Um autocarro que deixa de parar nos apeadeiros por meio tostão de coisa alguma com 30 passageiros a bordo, 4 putos reguilas e um polícia particularmente mal encarado. Viagem — directa — rumo à esquadra da PSP mais próxima.
Brincadeiras…
— A gente estava no bar e resolvemos ir velar o morto. Só que depois ficámos cheios de sede e demos uma saltada até Sete Rios para ‘mamar’ umas imperiais. Tivemos azar, começou a chover. Precisávamos de apanhar um autocarro. E apanhámos. Os meus amigos entraram pela porta da frente, como manda a Lei. Eu, mais esperto do que os outros, pela de trás. Foi então que apareceu o senhor guarda. Identificou-se e mandou parar o autocarro. Eu lá saí, dei a volta e voltei a entrar pela porta da frente. O motorista rasgou-me o bilhete e tudo. Só que quando me juntei à malta, já havia ‘bronca’. Estava toda a gente a discutir. Eu agarrei, meti-me na barafunda. O guarda manda vir com a gente e a gente a mandar vir com ele. Em vez de sair ou sairmos, em vez disso, mandou seguir o autocarro direitinho até à esquadra. Ele não deu cavaco a ninguém. E nós, por causa do mau feitio dele, passámos uma noitada nos calabouços do Governo Civil. É uma injustiça…
… disse o juiz
O Tribunal considerou que não houve qualquer crime ou delito. Os quatro mariolas foram absolvidos depois ou antes — não se sabe bem — de alguém na sala de audiências apresentar as suas condolências pelo falecido.
— A gente foi velar o homem porque é lá do nosso bairro. E a gente, como é amigos, fomos lá dar os sentimentos. É preciso dar os sentimentos às pessoas.
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 18 de Junho de 1988.
“Foram-lhe então lidos os direitos e deveres consignados no Código de Processo Penal. O mesmo declarou não desejar que as autoridades informassem a sua família ou amigos da detenção. Como medida de precaução, foi-lhe retirado um cinto de cor castanha feito em pele de cobra e um porta-chaves com quatro chaves tipo diverso.“
In ‘Auto de Notícia’
Óscar, angolano, 30 anos, solteiro, sem profissão — imigrante clandestino em terras de Portugal — e agora réu por ter tentado furtar na Casa Africana — ironias do destino — umas calças que vestia por baixo de outras no valor de 7.100 escudos (cerca de 350 euros). O cordel que servia de cinto descaiu. E pronto. Os vigilantes da loja deram pelo deslize.
Após o furto, Óscar foi perseguido por empregados e clientes. O sr. Durão, vigilante, não esteve com meias medidas. Atirou-se a Óscar. E deteve-o. É o que reza o Auto de Notícia. É o que conta o próprio sr. Durão…
— A casa tem um sistema de alarme. E o alarme dispara quando passa por ele qualquer artigo não liquidado. E foi isso que sucedeu, mas eu já tinha dado pela artimanha. Fui ter com o rapaz. Só que o cavalheiro fugiu. Persegui-o. Ele desequilibrou-se e não sei mais quê. Andou por ali assim às voltas e eu caí-lhe em cima. Passados escassos minutos, apareceu a Polícia…
Foi mais ou menos assim. Sérgio, o agente da PSP, confirma também ele esta versão dos acontecimentos.
— Ouvi alguém gritar “agarra que é ladrão” e movi perseguição ao indivíduo. Como é meu dever. Mais tarde, o detido foi agarrado por este senhor — Durão — que mo entregou sob prisão. Ele foi então conduzido à loja para retirar as calças que não eram dele…
— Que explicação deu o homem?
— Explicação? Qual explicação? Ele parece mudo. O tipo não fala…
Sentença
Veredicto do tribunal : Óscar condenado a pagar uma multa de 12.000 escudos (600 euros) ou, em alternativa, a cumprir 40 dias de prisão. Mais uma indemnização de 1.000 escudos (50 euros) à Casa Africana — certamente por ter gasto as calças. Pena suspensa por dois anos.
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 15 de Outubro de 1988.
— Sou ali apanhado na rua Maria Pia às seis da tarde e estou até às 11 da manhã só com um «coiso» de café. Não se admite! E muito menos estar fechado só para responder num tribunal. Dormir em cima de tábuas… não se justifica. — diz o réu Fernando.
Fernando, 28 anos, solteiro, analfabeto inconfessado, pintor de automóveis e artista da condução sem carta.
Aos 14 começou a acelerar com o carro do tio. Aos 28 encostou num beco sem saída. Já não há ordenado (mesmo com uns valentes biscates) que chegue para pagar tanta multa. Sem falar nos pesadelos que são as noites nos calabouços do Governo Civil…
— Desta vez, ainda foi pior, que eu estive lá desde as seis da tarde até agora, sem comer. Agora, veja bem o que é que um gajo há-de fazer…
— Foi apanhado a guiar sem carta…
— Pois.
— … pela quinta vez.
— Pois.
— A primeira vez foi há sete anos…
— Se não estou em erro, foi mais ou menos isso.
— E porque é que ainda não tirou a carta?
— Não sei. Não me puxa para estudar os livros…
— Guiar, sabe…
— Então, não sei… Respeito o trânsito. Tanto, que todas as vezes em que fui apanhado nunca foi em transgressão. Ia sempre na norma, como vão os outros, mas não me puxa para tirar a carta…
Fernando foi uma vez a exame e chumbou. Como chumbou, comprou mais um carro em segunda-mão para apagar a mágoa. Aplicou-se ainda mais na condução.
— E agora?
— Agora? Não vou pegar mais em carros.
— E tirar a carta?
— Nem tirar a carta. Vou mudar para motos. Como tenho licença de motorizadas, escuso de andar a meter-me nisto…
— Mas porque não tenta tirar a carta mais uma vez?
— É muito difícil. É difícil porque eu não gosto de estar ali a ler. Se eu gostasse de ler, acho que conseguia tirar a carta…
— Nunca lê nada?
— Nada!
— Livros?
— Nada!
— Jornais?
— Nada!
— Banda desenhada?
— Nem isso! Vejo é televisão. Aí é que eu leio.
— E lá em casa alguém lê?
— Há o meu irmão, mas esse não quer tirar a carta!
VEREDICTO
Houve transgressão. Fernando foi condenado a pagar uma multa de 50 contos [249 euros] ou, em alternativa, passar 133 dias na prisão. Mais as custas do processo…
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 6 de Agosto de 1988.
— Deus? Para mim, não há Deus. Dizem que Deus está no Céu. Dizem que Deus não dorme. Para mim, está sempre a passar pelas brasas. Nunca me ajuda. Cada vez, pior… Eu a querer fazer de mim alguém e não consigo. Deve ser o Diabo que tem mais poder e está a fazer-me mal. — confessa Ana Paula.
Ana Paula, 31 anos — 16 de heroína —, perdeu a família, a casa e o emprego. A liberdade, perdeu-a esta manhã. “Tropeçou” numa caixa de bananas no Mercado da Ribeira e veio parar ao Tribunal de Polícia apesar dos soluços de indignação. Tentou provar a sua inocência, mas toda a gente torceu o nariz. Pobres a tropeçar na vida é coisa que já não surpreende ninguém.
FACTOS 1
— Por causa de me drogar é que eu perdi tudo. Perdi filha, perdi marido, perdi tudo.
— Quando é que começou a meter-se na droga?
— Há 16 anos.
— E parou?
— Parei… quero parar.
— Heroína?
— Sim. Não há mais nada para dizer. O que é que eu vou dizer mais? Estou desgraçada. Não tenho nada.
— Onde vive?
— Numa escada.
— Há quanto tempo?
— Seis meses.
— E vai sobrevivendo com os fretes que faz na Praça da Ribeira?
— É disso que eu vivo… Eu não sei roubar. Se soubesse roubar não tinha a miséria que tenho.
— E o que é que aconteceu hoje?
— Hoje, foi isso. Fui lá à Praça. Uma senhora mandou-me ir buscar a caixa das bananas para eu lhe ir levar ao táxi. E aquela outra senhora — não era aquela caixa, era outra — disse-me que eu estava a tirar a caixa sem ter pago.
A realidade ou a conversa do costume. Pouco importa. A única certeza é que ninguém entendeu os sorrisos de inocência de Ana Paula. A começar pela vendedeira…
FACTOS 2
— Andou a apalpar as caixas vazias e naquilo entrou dentro do lugar e tirou outra. Aí, eu dei uma corrida — porque eu estava distante, mas estava a ver o que se passava — agarrei-a e perguntei-lhe para onde levava a caixa das bananas. Ela respondeu-me que a mandaram buscar. Mandaram buscar nada. Mandei-a meter a caixa ali, agarrei-a pelos colarinhos e não mais a larguei. Depois, mandei chamar o fiscal. Fomos para a administração e dali para a PSP. Ela não levou a caixa porque eu não a deixei. E ainda tentou fugir…
— Bateram nela?
— Não batemos. Agarrei-a pelos colarinhos. Se ela estiver magoada é pelo agarrão que lhe dei.
— Ela disse que levou uma sova…
— Devia levar, devia. Se ela voltar lá outra vez, vai ver. Então leva mesmo. Dou-lhe uma tareia que vai para o hospital. Antes do Natal levou-me 18 ananazes, mas uma senhora não a deixou levá-los. A outra semana, foi à minha colega. Já por outra vez levou outra caixa de bananas. Não pode ser! É assim constantemente. Ela tem de ser castigada…
VEREDICTO DO TRIBUNAL:
Houve delito de furto. Ana Paula foi condenada. Por não ter antecedentes criminais e estar numa débil situação económica o juiz suspendeu-lhe a pena por dois anos.
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 30 de Julho de 1988.
— O Ti António era um homem sério. Era uma pessoa considerada e estimada cá no bairro, mas um dia entrou pela minha casa adentro e, sem dizer patavina, agarrou nas coisas e atirou tudo janela fora. Pouco depois, meteu-se-lhe na cabeça ir para a rua fazer as necessidades. Foi um ver se te avias. Cada vez estava pior. Aquele homem já nem parecia o pacato Ti António que a gente conhecia… — conta uma vizinha.
Há histórias de amor ou de solidão que acabam em Auto de Notícia. Quando a mulher do senhor António adoeceu uma raiva surda e confusa apoderou-se do velhote e não mais o largou. Um dia — logo a seguir ao funeral da mulher — perdeu definitivamente o fio à meada. Abalou de casa com destino a parte alguma. Entrou num supermercado, deitou a mão à primeira bugiganga que lhe apareceu diante dos olhos e desandou. O vigilante deu pela coisa e o senhor António veio parar ao Tribunal de Polícia por meia dúzia de tostões. As atribulações do homem começaram aí. O Auto de Notícia é peremptório…
AUTO DE NOTÍCIA
António, 68 anos, viúvo, reformado a aguardar julgamento por furto num supermercado, foi mandado para a sala de impressões digitais por se encontrar a bocejar e a assobiar sozinho na sala de audiências. Cinco minutos depois, quando voltou à sala de audiências, a oficial judicial, Maria, deu conhecimento que este tinha o maçanete das impressões digitais no bolso do casaco, embrulhado numa folha do Tribunal, tendo-se apropriado do mesmo com a vontade livre e consciente e com a intenção de o integrar no seu património. Ao objecto furtado foi atribuído um valor jurado de 1.740 escudos [8,70 euros].
Após ter sido julgado no processo de furto, no qual foi condenado em 180 dias de prisão efectiva, o réu recolheu novamente à sala de impressões digitais, enquanto era elaborado o presente Auto.
Instantes depois, foi dado conhecimento pela oficial judicial Maria que António havia urinado numa caixa de cartão, contendo 500 envelopes do Tribunal, o que fez com vontade livre e consciente e com intenção de danificar os referidos envelopes, o que conseguiu. Aos envelopes danificados foi atribuído o valor jurado de mil escudos [5 euros].
O senhor António não contesta esta versão dos acontecimentos. Em boa verdade, não se recorda. Deu um tropeção na vida e pronto…
— Acusam-me de eu tirar o rolo das impressões digitais e de eu fazer chichi num sítio qualquer. Eu não me lembro, meu senhor. Eu andava mal, que a minha mulher tinha falecido. Estava perdido. Eu até já andava mal da cabeça desde que soube que a minha mulher tinha um tumor maligno no estômago. Era uma úlcera cancerosa ou coisa parecida. Depois, quando ela me veio a falecer, ainda fiquei pior. Não sabia o que fazia. Disto que sou acusado agora não me recordo. Agora que eu andava tão bem, graças a Deus… É que eu ando bem. Ando a trabalhar — mas não estou empregado! — simplesmente há casas que guardam aquelas caixas de cartão vazias e dão-mas e eu vou vender porque a minha pensão é pequena. É a minha forma de fazer face às despesas. É o comerzinho, depois é a renda da casa, é a luz, é a água e o telefone. É claro, vejo-me e, às vezes, desejo-me… Vou tratando da minha vida com o papelinho e tenho de fazer limpeza à minha casa. Tenho cinco divisões e infelizmente estou sozinho. Falta-me a mulher. Eu é que tenho de fazer tudo: a limpeza, o comer e até roupa lavo. Não faço mal a ninguém…
CONCLUSÃO
Julgamento adiado sine die. O senhor António vai ter agora de efectuar alguns exames psiquiátricos. O Tribunal pretende saber se há alienação mental antes de julgar o homem.
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 4 de Junho de 1988.
— A moral da história é um indivíduo sair à noite para passar uns bons bocados e entrar numa aventura. E não saber como acaba a noite… O meu cliente precisa de estar em óptimas condições físicas, mas acabou por estar todo o fim-de-semana detido nos calabouços do Governo Civil de Lisboa — conclui o advogado.
Alcides, solteiro, cabo-verdiano, jogador de futebol e agora réu por ter ido a uma discoteca com a namorada. Acusação: injúrias e desobediência à Autoridade.
O Auto de Notícia reza que estando o guarda em serviço remunerado na discoteca Cave X «o proprietário disse ao futebolista que não podia entrar por ser indesejável à casa e ali ter causado vários distúrbios. Como o mesmo tentasse forçar a entrada, o dono pediu a intervenção da Polícia, que aconselhou o réu a retirar-se e ir procurar outro estabelecimento. O mesmo não obedeceu.»
Alcides terá, então, injuriado o agente da PSP, mas o advogado do jogador tem outra versão dos factos…
A defesa passa ao ataque…
— O indivíduo olhou para ele e pura e simplesmente não o deixou entrar.
— Racismo?
— Não considero isso racismo porque essa palavra é forte. Não quero ir para esse lado…
— Então, qual foi o pretexto?
— Eu admito até que tenha sido a «plástica» dele. A maneira como ele levava o penteado, sei lá. Há algo que estigmatizou o porteiro da «boîte». Daí, ele querer saber o porquê. Responderam-lhe que não entrava porque o dono não queria. Nisto, foi chamado pelo polícia que veio cá fora. A namorada, que tinha ficado dentro da «boîte» a pedido do polícia até a questão ser resolvida, foi agarrada por um braço e expulsa. Quando o Alcides viu o que se estava a passar com a namorada, reagiu. Disse ao agente para ver o que estava a acontecer. Que o senhor porteiro e o dono da «boîte» estavam a ter um comportamento FP (FP’25). A partir daí mais nada se passou. É evidente que neste caso a questão que se põe é saber a quem deve obedecer um agente da PSP quando se encontra à porta de uma discoteca. Se deve agir com aquela imparcialidade necessária que é imposta pela Lei ou sob o mando dos patrões. Aquilo que se verificou é que o agente foi simplesmente acatador das ordens do indivíduo da «boîte», que disse que o Alcides tinha de ser preso e arranjou-se o pretexto, segundo o qual teria dirigido palavras obscenas ao polícia e extensivas a eles.
O árbitro marca falta
Alcides foi absolvido. Não se provou ter havido desobediência. A ordem era ilegítima. Também não ficou provado ter havido qualquer injúria.
E foi dada por terminada a contenda…
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 24 de Setembro de 1988.
Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 8 de Outubro de 1988, sobre Carlos Manuel, 25 anos, solteiro, pintor da construção civil e agora réu por gostar da Anabela e do bailarico.
Foto: Rui Araújo
BAILAR COM A ANABELA
— A moral da história é que como o porteiro não me queria deixar entrar, os polícias deviam pegar em mim e irem comigo lá acima esclarecer o caso. Eu vinha-me embora a bem, não é assim da maneira que eles agiram. E já não é o primeiro que me faz coisas destas… Uma vez, houve um que até me ‘amandou’ um tiro num vão de escada… — lamenta-se o réu.
Carlos Manuel, 25 anos, solteiro, pintor da construção civil e agora réu por gostar da Anabela e do bailarico.
Auto de notícia
«O rapaz entrou na discoteca quando a sua entrada está proibida. É normal o detido perturbar o ambiente da sala. Desta vez, não deixava fechar a porta. Dirigi-me a ele no sentido de lhe fazer ver que o seu acto não estava correcto. Solicitei-lhe que deixasse fechar a porta e abandonasse o local. Não me obedeceu. Tive de o agarrar pelas costas para fechar a porta. O detido apresenta um pequeno ferimento no lábio que não foi provocado por mim em virtude de este, ao sentir-se agarrado, ter soltado de imediato a porta não sendo necessário fazer uso da força.»
Foto: D.R.
Acto de amor
— O porteiro não me queria deixar entrar porque eu teria a entrada cortada. Eu não o deixei fechar a porta. O tipo chamou o polícia, que se virou a mim. Queria tirar-me à força. E eu agarrado à porta. Até ainda tenho aqui o ferimento no dedo. Depois, o polícia virou-se ao murro a mim e apertou-me o pescoço. Chegou a carrinha da PSP e fui parar à esquadra. Daí, levaram-me para o Governo Civil. Estive lá até há bocado…
— Porque insistiu tanto para entrar na discoteca?
— Trabalhei naquela boîte e acho que nunca lá fiz mal nenhum. Foi só por isso…
— Mas porque razão não se foi embora antes de aquilo dar para o torto?
— Não me fui embora porque queria ir lá dentro saber qual era a justificação para eu não poder entrar.
— E tem a certeza que não sabe qual é o motivo?
— Sei lá… Se calhar, é por eu andar a dançar com as empregadas da casa… Coisa que a patroa detestava era isso. Deve ser essa a razão…
— Gosta mesmo de dançar?
— Gosto e sempre gostei. Eu era empregado lá e mesmo assim quando podia dançar, dançava. Assim que podia dar uma fugida para dançar, lá ia eu.
— Tem algum ídolo? Dançarino ou bailarina?
— Tenho uma rapariga chamada Anabela, lá dentro.
— E cá fora?
— Cá fora, não.
— O que dança?
— Eu danço qualquer música, então não é?
Despacho
«Considerando que o réu apresenta ferimento visível no lábio superior e atendendo às suas declarações, considero inconveniente a tramitação do processo sob a forma sumária, motivo pelo que determino a sua remessa ao Ministério Público e exame médico para Carlos Manuel que vai em liberdade.»
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 8 de Outubro de 1988.
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Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 29 de Outubro de 1988, sobre Manuel Amílcar, 21 anos, solteiro, condutor manobrador da construção civil e agora réu por tuta-e-meia.
Foto: Rui Araújo
O BILHETE ESTAVA NA MOITA
— Ó pá, eu nunca fiz mal nenhum ali ao polícia. Eu até nem o conheço. Ou ele «engraçou» comigo ou, então, não topo… Isto já nem é a primeira vez que acontece naquela esquadra. Eles levam as pessoas e batem na malta sem razão nenhuma. Já não sou o primeiro… — queixa-se o réu.
Manuel Amílcar, 21 anos, solteiro, condutor manobrador da construção civil e agora réu por tuta-e-meia. Mais uma história de faca e alguidar ou a prepotência fardada.
Acto 1
O rapaz, que vem acusado de «agressão a agente da Autoridade», foi interceptado por se ter tornado suspeito.
Eis a versão policial dos acontecimentos.
— Solicitei-lhe a identificação. Não achou por bem a minha intervenção e respondeu-me que a tinha na Moita. Ao mesmo tempo e num gesto inopinado, agrediu-me com um murro no peito e uma dentada. Para manter o capturado em respeito e sua captura foi necessário fazer uso da força física do que resultou ter ficado com um ligeiro ferimento no lábio superior bem como simples escoriações nas costas.
Acto 2
Manuel Amílcar tem , obviamente, outra noção do sucedido. E, como de costume, é literalmente oposta da versão policial.
— Saí de casa. Fui ao café para beber uma cervejita. Estava à porta do café quando chegou o polícia. Disse-me que não podia estar ali a beber a cerveja. Respondi-lhe que não sabia que era proibido. Perguntou-me se eu tinha interesse em que a dona da casa apanhasse uma multa. Disse-lhe que não e que para a próxima não fazia isso. Começou a falar com outras pessoas. Pediu-me a identificação. Disse-lhe que tinha o Bilhete de Identidade em casa, mas que não estava assim muito bom. Estava estragado. Mas que tinha outro que estava na Moita. Aí, mandou-me entrar para dentro da carrinha. Entrei e começaram logo a bater-me. Depois, puseram-me na esquadra e mandaram-me para o Governo Civil de Lisboa.
— Porque é que não anda com o Bilhete de Identidade?
— Então, o café é mesmo por baixo da minha casa. Eu até lá fui em mangas de camisa e tudo… Prontes, tinha acabado de jantar e saí de casa. E tinha intenção de ir para casa novamente.
— E ninguém se ofereceu para ir a sua casa buscar o BI?
— Não. Eles levaram-me logo. Mas foram levar-me à esquadra.
— Costuma ter problemas com a Polícia?
— Não. O único problema que tive com a Polícia foi há três anos. Eu…
— Estava a furtar gasolina…
— Bem, nem cheguei a furtar. Mas depois fui responder e prontes. Nunca mais tive problemas.
— Desta vez, teria agredido o agente…
— Não, senhor. É mentira! Aquele bocadinho que ele tem ferido foi de um soco que ele me deu. E não foi só um. Foram montes deles. É o olho, é a boca, é uma tristeza…
Acto 3
Uma coisa é certa. Não chegou a haver julgamento. O juiz considerou inconveniente a tramitação do processo sob a forma sumária. Havia feridos a mais. Remessa dos autos ao Ministério Público junto dos juízos correccionais de Lisboa. E exame médico para Manuel Amílcar, que vai em liberdade.
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 29 de Outubro de 1988.
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Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 2 de Julho de 1988, sobre João Carlos, 25 anos, solteiro, serralheiro desempregado.
Foto: Rui Araújo
A ÚLTIMA CEIA
— Os problemas que tenho tido é coisas simples: um sozinho abalar sem pagar. Uma vez até foram dois, mas era uma conta relativa. Fora disso, nunca tive problemas nem com isso nem com aquilo. Tenho sido uma pessoa feliz… — justifica-se o dono do restaurante.
Eram cinco. Foi um fartar vilanagem. Comeram, beberam… E deram à sola. Só que o mais lento ou o mais ingénuo — João Carlos, 25 anos, solteiro, serralheiro desempregado — permaneceu no restaurante e meteu-se numa alhada. Ficou a contas com a Justiça.
O senhor Joaquim José, patrão do restaurante, conta a ementa da malandragem. É um homem sem papas na língua…
A ementa
— Entraram cinco indivíduos. Mandaram vir logo pão, queijo, manteiga e cinco vermutes. Estudaram a lista e mandaram vir duas amêijoas — uma à Bulhão Pato e outra à Espanhola. Paparam tudo. Atiraram-se à lista outra vez e mandaram vir mais cinco escalopes aos champinhons. Comeram os escalopes — ainda foi mais um bocadinho de arroz porque um gostava muito de arroz —, regados com duas garrafitas de vinho verde. E mais duas garrafas. E outras duas. Acabaram de comer os escalopes e atiraram-se a umas mousses e ao arroz-doce. Repetiram. Pediram cinco cafés e cinco uísques.
Escuto o dono do restaurante, algo intrigado.
Foto: D.R.
— Eu, aí, comecei a desconfiar um bocado mas já que ia embalado, continuei. Gelo e duas colas. Mais cinco uísques. Daí a mais um bocadito, mais cinco uísques. E mais duas Colas. Aí, um deles abalou, não sei onde foi. E outros três começaram a ir para a porta. Eu abeirei-me deste que está aqui preso e perguntei-lhe se ficava responsável por aquilo. «O senhor não tenha problemas. Fique descansado que eles vão ali e não demoram nada…» Pois, só que eu comecei a ver aquilo — a conta já ia nos 13.520 escudos [67,43 euros] — e chamei o guarda. E foi aí que fomos todos parar à esquadra de Arroios. O homem não tinha um «chavo». Não tinha carteira nem maço de cigarros, uma carteirita de fósforos, nada. Tinha mas era um cordel a atar as calças… Começou a chorar muito. Pediu-me desculpa. Se soubesse que era assim não tinha aceite o convite deles. Quanto a mim ele serviu de cobaia daqueles grandes gabirus…
E a sentença
Não chegou a haver julgamento. João Carlos não possui qualquer documento de identificação. A história vai continuar nos juízos correccionais de Lisboa.
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 2 de Julho de 1988.
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Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 23 de Julho de 1988, sobre José Manuel, 30 anos, casado, três filhos, canalizador, montador de andaimes e agora réu por injúrias e desobediência à Autoridade.
Foto: Rui Araújo
TARDE DE TIROS
José Manuel, 30 anos, casado, três filhos, canalizador, montador de andaimes e agora réu por injúrias e desobediência à Autoridade.
Versão da PSP
(AUTO DE NOTÍCIA)
«Sai daí, palhaço! Manda andar esta merda!» Perante tal fraseado, aconselhei o réu a mudar a sua compostura. Só que o mesmo, em vez de se moderar, repetiu as mesmas frases e ainda acrescentou: «Vai para o c… , que é o que tu queres!» Em face disso, mandei-o encostar, mas o mesmo não só não parou como acelerou a viatura passando pela minha esquerda em grande velocidade, ao mesmo tempo que gesticulava frases imperceptíveis.»
Perante tal atitude movemos-lhe perseguição, alcançando-o. Colocando-me ao lado do veículo, voltei a ordenar que parasse a viatura. Este disse a seguinte frase: «Eu paro mas é o c…».
Fizemos todas as tentativas em vão. Tivemos de abandonar aquela posição para não sermos colhidos. Em vez de afrouxar ainda acelerava mais. Optei por fazer um disparo de pistola para o ar com o intuito de intimidar, mas, como isso não aconteceu disparei mais três tiros para os pneus não acertando em nenhum deles. O mesmo prosseguiu a fuga só vindo a parar 500 metros mais à frente por não ter onde passar devido a um congestionamento do trânsito por motivo da ocorrência de um acidente de viação. Uma vez imobilizado, o condutor foi instado a facultar a documentação referente a si e à viatura, ao que respondeu: «Tenho-os aqui, mas não os dou a merdas como vocês! Nem saio de dentro do carro.» Assim, dei-lhe voz de detenção. Uma vez nesta Divisão de Trânsito, o detido foi submetido ao teste alcoolémico onde acusou 3,8 gr de álcool por litro (NOTA: Limite legal é de 0,49 gr/l).»
Foto: D.R.
Versão do réu
— Eu vou de carro. O polícia manda-me parar ali na Rotunda, mas quando olho para o meu lado direito verifico que estão ali parados autocarros. Levo o meu vidro a meio. Também penso que não é para mim. Continuo a andar. Com as motas atrás. Deixo-as andar. Sem dizer patavina. Mandam-me encostar. Chego a determinado sítio e eles começam a atirar tiros. Aí, paro. Conforme eu paro, abrem-me a porta do carro e sacodem-me cá para fora. Agarro-me ao braço desse agente que ia a cair também, mas vem o outro. Agarra-me, dá-me com o joelho nas «partes», amanda-me um murro na cara, passa-me as algemas, põe-me dentro do carro patrulha e leva-me para baixo. Lá, conversei com eles porreiramente. Se eu não tivesse bebido, não tinha dito nada. Eu até sou um gajo que anda na estrada… E obedeço sempre às patrulhas. Até à data de hoje nunca levei uma multa.
Versão do tribunal
(SENTENÇA)
«Houve crime de desobediência e injúrias. Como os agentes da PSP declaram não desejar procedimento pelas palavras injuriosas, o réu vai condenado em 40 contos (200 euros) de multa ou, em alternativa, 36 dias de prisão.»
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 23 de Julho de 1988.
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