terá aposto a sua assinatura sobre uma informação de serviço que lhe foi preparada por um funcionário da Direcção-Geral do Património, hoje Instituto Português do Património Cultural.

    Aparentemente, a dúvida que se levanta é saber porque razão foi o Património chamado a informar sobre a pretensão dos mórmons. Mas é certo que o requerimento se referia apenas à microfilmagem dos registos «referentes a baptismos, casamentos, óbitos, e outros registos de fundo genealógico, do período compreendido entre as datas mais antigas e o ano de 1900». Tratar-se-ia, portanto, de uma investigação de natureza histórica, que só em muito pequena parte atingiria cidadãos portugueses ainda vivos.

    Gráfico de linhagem: só para fins culturais?
    (Foto: Documento em português dos mórmons)

    Algumas interrogações

    Acontece, porém, que nos registos paroquiais se assentam acontecimentos importante da vida do cidadão, para lá do nascimento. Concretamente: no registo é averbado o casamento, o que significa, desde logo, que os mórmons têm neste momento facilidades duplas duplas na identificação de todos os portugueses com mais de 80 anos — pelo menos. E, como de todos os actos públicos sujeitos a registo podem ser extraídas certidões, a pedido de qualquer interessado, logo se vê como qualquer investigação sobre cidadãos portugueses vivos pode ser feita a partir dos dados básicos recolhidos pela Sociedade Genealógica do Utah.

    Vejamos mais de perto o processo. Desde que são microfilmados os registos qual é o percurso seguido pelos microfilmes? Tomemos o exemplo do Arquivo Distrital de Viseu. As relações entre a Sociedade Genealógica do Utah e o Arquivo de Viseu estão regulamentadas num contrato-tipo «para a autorização da microfilmagem de documentos com interesse genealógico». O contrato é um extenso documento de 13 artigos, nos quais se estipulam minuciosamente condições, destino e contrapartidas à operação contratada.

    Um corredor no interior do ‘Granite Mountain Records Vault’ (2011). (Foto. D.R.)

    Aí se lê, no artigo 3.º, que a Sociedade Genealógica do Utah se obriga «a revelar por conta própria os microfilmes, nas suas instalações de Salt Lake City, Utah, ou em outro local sob a sua direcção, e compromete-se a guardar, preservar e conservar os negativos nos seus depósitos de Granite Mountain». Por outro lado, o artigo seguinte refere que a Sociedade fornecerá um duplicado da matriz de microfilme ao Arquivo Distrital que é parte contratante.

    Qualquer nova cópia só poderá ser fornecida pela Sociedade a outras pessoas ou instituições, mediante autorização da Direcção do Arquivo Distrital. Mas numa notícia datada de 27/08/80, redigida em inglês e distribuída aos órgãos de informação nos Estados Unidos, diz-se que na Biblioteca Genealógica de Salta Lake City existem microfilmes de arquivos de 37 países, «equivalentes a 4.927.000 volumes impressos de 300 páginas cada um, estando 157.000 volumes genealógicos disponíveis para investigação privada, quer de membros quer de não membros da Igreja». A investigação é feita com recurso a um centro informático onde se recolhem, devidamente tratadas, todas as informações recolhidas em microfilme. Em que medida é que uma interpretação extensiva destes dados não permitirá pôr em causa a reserva estabelecida no artigo 6.º do contrato tipo?

    No Arquivo de Viseu, as operações de microfilmagem estão hoje praticamente concluídas. Os últimos 12 livros foram fotografados ainda muito recentemente, mas o Arquivo já recebeu parte dos duplicados previstos no artigo 5.º do contrato. Que vai o Arquivo fazer com esse material? A Conservadora do Arquivo, Drª. Maria Fernanda Mota, diz que de momento, «não existe nenhum leitor de microfilmes» em Viseu. Os rolos de película estão armazenados nas instalações do Arquivo, em condições que estão longe de ser as melhores para a preservação de material desse tipo. «A casa já tem alguns séculos», confessou a Conservadora.

    E a Constituição Portuguesa não proíbe?

    As operações de microfilmagem foram efectuadas em Viseu por uma equipa de três pessoas, entre as quais um cidadão brasileiro. Dos microfilmes arquivados em Salt Lake City serão ulteriormente feitas cópias de trabalho para utilização da Sociedade — ou da Igreja — em Portugal.

    As fichas reproduzidas nestas páginas são fornecidas a quem as solicitar. Se, por exemplo, uma pessoa deseja conhecer informações «genealógicas« sobre outra, basta-lhe pedir. A resposta, dada pelos computadores, é lavrada nas fichas, editadas pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.

    Como se vê, para lá das informações relativas à identificação do cidadão, constam espaços para dados sobre cônjuges, ascendentes e descendentes. Ora, se o acesso a esses dados é livre, a partir das instalações de Salt Lake City, e se deles é extraída cópia para utilização em Portugal, não é difícil nem exagerado afirmar que há pessoas que sabem ou que podem vir a saber tudo sobre a árvore genealógica, a ascendência, descendência e a vida civil de qualquer leitor de ABC.

    (Foto: Documento da seita)

    A preocupação com o destino dos dados recolhidos não é gratuita. Em França, por exemplo, ainda recentemente se levantou a questão de saber se as operações de microfilmagem deveriam continuar a ser autorizadas. Embora a decisão das autoridades francesas não tenha sido tomada, sabe-se que Henri Caillavat, presidente da Comissão Informática e Liberdade, está disposto a recomendar às autoridades que os arquivos franceses continuem disponíveis para a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, pelo menos, durante mais cinco anos.

    Caillavat manifestou-se «satisfeito» com as informações que lhe foram dadas, após uma visita realizada em 14 de Setembro às instalações e ao centro da informática dos mórmons, em Salt Lake City.

    Reportagem na revista ABC. (Foto: D.R.)

    Um último aspecto: se ninguém até hoje conseguiu distinguir entre o que são objectivos culturais e objectivos religiosos, talvez seja conveniente, para os mais esquecidos ou menos atentos, uma leitura do Art.º 35 da Constituição da República Portuguesa: «A Informática não pode ser usada para tratamento de dados referentes a convicções políticas, fé religiosa ou vida privada, salvo quando se trate de processamento de dados não identificáveis para fins estatísticos». Em que ficamos?

    Para um constitucionalista, que solicitou não ser identificado, «o problema fundamental — uma vez que os dados não são directamente referentes à fé religiosa — é o da legitimidade do fim.»

    Falta saber, portanto, se o fim é legítimo em face dos princípios: se não há violação da dignidade da pessoa (artigo 1.º da Constituição); nem dos princípios relativos à liberdade religiosa. «Baptizar as pessoas independentemente da sua vontade pode ser considerado um acto irrelevante como uma ofensa à liberdade religiosa», acrescentou o constitucionalista.

    De qualquer modo, cada cidadão português poderá perguntar à Igreja Mórmon e/ou à Sociedade Genealógica do Utah qual a finalidade destas operações. Mas, desde já, resta uma declaração e vontade: Rui Araújo, cidadão português, não está interessado em ter, agora ou no futuro, os dados pessoais num computador (de uma seita) — ainda que para fins de investigação cultural. Mais: desde já se declara que o jornalista não quer ser baptizado, ainda que postumamente, pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.


    Reportagem originalmente publicada n Revista ABC, em Dezembro de 1983 (com fotos actualizadas).


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  • Da Rússia com amor: Os diplomatas expulsos, espiões e os outros que se seguem…

    Da Rússia com amor: Os diplomatas expulsos, espiões e os outros que se seguem…


    A invasão da Ucrânia pela Rússia, iniciada a 24 de Fevereiro de 2022, levou a uma vaga de expulsões de diplomatas em vários países — incluindo Portugal. Não foi a primeira vez.

    Viagem pela história recente, pelo jornalista Rui Araújo.


    O governo português expulsou 10 “funcionários” russos considerados “personæ non gratæ” no passado dia 5 de Abril de 2022. O ministro dos Negócios Estrangeiros, João Cravinho, considerou que foi “a decisão adequada” porquanto desenvolviam actividades “contrárias à segurança nacional” que eram “contraditórias com o seu estatuto diplomático”.

    A expulsão de, pelo menos, 394 russos nos países ocidentais desde o início da invasão da Ucrânia, em Fevereiro de 2022,  é sobretudo uma operação concertada dos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e da União Europeia (UE).

    Com efeito, 24 dos 30 Estados membros da OTAN expulsaram agentes secretos russos. Alguns Estados europeus, que não integram a organização (como a Suécia, a Áustria ou a Irlanda), fizeram o mesmo.

    A expulsão de diplomatas genuínos e de espiões (permitida, aliás, pelo Artigo 9.º da Convenção de Viena desde 1961) não é inédita, mas esta é quantitativamente a mais importante desde o final da Guerra Fria.

    A anterior ocorreu em 2021. A República Checa expulsou 63 diplomatas russos. Os oficiais dos serviços de Informações estão associados a duas explosões num paiol de munições, que fizeram dois mortos.

    Em 2018, os EUA e seus parceiros da OTAN expulsaram dezenas de diplomatas e espiões russos depois de Moscovo ter recorrido a substâncias químicas (agentes nervosos) para assassinar o agente duplo, Sergei Skripal, ex-coronel do serviço russo de informações militares GRU, e a sua filha, em Salisbúria (Grã-Bretanha).

    Os serviços britânicos associaram este caso ao homicídio, em 2006, do ex-agente do KGB (denominado FSB em 1995), Alexander Litvinenko, que foi assassinado com polónio-210 (radioactivo), em Londres.

    Foram, então, expulsos mais de 150 oficiais de Informações em 20 países.

    O MNE não divulga a identidade nem a natureza das actividades dos 10 russos expulsos de Portugal, denominados propiciamente “funcionários”. Também não se pronuncia sobre uma eventual retaliação russa (expulsão de diplomatas portugueses em Moscovo).

    Tanto a embaixada da Federação da Rússia (Lisboa) como o ministério russo dos Negócios Estrangeiros (Moscovo) não responderam às perguntas da CNN Portugal.

    PORTUGAL 1982

    É a maior vaga de expulsões que teve lugar em Portugal. No espaço de três meses, em 1982, o governo da Aliança Democrática (AD) exigiu a “partida antecipada” de 16 diplomatas da então URSS e de outros países do Leste.

    A Europa expulsou nesse ano 25 dos 34 representantes da União Soviética acusados, então, de espionagem. Um ano depois, em 1983, este número subiu para 148.

    21 “diplomatas” do Leste foram obrigados a deixar Portugal entre Abril de 1974 e 1982 ao abrigo do artigo 9.º da Convenção de Viena. URSS, 12; RDA, 3; Polónia, 3; Checoslováquia, 2 e Cuba, 1.

    Flagrante delito de espionagem – A Leste nada de novo…

    Lisboa, Abril de 1980.

    Igor Alexandrovich Evlampiev, Tenente-Coronel da Força Aérea e Adido Militar da União Soviética, estaciona o Citroën CX prateado na Avenida 5 de Outubro, em Lisboa. A mulher, Nelly, e o neto acompanham-no. Depois de verificar que não está a ser seguido, Evlampiev atravessa a artéria e penetra com a família no supermercado Pão de Açúcar. Depois das compras, o casal regressa ao apartamento na Rua Eiffel, número 15.

    O espião Igor Evlampiev e Nelly, a mulher, em Lisboa. (Foto: D.R.)

    Evlampiev volta a sair. Para evitar ser seguido — e quiçá por uma questão de hábito — opta pelo itinerário menos directo. Começa por um passeio na zona da Feira Popular. Em seguida, mete-se no carro e desaparece. Cerca das 19:30, abandona o veículo e dirige-se a uma das paragens de autocarro de Entrecampos. Ao fim de um quarto de hora, muda de lugar. Entra no supermercado Modelo e queda-se entre portas, a olhar para o exterior. A seguir, dá mais uma volta. Entra no automóvel e regressa a casa.

    Foi muito certamente para reconhecer um local ou avistar-se com algum “contacto” e o encontro falhou… — conclui um seguidor da Divisão de Informações (DINFO) do Estado-Maior General das Forças Armadas (EMGFA).

    Passada uma semana, Evlampiev vai de novo às compras com a família ao mesmo supermercado. Enquanto Nelly e o neto enchem o carrinho de compras, Evlampiev passeia com ar preocupado. Procura detectar eventuais seguidores, em vão.

    Apesar do peso dos anos, o espião soviético (nascido a 24/9/1928) sobe as escadas até ao primeiro andar, sem grande esforço, carregando os sacos. Espreita pela janela e sai cinco minutos mais tarde. Deambula pelas ruas da capital mais de meia hora e estaciona o carro no mesmo local da semana anterior. Dirige-se à mesma paragem da CARRIS, os olhos pregados no relógio. Está adiantado. Pelo sim pelo não, dá uma volta à praça e mergulha na boca do metropolitano da Avenida da República. Desce até ao cais e dá meia volta.

    O espião Igor Evlampiev: duas vezes no mesmo local em dias certos. (Foto: D.R.)

    Envolto numa samarra castanha, um português de meia idade, conhecido do serviço de Informações, caminha a passos lentos, mas compassados, rumo a Evlampiev. Um militar da DINFO assiste à cena. Os dois homens disfarçam, mas têm encontro marcado. Ao cruzar-se, estacam e abraçam-se efusivamente. Aí, Evlampiev espalma a mão larga no ombro do seu “contacto” e obriga-o a mudar de sentido. Andam, assim, uma centena de metros até se separarem brusca e friamente. Esboçam apenas um discreto cumprimento de despedida e cada um segue o seu caminho.

    Evlampiev terminara a sua jornada de trabalho e até certo ponto a sua actividade em Portugal. Tinha sido apanhado em flagrante delito de espionagem. Cometera o erro de estar duas vezes no mesmo local em dias certos. O excesso de confiança é imperdoável, sobretudo para uma alta patente do serviço militar de informações GRU.

    O espião foi, entretanto, promovido a Tenente-General e destacado para Paris. Exerceu as funções de Adido Militar. Foi a sua terceira presença em terras de França (1960-1964, 1969-1974 e depois de 1980), acompanhada de perto pela Direction de la Surveillance du Territoire (DST), a contra-espionagem francesa e a DINFO, entre outras.

    Em 1982, o governo da AD expulsou 16 diplomatas de países do Leste (oito da ex-URSS e outros tantos do Bloco do Leste) por razões que os militares consideraram politicamente correctas, mas tecnicamente erradas. 

    Com efeito, os 16 agentes estavam “marcados” assim como os seus respectivos contactos enquanto que os inevitáveis substitutos implicavam o recomeço de todo o processo de investigação e localização.

    Aeroporto da Portela, 4 de Maio de 1982: os “diplomatas” checos abandonam Portugal. (Foto: ANOP)

    Contra-espionagem – uma operação dos checos

    Corre o mês de Fevereiro de 1982. 

    Os “diplomatas” checos Jan Janik e o seu adjunto Ladislav Kolackovsky instalam-se, tranquilamente, no Grande Hotel Batalha, no Porto, e contactam pessoas ligadas ao PCP. Os dois homens recebem as “visitas” durante escassos minutos. Não lhes interessa perder tempo com palavreado inútil nem mendigar intimidades que sabem de antemão impossíveis.

    Os militares da Divisão de Informações (DINFO) do Estado-Maior General das Forças Armadas (EMGFA) que efectuam o seguimento, associam os encontros à situação política do momento e decidem apertar a vigilância. Os checos abandonam a capital nortenha na manhã seguinte e dirigem-se a Viseu, onde se instalam no Hotel Grão Vasco. Janik e Kolackovsky mandam chamar os seus “contactos” e a cena do Porto repete-se.

    Os checos não estão contentes com a forma com que a Greve Geral (marcada para 12 de Fevereiro, a primeira desde a Revolução dos Cravos) convocada pela CGTP (com a oposição da UGT) está a ser preparada. Fazem algumas “sugestões” práticas. Os planos existem. E são para ser seguidos à letra. Garantem que não há lugar para amadorismo e que já estão fartos de brincadeiras. A “palestra” é escutada pelos militares da DINFO.

    O embaixador da República Socialista da Checoslováquia, Jan Janik, e o seu secretário, Ladislav Kolackovsky, são expulsos de Portugal a 4 de Maio de 1982, considerados “personæ non gratæ”. Um motorista da delegação checa, Stanislav Kejmar, é aconselhado a sair do país nesse mesmo dia.

    Os checos tomam medidas de retaliação e expulsam de Praga o embaixador Baptista Martins.

    1982 — Nem todos os espiões são expulsos. O indivíduo de óculos à direita na foto é um deles. (Foto: ANOP)

    Um caso de espionagem que podia ter tido repercussões semelhantes ocorreu pouco tempo depois. 

    Dois outros “diplomatas” checos, o Adido Militar e Aeronáutico, Tenente-Coronel Vladimir Mohyla, e o seu adjunto, Major Vladimir Mitás, tentaram aliciar militares portugueses para obter documentos secretos da OTAN. Pertenciam à StB checa (Státní Tajná Bezpečnost), o departamento de segurança do Estado, mas…

    Portugal — o antigo paraíso dos espiões

    Portugal já não é o paraíso dos espiões da Segunda Guerra, mas ainda continua a ser um país aberto para muitos operacionais dos serviços secretos estrangeiros (incluindo os do Ocidente!) com cobertura diplomática ou consular e não só.

    “A Direcção da contra-espionagem do SIS é a DO 3, que sofreu mudanças significativas há uns anos, quando uma directora foi afastada a pretexto da sua mentalidade de Guerra Fria. Na DO 2 e na DO 4 também houve algumas mudanças…”, disse uma fonte ligada ao mundo das Informações que solicitou o anonimato.

    Segundo o SIS, “em Portugal, existem dois Serviços de Informações: o Serviço de Informações de Segurança (SIS) e o Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED)”. O SIS “atua em território nacional, contribuindo para a salvaguarda da segurança interna através da prevenção da sabotagem, do terrorismo, da espionagem (NDR: “clássica”), da criminalidade organizada, da proliferação e das ciber-ameaças, bem como da prática de atos que, pela sua natureza, possam alterar ou destruir o Estado de Direito constitucionalmente estabelecido.”

    Para o serviço português de Informações, “o reconhecimento da necessidade de criar um sistema de informações foi largamente influenciado pela sucessão de atentados registados em território nacional:

    • Em 1979 o atentado à Embaixada de Israel que se saldou em um morto e vários feridos;

    • Em 1981 o assassinato do adido comercial da Embaixada da Turquia por um comando arménio;

    • Em 1983 regista-se o assassinato de Issam Sartawi, em Montechoro/Algarve e em Julho desse mesmo ano um comando arménio ataca a Embaixada de Turquia, do qual resultam 7 mortos (NOTA: Uma história mal contada até hoje…).

    O referido contexto, coadjuvado pela primeira revisão constitucional, de 1982, pela extinção do Conselho da Revolução e pela subordinação do poder militar ao poder civil, bem como a publicação da Lei de Defesa Nacional tornaram-se factores decisivos para a futura criação de um sistema de informações nacional, que se viria a constituir à luz da Lei-Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa (Lei-Quadro 30/84)”.

    O SIS iniciou funções em Fevereiro de 1986, sob a Direcção de Ramiro Ladeiro Monteiro.

    Há quem questione, por exemplo, o facto de um serviço de Informações ter nas suas funções a pesquisa de dados sobre criminalidade organizada, independentemente da reconhecida qualidade dos seus homens e mulheres.

    A sabotagem, hoje, está, por outro lado, sempre incluída no terrorismo.

    Os objectivos da actuação do SIS baseiam-se num conceito OTAN com décadas.

    E depois do adeus – a retaliação continua

    A retaliação de Moscovo começou pouco depois das primeiras expulsões de agentes secretos russos do Ocidente.

    Foram considerados “personæ non gratæ” diplomatas da Alemanha, Bulgária, Holanda, Japão, Missão da União Europeia em Moscovo, Noruega, Polónia. A lista não é  exaustiva.

    Portugal é o país que se segue?


    Reportagem originalmente publicada na CNN Portugal a 6 de Maio de 2022.

    NOTA POSTERIOR DO JORNALISTA: A actuação do GRU e FSB em Portugal continua a ser uma realidade. Militares portugueses foram, aliás, alertados para a vulnerabilidade do país face a uma operação russa nos… 


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  • O veneno nosso de cada dia

    O veneno nosso de cada dia


    A segurança alimentar é uma preocupação actual e legítima. As substâncias químicas invadiram a nossa alimentação e estão na origem de muitas das doenças mais comuns dos dias de hoje. A comida que consumimos contém inúmeros ingredientes perigosos para a saúde.

    Em 2011, Rui Araújo e a sua equipa de reportagem da TVI foram ver o que se passa com os alimentos, nas hortas à beira das estradas, na agricultura intensiva, nas mercearias de bairro e nos hipermercados.

    Mandaram analisar dezenas de produtos alimentares e os resultados são surpreendentes.


    O cenário é bucólico, mas, lá ao fundo, do outro lado do prado verdejante, está o IC-19, uma das vias mais movimentadas da Europa. Liga Sintra a Lisboa.

    À beira da estrada, as hortas ilegais ocupam os taludes. Os remediados e os pobres do império — os mesmos de sempre — cultivam, aqui, tudo e mais alguma coisa.

    Tenho couve, tenho ervilha, tenho um bocadinho de cebola, tenho… — diz Manuel Semedo, horticultor improvisado.

    A prioridade é satisfazer as necessidades primárias.

    É bom para comer. É muito bom para comer. É… Isto é uma ajuda importante porque em vez de a gente andar a comprar e tendo no campo, dá para comer. Dá para o consumo da casa…

    Para muitos a sociedade de consumo é, no fim de contas, mais uma miragem do que outra coisa. As hortas de estrada contrastam com a aparência de prosperidade e de abundância generalizadas.

     — Uns, é para comer, que as reformas são poucas. Outros, é para vender. E outros são os que vêm roubar aquilo que os outros estão a cultivar. É isso que se passa, mas não é de agora. É de há muito tempo… — explica-me Álvaro Campos, morador, aqui, da área.

    Mas o engenho acarreta perigos. As couves galegas do IC-19, mas também as da Segunda Circular, da A-1 e da A-8 são perigosas para a saúde. Contêm teores elevados de chumbo e de cádmio..

    Os metais pesados — um dos principais problemas de poluição ambiental na cidade de Lisboa — são inalados e entram, por outro lado, na cadeia alimentar já que são absorvidos pelas plantas através das folhas e das raízes.

    A situação de metais pesados nas hortas urbanas é preocupante. Verificámos teores nos solos de metais como o crómio e o níquel, chumbo e cádmio elevados e prejudiciais para a saúde pública. — considera Hugo Silva, investigador do ISEL.

    O Instituto Superior de Engenharia de Lisboa monitoriza desde 1998 a presença de metais pesados em cinco pontos da capital.

    O choupo, uma árvore de folha caduca particularmente resistente, foi o primeiro bio-indicador da poluição na capital.

    Em 2006 achámos interessante estender este estudo a folhas de couve de hortas de beira de estrada. Posso dizer, em termos concretos, que determinámos teores de chumbo entre quatro a 10 vezes superiores àqueles previstos nas recomendações legais. — afirma Nelson Silva, investigador do ISEL.

    Os resultados das análises do ISEL são assustadores. Os valores legais são largamente ultrapassados, designadamente no IC-19 com um excesso de chumbo de 390%. Na Segunda Circular, o panorama é ainda mais preocupante: 1.025% a mais.

    A horta mais contaminada da capital é esta. Fica em Pedrouços, junto à Marginal e à bomba de gasolina. Os teores de chumbo e de outros metais pesados rebentam com as escalas.

    Há então, que regular um bocadinho essa prática de hortas urbanas, garantindo que são realizadas em locais que não apresentam perigos para a população. Ou seja: que as pessoas possam cultivar aí os seus legumes, o que é uma prática sustentável e muito louvável, mas também os possam comer em segurança. Portanto, sem correrem riscos de saúde. — declara Manuel Matos, outro investigador do ISEL.

    O problema é justamente esse. E as surpresas continuam à medida dos estudos. O ISEL comparou as couves galegas das hortas urbanas às da agricultura biológica vendidas nos supermercados. Os resultados das análises das couves biológicas do comércio são surpreendentes. Os metais pesados excedem em 153% os valores autorizados. Apenas garantem a ausência de pesticidas…

    «Não evitam a presença de poluentes transportados atmosfericamente nem a absorção pelas plantas de poluentes presentes nos solos como é o caso dos metais pesados.»

    As conclusões são do Instituto Superior de Engenharia de Lisboa.

    A indústria agro-alimentar e os grandes supermercados são, hoje, os principais responsáveis da comida contaminada que ingerimos. A variedade e a profusão actuais deixaram de significar qualidade. E muito menos saúde e bem-estar. Mandámos analisar dezenas de alimentos, aqueles que consumimos diariamente. As conclusões do laboratório são melindrosas, mas já lá iremos.

    Nós passámos de hábitos alimentares, que eram determinados sobretudo por aquilo que são os ciclos da natureza. Havia a época do tomate, a época da ervilha, a época de cada fruta, e isso condicionava e determinava as nossas escolhas alimentares. Hoje, não. Hoje, as crianças já não descascam ervilhas na casa dos avós. Hoje, as ervilhas é algo que se tira de um pacote do congelador e que se come. E, portanto, esta abundância de alimentos, esta disponibilidade o ano inteiro — alimentos de todas as partes do mundo —, fez com que o nosso padrão alimentar se alterasse. Nós temos acesso a todos os alimentos a preços cada vez mais acessíveis e isso, como é óbvio, não só modificou as nossas escolhas mas a forma de produzir esses alimentos. — diz o nutricionista Rodrigo Abreu.

    Telheiras, Lisboa.

    Mais uma sessão de esclarecimento no atelier de nutrição. O exercício proposto, aqui, é comporem uma refeição equilibrada e saborosa.

    Rodrigo Abreu, nutricionista.

    O que é que nós já estamos a ver? Que alimentos do mesmo grupo, vamos evitar misturar. Vamos evitar misturar o arroz com as batatas ou as batatas com a massa… O célebre bitoque com o ovo também vamos evitar misturar. O ideal seria nestes grupos escolhermos uma opção de cada… — aconselha o nutricionista.

    A preocupação desta gente é justificada. Uma alimentação saudável e equilibrada é essencial — comer bem para viver melhor, mas não chega.

    A resposta que se encontrou até agora, que a nossa civilização encontrou até agora, foi aquilo que chamamos os regimes intensivos, que recorrem a adubos, a químícos, mas também discute-se muito hoje a manipulação genética e outras formas de conseguir produzir mais alimento com menos recursos. Esse foi o caminho que nós seguimos até agora. Claro que chegados a este ponto e com muita da informação que nós temos acesso, hoje em dia, é legítimo questionarmos se este é um caminho a seguir, que outras alternativas é que há e que vias é que nós, enquanto consumidores, poderemos exigir quer à indústria, quer aos governos, quer à agricultura… — conclui o nutricionista Rodrigo Abreu.

    A produção agro-alimentar e não só coloca questões sérias de saúde pública. No espaço de 20 anos o número de cancros em Portugal aumentou 735%. Os dados são do Instituto Nacional de Estatística (INE).

    Os cancros estão a aumentar em todo o Mundo. Em Portugal também, é evidente. Nós temos várias razões. A primeira: aumentou muito a esperança de vida, isto é, as pessoas ficam cada vez mais velhas. O cancro, apesar de tudo, é uma doença das pessoas idosas. Melhorámos muito a nossa capacidade de diagnosticar cancros e, portanto, hoje em dia identificamos cancros que há aqui 15, 20 anos passavam desapercebidos. E depois, estamos convencidos que houve de facto uma modificação dos factores ambientais não genéticos. Isto é: nós, geneticamente somos o que éramos. Não mudámos nos últimos 50 anos. Houve factores ambientais que mudaram o Mundo. Mudou, por exemplo, a exposição ao Sol. E o Sol é muito bom, mas o cancro da pele aumentou extraordinariamente em todos os países desenvolvidos porque as pessoas se expõem mais ao Sol. Aumentou a obesidade e a obesidade é um factor associado à alimentação e, no fundo, a bebidas calóricas, etc. Aumentou porque nós, hoje, utilizamos muitos produtos quer na agricultura quer, por exemplo, nos cosméticos que são produtos que modificam as hormonas e que são, directa ou indirectamente, causadores de cancro. — considera o médico Manuel Sobrinho Simões.

    Manuel Sobrinho Simões, médico.

    A prevalência da pré-obesidade, do excesso de peso nas crianças portuguesas que atinge uma em cada três, é, hoje, uma das mais elevadas da Europa. A informação é da Plataforma Contra a Obesidade da Direcção-Geral da Saúde. Principais causas apontadas: níveis reduzidos de actividade física e padrões alimentares inadequados. A alimentação está na origem do desenvolvimento de muitas maleitas.  

    A alimentação das mulheres grávidas é muito importante para a formação dos bebés, nomeadamente os embriões e os fetos, que são extraordinariamente frágeis, em que as estruturas se formam em determinadas idade-chave, e se a mãe ingerir certos químicos que passam através da barreira feto-placentária, sobretudo aqueles que têm efeitos semelhantes aos das hormonas, essas alterações podem-se tornar definitivas. Podem, inclusivamente, dar origem a cancros, podem dar origem a malformações sexuais, podem dar origem a obesidade, podem dar origem a diabetes, podem dar origem àquilo que agora está na moda, que são a hiperactividade e o défice de atenção das crianças… — acrescenta Maria José Janeiro, médica pediatra.

    Os químicos também estão associados à diabetes, doença de Parkinson e de Charcot.

    «E aqui está: às sementes seleccionadas se ficam a dever muitas das searas magníficas espalhadas por esta terra de Santa Maria, que constituem um regalo para os olhos, aumentam as colheitas dos agricultores e são bons produtos de abastança para o povo português.»  

    In Documento cinematográfico do tempo de Salazar

    A lavoura já não é o que era. E os agricultores são as primeiras vítimas.

    Idalécia Ferreira era operária numa exploração de São Teotónio, Brejão. Era, porque foi obrigada a reformar-se aos 35 anos de idade por causa dos químicos. Foi em 1986.

    Idalécia Ferreira

    Trabalhei nos morangos, no tomate, no melão. Depois fiquei doente por motivos das químicas, que andaram com o helicóptero a dar as químicas por cima de nós. Eles diziam para nós fugirmos, mas quando diziam já não dava tempo porque o avião era mais rápido. E quando a gente sabia, já estávamos a ser atingidos. Depois começávamos com dores de cabeça fortes. Sentir mal. Tínhamos que acabar por ir lá para uma casinha que eles lá tinham, não é? Outras vezes para o hospital. E pronto. A partir daí nunca mais tive um dia de saúde. Tive que ir para Lisboa. Fiz vários exames em Lisboa. Foi-me detectado que era das químicas. Só respiro de um pulmão. E também tenho problemas de fígado. — lamenta-se a mulher.

    Idalécia Ferreira  não é um caso isolado. Há explorações que contaminam impunemente os solos e as águas e dão cabo da saúde das pessoas com fitofarmacêuticos, incluindo produtos químicos proibidos há décadas. E não estamos a falar de empresas de vão de escada. Uma multinacional aplicou em meados de 1997, pelo menos, um produto ilegal numa exploração de agricultura intensiva do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina.  

    Tive acesso aos documentos confidenciais do crime ecológico. E não só…

    «Confirmamos a aplicação de formalina no nosso campo perto de Azenha do Mar. Semelhante produto é susceptível de provocar graves problemas para a saúde pública, bem como efeitos muito nocivos na qualidade das condições ambientais.»

    Um autarca de Aljezur, que solicitou o anonimato, entregou-nos esta folha dactilografada. Denuncia crimes ecológicos, fraudes e compadrio, passados e actuais.

    «UTILIZAÇÃO DE PRODUTOS PROIBIDOS EM PORTUGAL PARA DESINFECÇÃO QUÍMICA DOS SOLOS.»

    «COLAGEM DE RÓTULOS SOBRE OS RÓTULOS DE ORIGEM NAS EMBALAGENS DE PRODUTOS QUÍMICOS.»

    «QUANDO ALGUMAS EMPRESAS SÃO FISCALIZADAS PELOS COMPRADORES ESTRANGEIROS HÁ PRODUTOS QUE ANTECIPADAMENTE SÃO DESLOCADOS PARA FORA DA ÁREA DA EMPRESA.»

    «CRIAÇÃO DE EMPRESAS SÓ COM FUNCIONÁRIOS ADMINISTRATIVOS SÓ PARA OBTER FUNDOS COMUNITÁRIOS.»

    Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. O lixo amontoado, os mamarrachos very-típicos e a agricultura intensiva poluem impunemente a paisagem e o resto. O novo plano do Parque é controverso.

    Isto é um plano de eco-palpites. É um plano de eco-patetices. E, na verdade, é. O que se espera também de um plano do Parque Natural é que corrija alguns problemas ambientais que o próprio Parque tem: a agricultura intensiva. O relatório ambiental do plano do Parque diz que a agricultura intensiva é desastrosa para a protecção dos valores naturais. Curiosamente, este plano vem incentivar mais a agricultura intensiva. — afirma Manuel Marreiros, presidente da Assembleia Municipal de Aljezur.

    As explorações agrícolas, aqui, proliferam à medida dos investimentos financeiros e do aumento da mão-de-obra escrava também ela de fora, mas o mais preocupante neste cenário terceiro-mundista em pleno Parque Natural é a saúde pública.

    As pessoas, é assim, vão morrendo aos poucachinhos, que não notam. É a falta… aquela pressão que nos encontra dentro. Não é aquele ar que a gente respirava antes. Eu acho que é isto que nos sente. Nós sentimos o que não sentíamos antes: aquele ar que a gente tomava e que, hoje, não existe… — testemunha António Dias, um reformado da região.

    Manuel Marreiros, presidente da Assembleia Municipal de Aljezur.

    Estes documentos confidenciais do ministério português da agricultura ilustram a deriva da agro-pecuária, ontem como hoje.

    Documento da Direcção Geral de Veterinária – Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas

    «FOI REALIZADA UMA COLHEITA DE FÍGADO DE BOVINO NO MATADOURO XXX EM TOMAR.»

    «OS MESMOS TÉCNICOS DESLOCARAM-SE AO MATADOURO XXX EM LEIRIA, ONDE RECOLHERAM A OUTRO BOVINO UMA AMOSTRA DE URINA PARA IDENTIFICAÇÃO.»

    «AS AMOSTRAS REVELARAM RESULTADO POSITIVO A CLEMBUTEROL NA PESQUISA A RESÍDUOS DE AGOSNISTAS BETA-ADRENÉRGICOS.»

    «A DETENÇÃO DE ANIMAIS PORTADORES DESSAS SUBSTÂNCIAS ESTÁ INTERDITA.»

    O Clembuterol é um estimulante poderoso do crescimento muscular, dá mais carne, retém quantidades anómalas de água. Dá, portanto, mais rendimento. É proibido dar esta substância a animais para consumo humano. Tolerância Zero. E entende-se. É perigoso para as pessoas. Provoca taquicardia, dores de cabeça, náuseas, dores musculares e pode matar: tromboses, ataques do coração e cancro, sobretudo dos órgãos genitais.

    Em Portugal, as primeiras intoxicações ocorreram em finais da década de 90, em Ourém.

    Dez pessoas internadas por causa da carne de borrego.

    Depois, foi em Aveiro. Uma família inteira intoxicada com fígado contaminado (com uma concentração de clembuterol “verdadeiramente preocupante) e mais tarde em Coimbra. Pai e filha deram entrada nos serviços de urgência dos Hospitais da Universidade. Tinham ingerido iscas de vitela com clembuterol.

    O processo corre termos no Tribunal Judicial das Caldas da Rainha.

    Mas há mais: O proprietário de uma exploração do concelho de Borba administra ilegalmente nitrofuranos – furaltadona aos coelhos que cria e engorda antes de os vender. Esta substância foi proibida na Europa já lá vão 10 anos!

    A Agência Internacional para a Investigação do Cancro (IARC) considera que é um agente potencialmente carcinogénico para humanos.

    Punição: uma simples coima.

    A Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) descobre numa sociedade agrícola da Rexaldia (Torres Novas) bovinos com substâncias beta-agonistas ou, por outras palavras, com anabolizantes. É criminoso administrar anabolizantes a animais de exploração, incluindo para aumentar  a massa muscular e diminuir a gordura.

    Mas nos químicos é que está o ganho. Mais coimas em perspectiva…

    Uma inspectora (médica veterinária) da Direcção-Geral de Veterinária identifica num matadouro da Trofa porcos acabados de chegar de Montemor-o-Novo com anabolizantes, obviamente proibidos.

    Em causa, um crime contra a saúde pública, um crime doloso contra economia e ainda um crime de fraude sobre mercadorias.

    Mais uma coima…

    A ameaça é real. Mesmo assim, o consumo de carne de suíno continua a aumentar, em detrimento da de bovino, mais cara. A ausência de escrúpulos e o sentimento de impunidade caracterizam a produção de carne em Portugal. A ausência de maturidade e de sentido crítico dos consumidores agravam a dimensão do problema.

    A Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto efectua há mais de três décadas trabalhos de investigação na área alimentar.

    Para analisar a composição de 15 alheiras de caça comercializadas o laboratório recorreu à PCR — a reacção em cadeia da polimerase —, uma técnica revolucionária de biologia que permite replicar segmentos específicos de ADN. Os resultados são peremptórios: 100% de adulterações.

    A Faculdade de Farmácia do Porto não descobriu uma única alheira de caça com um rótulo correcto e uma nem sequer rótulo tem.

    Duas etiquetas indicam alheiras com faisão. É falso.

    Um rótulo refere a presença de lebre. É mentira.

    Cinco mencionam a presença de perdiz, mas isso só é verdade num caso.

    Sete rótulos referem a existência de pato, mas em três pato nem cheirá-lo. Em contrapartida, todas as alheiras de caça têm carne de porco, mas nem todas o referem.

    Fomos, portanto, às compras. Ver para crer…

    Escolhemos um cabaz com parte daquilo que os portugueses consomem diariamente.

    É o primeiro retrato jamais realizado no país da exposição alimentar às substâncias químicas.

    Mandámos analisar a presença de metais pesados, de pesticidas e de micotoxinas no pão, queijo, arroz, atum, salmão, alface, tomate, alhos, pimentos, nabos, maçãs, peras, morangos e azeite num laboratório acreditado pelo Instituto Português de Acreditação (IPAC), que usa tecnologia de ponta.

    Os resultados dos ensaios — dois tipos de cada produto — revelam que um pão de cereais e maçãs da Grande Distribuição ultrapassam os limites impostos pela lei. A sua venda é proibida. Os pesticidas abundam.

    Estes compostos —Cimoxanil, Ciproconazol, Ciprodinil, Ciromazina, Clofentezina, Clorfenvinfos, Clorpirifos, Clorpirifos-metilo, Clortolurão, Diazinão, Diclorvos, Difenoconazol, Diflufenicão, Dimetoato, Dimetomorfe, Diurão, Epoxiconazol, Espinosade, Espirodiclofena, Fluquinconazol, Flusilazol, Fonofos, Fosalona, Fosfamidão, Fosmete, Heptenofos, Hexaconazol, Hexitiazox, Imazalil, Imidaclopride, Indoxacarbe, Iprodiona, Iprovalicarbe, Isoproturão, Linurão, Malatião, Mecarbame, Mepanipirime, Metacrifos, Metalaxil-M, Metamidofos,… — são desreguladores endócrinos e nefrotóxicos. Atacam os rins e provocam cancro…

    Mas vamos por partes.

    Os teores de Pirimifos – Metilo são, portanto, 500% superiores ao limite legal permitido para as sementes de linho.

    É ilegal vender este pão.

    Estas maçãs de origem nacional que comprámos no mesmo hipermercado contêm metais pesados, insecticidas, fungicidas e sobretudo Carbendazime.

    CARBENDAZIME NAS MAÇÃS:

    0,30 mg/Kg — ultrapassa em 150% o limite máximo permitido por lei.

    É ilegal vender esta fruta.

    O ATUM:

    O SALMÃO:

    O salmão contém quatro metais pesados e apresenta vestígios de DDT, um pesticida proibido em Portugal desde 1988. Pode provocar cancro!

    DDE (um derivado cancerígeno do DDT), Terbutilazina (um herbicida) e HCB (um fungicida).

    Não procurámos PCB e dioxinas, mas este estudo da rede internacional Health and Environment Alliance, divulgado há escassos meses confirma a sua presença no salmão.

    A lista dá para pensar…

    ARROZ BASMATI:

    No arroz basmati encontrámos Micotoxinas e Triciclazol — um fungicida proibido em Portugal e no resto da União Europeia.

    AZEITE:

    Nas duas garrafas de azeite de marcas diferentes detectámos Oxifluorfena, um herbicida.

    PERAS:

    MORANGOS:

    Aquilo que está aqui em causa não é a quantidade de químicos na cadeia alimentar (metais pesados, pesticidas, herbicidas, dioxinas, fungicidas e aditivos como o antioxidante BHA ou os corantes desnecessários), sem contar com os outros contaminantes (PCV, Bisfenol A —BPA —, compostos PVDF, PVC, Micotoxinas, etc.).

    O perigo é o cocktail de moléculas, o impacto da exposição permanente a substâncias quase indetectáveis de diversas origens.

    É a combinação insidiosa de venenos, mesmo em doses homeopáticas. A toxicidade aumenta com a interacção.

    É inevitável ingerir venenos, mas podemos resolver o problema. Dar uma volta e variar a nossa alimentação. E assim variamos os venenos e damos tempo ao nosso organismo de se libertar deles. Outra situação: muitas vezes não é necessário grande poder económico. É usar os peixes da nossa costa: sardinha, carapau, cavala. Os estudos feitos na nossa faculdade indicam-nos que é um produto que não está contaminado com metais pesados. Também não tem indicadores de contaminação como os PAH (hidrocarbonetos aromáticos policíclicos) e são um tipo de alimento económico e agradável e saudável por causa das gorduras Omega 3. — sugere Beatriz Oliveira, investigadora da Universidade do Porto.

    Diversificar os alimentos para reduzir os perigos sanitários é a solução para quem pode. Compete ao Estado emitir recomendações, designadamente, para proteger os mais vulneráveis e incitar, por outro lado, os produtores a alterarem radicalmente as suas práticas. Viver mata, mas é possível reduzir os riscos em matéria de alimentação. Pelo menos, podemos tentar…

    (As fotos que ilustram esta reportagem foram obtidas por captura a partir de imagem de Rui Pereira/TVI – 2011)


    Reportagem originalmente emitida no programa “Repórter TVI” a 12 de Setembro de 2011.

    Imagem de Rui Pereira e montagem de Carlos Lopes.

    Nota: Os dois links que a TVI disponibiliza com esta reportagem não permitem o seu visionamento, aparecendo, em vez da reportagem que passou na TVI, uma mensagem de erro em ambos os links.


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  • Crime sem castigo

    Crime sem castigo


    Três anos depois de um fogo em 1986 que vitimou 13 bombeiros e três civis — ainda hoje uma das piores tragédias causadas pelos incêndios rurais —, dois jornalistas do semanário O Jornal acompanharam as acções de combate na região Centro.


    Começa o Verão e o fogo desatina a doer.

    Rui Araújo atirou-se às chamas, e às causas delas. Aos meios de prevenção, existentes ou não. Esquadrinhou o cartório, à procura das culpas.

    Não há Verão sem que os fogos devastem hectares e mais hectares de floresta. E surge, irremediavelmente, a polémica de sempre: quem, afinal, tem a culpa? O facto é que as soluções para reduzir a dimensão da guerra do fogo existem. E não se limitam a uma questão de meios… ou de acusações inconsistentes.


    «É uma época estival fértil em fogos florestais». Esta, é a lacónica expressão dos técnicos. Já lá vai o tempo das longas metáforas sobre o penoso — e banal — psicodrama do fogo ou, mais prosaicamente, da guerra do fogo. É sempre a mesma coisa: condições climatéricas desfavoráveis, baixa humidade dos solos e alguma inconsciência das pessoas é quanto basta para que se desenhe o cenário rubro dos «rotativos», da desolação fumegante, imensa, dos olhares resignados. É o ritual do fogo.

    Capa da reportagem de Rui Araújo (texto) e Sofia Pinto Coelho (fotos)

    10 de Julho (de 1989) — Águeda, Região Centro.

    23:10.

    O bombeiro Raúl Fradique engata a «terceira». Desliga a sirene. Olha de soslaio para o comandante António Neves dos Santos — o chefe operacional da zona Centro — como que a confirmar implicitamente a iniciativa e prega os olhos na estrada de Sever do Vouga. O volume das comunicações rádio aumenta.

    — Não consigo vislumbrar o clarão! Mas vamos tentar apagar isto…

    — Isto é uma baralhada, pá. Vou passar a canal 3.

    O 2 está na mesma! Machado, estás à escuta? É para dizeres ao comandante de Sever do Vouga para estar aí no quartel para fazermos o ponto da situação

    A corrida continua. Veloz. Meia dúzia de casas do lado esquerdo da estrada. Mais à frente o café «Progresso» de portas trancadas.

    O painel «Carvoeiro». E o breu da noite, entrecortado por «flashes» azulados do «rotativo». O comandante Neves dos Santos baixa ligeiramente o som do rádio e mete conversa.

    — Ainda ontem tive dois fogos ocasionados por queimadas, que são proibidas. Mas demos cabo deles num instante…

    — E este fogo aqui na serra. Acidental ou criminoso?

    — É difícil saber se é criminoso ou não… A única certeza é que em mais de 90% dos fogos há intervenção humana…

    O rádio crepita. Há mais uma chamada. Urgente. As corporações de Vale de Cambra, Aveiro Novos, Aveiro Velhos, Vagos, Ílhavo, Oliveira do Bairro e Sever do Vouga já concentraram homens e material lá para as bandas do Lugar do Coval, Mouta, Campo de Arca e até Agros. O fogo está a avançar — e depressa — para a Serra do Arestal. A coluna de Águeda acelera.

    Início da reportagem de Rui Araújo publicada n’O Jornal Ilustrado. Foto: ©Sofia Pinto Coelho

    1986 nunca mais!

    O comandante Neves dos Santos controla quatro concelhos — 25% da área florestal com árvores de crescimento rápido — da Região Centro. Uma das regiões mais problemáticas do País.

    «Na noite de 13 de Junho do ano de 1986, sensivelmente pelas 22:00 declarou-se um foco de incêndio florestal próximo de São João do Monte, concelho de Tondela. Era o anunciar de mais um Verão em nada diferente dos anteriores. Mas não era simplesmente outro fogo florestal que desceria as encostas encrespadas na Serra do Caramulo para se extinguir às proximidades de Águeda». Uma área de 6.078 hectares foi rapidamente consumida pelas chamas e a calamidade tinha-se transformado em catástrofe: 16 bombeiros voluntários e civis tinham perecido. Resultado: a Câmara de Águeda elaborou a «anatomia da tragédia», efectuou um pedido de auxílio extraordinário à CEE e desenvolveu um sistema de prevenção ou de «Defesa Florestal Contra Incêndios». Um projecto piloto que está a ser aplicado unicamente na freguesia de Castanheira do Vouga. Dada a sua limitação, novos fogos eclodiram numa serra propícia à devastação das chamas.

    Intenso parcelamento da propriedade. Abandono das culturas tradicionais. Florestação intensiva — pinheiro, mas sobretudo Eucaliptus globulus, explorados em talhadia ou, por outras palavras, em períodos entre 8 e 10 anos. Êxodo e envelhecimento da população. Uma situação deveras vulgar.

    Existem em Portugal condições naturais propícias à deflagração de incêndios florestais. Uma realidade tanto mais preocupante quanto infraestruturas de acesso à floresta, meios de prevenção, detecção e combate a incêndios ainda são em muitos casos um mito. Toda a gente o reconhece. População, bombeiros e Governo. Um extenso relatório elaborado há dois anos pelo «Grupo de Trabalho Interministerial para a Preservação da Floresta» aponta os pontos mais significativos de toda esta problemática: «Os meios de detecção não são, nem em número nem em qualidade, os necessários para uma localização rápida e precisa do foco de incêndio. Os patrulhamentos e a fiscalização das matas, por falta de meios humanos e materiais, igualmente têm deficiências e estão aquém das necessidades. O ataque aos fogos ainda está longe de, devido a carências de meios humanos e de equipamento actualizado, ter aquela prontidão e eficiência exigível para este tipo de calamidade. São várias as entidades a intervir no processo de Prevenção, Detecção e Combate aos Incêndios (…), também se verifica que a legislação (…) está necessitada de uma revisão.» (1)

    — A falta de ordenamento florestal é a principal causa dos incêndios em Portugal! Uma riqueza que levou anos a construir desaparece em meia dúzia de horas. É dramático. Talvez fosse interessante calcular qual a percentagem de terra que ardeu substituída por eucalipto… — considera Arménio de Figueiredo, um engenheiro do partido Os Verdes. 

    Um outro engenheiro, João Soares, director-geral das Florestas, contesta. «O ordenamento florestal só será conseguido se à medida que se forem definindo normas técnicas aconselháveis for possível oferecer aos produtores florestais incentivos financeiros e significativos que paguem efectivamente o diferencial financeiro hoje existente entre as culturas florestais ecologicamente pobres e financeiramente ricas e as culturas ecologicamente ricas e financeiramente pobres».

    Se o papel do Estado é, teoricamente, importante o aspecto financeiro é uma realidade essencial. Mesmo se os fogos não são provocados por quel deles beneficia. Pelo menos, é a opinião do Governo. «Não está demonstrada a existência de organizações movidas por interesses económicos marginais, que através de interpostos indivíduos lancem o fogo às matas. Todavia, verifica-se que há fogos de origem criminosa, que têm motivações de interesse económico, tais como a obtenção de madeiras mais baratas, obtenção de áreas de/para plantio de eucalipto, interesses urbanísticos, etc. Outros fogos de origem criminosa derivam da intenção de obter pastagens, de acções de vingança, do gosto de ver arder, etc.»

    Incendiário: sem rosto mas com perfil

    Uma coisa é certa, porém: praticamente todos os fogos têm origem no homem. E também não é menos verdade que 10.000 fogos por ano é demais para ser atribuído a uma rede organizada. O lucro (negócio ou seguro), a doença psíquica (crime gratuito), o descuido ou a vingança seriam as principais causas. A Polícia Judiciária — de resto bastante activa em todo este processo — até já retratou num estudo sobre «Fogo Posto Florestal» o perfil do criminoso: «É homem, relativamente jovem, solteiro e sem encargos familiares, de baixo estrato social e económico, tem um nível de instrução rudimentar, é natural e residente da área onde comete o crime, actua só aos fins-de-semana, durante o dia, utiliza meios banais, confessa o delito e o modus operandi e não tem antecedentes criminais!»

    Quem incendiar florestas. matas ou arvoredos é punido com prisão de 3 a 10 anos. É a sanção prevista na Lei 19/86 de 19 de Julho. Se resultar perigo para a vida ou integridade física de outra pessoa a pena aplicável será de 4 a 12 anos. A morte de uma ou mais pessoas é punida com 5 a 15 anos de cadeia. Mas são raros os incendiários capturados… (2)

    Mouta.

    00:47. 

    A aldeia — umas 20 e tal almas — ainda está mais em polvorosa. Agora que o comandante Neves dos Santos — acompanhado do responsável da Protecção Civil — e a coluna de bombeiros invadiram a aldeia. Um imenso clarão avermelhado quebra a monotonia de uma serra de contornos indefinidos.

    — Há 13 anos houve aqui um fogo. Fez a mesma ronda que agora este. Levou milho, carqueira e tudo. As casas ficaram graças a nós e aos bombeiros. O fogo não demorou meia hora do Coval até aqui… — conta a correr, mas sem papas na língua Maria Custódia Sabino.

    — E sabe como apareceu o fogo?

    — Então, não sei! Foi ateado em Campo de Arca.

    — E este agora também foi fogo posto! O local é monte. Não há lá ninguém… Foi fogo posto. — grita o ancião Manuel Joaquim Dias. Um homem simples que moureja de Sol a Sol. E que ousa chamar as coisas pelo seu nome.

    — Provas, não as há?

    O velhote de Mouta desanda. Já falou de mais. Uma mulher balbucia palavras que não entendo. Um bombeiro voluntário de Sever do Vouga aproveita a pausa, aproxima-se e mete conversa. A barafunda é tal que ainda nem jantou.

    O fotogénico «rotativo» do Toyota 4X4 do Comandante Operacional começa a girar. Há novidade. O motor arranca. O probela está, aparentemente, resolvido em Mouta. Já Torgueira é outra história. A aldeia tem uma casa, uma família. E as chamas cada vez mais perto. Se ainda lá não chegaram…

    O cansaço da impotência… Foto: ©Sofia Pinto Coelho

    «Eles querem acabar com a floresta…»

    Curvas e mais curvas. Arvoredo. E um jipe da GNR estacionado à beira da estrada. Matrícula: J 380. Ou J 390. Pouco importa. A velocidade não permite apreender tanto detalhe. O objectivo é alcançar o mais rapidamente possível Torgueira. Cortamos à direita. Um caminho de terra serve de estrada que não há. Acabamos por avistar uma casa com uma motorizada ao lado da entrada, uns quilómetros mais adiante. Luzes apagadas. O único sinal da vida que por ali corre é um cão que ladra. E é bem capaz de morder.

    A sirene toca. Uma mulher aproxima-se, lentamente, da patrulha. É nova e bonita. O penteado desfeito e os brincos vistosos dão-lhe um ar de Madonna. A rapariga dá as boas noites. Fátima. É Fátima e mais nada. E sorri. Aconchega-se no casaco de malha azul às riscas. E olha para o monte da desolação. Mora ali, longe de tudo e de todos a pensar na aldeia. Em casa, tem os tios, o filho, cinco vacas leiteiras e três cachorros — mais o pequenino. A família está com o resto do povo da serra uma meia légua mais acima. Estão todos a combater o fogo. É o costume. Os bombeiros chegam quando chegam. E, às vezes, aparecem tarde e a más horas… Fátima quedou-se com o filho.

    — Mas, então, para onde é que eu hei-de ir? O que é que vale eu ter medo? Por acaso até tenho, não pudera ter. O fogo não está assim tão longe. É mais outro fogo posto.

    — Porquê?

    — Começou assim sem mais nem menos. E de noite. Eles querem é acabar com a floresta…

    O caminho até ao fogo está semeado de espinheiras. E de pinheiros bravos. Ainda mal se vê o clarão por causa da encosta. O carreiro é escuro. Os isqueiros acendem-se e apagam-se. Pirilampos. Entre árvores, arbustos e alguma urze. É sempre a subir. Até mergulharmos, subitamente, no espectáculo do fogo. A primeira imagem: os contornos de dois homens a bater na erva incandescente com ramos de pinheiro. Ao lado, uns 10 aldeões assistem, sentados, ao movimento dos homens. Olhares mais exaustos do que angustiados.

    Há um dia que estão ali. O fogo não passa, mas mete-se pela colina abaixo. E desliza ruidosamente até ao rio.

    — Ardeu mais do que da última vez e ainda não se sabe o que é que vai arder mais. — conta Jaime Coutinho. 

    Um dos muitos pequenos rendeiros destas bandas conformado com as agruras da terra. E o povo acena que sim quando o sujeito afiança que logo que as chamas «passarem para o terreno lá mais abaixo, podem ser dominadas».

    — Isto, aqui, até ardia mesmo com a gente cá. Só não arde porque não tem brenha.

    — Está roçado. — diz uma mulher pouco afeita a palavras inúteis.

    — Ali à frente é que não há quem pare o fogo. Tem muita caruma. O fogo agarra-se àquilo e arde… — completa uma vizinha da matrona.

    — A gente desconfia, mas não temos a certeza de quem fez isto. Foi só para fazer mal: inveja e madeira barata… — o comandante Neves dos Santos confirma a banalidade da situação embora a venda de madeira queimada seja mais comum com o eucalipto.

    E voltamos para o jipe. Entre duas comunicações rádio «ataco» o operacional.

    — Isto era inevitável?

    — Este Inverno foi o mais seco dos últimos 60 anos. Tenho povoações no meu concelho sem água. O abastecimento é feito por nós. Este ano vai ser mau. E este fogo é dos piores que há. É impossível atacá-lo. Se não dermos cabo dele no rio Gresso só nos resta esperar.

    O Toyota desgalga a serra. É preciso encontrar um atalho que vá dar ao riacho. Se o fogo passar para a outra margem uma boa parte da serra poderá ser consumida pelas chamas. Seja como for, a situação é problemática.

    — Os fogos não se apagam. Sem que tal represente qualquer menosprezo pela excelente acção da maioria dos bombeiros continuo a sustentar que os fogos florestais não se apagam. Ou se evitam  e considero evitar ser capaz de acorrer nos primeiros 10 minutos depois da eclosão do sinistro ou se circunscrevem. — afiança o engenheiro João Soares, director-geral das Florestas.

    Os soldados da paz confirmam esta tese. E vão mais longe. Os fogos florestais têm tido nos últimos 16 anos um impacto negativo na floresta portuguesa consumindo uma área média por ano superior à que se regenera naturalmente somada com a que é plantada e semeada. O que muita gente não sabe é que a maioria dos grandes fogos tem origem em reacendimentos. Finda a «gigantesca» tarefa da extinção importa ter no local um pequeno dispositivo de bombeiros e um elevado número de pessoas civil (ou militar) fresco.

     Ao fim de sete horas de fogo devíamos mudar os homens todos. E não mudamos. Não temos nunca gente suficiente para acudir…  confessa o comandante Neves dos Santos enquanto o motorista aplica a tracção às quatro rodas.

    O carreiro é íngreme. Há troços onde o jipe mal consegue passar. Os calhaus são muitos. Os troncos baixos. Por debaixo de um pinheiro esquelético perdemos a antena. E a ligação com o exterior. Continuamos. A viagem termina uns metros mais à frente num milheiral. O riacho ainda está bem longe. O fogo vai avançar.

    A «trágica» média do ano é de 86 fogos por dia. A região do país mais afectada é a do Norte com mais de um milhar de incêndios. E 1.300 hectares devastados. Uma área apesar de tudo bem superior à do ano passado. É certo que 1988 foi por diversas razões um ano excepcional.

    Evolução do número de incêndios e da área ardida entre 1983 e 1989 (até Junho)

    Optimismos

    O combate aos incêndios florestais compete às 440 corporações de bombeiros dispersas pelo Continente mais 17 nos Açores, 4 na Madeira e 1 em Macau. Ao todo serão uns 30 mil homens dos quais apenas 2 mil são profissionais (3). Os bombeiros dispõem de 3.650 viaturas de combate a fogos (auto-tanques, auto-escadas, etc.), 2.100 ambulâncias e ainda 500 veículos de socorro. Também existem alguns meios aéreos: dois helicópteros AL III, mas sobretudo um avião C-130 Hercules da Esquadrilha 501, cuja missão é o lançamento de produtos químicos (Phos-chek) retardantes de combustão. As missões são accionadas após solicitação do Centro Coordenador da Lousã para o Comando Operacional da Força Aérea (4).

    Os planos e perspectivas governamentais apontam para um reforço substancial dos meios de combate nos próximos anos. Resta, agora, saber se este optimismo é partilhado pelos homens no terreno…

    Campo dos Mártires da Pátria, Lisboa. 

    A morada do Serviço Nacional de Bombeiros (SNB) é tão somente uma ironia do Destino. A sede do SNB é um local alegre. Um palacete antigo com jardim. Ao cimo da escadaria que dá para o primeiro andar, uma porta de vidro «pintado» reza que S. Marçal é o «advogado dos incêndios». O engenheiro José António Laranjeira — presidente do SNB — confirma. E começa a entrevista.

    — Contesta todo este optimismo oficial apesar de estar na dependência directa do MAI?

    — Os meios humanos de que dispomos são suficientes… Agora, até temos a funcionar 24 horas por dia 287 Grupos Especiais de Primeira Intervenção. Cada um desses grupos é constituído por cinco bombeiros, que dispõem de uma viatura ligeira «todo-o-terreno» com 500 ou 600 litros de água e meios rádio. As brigadas móveis da Direcção-Geral das Florestas e da Guarda Nacional Republicana (GNR)completam este movimento. O SNB é a entidade tutelar dos corpos de bombeiros com atribuições de orientação, coordenação e fiscalização técnica. A elaboração e análise dos riscos é uma das tarefas.

    — Alguém é directamente responsável por esta calamidade que são os fogos?

    — A negligência continua a provocar a maioria dos fogos de florestas. E mais: 50% das saídas dos bombeiros durante 1988 tiveram lugar nos distritos de Braga, Porto, Aveiro e Lisboa. A minha conclusão é que onde há muita gente há muitos fogos. O grande apelo é pedir aos portugueses que aprendam a viver e a respeitar a floresta que ainda temos…

    O engenheiro Laranjeira sabe do que está a falar. Está em contacto com os corpos de bombeiros, o sistema nacional de Protecção Civil, a Direcção-Geral das Florestas e a Comissão Nacional Especializada em Fogos Florestais — onde de resto está representado. A questão dos fogos passa, essencialmente, por estas entidades.

    Uma guerra sem tréguas apesar da escassez de meios… Foto: ©Sofia Pinto Coelho

    Sever do Vouga. 

    02:29. 

    Damos com uma coluna. Três ligeiros e um auto-tanque de Oliveira do Bairro.

    — Isto já está a arder há seis dias. Esta noite ardeu uma área muito grande. Até tivemos helicópteros durante três dias, mas não… O rescaldo é uma coisa danada!

    — Uma viatura está sem gasóleo… e em Montemor uma fábrica de resina está a arder… Comandante Machado chama carro de Comando Operacional…

    — Não é mesmo possível meter um contra-fogo no rio?

    — E chegar lá a baixo? Já andámos por tudo quanto é sítio e não há passagem.

    Os dois homens ainda hesitam em atacar as chamas quando elas atravessarem a estrada, mas abandonam o projecto. A via é estreita e o fogo vem lá de baixo. É dos mais perigosos. Optam por um pedido de apoio aéreo logo que o dia nasça. Vale de Cambra não está longe. E os aero-tanques da Lousã ou da Covilhã também não demoram muito a chegar. Pouco ou nada se pode fazer agora. E os homens estão exaustos.

    — O Comandante de Sever do Vouga é Tesoureiro da Fazenda Pública. Tem mesmo de abrir a «loja«. E eu, daqui, quase vou directamente para a fábrica de confecções onde labuto…

    — Então, voltamos mesmo para Águeda?

    — Voltamos. E já não é sem tempo…

    E se preveníssemos?

    Lá para as bandas de Lamas ou de Macinhata o rádio despertou. Duas casas atingidas em São Joaninho. Uma voz rouca entra no canal 2.

    — Isto é uma coisa louca! Mandem já apoio para aqui…

    Silêncio. O campo corre veloz. O calor da serra ainda arde na pele. E aquelas brasas não param de bailar. As caras negras de pó a afogar a desolação no riacho. Soluções?

    — O fogo deve ser ecologicamente utilizado. Só que as perspectivas são sombrias. As empresas de celulose estão a tomar conta da área florestal. — garante o engenheiro Arménio de Figueiredo (Os Verdes), antes de apontar algumas soluções concretas como o associativismo que «é importante promover» como forma de dinamização das explorações porque «a prevenção também passa por aí».

    — Está por fazer a educação do público em geral, e dos incendiários acidentais em particular. E também é verdade que a prevenção ainda não tem clara supremacia sobre o combate… — afirma o engenheiro João Soares da DGF.

    As perspectivas também são, na sua opinião, sombrias. «Enquanto os fogos em 1988 se propagaram devagar, este ano — com as actuais condições climatéricas — vão correr. Em vez de meia hora, vamos talvez dispor de 15 minutos. É rezar…»

    — Mesmo com condições climáticas normais, 1989 pode ser um ano francamente mau: há poucas reservas de água no solo e a vegetação rasteira do ano passado está por queimar. — palavras do professor Xavier Viegas, um universitário pioneiro dos estudos dos fogos florestais.

    O pessimismo generalizado contrasta com a opinião oficial ou a inexistência de estratégias e acção no terreno. A prioridade para alguns departamentos oficiais parece continuar a ser sobretudo o combate. O Plano a médio prazo do Ministério do Planeamento e da Administração do Território — coordenação de acções de fogos florestais — prevê para 1989 mais de 1.417 mil contos para o combate enquanto a verba para a prevenção não ultrapassa 719 mil contos. É pouco. Para instalar, tratar e conduzir povoamentos florestais, criar redes de acesso e barreiras divisionais; instalar sistemas de vigilância e informar o público (desde as escolas, como sugere o «Projecto de Prevenção para a Escola Primária» da Universidade de Coimbra, mas ainda por aplicar até à RTP onde não houve qualquer campanha este ano). A legislação adequada é outra lacuna.

    — A solução não está no desenvolvimento crescente dos meios de luta, mas reside na prevenção. É preciso desmatar e limpar a floresta e repovoá-la, dando apoios aos que desejariam aí trabalhar e viver. E responsabilizar as pessoas.

    O silvicultor Manuel Ferreirinha é capaz de ter razão. O fogo não é uma metáfora. Quem é que disse que mais vale prevenir do que remediar?


    (1) – O Governo tomou, entretanto, algumas iniciativas. A Portaria 528/89 de 11 de Julho: depois de anunciar que tendo surgido algumas dúvidas acerca do Decreto-lei 175/88, que estabeleceu pela primeira vez em Portugal «condicionamentos vastos e efectivos» (sic) à arborização e rearborização com recurso a espécies florestais de rápido crescimento (como o eucalipto) e da ulterior publicação do Decreto-Lei 139/89, cujo objectivo era «clarificar» (sic) a intervenção das Câmaras Municipais, o legislador acaba por indicar que a portaria ora aprovada «condiciona» (sic) a florestação e reflorestação com as tais espécies de rápido crescimento… A última medida «preventiva» data de 13 de Julho. O Ministério da Administração Interna (MAI) proíbe a realização de qualquer actividade que utilize o fogo em todas as zonas florestais do país entre 15 de Julho e 15 de Outubro (queimadas, fazer fogo — incluindo fumar, lançar foguetes e balões com mecha acesa, queimar lixos, etc.).

    (2) – A Faculdade de Psicologia e de Ciências da Universidade de Coimbra está a preparar um estudo sobre a personalidade de incendiários detidos.

    (3) – Entre Junho e Outubro constituem-se Grupos Especiais de Intervenção.

    (4) – A FAP colabora no combate aos fogos juntamente com o Serviço Nacional de Protecção Civil. Em 1983, começou a operar o «Modular Airborne Fire Fighting System» (MAFFS). Em 1983, foram efectuadas oito missões. Em 1985, o número subiu para 15. Em 1988, realizaram-se apenas oito missões — todas elas na Região Centro.

    A FLORESTA QUE TEMOS

    «A floresta portuguesa está distribuída por grandes áreas, especialmente situadas no interior do território, com reduzidas infraestruturas de acesso e de protecção de incêndios.

    É na sua maior parte propriedade privada, cerca de 80%, e é pertença de cerca de 600 mil proprietários. É quase toda minifúndio.

    É constituída, na parte mais sensível aos fogos, pelo pinheiro, somente, ou pinheiro e eucalipto em grandes manchas de monocultura.

    As grandes manchas de pinheiro e também de eucalipto, situam-se em zonas interiores de Verões quentes, secos e com ventos de NE, que no Verão sopram com intensidade e transportam ar extremamente seco.

    As matas florestais, na sua grande maioria, deixaram de ser limpas e o subcoberto arbustivo existente funciona de rastilho para a propagação do fogo. As razões principais da sua não limpeza são a emigração da população válida, a melhoria do nível de vida, a diminuição da pastorícia.

    Há falta de informação e de formação das populações locais, que não têm conhecimento real do valor da floresta e que, por incúria, são responsáveis pelo ateamento de incêndio.»

    O mesmo acontece com a gente estranha à floresta.

    Fonte: Grupo de Trabalho Interministerial para a Preservação da Floresta – 1987.


    Reportagem originalmente publicada n’O Jornal Ilustrado (suplemento ao nº 752 de O Jornal), na edição de 21 a 27 de Julho de 1989, da autoria de Rui Araújo e com foto de Sofia Pinto Coelho, aos quais o PÁGINA UM agradece a autorização de republicação.


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  • Cruel Agosto

    Cruel Agosto


    O filme de uma tragédia que ceifou a vida a jovens bombeiros.


    No Verão de 2013 morreram na Serra do Caramulo bombeiros por causa de um fogo de origem criminosa.

    29 de Agosto (de 2013) começou com uma manhã igual a muitas outras… Mais um dia numa altura em que temos muitos incêndios. Mais uma chamada como muitas outras para um incêndio no Caramulo.

     — O incêndio começou às 09:53. Começou muito forte. Lembro-me de ter enviado para lá o helicóptero de Santa Comba Dão. E quando cheguei aqui à sala, apercebi-me que isto estava tudo muito mau. Foi muito rápido. Tudo muito rápido. Começou muito forte. Achei que foi das piores horas que vivi nesta sala. Depois de Alcafache, foi o pior.

    — Aquelas mortes abalaram a vila toda. Abalaram, além dos bombeiros, a vila toda. Todas as pessoas não deixavam de falar nos dois meninos. Nos nossos bombeiros.

    — Continuam a ser heróis porque estão cá na mesma dentro de nós, mas… Mas é muito complicado para uma pessoa tirar isto da cabeça. Muito complicado…

    (Foto: Rui Araújo)

    Serra do Caramulo.

    Cai a tarde, serena. Agora, aquilo que resta do arvoredo e do mato é uma paisagem petrificada, cinzenta, mutilada.

    O resto, aquilo que é invisível ao olhar, é desgraça, amargura e dor. A mesma mágoa de sempre, que atiça os ressentimentos. A morte é a morte! E, aqui, morreram dois miúdos. E nós, estremunhados, acabamos por render-nos ao absurdo. Recusamos a fatalidade da morte. Não há aconhego que nos valha, nem o luto sequer. Mas não perdemos o sentido da realidade.

    Dois jovens bombeiros perderam, aqui, nesta curva a vida. Era uma missão que lhes infundiu coragem, mas que acabou por ser uma cilada. Não havia salvação. Foram sacrificados para nada, mas o destino a cumprir, esse, cumpriram-no anónima e humanamente.

    29 de Agosto. São Marcos. Muna. Santiago de Besteiros. 09:53 da manhã. É este o cenário…

    — Preciso urgentemente de meios aéreos. O fogo está a bater nas casas! Nós não temos acesso. Não conseguimos passar para lá. Preciso urgentemente de meios aéreos. — grita um bombeiro de rádio na mão.

    A Serra do Caramulo está em chamas.

    Mas a história começa antes. Mais exactamente na noite de 20.

    Eis o filme de um fogo que até agora já matou, aqui, quatro bombeiros e deu cabo da vida de dois outros jovens, sem contar com a destruição e não foi coisa pouca. Hectares e mais hectares de floresta, pinheiro, carvalho, eucalipto sobretudo. Mato: muita giesta e carqueja.

    (Foto: Captura a partir de imagem de Tiago Ferreira/TVI)

    20  DE AGOSTO

    23:57

    Faltam três minutos para a meia-noite quando um popular alerta, via 117, o CDOS de Viseu  — é o Centro de Operações de Socorro — para um incêndio perto da aldeia de Nogueira de Alcofra.

    21DE AGOSTO

    00:25

    Passados 28 minutos, a sala de operações do CDOS recebe outra chamada. Mais um incêndio, desta vez é na freguesia de Silvares. É fogo posto. Só pode ser, mas já lá iremos.

    São despachados meios para uma primeira intervenção no local, mas os bombeiros não conseguem dominar as chamas.

    22 DE AGOSTO

    15:30

    A Serra do Caramulo continua a arder. Há um bombeiro desaparecido. É dado o alerta.

    22 DE AGOSTO

    18:00

    A bombeira Ana Rita Abreu Pereira dos Voluntários de Alcabideche, uma corporação dos arredores da capital, é encontrada carbonizada. Tem 24 anos. Hora do óbito: 15:46. Nessa mesma tarde são encontrados bombeiros feridos. Alguns são evacuados de helicóptero. Bernardo Figueiredo do Estoril é um deles. Tem 23 anos. Morre passados cinco dias. Não resiste às queimaduras.

    A bombeira Ana Rita Abreu Pereira. (Foto: Captura a partir de imagem de Tiago Ferreira/TVI)

    29  DE AGOSTO

    09:53

    Era uma vez os horizontes infindos apesar da luz da manhã.

    Cinco bombeiros de Carregal do Sal avançam por este caminho exíguo, fugídio e penoso — é sempre a subir, curvas e mais curvas seguidas. É sempre a subir. É o único acesso, está tudo dito. As horas passam, aqui, lentamente porque as chamas continuam a propagar-se serra adentro. É preciso voltar, mas o raio do fogo, covarde, sem dono, tem, por vezes, a última cartada mesmo quando já perdeu a guerra.

    — O grande ditador dos incêndios é o clima. Quando nós temos temperaturas aí nos 30º, humidade relativa abaixo dos 30% e ventos superiores a 70 quilómetros por hora estão criadas as condições para que haja mais incêndios e para que eles progridam de forma mais violenta. Este ano tivemos muito tempo com condições mais gravosas que estas que eu enunciei. — explica o militar da GNR Eduardo Gonçalves Lima.

    E o incêndio da Serra do Caramulo não escapa a esta regra: temperatura elevada, humidade baixa, ventania. E um isqueiro. Em causa, dois rapazes das redondezas.

    O primeiro incêndio é ateado na noite de 20 no caminho entre Nogueira de Alcofra e o estradão da Eólicas, a seguir à Capela de São Barnabé.

    O segundo ocorre menos de meia hora depois perto daí, mais exactamente ao lado da Barragem de Meruge. De motorizada levaram minutos a lá chegar.

    Em seguida, regressam à aldeia pelo mesmo estradão e ateiam mais cinco fogos aqui, que estão na origem da tragédia.

    O bombeiro Bernardo Figueiredo não resistiu aos ferimentos.
    (Foto: Captura a partir de imagem de Tiago Ferreira/TVI)

    29 de Agosto: São Marcos, Muna, Santiago de Besteiros. 

    A missão é atribuída aos bombeiros de Carregal do Sal nessa manhã pelo comandante dos Voluntários de Campos de Besteiros. A informação é que no local se encontram Sapadores Florestais. mas há mais gente… E há mais meios, incluindo um helicóptero da Empresa de Meios Aéreos (EMA).

    — Pensámos que era um fogo muito pequenino, de pouca importância embora reunisse características com alguma preocupação no meu ponto de vista. Portanto, era uma zona com muita inclinação, fogo muito rasteiro e o vento estava na encosta contrária. Portanto, naquela situação parecia inofensivo, mas uma mudança de vento podia deitar tudo a perder. — diz João Santos, piloto de um helicóptero da EMA.

    E foi o que sucedeu. No local, há para além dos Sapadores Florestais, bombeiros de Santa Comba Dão, voluntários de Campo de Besteiros e ainda oito militares da Guarda Nacional Republicana (GNR), todos do Grupo de Intervenção, Protecção e Socorro, o GIPS que não estão sequer referenciados.

    — A brigada ficou aqui no campo da bola. O helicóptero aterrou aqui. Eles ficaram aqui. Depois eles acabaram por vir por esta estrada, por aqui fora, e tudo isto de passou, aqui, nesta zona. — complementa o piloto.

    O jipe dos voluntários de Carregal do Sal pára aqui nesta curva do vale encaixado com encostas abruptas à frente de um carro de Santa Comba Dão. A umas dezenas de metros encontram-se os militares da GNR e, mais acima, os Sapadores Florestais e os bombeiros de Campo de Besteiros, cuja presença desconheciam.

    — O incêndio estava a progredir de uma forma muito lenta. Tanto assim que nós conseguimos até entrar na linha de fogo e começámos, portanto, a combater o incêndio, mas entretanto o próprio incêndio começou a criar essas correntes de convexão, começou a criar vento, começou a ganhar mais intensidade. — conta o militar da GNR Ricardo Lucas.

    O incêndio alastra. No espaço de escassos segundos o panorama muda radicalmente de feição. A avidez do fogo não tem limites. As perspectivas são sombrias, degraçadamente.

    — Quando já estava quase com a minha autonomia esgotada, o chefe de brigada comunica comigo que de repente começou a ficar muito calor na zona onde eles estavam e precisava de uma descarga. Eu avaliei que realmente o calor que eles estavam a receber não era da encosta onde eles estavam a combater, mas da linha de água do vale encaixado onde realmente estava-se a gerar temperaturas elevadíssimas. Iniciei a aproximação a baixa altitude. Não conseguir baixar muito porque senti que o helicóptero começou a perder altitude devido ao calor que se estava a gerar e à densidade do ar, que era muito baixa. Efectuei imediatamente a descarga. Apercebi-me imediatamente pelo espelho do helicóptero que a água evaporou rapidamente antes de chegar à zona das chamas e senti o helicóptero como que a levar um pontapé e a subir muito rapidamente. Comuniquei com a brigada e disse para saírem imediatamente daquele sítio porque estavam-se a gerar temperaturas muito altas com tendência eventualmente a subir. — recorda, João Santos, o piloto do helicóptero.

    João Santos. (Foto: Captura a partir de imagem de Tiago Ferreira/TVI)

    Os bombeiros de Carregal do Sal também combatem as chamas apesar de desconhecerem o plano estratégico de acção a nível da missão a executar e das comunicações existentes, cujos sistemas são independentes.  Ninguém os informou. Tentam, por outro lado, contactar o comandante das operações de socorro. Teoricamente seria o sapador florestal referenciado, mas acabam por encontrar só o GIPS (Companhia de Intervenção de Proteção e Socorro).  

    — Estávamos a fazer um combate directo ao incêndio e eu avistei, lá ao fundo do vale, que o incêndio de propagava pelo vale acima, entrando no dito vale encaixado. Avisei o pessoal que estava comigo, a equipa. Saímos. Eu fui o primeiro a sair. Chego à zona de segurança… Quando chego à zona de segurança, avisto a viatura dos bombeiros no meio do vale encaixado. Também tinham uma viatura como estavam a fazer o combate… — refere o militar da GNR Bruno Correia.

    A zona de segurança — a única que há, aqui — é a terra queimada, as cinzas. O que havia para arder, já ardeu. Os bombeiros de Carregal do Sal, esses, prosseguem a sua faina. Combatem o fogo ou protegem o veículo ou… protegem-se.

    — Eu decidi tentar ajudá-los ou elucidá-los para eles saírem do local. Fui-me deslocar para o local, choco com alguém que era bombeiro. Depois, veio uma… a concentração de fumo é tão grande que eu deixo de ver. Foi quando eu me desloquei para baixo, sempre na tentativa de avisar os bombeiros. — Saiam! Saiam! Saiam!, só que eles não ouviam. Aquilo foi tudo tão rápido… — acrescenta o guarda Bruno Correia.

    A fraga tosca arde. A fúria do fogo corre o penhasco, a encosta, a passos lestos. O guarda Bruno Correia tenta acudir os cinco bombeiros desamparados. Avança para eles, não obedece a nenhum plano. É preciso um milagre para se salvarem.

    Bruno Correia, militar da GNR. (Foto: Captura a partir de imagem de Tiago Ferreira/TVI)

    — Cheguei ao pé deles. Foi quando se dá tipo uma explosão de fogo. As chamas passam por cima de nós. O céu é chamas. O que se vê à volta é tudo laranja: chão, inclusive. Tudo laranja! Dá a impressão que uma pessoa está dentro de qualquer coisa em chamas. E o fumo é intenso. Não se consegue ter a percepção de nada. É muito cerrado. Não se consegue avistar… consegue-se avistar pouco. Pouco. Um ou dois metros, talvez. Foi aí que consegui, se calhar, passar um bocadito o fumo.  Consegui avistar a dita mina onde eu me refugiei. — complementa o militar.

    Os bombeiros não encontram saída para aquele inferno. Por entre chamas e fumo o caminho transforma-se em segundos numa laje funerária.

    — Dei a volta. Ia dar a volta. Apercebo-me, então, que uma tragédia se desenrolou ali. Senti rolos… vi rolos de chama a subir a encosta. Dez segundos depois tinha um dos elementos do GIPS a comunicar via rádio para pedir ajuda porque havia mortos, feridos e um carro destruído. — narra o piloto do helicóptero.

    No meio das labaredas e da fumarada os bombeiros buscam uma saída. Tentam arrancar o jipe, mas o motor vai-se abaixo. Embatem, aqui, contra esta parede rochosa.

    — Um dos elementos do GIPS chama pelo meu nome. — “Socorro, Marília. Socorro”. Imediatamente, peguei no rádio do jipe. Identifiquei-me. Ele identificou-se. Não sei se posso dizer o nome… Eu disse: Sargento, eu estou aqui. Diga rapidamente. Ele disse: — “Marília, tenho aqui cinco elementos de bombeiros”. Ele na altura não disse quem era. Eu não sabia quem era. — “Estão cercados pelo incêndio. Temos cinco elementos da equipa helitransportada também cercados pelo incêndio”. Eu deduzi na altura que havia ali vários mortos. De imediato, fiz também uma ligação ao CODU pelo mesmo rádio e o CODU também estava a ouvir o que ele me estava a dizer e o que eu estava a transmitir. Isto facilitou porque eu estava a ouvi-lo. Ele dizia: — “Já encontrei um.” E conforme ele ia encontrando os corpos… — “Eu encontrei um elemento.” O CODU ia ouvindo. E ia enviando as ambulâncias e o que era necessário. Depois, ele ia-me dizendo: — “Encontrei mais um. E aquilo foi terrível.” Ele ia encontrando e eu dizia: — Sargento, força! Avance. Ainda vai encontrar os outros porque ainda nos faltava. Eram 10. E aquilo ele ia reduzindo. — “Seis. Sete…” Até que chegou uma altura que nos faltava um. Ele disse-me assim: — “Marília, ainda falta um. Ainda falta um!” E eu disse: — Caminhe, Sargento. Força! Você vai conseguir. Há-de encontrar. E quando ele chegou. Esse um, ele disse: — “Marília, já não tenho hipótese. Encontrei um, mas  está carbonizado…” — diz Marília Moita, da Protecção Civil.

    É a amarga realidade. O jipe dos voluntários ficou neste estado. Os pormenores não valem nada, mas dão a noção do drama. Eram cinco. Três ficaram feridos e no meio da serra há, pelo menos, uma vida que se escoa.

    (Foto: Captura a partir de imagem de Tiago Ferreira/TVI)

    Cátia, uma jovem bombeira de 3ª classe, acaba de viver a segunda hora da sua vida. São 11:00 da manhã.

    — Era meio-dia e tal. E batemos à porta da casa dos pais da Cátia. Eu e a enfermeira Joana, que é a 2ª Comandante, aqui, no quartel. E o pai da Cátia atendeu-nos. Abriu a porta e apercebeu-se logo que alguma coisa se passava. Nós dissemos que iamos-lhe dar uma notícia. Que tinha acontecido alguma coisa com a Cátia. Ele perguntou: — “Mas o que é que se passou? Ela ficou muito queimada?” Perguntou logo. E nós também começámos a enrolar as palavras porque foi uma situação assim muito complicada, não é? Ao mesmo tempo eu acho que nem uma nem outra estávamos preparadas para dar aquela notícia, mas tivemos que a dar e tínhamos que estar ali para dar uma força àqueles pais apesar da má notícia que íamos dar. Ele continuou a perguntar: — “Mas o que é que se passa? Como é que ela está?” E nós dissemos que houve um acidente, que… que o carro tinha ardido, que os bombeiros estavam feridos, que a Cátia não estava muito bem… Entretanto, o pai disse: — “Mas vocês não me estão a contar tudo, pois não?” E nós mais uma vez engolimos em seco e… e dissemos: — Pois, se calhar, o senhor é que não se está a aperceber de tudo. E ele perguntou: — “O quê? Ela morreu? Não pode ser.” E nós… E a partir daí foi… foi uma revolta. Foi um desespero. Foi muito duro. Foi muito duro… — recorda Camy Cristo, dos Bombeiros Voluntários de Carregal do Sal.

    Os jovens bombeiros Cátia e Bernardo.
    (Foto: D.R./Captura a partir de imagem de Tiago Ferreira/TVI)

    JORNAL DA UMA – TVI – Pedro Pinto

    “É a sexta vítima mortal dos incêndios deste ano. Bernardo Cardoso era bombeiro da corporação de Carregal do Sal e não resistiu aos ferimentos do fogo da Serra do Caramulo.”

    Tinha 19 anos. Era estudante, aqui, na escola secundária da vila. Estava a tirar um curso profissional de óptica ocular. Estaria, agora, no 12º ano. Estaria… E a grande força da vida, aqui como lá fora, é a memória.

    — Eu lembro. Eu vou falar como colega de turma, mas não é como bombeira. Eu e o Bernardo conhecemo-nos, aqui, na escola. Estivemos na mesma turma quatro anos. E o Bernardo era uma pessoa… (SILÊNCIO PROLONGADO) Era uma pessoa muito boa. O Bernardo era uma pessoa muito simples. Bom companheiro. Era um amigo. Era um colega. O Bernardo estava sempre ali. O Bernardo, quando ouvia a sirene, para ele era uma alegria. Podia estar alguém em situações diversas, aqui, o Bernardo era o primeiro a socorrer, era o primeiro a aparecer… E eu admirava isso muito no Bernardo. O Bernardo… à maneira dele, ele fazia as coisas de uma forma natural. Por mais que ele não quizesse e que quizesse abster-se da situação, o Bernardo não conseguia. O Bernardo tinha que lá estar. O Bernardo, aqui na escola, quando ouvia uma ambulância tinha que ir a correr. O Bernardo era um rapaz cheio de vida, sempre foi. E a imagem que nós guardamos dele e que vamos sempre guardar, o Bernardo era o Bernardo, ninguém pode substituir o Bernardo. Ele não morreu. Ele está aqui connosco. Vai estar sempre! — conta a jovem Maria.

    É o que a vida consente, independentemente do desfecho irreal.

    — O Bernardo  tinha duas coisas essenciais: queria ser bombeiro e jogador de basket. Sempre nos intervalos e horas livres o Bernardo estava nos campos de futebol e de basket a jogar. Ele até estava numa equipa e era o que ele queria seguir. Além disso, queria ir para os bombeiros. Foi sempre o sonho dele, toda a gente sabe. Já estava em bombeiro de 3ª. Agora, queria era subir e chegar ao máximo que ele pudesse. — recorda Alexandra, uma colega de turma.

    A disposição da sala de aulas foi mudada para apaziguar a dor e o vazio.

    (Foto: Captura a partir de imagem de Tiago Ferreira/TVI)

    — O meu filho… eu vou-lhe explicar como é que começou. O meu filho começou com um cinturão que eu tinha da tropa. E um bivaque antigo. Eu tinha aquilo pendurado. Pronto, foi uma recordação que eu tenho. O meu filho, coitadinho, andava na escola. Viu-me aquilo pendurado, volta e meia — “Ó Pai, deixe-me andar com aquilo.” Volta e meia: — “Deixe-me andar com aquilo…” E tenho lá aquilo pendurado. Está no quarto dele. — Ó Pai, o que é que tu fazias com isto? Ó Filho, aquilo era um cinturão do camuflado. Tenho um camuflado, sabe como é que era lá na tropa. Ele então, coitadinho, punha aquilo, ficava-lhe grande. Lá conseguia apertar-lhe aquilo para ele andar com aquilo. E daí começou… — desabafa António Cardoso, o pai de Bernardo.

    Desapossado do único filho. O retrato que faz de Bernardo é, necessariamente, pungente.

    — Ele morreu porque, para mim, ele foi o herói daquilo. (SILÊNCIO) Mas também lhe digo uma coisa. Eu gostava de saber os pormenores disso. Quem é que os mandou lá para dentro naquele momento…

    Poderá estar em causa a organização, o comando das operações, quem é quem, quem ordenou o quê, e os meios humanos e materiais, incluindo no plano das comunicações e dos equipamentos, para o combate a este incêndio florestal.

    — Sobre isso, eu não vou falar. Não lhe vou dar nenhuma explicação. Está a decorrer um inquérito e eu não vou fazer qualquer tipo de comentário sobre isso. — responde Miguel Ângelo David, dos Bombeiros Voluntários de Carregal do Sal.

    Os bombeiros recusam pronunciar-se.

    — Sabe que um incêndio florestal é sempre muito complicado e, portanto, é natural que num teatro de operações desta dimensão, desta violência, haja sempre razões ou sempre momentos em que as decisões não sejam as melhores, mas quem tem alguma responsabilidade neste domínio e quem alguma experiência como eu tenho de 30 anos nos bombeiros, não fazia uma relação directa porque isso seria injusto para quem está no Comando, para quem está no teatro de operações, para quem tem de coordenar, para quem tem de combater, não fazia uma relação directa nestes termos de falta de Comando e perda de vidas ou falta de formação e mortes de bombeiros. — afirma  Rebelo Marinho, da Federação de Bombeiros do Distrito de Viseu.

    Certezas: há dois suspeitos de crime de incêndio florestal detidos em preventiva.

    (Foto: Captura a partir de imagem de Tiago Ferreira/TVI)

    — Já morreram quatro bombeiros! Assassino. Assassino! Filho da p… — grita o povo aquando da detenção.

    O primeiro está na cadeia de Viseu. O outro, na de Lamego.

    Nogueira de Alcofra.

    Mais uma tarde triste na aldeia. O ar parece encobrir ou toldar as feridas anacrónicas da alma. Esta gente não percebe. Não pode. Os dois suspeitos detidos são filhos desta terra.

    Um, Patrick, emigrante no Luxemburgo, terá agido por vingança. Em causa: uma multa.

    O outro, Fernando, foi atrás. Morava aqui. É o mais novo.

    — É triste! É triste uma pessoa com sentido fazer uma coisa destas. É triste uma pessoa ter um filho onde tem, não é? É triste para ele, onde ele está, que é um jovem, pronto, e já está na mocidade dele. E é triste para a família. Fica chocada também. É… — lamenta-se Norbinda Marques Marinho, a mãe de Fernando.

    Era um moço sem perspectivas, aparentemente conformado com a sua sina. Não quebrava nem morria… até passar-se uma noite.

    — Ele andava lá com o senhor de ali de baixo, com o Patrick, não sei, não sei, não sei de mais nada…

    — Nunca mais falou com ele?

    — Não. Não. Tenho falado. Temos lá ido à prisão e falamos, mas… Pronto: se ele o fez ou mais o outro têm de cumprir, não sei.

    A mulher deixa-se prender na trama ou no enredo das palavras e não é caso para menos.

    — Haverá responsabilidade maior do que a morte de pessoas inocentes? Eu penso que a palavra “responsabilizar” pode ser associada a preparar melhor, a mudar o tipo de abordagens que é feito no combate aos incêndios, nas políticas de prevenção, nas políticas de fiscalização e digo mais: a nível de formação, que sejam encontrados exemplos de circunstâncias em que tenhamos nós estado não tem bem e que eventualmente possam ser dados como ensinamentos para evitar situações futuras. Deveremos agir preventivamente na resolução de um problema, este sim, nosso grande desígnio nacional porque os incêndios florestais para a dimensão do nosso país é uma guerra, mas não é uma guerra dos bombeiros. É uma guerra do país. E contra o país. — conclui Miguel Ângelo David, dos Bombeiros Voluntários de Carregal do Sal.

    (Foto: Captura a partir de imagem de Tiago Ferreira/TVI)

    Fernando foi detido uns dias depois, fora de flagrante, aqui, pela Polícia Judiciária, que o apresentou ao tribunal de Vouzela. Terá confessado a autoria de cinco fogos. Patrick, que terá ateado os outros dois, entregou-se posteriormente às autoridades.

    Cátia e Bernardo estão enterrados no Cemitério de Currelos.

    Sabino, o outro bombeiro ferido na manhã de 29 de Agosto, recupera lentamente, sobretudo a nível psicológico.

    Nuno, o terceiro ferido, continua internado no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Está em estado de coma. O seu prognóstico é reservado.


    NOTA:

    Reportagem emitida originalmente no programa “Repórter TVI” da TVI, em 18 de Novembro de 2013 [VER AQUI].

    A equipa da reportagem “Cruel Agosto” era composta por Tiago Ferreira (Imagem), Sofia Rebola (Montagem), Ricardo Rodrigues (Grafismo) e Rui Araújo (Reportagem).

    “Cruel Agosto” conquistou no dia 24 de Maio de 2014 o Prémio Prestígio Media TV da Associação Nacional de Bombeiros Profissionais, apesar de a equipa não se ter candidatado ao mesmo.


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    NOTA: Esta reportagem contém imagens que podem chocar o público mais sensível.


    A guerra promete continuar.
    (Foto: Rui Araújo)

    República Centro-Africana.

    5 de Janeiro de 2019.

    A Força de Reacção Rápida (QRF) portuguesa é projectada para Bambari, a segunda maior cidade do país.

    A 7ª missão das Nações Unidas (MINUSCA) inicia a Operação “Bambari sem grupos armados e sem armas”.

    O objectivo é expulsar o grupo armado UPC da cidade.

    Está programada uma visita do Presidente da República…

    10 de Janeiro.

    Os relatórios de situação referem tiroteio intenso na cidade.

    90 paraquedistas portugueses – 3 grupos de combate, mais exactamente – participam nos combates contra os rebeldes muçulmanos.

    Baixas do dia:

    2 elementos das Forças de Segurança mortos.

    1 comandante das Forças Armadas (FACA) da RCA abatido.

    6 rebeldes do grupo armado UPC – o segundo mais importante do país – perdem a vida.

    E 23 ficam feridos.

    É o princípio da fase 2 da operação.

    11 de Janeiro.

    Os paraquedistas portugueses avançam ao longo do eixo Maidou – Mbrepou – Élevage.

    É preciso dar protecção aos militares do Cambodja. 

    É o princípio da fase III da operação.

    Percurso MREPOU-MAIDOU-ÉLEVAGE
    (Imagem: Documento militar classificado/Arquivo Rui Araújo)

    11 de Janeiro.

    Bambari.

    Bairro muçulmano de Maidou.

    Esta casa acanhada ardeu e, agora, está ao abandono.

    Das intimidades mais secretas já nada resta.

    É o fadário de muita gente…

    A guerra deixou, aqui, uma modorra  de ruínas ocres.

    O grupo UPC tinha a sua barreira aqui. É por isso que os portugueses vieram rebentar com as barreiras. Foi ao dispararem contra a barreira que a casa começou a arder. As chamas das armas… Começou a arder… E eles tinham a base aqui debaixo da mangueira. Ali à frente, debaixo da mangueira. Havia muitos UPC aqui no nosso bairro. No caminho, os veículos não podiam passar, mas as pessoas que passavam eram revistadas aqui. Pediam-lhes dinheiro para comer. É isso… —  conta-me Gabin Gawa, que mora aqui.

    E o que viu quando os portugueses chegaram? — pergunto.

    Vi… Os blindados dos portugueses vieram disparar contra as barreiras. As chamas começaram a subir alto e caíam nas casas. E, a seguir, vi os do UPC a fugir… É por causa disso que os portugueses andaram a combater aqui.

    E houve muitos mortos?

    — Só feridos. Mortos, não. Houve apenas feridos.

    — Civis ou do grupo UPC?

    — Civis. Os da UPC fugiram. Eles fugiram…

    A tarde vai passando.

    Apesar da miséria e dos morticínios da guerra é preciso viver a vida corrente…

    Reparamos no salão “Tribunal de Beleza TANAKA” que, aqui, no meio de nenhures pode parecer anacrónico.

    Puxamos paleio com o cabeleireiro.

    É apenas um pretexto para escutar os mexericos, esmiuçar as agruras e as aspirações desta gente…

    O cartaz carcomido mostra o acessório. Quem vê caras não vê preços…

    Um corte de cabelo, aqui, para as mulheres é 15.000 francos (23,00 euros) porque têm dois cabelos… À frente e atrás. Para os homens é 500 francos (0,77 euros). Tens algum problema com isso? (Ri-se) — explica ou indaga o rapaz Raoul Ether.

    E os jovens daqui desta aldeia… O que querem fazer na vida? Como é que eles vêem o seu futuro?

    O futuro dos jovens, aqui? Não há dinheiro, não há trabalho. Eles sofrem. Uns lavram a terra. Outros, acartam água. Há cabeleireiros, há costureiros. Não há nada para fazer. E eu preciso de ajuda. Há trabalho? (SILÊNCIO) Se há trabalho, vamos a isso. Mas se não há trabalho, ficamos sós, somos uns inúteis. Comemos mangas, meio a dormir. Não há nada. Não é vida…

    O comércio nunca pára, apesar de não haver prosperidade há que mundos…

    Todos os dias, aqui, são dias de fazer. E esforçados…

    Um moço ganha uns vinténs a empurrar o carro da água.

    Uns vendedores ambulantes de pé descalço aproximam-se.

    Kossei, pastéis de feijão a 10 francos (0,02 euros).

    Vendedores ambulantes.
    (Foto: Rui Araújo)

    Um café de tacho custa 25 francos (0,05 euros)…

    40 soldados (um pelotão de Infantaria do Nepal com 4 viaturas APC) patrulham  Maidou. 24 horas por dia, 7 dias por semana…

    Agora… porque antes da operação da MINUSCA não podiam meter os pés aqui.

    O cenário no lugarejo é este:

    Militares.

    Perigo.

    Arame farpado.

    Casas em ruínas.

    Destruição e miséria.

    E… ladroagem pela noite fora…

    Élevage, um dos bairros problemáticos de Bambari — juntamente com o de Maidou e Adji.

    Há dois anos Élevage era mato.

    Hoje, vivem neste campo duas mil e tal pessoas, sobretudo criadores de gado, que fugiram de Ippy, uma terriola a cento e tal quilómetros daqui.

    Encontro com o chefe e o imã de Élevage com a protecção dos militares da ONU. (Foto: Tiago Ferreira)

    Se o país estiver bem, se houver paz regressamos para a nossa terra, Ippy. Mas até agora os problemas são aqui nesta pequena aldeia… Há massacres. Há gente a morrer. Há muitos problemas no mato. É por isso que continuamos aqui em Bambari. — diz Hassan Issa, o imã de Élevage.

    Os soldados nepaleses da MINUSCA efectuam, aqui, patrulhas 24/7. São os únicos.

    As forças armadas da RCA (FACA) e a polícia não metem aqui os pés.

    Percorremos o campo banhado de sol.

    Mais miséria. E mais desconfiança, também. Plenamente justificada.

    Os Capacetes Azuis nem sempre conseguiram impedir os massacres como foram, por outro lado, acusados de cometer crimes (sexuais) contra as populações que eram supostos defender.

    A paz decretada há meses (com a assinatura do 8º acordo de paz) é precária.

    Há quem defenda que o mandato da MINUSCA devia ser mais ofensivo para permitir a resolução do conflito e a reconstrução do país. 

    A luz turva da tarde está a chegar…

    muezim chama os fiéis para a prece obrigatória.

    É o fim do segundo apelo. Há cinco por dia.

    Mesquita Central de Bambari.

    Bairro de Bornou.

    Os fiéis entram.

    O imã é Hamat Hamadi.

    44 anos. É comerciante. Tem 5 filhos e uma única mulher…

    É um homem respeitado no burgo.

    O imã despacha-se já que nem todos estamos com vagar.

    Terminada a oração, o arauto e os outros crentes partem.

    Decidimos falar com o homem.

    — A UPC é o quê? Que gente é essa?

    Em todo o caso, senhor jornalista, a UPC é um movimento que nasceu depois da crise, mas os bairros muçulmanos e os meios muçulmanos já existiam antes. Podemos dizer quase há meio século. Os bairros muçulmanos existem e os homens da UPC existiam antes de a crise chegar. Portanto, é escusado dizer é um meio da UPC ou um meio tal. É um bairro como os outros bairros da cidade. Não há nada de bom nesta guerra. Não há um vencedor nesta guerra. Pelo contrário, só há perdedores. Nós somos todos perdedores. A outra comunidade governou este país durante meio século. E a nossa comunidade que vivia com eles veio, por sua vez, gerir o poder. Eles não estão de acordo. Inventaram tudo e mais alguma coisa para nos irmos embora. Fizeram-nos deixar o poder. Mas porque razão ainda trazem milícias que matam. Já viste um muçulmano, um Seleka, cortar alguém aos pedaços? Comer a carne de uma pessoa? Não. Vimos o canibalismo no outro lado. Toda a gente viu.

    A MINUSCA está cá. Os portugueses estiveram cá até há umas semanas. Houve combates sangrentos aqui e não só. Qual é a lição que tira destes acontecimentos? — questiono.

    — A MINUSCA está cá. Trabalhou muito para o regresso da paz e da segurança no nosso país. Sim, devemos agradecer à MINUSCA. Ela fez coisas boas.

    — E os portugueses? Há umas semanas, os paraquedistas…

    — Há semanas os paraquedistas portugueses estavam na cidade. Travaram um combate sangrento, como referiu, com homens armados, mas eu digo-lhe: o que eles fizeram não o fizeram com profissionalismo. Os portugueses não fizeram a diferença entre o homem armado e o homem civil.  Porquê? Os homens armados moram nos mesmos bairros que os civis. Eles querem montar uma operação militar e não têm escolha. O exército português matou muita gente que é inocente. Então, eu peço-lhes para darem provas de profissionalismo nas suas acções…

    — A UPC não meteu os civis à frente justamente para se servir dos civis?

    — Senhor, o último combate que ocorreu aqui na cidade foi à uma da madrugada. Eu pergunto-lhe: quem é o civil que vai estar acordado a essa hora para estar metido nessa história? À uma hora da manhã, por favor…

    — Pode ter sido obrigado…

    — Obrigado por quem?

    — Pela UPC…

    — Eu não tenho a prova. Eu não tenho a prova. Eu estava no interior quando os tiros de canhão começaram a retentir. Ouvi gritos aqui e acolá. A população começou a fugir nessa noite. Uns, caíram com as balas. Outros, escaparam.

    O grupo armado usou crianças como escudos humanos em Bambari.

    É o que reza vermelho no branco um relatório militar a que a TVI teve acesso.

     “They are also using children as human shield.” (“Eles também usam crianças como escudos humanos.”)
    (Imagem: Documento militar classificado/ Arquivo Rui Araújo)

    Bambari, a “Fascinante”.

    O eixo CTO  — a rua Direita —– começa no PK0 e acaba, ali ao fundo, na ponte do Ouaka.

    O rio de povo passa…

    Na outra margem, lá em baixo… As lavadeiras. A roupa a corar.

    Roupa branca que a gente estendeu… 

    O pescador…

    Os putos a brincar.

    E os areeiros, que afeitos a horas longas, batem a margem e enchem bidões à custa de muito suor.

    Bambari foi um importante polo económico. Foi…

    Para o algodão e para o açúcar.

    Hoje, a cidade é apenas mais um ponto de passagem.

    As bancas e o mercado dos cristãos, que esteve fechado durante quase um ano, dão uma aparência de normalidade…

    9:46

    A patrulha apeada conjunta arranca…

    Dois polícias, outros tantos guardas, três soldados e sete Capacetes Azuis da Mauritânia garantem a segurança e impedem os roubos.

    O comércio: mercearias, barbeiros e bancas de roupa.

    É um arraial incessante de propostas.

    As falas doces dos vendedores de pé no palco improvisado parecem réplicas. Eles representam. Como toda a gente, aliás. E governam-se…

    Calças de ganga a 2 mil francos (3,00 euros).

    Camisas a 1.500 (2,30 euros).

    Vestidos a 500 (0,70 euros).

    Os clientes enganados ou desenganados — nunca se sabe! — compram os precisos e a roupa. Quando compram…

    No mercado, a meio rua, a coisa fia mais fino: os muçulmanos fornecem a carne e os cristãos o resto.

    Isto pode rebentar a qualquer momento? — digo a Bob Gbiassango, oficial da Gendarmerie local.

    — Pode ou não pode… Pois. Pode ou não pode… Eu não sou a melhor pessoa para dizer se pode explodir. Para mim, isto está resolvido… Houve combates… Mas a população, efectivamente, foi ela quem sofreu… Os combates foram travados em toda a cidade… Depois, quando acabaram, a população ficou de um lado e os assaltantes do outro. Houve muita gente que morreu nos dois lados feitas as contas. Feitas as contas, não foram coisas sem gravidade…

    — Foram momentos terríveis…

    — Sim, efectivamente foram momentos terríveis, mas isso já passou. Com a tropa é sempre assim. Quando a coisa rebenta deve aquecer, mas depois fica calmo. É assim…

    “Momentos terríveis…” É a formulação autorizada. E politicamente correcta.

    As mesmas vítimas de sempre…
    (Foto: Movimento de guerrilha UPC/ Arquivo de Rui Araújo)

    Os combates entre as forças da MINUSCA e o grupo armado UPC provocam, segundo uma fonte religiosa, 50 mortos e um número indeterminado de feridos.

    Rebeldes e, sobretudo, civis…

    Toda a gente mata na RCA, mas ninguém ou quase denuncia esta guerra particularmente suja…
    (Foto: movimento da guerrilha UPC – Arquivo de Rui Araújo)

    Estas fotografias dão conta da tragédia…

    Em parte…

    Habitações esburacadas, destruídas. Fogo… Cinzas e mais cinzas. E morte… por toda a parte: homens, mulheres e muitas crianças…

    “Os nús e os mortos” (1), aqui, são os mesmos…

    O raio da guerra não poupa nada nem ninguém…

    12 de Janeiro.

    6:05 da manhã.

    A Força de Reacção Rápida (QRC) portuguesa parte de Bambari para Bokolobo, o quartel-general do grupo armado UPC.

    As forças do Ruanda avançam para o mesmo objectivo a partir de Alindao, outra terra de massacres, que fica mais a Sul.

    Entre Bambari e Alindao fica Bokolobo, o quartel-general do grupo UCP. (Imagem: Documento militar classificado/ Arquivo de Rui Araújo)

    A operação contra o grupo armado UPC em Bokolobo é um sucesso.

    Balanço estimado:  65 a 83 rebeldes mortos e 29 a 42 feridos.

    A MINUSCA não sofreu qualquer baixa.

    No dia seguinte os paraquedistas portugueses regressam à base do PK3, em Bambari.

    Manifestaçáo. A morte é a morte, independentemente do lugar.
    (Imagem: Documento da guerrilha UPC/ Arquivo de Rui Araújo)

    16 de Janeiro.

    9 da manhã.

    200 ou 250 moradores dos bairros muçulmanos de Bambari protestam contra a operação militar da MINUSCA.

    Lamentam os mortos e a destruição. E pedem o fim do uso da força em Bambari e Bokolobo.

    Três palavras de ordem:  

    NÃO AO CONTINGENTE PORTUGUÊS E AO NEPALÊS

    NÃO NÃO NÃO À GUERRA

    QUEREMOS PAZ

     — A MINUSCA tem os meios humanos e materiais de que necessita para cumprir a sua missão aqui? Num país tão vasto quanto a Península Ibérica… —  pergunto.

    Vamos lá a ver. A MINUSCA tem… tem… tem, sob o ponto de vista da sua organização, da sua componente militar, um perfil que está estabelecido e que está aprovado. Não vale a pena estarmos a apelar para aumentar o efectivo da força quando isso não tem sido autorizado pelo Conselho de Segurança. — responde o general Marco Serronha, 2º Comandante da MINUSCA.

    General M. Serronha, 2º Comandante da MINUSCA. (Foto: Tiago Ferreira)

    — Estamos a falar de cerca de 12.000 homens…

    — 11 mil… 11 mil e 600. 11.654, mais precisamente. Mas o que nós temos tentado fazer junto de Nova Iorque é, sem subir por assim dizer o tecto do efectivo, melhorar as capacidades e estamos a trabalhar nesse sentido. Ou seja: que os contingentes internacionais tragam capacidades adicionais nalgumas áreas, nomeadamente nas áreas que têm a ver com a possibilidade de terem uma, o que nós chamamos uma situation aware, terem a capacidade de antecipar aquilo que se está a passar e para isso é preciso meios tecnológicos que alguns deles não têm, mas que nós estamos a fazer força para terem. Nomeadamente uma das questões também que estamos a trabalhar e que já temos são os meios aéreos não tripulados que estão a ser utilizados também, mas que temos de algum modo estender mais para permitir que possamos saber melhor o que se passa no terreno. Agora, não temos, vamos lá a ver, não vamos pedir um aumento de efectivo porque isso não é autorizado, portanto, não vale a pena…

    — Uma QRF (Quick Reaction Force ou Força de Reacção Rápida) sem meios aéreos chega sempre tarde e a más horas…

    — Essa é uma das questões também. Nós estamos a fazer força junto de Nova Iorque para obter mais meios aéreos nomeadamente mais uma unidade de helicópteros, não só para ter a possibilidade de projectar ou apoiar a projecção de forças, mas essencialmente para cobrir melhor um dos aspectos sensíveis destas missões de paz que é a evacuação de baixas, caso aconteçam.

    A morte, aqui, é pública…
    (Foto cedida por um movimento de guerrilha da RCA/Arquivo de Rui Araújo)

    17 de Janeiro.

    Élevage.

    A potencial chegada a Bambari de dois generais do grupo UPC pode indiciar — segundo serviços militares — a continuação da guerra.

    Durante a tarde, os paraquedistas portugueses detectam movimentos suspeitos no bairro muçulmano.

    Este homem, que se encontra perto do local onde foram encontradas armas, é identificado como elemento do grupo armado e detido.

    Bambari, uma cidade sem grupos armados e sem armas?

    Mais ou menos…

    É neste quartel das Forças Armadas da República Centro-Africana, as FACA, que os mercenários russos estão instalados.

    Alguns pertenceram às forças especiais.

    Os soldados das FACA – ao contrário dos guerrilheiros – têm medo dos criminosos do grupo Wagner.
    ((Foto: Documento de um serviço secreto ocidental/ Arquivo de Rui Araújo)

    Com os russos, tudo bem, porque eles são parceiros nossos… — diz o Comandante Florent Ogalama das FACA.

    — O que fazem exactamente, aqui? Ao nosso lado…

    — São amigos nossos. Estão cá connosco…

    — E estão a fazer o quê?

    — Não comento… Não comento…

    Chega a haver 20 mercenários russos em cada destacamento das FACA.

    Os russos do grupo Wagner ou Séwa, aqui, fazem o que querem.

    E não é só andarem a passear na rua de espingarda automática. E formarem a tropa. Torturam pessoas!

    Mercenários do grupo russo Wagner, em Bria (uma “cidade sem armas” por decisão da MINUSCA que inexplicavelmente nada faz para os travar…).
    (Foto: Rui Araújo) 

    Este documento militar classificado, por exemplo, é peremptório:

    11 de Janeiro.

    8:00 da manhã.

    Os mercenários russos prendem em Bambari um cidadão de 38 anos a pretexto de ser coronel dos grupos armados muçulmanos.

    Depois de ter sido torturado durante 5 dias o homem acabou por mutilar-se, cortou um dedo da mão direita para conseguir ir para a Gendarmerie.

    Há menos de um ano, foram assassinados no norte do país três jornalistas russos que investigavam as actividades do grupo privado militar russo (sem existência legal) Wagner.

    Os corpos foram descobertos pela MINUSCA…

    Os jornalistas russos andavam a investigar o grupo Wagner…
    (Foto: D.R.)

    As ambições imperiais da Rússia (que passam pela reconquista geopolítica e económica do continente africano) são assumidas… por Lobanov, o representante diplomático de Moscovo em Bangui.

    A URSS foi um dos primeiros países a reconhecer esse jovem Estado africano.

    Hoje, a Rússia regressa a passos largos ao continente africano.

    A influência crescente da Rússia, que vai ter 30 observadores e pessoal de comunicações na MINUSCA, reflecte-se a vários níveis:

    – Doação de armamento 

    – Instrução das Forças Armadas

    – Assessoria e Segurança (incluindo do presidente)

    – Medidas políticas

    – Influência sobre os grupos armados no processo de paz

    – Colunas humanitárias… ou coisa que valha. Há colunas “humanitárias” russas com protecção blindada e mercenários que vêm do Sudão (pela fronteira no nordeste, em Birao para Ndele ou para Kaga Bandor,o antes de se dividirem: uma parte da coluna vai para Bria e outra para Bangui) e que ninguém controla (nem sequer a MINUSCA).

    A primeira entrega de armas e munições russas teve lugar no ano passado.

    O plano prevê mais fornecimentos…

    Milhares de armas de todos os tamanhos e feitios e milhões de munições calibre 7.62 e 5.45, etc. 

    A ajuda internacional nunca é desinteressada…

    Há quem pense que a intenção real da Rússia na República Centro-Africana é testar uma abordagem pluridisciplinar (política, militar, económica e mediática) susceptível de ser duplicada noutros pontos do continente.

    Aos tiros é que a gente se entende…
    (Imagem: Documento militar classificado/ Arquivo de Rui Araújo)

    A presença russa é uma realidade neste país. Portanto, temos que ter em conta esse facto. Não é só neste país como sabemos… A presença russa tem um plano estratégico, que não é um plano desconhecido para África, portanto, há claramente um regressar a África, uma influência a todos os níveis em África do ponto de vista político, do ponto de vista operacional e até nas áreas mais ligadas aos recursos, nas áreas comerciais. Portanto, a Rússia está presente. Como é que a Rússia iniciou a sua actividade aqui na RCA? Iniciou-a com oferta de armamento para equipar as Forças Armadas centro-africanas. Isso foi a porta de entrada. — explica o general Hermínio Maio, comandante da Missão da UE na RCA.

    A União Europeia está a apoiar a “transição para a paz” (sic). O acompanhamento é político e militar. E o responsável europeu da missão de treino das Forças Armadas da República Centro-Africana é um general português…

    A coluna faz um alto!

    É preciso avaliar a situação.

    O inimigo, aqui, nunca está longe.

    É dada ordem de marcha.

    E o que conta em campo aberto é a cadência.

    E a melhor forma de sobrevivência.

    Esta guerra é complexa e surpreendente…

    Campo Kassai.

    Marchar é preciso…

    É mais um dia de formação.

    Esta manhã são os militares do Batalhão de Infantaria Territorial 4.

    Duas companhias: 336 homens e 8 mulheres.

    Têm pouco mais de 3 meses para apreender a arte da guerra.

    — Alistei-me no exército centro-africano só para apoiar o meu país. Só para defender a integridade territorial do meu país, mas hoje infelizmente não há paz no meu país. Estou, portanto, decepcionado com o que está a acontecer no meu país. Pois, eu peço mesmo a Deus. Se Deus me der a paz no meu país é o suficiente. — confessa o cabo BIT 4, Régis Moresse.

    Treino operacional e educação.

    O projecto é de Bruxelas.

    Os 46 formadores de 5 nacionalidades são, essencialmente, europeus.

    A crise — para não dizer a guerra — começou há sete longos anos.

    O pais é um dos mais pobres do Mundo apesar da riqueza: diamantes, ouro e urânio.

    Os grupos armados são um dos problemas.

    Chegou-se a um nível básico de crueldade entre as pessoas que é incrível e que é difícil de aceitar. Da minha experiência noutros países africanos, obviamente pensei que seria difícil ver pior, mas o pior existe aqui na República Centro Africana. E se nós considerarmos que estamos no coração de África, isto deve naturalmente interpelar-nos. — conclui o comandante da Missão da União Europeia  na RCA.

    Treino de tiro com dois instrutores de Portugal e um de França.

    A arma é a AK 47.

    Calibre 7.62.

    Há 10 atiradores de cada vez.

    4 posições de tiro.

    São 2 tiros por posição.

    As distâncias são 25, 50, 80 e 100 metros.

    O responsavel, esta manhã, é um sargento-mor francês – de Infantaria de Marinha – que não poupa nada nem ninguém.

    Zero! Não é o seu primeiro zero! Você é um adepto do zero. — grita um sargento francês.

    A ideia é atirar a matar.

    O alvo é para atingir no centro, mais exactamente na zona laranja.

    A dificuldade é tirar a mirada – alinhar o ponto de mira com o centro do alvo.

    Temos que insistir muito mais porque é mais difícil a compreensão deles. Por exemplo, quando estamos, aqui, numa acção destas, não tenho ali alguém sempre ao meu lado para traduzir. Tenho que andar em cima deles. Conduzi-los muitas vezes para a acção. Faz assim… Faz assim… muitas vezes por gestos. Falo francês e eles não compreendem. Já sei algumas palavras em sangho, mas só isso não chega. Então, temos de estar em cima deles nesse aspecto. — afirma o primeiro-sargento Pedro Monteiro.

    Mudança de cenário.

    É dia de táctica de pelotão de combate.

    Deslocamento para a área do objectivo.

    Não há tempo a perder.

    O perigo na zona de morte é uma constante.

    O grupo de assalto avança.

    É preciso limpar o objectivo. O português orienta o movimento, corrige os erros.

    O primeiro inimigo é abatido. A fingir, claro.

    Inimigos neutralizados.

    Operação terminada.

    42 homens e uma mulher partem.

    É o momento do balanço.

    O grande desafio, aqui, serão exactamente os meios. Sabemos que estamos com fracos recursos e também temos que ter atenção a isso, adaptar-nos às condições que eles têm e dar-lhes ferramentas de forma a eles não fazerem porque sim, mas perceberem porque é que o fazem. — complementa o alferes Roque Seguro.

    A esperança — e o caminho a percorrer será necessariamente longo e penoso — é o horizonte, um dia, daqui a algum tempo, sabe-se lá, ser feito de democracia e de paz. 

    —A formação vai prosseguir e é tanto mais importante quanto a guerra continue.

    Os rebeldes controlam 80 por cento do território do país. Os acordos de paz — e não são poucos, já vamos no oitavo — sucedem-se, mas até hoje resumiram-se a estrondosos fracassos. — conto dentro de um helicóptero cheio de militares da RCA.

    Os formadores das FACA são a União Europeia e…
    (Foto: Rui Araújo)

    Bokolobo.

    Umas semanas depois dos combates.

    À entrada da cidade a barreira do grupo UPC.

    Há homens armados e de todas as idades por toda a parte.

    Bokolobo é um desses lugares onde a guerra parece humana…

    Fomos ter com os inimigos dos paraquedistas portugueses, aqui, no seu quartel-general.

    O grupo UPC perdeu dezenas e mais dezenas de combatentes, mas continua a controlar a cidade e a região.

    Centro de Saúde de Bokolobo.

    No pátio que faz de sala de espera…

    Aichatou Nouhou.

    9 anos.

    Foi para Pombolo para fugir da guerra. Não escapou à fome.

    Aichatou está a morrer. De malnutrição aguda.

    É muçulmana. Mas Deus (seja ele qual for!) não mora aqui…

    No interior do estabelecimento uma doente acamada espera…

    Tem 32 anos. É camponesa. Cuida da terra a 10 quilómetros daqui. Perdeu os sentidos por causa da fome…

    Os poucos medicamentos que há são distribuídos.

    Principais diagnósticos para os 14 mil 330 doentes: diarreia, malária, infecções, mais as doenças associadas à malnutrição.

    Quando vejo as crianças que sofrem, magras, e não temos nada para lhes dar, dói… Dói-me porque pedimos muitas vezes à Comunidade Internacional para ajudar essas crianças e ninguém as ajuda… Há vezes em que as crianças morrem de fome… — narra Jean Claude Dounia, chefe do Centro de Saúde de Bokolobo.

    — Portanto, há a guerra…

    — Há a guerra… Há o conflito armado que abalou as duas etnias: muçulmanos e cristãos. O sofrimento é o mesmo para todos. É o mesmo problema. É o mesmo problema…

    — E está optimista?

    Eu sou optimista. (PAUSA) Eu sou optimista…

    O Centro de Saúde não tem médico, não tem ambulância, não tem remédios que cheguem…

    A agonia é lúcida para a maioria desta gente.

    Olhares que nos interpelam…

    Há crianças que vêm cá e que morrem por causa da malnutrição. Peço aos parceiros… às pessoas de boa vontade para nos ajudarem a salvar a vida das crianças com problemas nesta aldeia. — diz em forma de lamento Kaleb Kette-Ouabolo, o auxiliar do Centro de Saúde.

    — Então, aqui, vive-se com… Há a guerra. Há a miséria. Há a fome… Que vida é esta, aqui?

    —Aqui, bem, é certo que a guerra reina, mas nós continuamos a viver juntos, cristãos e muçulmanos. Mas a miséria e a fome ultrapassam-nos. A fome e a miséria ultrapassam-nos porque, vocês sabe, na guerra que devastou este país muitas pessoas dos dois lados perderam os seus pertences, mas continuamos a viver juntos.

    — Não é uma guerra de religião?

    —Não é uma guerra de religião, não.

    — É uma guerra de quê?

    — É um assunto do Estado. Não é uma guerra de religião…

    Esta gente luta com afinco para sobreviver, aqui, fora de mão e longe de tudo…

    Aproximo-me de um doente.

    O ancião perdido numa tragédia que náo compreende.
    (Foto: Rui Araújo)

    — Deve ajudar-me. O corpo, sofro muito. Como? O que está a acontecer-me? Preciso de ajuda para salvar-me. É isso que lhe peço. — implora o ancião Paul Dolokepa.

    — A vida, aqui, é difícil?

    — É difícil, se souber como estamos. Eu luto. Eu quero dar uma explicação para que possa ver em que condições me encontro. O que se passa comigo? Porque estou assim, tão magro?

    — Come todos os dias?

    — Eu não como quase nada! O comer é mandioca.

    À falta de mandioca há quem mate a fome com as mangas.

    Os rebeldes do grupo UPC não estão longe. E tanto andam fardados como não. Depende… De quê? Não sabemos.

    Adamu Hassan. Tenente da UPC. — comunico ou pergunto ao rapaz que aceitou

    falar.

    Sim.

    — Tem que idade?

    — Tenho 22 anos. Aqui, na República Centro-Africana… Estou com as pessoas da UPC. Era o que eu queria. Há outros colegas queriam ser polícias ou gendarmes. Os outros queriam ir para as Forças Armadas. Queríamos ir para as Forças Armadas da República Centro-Africana.

    — Para fazerem o quê?

    — Porque… Porque a UPC é um bom movimento para as pessoas fazerem o nosso país ir para a frente. A UPC não queria a guerra. É um bom movimento.

    — E porque razão é um bom movimento?

    — Porque a UPC não queria desordem. É um bom movimento. Queria a paz…

    —  E a guerra para um jovem de 22 anos é o quê?

    — A guerra não é bom, mas na República Centro-Africana nós… nós… (Engasga-se)

    — O que é a guerra para um jovem?

    — A guerra… A guerra não é bom. O que nós… o que nós desejamos para o nosso país é bom.

    A propaganda inculcada dá sempre um discurso prudente…

    E tudo tem dois sentidos…

    É tarde de mais para perguntas de circunstância.

    Esta gente é perigosa.

    Há meia dúzia de meses, 200 a 400 combatentes do grupo UPC mataram com o apoio de civis mais de 100 pessoas (incluindo mulheres e crianças, algumas foram queimadas vivas) no campo de deslocados de Alindao.

    Estamos no território dos inimigos dos paraquedistas portugueses. E não só…

    Chegada do general Ali Darassa, o líder do grupo armado UPC.

    Pompa e circunstância. E demonstração de força.

    Encontro com Ali Darrassa, líder do movimento de guerrilha UPC no quartel-general de Bokolobo.
    (Foto: Rui Araújo)

    O guerrilheiro pretende tirar dividendos do acordo de paz celebrado há semanas, mas recusa fazer cedências significativas.

    A coisa promete…

    — Os grupos armados, incluindo a UPC, vão integrar o governo da República Centro-Africana. Uma paz duradoura é possível, agora, neste país?

    Como você disse, os grupos armados e o governo celebraram um acordo e até agora as coisas têm corrido muito bem. Estão a correr bem, mas não sabemos como é que vai ser no futuro. — responde-me o general em Fula.

    — Qual é o maior desafio para si, agora?

    — O maior desafio é a organização das unidades especiais mistas. Se essas unidades foram correctamente constituídas, pensamos que pouco a pouco o resto correrá bem.

    — Os combates em Bambari e, aqui mesmo, em Bokolobo há pouco tempo foram sangrentos. Os paraquedistas portugueses participaram. O que aconteceu de facto? Qual é a sua versão dos acontecimentos?

    — O que aconteceu em Bambari e aqui… A MINUSCA e mais exactamente o contingente português foram ludibriados pelo governo da República Centro-Africana. Nessa altura, ainda não tínhamos chegado a um acordo com o governo. O governo enganou-os e eles começaram a lutar contra nós. Os combates foram particularmente sangrentos e houve baixas dos dois lados. Em nada ajudou este país…

    — Houve quantas baixas do seu lado?

    — É impossível dar números.  Feitas as contas, foi a população civil quem mais sofreu…

    — Há cerca de ano e meio, aqui, em Bokolobo estávamos ali sentados e disse-me que não tinha má opinião dos portugueses. Faço-lhe a pergunta hoje. O que pensa dos portugueses?

    — Não temos problemas com os portugueses. O que aconteceu foi um incidente. O governo enganou-os. Eles avançaram. Aconteceu o que aconteceu. Isso, hoje, pertence ao passado.

    — Tenho só mais três perguntas. Qual é o seu sonho para a República Centro-Africana?

    — O nosso maior sonho para a República Centro-Africana é que haja paz. E que cada cidadão possa circular livremente…

    — E para a UPC? Qual é o seu sonho?

    — O sonho para a UPC é podermos integrar as Forças Armadas da República Centro-Africana e que a UPC possa contribuir para a segurança da população e do país.

    Os grupos armados proliferam no país. Controlam o território e os recursos.

    As Forças Armadas pouco ou nada podem fazer…

    A capital, Bangui, continua praticamente isolada do resto do país.

    Bangui, capital de um país em guerra.
    (Foto: Rui Araújo)

    O destino colectivo desta gente ainda é um espantalho dentro e fora do país apesar do oitavo acordo de paz…

    (1) Referência implícita ao grande livro sobre a guerra de Norman Mailer


    NOTA:

    Reportagem emitida originalmente na TVI, em 3 de Junho de 2019 [VER AQUI].

    Nota: Esta reportagem tem uma primeira parte: “Troquei a arma por uma máquina de costura“.


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