— A moral da história é um indivíduo sair à noite para passar uns bons bocados e entrar numa aventura. E não saber como acaba a noite… O meu cliente precisa de estar em óptimas condições físicas, mas acabou por estar todo o fim-de-semana detido nos calabouços do Governo Civil de Lisboa — conclui o advogado.
Alcides, solteiro, cabo-verdiano, jogador de futebol e agora réu por ter ido a uma discoteca com a namorada. Acusação: injúrias e desobediência à Autoridade.
O Auto de Notícia reza que estando o guarda em serviço remunerado na discoteca Cave X «o proprietário disse ao futebolista que não podia entrar por ser indesejável à casa e ali ter causado vários distúrbios. Como o mesmo tentasse forçar a entrada, o dono pediu a intervenção da Polícia, que aconselhou o réu a retirar-se e ir procurar outro estabelecimento. O mesmo não obedeceu.»
Alcides terá, então, injuriado o agente da PSP, mas o advogado do jogador tem outra versão dos factos…
A defesa passa ao ataque…
— O indivíduo olhou para ele e pura e simplesmente não o deixou entrar.
— Racismo?
— Não considero isso racismo porque essa palavra é forte. Não quero ir para esse lado…
— Então, qual foi o pretexto?
— Eu admito até que tenha sido a «plástica» dele. A maneira como ele levava o penteado, sei lá. Há algo que estigmatizou o porteiro da «boîte». Daí, ele querer saber o porquê. Responderam-lhe que não entrava porque o dono não queria. Nisto, foi chamado pelo polícia que veio cá fora. A namorada, que tinha ficado dentro da «boîte» a pedido do polícia até a questão ser resolvida, foi agarrada por um braço e expulsa. Quando o Alcides viu o que se estava a passar com a namorada, reagiu. Disse ao agente para ver o que estava a acontecer. Que o senhor porteiro e o dono da «boîte» estavam a ter um comportamento FP (FP’25). A partir daí mais nada se passou. É evidente que neste caso a questão que se põe é saber a quem deve obedecer um agente da PSP quando se encontra à porta de uma discoteca. Se deve agir com aquela imparcialidade necessária que é imposta pela Lei ou sob o mando dos patrões. Aquilo que se verificou é que o agente foi simplesmente acatador das ordens do indivíduo da «boîte», que disse que o Alcides tinha de ser preso e arranjou-se o pretexto, segundo o qual teria dirigido palavras obscenas ao polícia e extensivas a eles.
O árbitro marca falta
Alcides foi absolvido. Não se provou ter havido desobediência. A ordem era ilegítima. Também não ficou provado ter havido qualquer injúria.
E foi dada por terminada a contenda…
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 24 de Setembro de 1988.
Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 8 de Outubro de 1988, sobre Carlos Manuel, 25 anos, solteiro, pintor da construção civil e agora réu por gostar da Anabela e do bailarico.
BAILAR COM A ANABELA
— A moral da história é que como o porteiro não me queria deixar entrar, os polícias deviam pegar em mim e irem comigo lá acima esclarecer o caso. Eu vinha-me embora a bem, não é assim da maneira que eles agiram. E já não é o primeiro que me faz coisas destas… Uma vez, houve um que até me ‘amandou’ um tiro num vão de escada… — lamenta-se o réu.
Carlos Manuel, 25 anos, solteiro, pintor da construção civil e agora réu por gostar da Anabela e do bailarico.
Auto de notícia
«O rapaz entrou na discoteca quando a sua entrada está proibida. É normal o detido perturbar o ambiente da sala. Desta vez, não deixava fechar a porta. Dirigi-me a ele no sentido de lhe fazer ver que o seu acto não estava correcto. Solicitei-lhe que deixasse fechar a porta e abandonasse o local. Não me obedeceu. Tive de o agarrar pelas costas para fechar a porta. O detido apresenta um pequeno ferimento no lábio que não foi provocado por mim em virtude de este, ao sentir-se agarrado, ter soltado de imediato a porta não sendo necessário fazer uso da força.»
Acto de amor
— O porteiro não me queria deixar entrar porque eu teria a entrada cortada. Eu não o deixei fechar a porta. O tipo chamou o polícia, que se virou a mim. Queria tirar-me à força. E eu agarrado à porta. Até ainda tenho aqui o ferimento no dedo. Depois, o polícia virou-se ao murro a mim e apertou-me o pescoço. Chegou a carrinha da PSP e fui parar à esquadra. Daí, levaram-me para o Governo Civil. Estive lá até há bocado…
— Porque insistiu tanto para entrar na discoteca?
— Trabalhei naquela boîte e acho que nunca lá fiz mal nenhum. Foi só por isso…
— Mas porque razão não se foi embora antes de aquilo dar para o torto?
— Não me fui embora porque queria ir lá dentro saber qual era a justificação para eu não poder entrar.
— E tem a certeza que não sabe qual é o motivo?
— Sei lá… Se calhar, é por eu andar a dançar com as empregadas da casa… Coisa que a patroa detestava era isso. Deve ser essa a razão…
— Gosta mesmo de dançar?
— Gosto e sempre gostei. Eu era empregado lá e mesmo assim quando podia dançar, dançava. Assim que podia dar uma fugida para dançar, lá ia eu.
— Tem algum ídolo? Dançarino ou bailarina?
— Tenho uma rapariga chamada Anabela, lá dentro.
— E cá fora?
— Cá fora, não.
— O que dança?
— Eu danço qualquer música, então não é?
Despacho
«Considerando que o réu apresenta ferimento visível no lábio superior e atendendo às suas declarações, considero inconveniente a tramitação do processo sob a forma sumária, motivo pelo que determino a sua remessa ao Ministério Público e exame médico para Carlos Manuel que vai em liberdade.»
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 8 de Outubro de 1988.
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Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 29 de Outubro de 1988, sobre Manuel Amílcar, 21 anos, solteiro, condutor manobrador da construção civil e agora réu por tuta-e-meia.
O BILHETE ESTAVA NA MOITA
— Ó pá, eu nunca fiz mal nenhum ali ao polícia. Eu até nem o conheço. Ou ele «engraçou» comigo ou, então, não topo… Isto já nem é a primeira vez que acontece naquela esquadra. Eles levam as pessoas e batem na malta sem razão nenhuma. Já não sou o primeiro… — queixa-se o réu.
Manuel Amílcar, 21 anos, solteiro, condutor manobrador da construção civil e agora réu por tuta-e-meia. Mais uma história de faca e alguidar ou a prepotência fardada.
Acto 1
O rapaz, que vem acusado de «agressão a agente da Autoridade», foi interceptado por se ter tornado suspeito.
Eis a versão policial dos acontecimentos.
— Solicitei-lhe a identificação. Não achou por bem a minha intervenção e respondeu-me que a tinha na Moita. Ao mesmo tempo e num gesto inopinado, agrediu-me com um murro no peito e uma dentada. Para manter o capturado em respeito e sua captura foi necessário fazer uso da força física do que resultou ter ficado com um ligeiro ferimento no lábio superior bem como simples escoriações nas costas.
Acto 2
Manuel Amílcar tem , obviamente, outra noção do sucedido. E, como de costume, é literalmente oposta da versão policial.
— Saí de casa. Fui ao café para beber uma cervejita. Estava à porta do café quando chegou o polícia. Disse-me que não podia estar ali a beber a cerveja. Respondi-lhe que não sabia que era proibido. Perguntou-me se eu tinha interesse em que a dona da casa apanhasse uma multa. Disse-lhe que não e que para a próxima não fazia isso. Começou a falar com outras pessoas. Pediu-me a identificação. Disse-lhe que tinha o Bilhete de Identidade em casa, mas que não estava assim muito bom. Estava estragado. Mas que tinha outro que estava na Moita. Aí, mandou-me entrar para dentro da carrinha. Entrei e começaram logo a bater-me. Depois, puseram-me na esquadra e mandaram-me para o Governo Civil de Lisboa.
— Porque é que não anda com o Bilhete de Identidade?
— Então, o café é mesmo por baixo da minha casa. Eu até lá fui em mangas de camisa e tudo… Prontes, tinha acabado de jantar e saí de casa. E tinha intenção de ir para casa novamente.
— E ninguém se ofereceu para ir a sua casa buscar o BI?
— Não. Eles levaram-me logo. Mas foram levar-me à esquadra.
— Costuma ter problemas com a Polícia?
— Não. O único problema que tive com a Polícia foi há três anos. Eu…
— Estava a furtar gasolina…
— Bem, nem cheguei a furtar. Mas depois fui responder e prontes. Nunca mais tive problemas.
— Desta vez, teria agredido o agente…
— Não, senhor. É mentira! Aquele bocadinho que ele tem ferido foi de um soco que ele me deu. E não foi só um. Foram montes deles. É o olho, é a boca, é uma tristeza…
Acto 3
Uma coisa é certa. Não chegou a haver julgamento. O juiz considerou inconveniente a tramitação do processo sob a forma sumária. Havia feridos a mais. Remessa dos autos ao Ministério Público junto dos juízos correccionais de Lisboa. E exame médico para Manuel Amílcar, que vai em liberdade.
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 29 de Outubro de 1988.
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Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 2 de Julho de 1988, sobre João Carlos, 25 anos, solteiro, serralheiro desempregado.
A ÚLTIMA CEIA
— Os problemas que tenho tido é coisas simples: um sozinho abalar sem pagar. Uma vez até foram dois, mas era uma conta relativa. Fora disso, nunca tive problemas nem com isso nem com aquilo. Tenho sido uma pessoa feliz… — justifica-se o dono do restaurante.
Eram cinco. Foi um fartar vilanagem. Comeram, beberam… E deram à sola. Só que o mais lento ou o mais ingénuo — João Carlos, 25 anos, solteiro, serralheiro desempregado — permaneceu no restaurante e meteu-se numa alhada. Ficou a contas com a Justiça.
O senhor Joaquim José, patrão do restaurante, conta a ementa da malandragem. É um homem sem papas na língua…
A ementa
— Entraram cinco indivíduos. Mandaram vir logo pão, queijo, manteiga e cinco vermutes. Estudaram a lista e mandaram vir duas amêijoas — uma à Bulhão Pato e outra à Espanhola. Paparam tudo. Atiraram-se à lista outra vez e mandaram vir mais cinco escalopes aos champinhons. Comeram os escalopes — ainda foi mais um bocadinho de arroz porque um gostava muito de arroz —, regados com duas garrafitas de vinho verde. E mais duas garrafas. E outras duas. Acabaram de comer os escalopes e atiraram-se a umas mousses e ao arroz-doce. Repetiram. Pediram cinco cafés e cinco uísques.
Escuto o dono do restaurante, algo intrigado.
— Eu, aí, comecei a desconfiar um bocado mas já que ia embalado, continuei. Gelo e duas colas. Mais cinco uísques. Daí a mais um bocadito, mais cinco uísques. E mais duas Colas. Aí, um deles abalou, não sei onde foi. E outros três começaram a ir para a porta. Eu abeirei-me deste que está aqui preso e perguntei-lhe se ficava responsável por aquilo. «O senhor não tenha problemas. Fique descansado que eles vão ali e não demoram nada…» Pois, só que eu comecei a ver aquilo — a conta já ia nos 13.520 escudos [67,43 euros] — e chamei o guarda. E foi aí que fomos todos parar à esquadra de Arroios. O homem não tinha um «chavo». Não tinha carteira nem maço de cigarros, uma carteirita de fósforos, nada. Tinha mas era um cordel a atar as calças… Começou a chorar muito. Pediu-me desculpa. Se soubesse que era assim não tinha aceite o convite deles. Quanto a mim ele serviu de cobaia daqueles grandes gabirus…
E a sentença
Não chegou a haver julgamento. João Carlos não possui qualquer documento de identificação. A história vai continuar nos juízos correccionais de Lisboa.
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 2 de Julho de 1988.
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Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 23 de Julho de 1988, sobre José Manuel, 30 anos, casado, três filhos, canalizador, montador de andaimes e agora réu por injúrias e desobediência à Autoridade.
TARDE DE TIROS
José Manuel, 30 anos, casado, três filhos, canalizador, montador de andaimes e agora réu por injúrias e desobediência à Autoridade.
Versão da PSP
(AUTO DE NOTÍCIA)
«Sai daí, palhaço! Manda andar esta merda!» Perante tal fraseado, aconselhei o réu a mudar a sua compostura. Só que o mesmo, em vez de se moderar, repetiu as mesmas frases e ainda acrescentou: «Vai para o c… , que é o que tu queres!» Em face disso, mandei-o encostar, mas o mesmo não só não parou como acelerou a viatura passando pela minha esquerda em grande velocidade, ao mesmo tempo que gesticulava frases imperceptíveis.»
Perante tal atitude movemos-lhe perseguição, alcançando-o. Colocando-me ao lado do veículo, voltei a ordenar que parasse a viatura. Este disse a seguinte frase: «Eu paro mas é o c…».
Fizemos todas as tentativas em vão. Tivemos de abandonar aquela posição para não sermos colhidos. Em vez de afrouxar ainda acelerava mais. Optei por fazer um disparo de pistola para o ar com o intuito de intimidar, mas, como isso não aconteceu disparei mais três tiros para os pneus não acertando em nenhum deles. O mesmo prosseguiu a fuga só vindo a parar 500 metros mais à frente por não ter onde passar devido a um congestionamento do trânsito por motivo da ocorrência de um acidente de viação. Uma vez imobilizado, o condutor foi instado a facultar a documentação referente a si e à viatura, ao que respondeu: «Tenho-os aqui, mas não os dou a merdas como vocês! Nem saio de dentro do carro.» Assim, dei-lhe voz de detenção. Uma vez nesta Divisão de Trânsito, o detido foi submetido ao teste alcoolémico onde acusou 3,8 gr de álcool por litro (NOTA: Limite legal é de 0,49 gr/l).»
Versão do réu
— Eu vou de carro. O polícia manda-me parar ali na Rotunda, mas quando olho para o meu lado direito verifico que estão ali parados autocarros. Levo o meu vidro a meio. Também penso que não é para mim. Continuo a andar. Com as motas atrás. Deixo-as andar. Sem dizer patavina. Mandam-me encostar. Chego a determinado sítio e eles começam a atirar tiros. Aí, paro. Conforme eu paro, abrem-me a porta do carro e sacodem-me cá para fora. Agarro-me ao braço desse agente que ia a cair também, mas vem o outro. Agarra-me, dá-me com o joelho nas «partes», amanda-me um murro na cara, passa-me as algemas, põe-me dentro do carro patrulha e leva-me para baixo. Lá, conversei com eles porreiramente. Se eu não tivesse bebido, não tinha dito nada. Eu até sou um gajo que anda na estrada… E obedeço sempre às patrulhas. Até à data de hoje nunca levei uma multa.
Versão do tribunal
(SENTENÇA)
«Houve crime de desobediência e injúrias. Como os agentes da PSP declaram não desejar procedimento pelas palavras injuriosas, o réu vai condenado em 40 contos (200 euros) de multa ou, em alternativa, 36 dias de prisão.»
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 23 de Julho de 1988.
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Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 13 de Agosto de 1988, sobre António, 45 anos, casado, pintor de automóveis, e a única pessoa ferida nesta história.
PALAVRAS
— A moral deste caso é que os agentes da Autoridade… Mais grave do que agredirem os cidadãos no exercício excessivo da sua autoridade é virem aqui aos tribunais e mentirem. Dizerem coisas que não se passaram ou ocorreram de forma diferente. — denuncia o homem.
António, o réu
António, 45 anos, casado, pintor de automóveis — um homem sereno e senhor de si que veio parar ao Tribunal de Polícia porque há dois anos teria injuriado e agredido um agente da PSP. Nota bastante curiosa à margem deste processo: António — acusado de agressão — é a única pessoa ferida nesta história.
A testemunha do crime
— Eu fui ao café mais o senhor António e umas pessoas amigas. Até que ele foi falar com a dona do estabelecimento para ela acabar com determinados problemas — telefonemas — lá para casa. Ela chateou-se. Deu-lhe com o tabuleiro dos copos. A seguir, deu-lhe com o rolo da massa. A gente acorreu para acudirmos. Entraram dois guardas de repente. O filho da dona do café saiu, entretanto, do balcão e atirou um soco ao senhor António. Aí, ele gritou logo para o guarda que o rapaz — o Manuel — acabara de lhe dar um soco. O guarda virou-se para o senhor António, que filho da p… era ele.
Aí, António sentiu estalar qualquer coisa dentro do coração. A brutalidade daquelas palavras sobre a sua mãe e o escarolado sorriso de desdém do polícia passavam das marcas. E o temporal, em vez de amainar, piorou. A partir daí…
A palavra da defesa
— O mais grave nisto tudo é que é fruto da sociedade em que estamos inseridos. A Polícia aproveita-se da farda que tem em cima do corpo e agride e insulta. Foi o caso do polícia que me chamou filho da p…
— Isso marcou-o?
— Isso marcou-me muito porque eu com seis anos fiquei sem mãe. Não a conheci. Não soube o que é chamar mãe. E de forma alguma aceitaria vir alguém — quanto mais uma Autoridade — chamar-me filho da mãe.
— Foi parar à esquadra. O que é que sucedeu?
— Fui agredido a caminho da esquadra. O polícia em causa deu-me um soco no rim do lado esquerdo. À noite, senti-me mal. Socorri-me ao Hospital de São José. Estive na sala de observações. Saí no sábado. Voltei a entrar novamente.
— O que tinha?
— O relatório acusou traumatismo craniano. Só que depois tinha de me apresentar aqui em tribunal na segunda-feira às 10 horas. Uma senhora doutora perguntou-me o que tinha no corpo. Mostrei-lhe. Despi a camisa. Ela viu. E por ordem deste tribunal este julgamento passou a criminal. Afinal de contas o julgamento acabou por se dar aqui.
A sentença
E demorou algumas horas até o juiz dar por finda a audiência. Veredicto do tribunal: não houve injúrias nem agressão a agente da autoridade. António foi simplesmente absolvido.
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 13 de Agosto de 1988.
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Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 5 de Novembro de 1988, sobre Maria João, 26 anos, solteira — dois filhos — , desempregada há uma eternidade.
LISBOA 1988
Esta história começou ontem.
Maria João, 26 anos, solteira — dois filhos — , desempregada há uma eternidade, compareceu em tribunal e não chegou a ser julgada. Não possuía qualquer documento de identificação. Ficou mais uma noite detida. Esta manhã, voltou ao banco dos réus para julgamento.
Tentou furtar num supermercado da capital duas embalagens de carne — alcatra e cachaço —, uma embalagem de lulas e sete iogurtes naturais.
A rapariga deu um jeito no cabelo, sorriu com os lábios grossos e contou o seu calvário sem protestos ou imprecações.
— Eu estou em casa dos meus pais. Tenho duas meninas. O pai está com a mais velha. Pois teve uma zanga com os meus pais. A minha mãe chateou-se comigo e meteu-me na rua. Eu, como não tinha comer nem para a minha filha nem para mim, fui buscar para as duas. Tive um bocadinho de pouca sorte. Fui apanhada pelo chefe e puseram-me aqui no tribunal. Fiquei cá duas noites a dormir por causa do bilhete de identidade.
— E agora? O que vai fazer?
— Tentar ir para casa. Ir ter com a minha filha.
— Como é que é a vida lá em casa?
— Acho que é tudo bem só que eu não tenho emprego. Já tive um emprego de mulher-a-dias. Estive um ano a trabalhar. Fui cozinheira, também. Eu precisava era de arranjar um emprego. E esquecer esta asneira que eu nunca tinha feito isto. Foi só por a gente estar com fome…
— E já tiveram fome muitas vezes?
— Já. Mas aguenta-se. Há vezes em que mesmo com fome não me chateio. Só que desta vez estava enervada por a minha mãe me ter posto na rua. Eu gostava mesmo era de arranjar um emprego. Mulher-a-dias, secretária, sei lá…
— Para não andar mais em tribunais?
— Para ter uma vida…
Conclusão
Veredicto do tribunal: houve crime de furto. Maria João condenada a 40 dias de prisão, substituídos por uma multa de 12 mil escudos. Pena suspensa por um ano.
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 5 de Novembro de 1988.
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Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 26 de Novembro de 1988, sobre Aníbal, 29 anos, solteiro, toxicómano, ‘barman’ e réu.
— Foi à garrafeira. Pegou numa garrafa de vinho verde e noutra de uísque. Foi à padaria. Sacou meia dúzia de pães. Foi à caixa número cinco. Pagou o vinho verde e o pão… — explica a funcionária da segurança do supermercado.
Antecedentes:
— Furto de motociclo.
— Ofensas à Autoridade.
— Posse de estupefacientes.
— Furto em supermercados com agressão a agente.
— Assalto a um estabelecimento comercial com arrombamento e tentativa de fuga.
Aníbal, 29 anos, solteiro, toxicómano, «barman» e agora réu por 1.438$00 (7,17 euros) — o preço de uma garrafa de uísque novo.
O pai do rapaz conta o pesadelo da família.
— Acho que as autoridades onde deviam actuar não actuam.
— Isso significa o quê?
— É que eu tenho um filho que, infelizmente, está no mundo da droga. É um consumidor. E o que eu tenho deparado ao longo destes anos é que as autoridades actuam sobre os consumidores — que são autênticas crianças — e nunca vejo prenderem os indivíduos que são os passadores. E...
— Como é que o seu filho mergulhou na droga?
— Foi há alguns anos atrás. Nós viemos de África. Isto tem sido uma luta constante. Já não bastou o problema da descolonização. E continuamos numa situação difícil. Ainda não me sinto realizado. Temos sido marginalizados…
— Isso aplica-se também ao seu filho?
— Sim. E a gente tem lutado muito para o salvar mas ninguém ajuda. A droga está a dar cabo da juventude. E devia haver instituições para recuperar esses jovens. Na prisão, eles apodrecem. Os governos deviam fazer algo. Gastam-se milhões de contos não sei onde e coisas necessárias como a reinserção dos jovens não existem.
Veredicto
Aníbal vai condenado. Uma multa de 27 contos (134 euros) ou em alternativa 60 dias de prisão. Mais as custas do processo.
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 26 de Novembro de 1988.
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Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 20 de Agosto de 1988, sobre António, 34 anos, profissão desconhecida.
— Tem 34 anos e nunca trabalhou?
— Trabalhei uma vez já lá vão muitos anos. Muito mais … já não me lembro.
— E como é que vive?
— Vivo mal. Não tenho alimentação e vivo mal.
— Como é que vai arranjando o suficiente para comer?
— Ando no… lixo. Tenho de apanhar umas coisas no lixo. Nos supermercados.
— E já alguma vez tentou arranjar emprego?
— Não. Não me interessa derivado ao ponto que já tenho…
António, 34 anos, solteiro, profissão desconhecida — desde que veio ao mundo apenas trabalhou meia dúzia de dias na faina da pesca —, antecedentes criminais banais. Preso várias vezes por vadiagem, furto e agressão a tiro. Pelo menos estas. Desta vez, veio parar ao Tribunal de Polícia por estar a perturbar o trânsito. Quando o agente da PSP o interpelou, António, mal-encarado e porventura bem bebido, puxou de uma navalha e tentou sangrar o polícia como quem sangra um porco.
Ainda bastante «entorpecido» o rapaz conta a história.
— Apanharam-me com um saco de lixo duas vezes e levaram-me à esquadra.
— E desta vez qual á a história?
— Desta vez? Ameacei o polícia. Estava assim um bocadinho bebido…
— Quem é que estava bebido?
— Eu.
— E ameaçou-o com quê?
— Com uma navalha.
— Mas ameaçou o agente porquê?
— Estava um bocadinho bebido. Deu-me na vida… Deu-me na vida e ameacei.
— E a seguir foi conduzido à esquadra?
— Fui.
— O que é que aconteceu lá?
— Deram-me pancada. Por onde calhou. Mas não me bateram muito… E depois trouxeram-me para aqui.
— E qual é a moral desta história?
— A moral desta história é derivado… Tenho mais coisas, mas não me rima contar.
— Que coisas?
— Coisas… Coisas que eu faço por aí na vida. Não me rima para falar desta maneira…
— E agora? O que vai fazer?
— Vou esperar até ver o que me vai acontecer.
— E vai acontecer o quê?
— Talvez ficar preso. Ou ir para a vida…
— Qual é o seu sonho?
— Ser lavrador!
— Porquê?
— Tem gente na vida. Tem gente na vida…
Não chegou a haver julgamento. Durante o interrogatório surgiram algumas dúvidas quanto à integridade mental do réu. O juiz decidiu restituir António à liberdade. Os autos vão agora ser remetidos para os juízos correccionais de Lisboa. Julgamento daqui a uns meses. Depois de António ser visto por um psiquiatra.
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 20 de Agosto de 1988.
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Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada na revista Grande Reportagem, em Maio de 1985.
Na Serra de Santo António, os proprietários organizam-se e armam-se para combater os ladrões de gado, porque, dizem, “as autoridades nada fazem”.
Uma milícia privada ou um ‘Far West’ português?
“A paz orvalhada que há pouco cobria a aldeia enxugava agora ao claro sol que rompia. Todas as chaminés fumegavam, todas as casas estavam abertas, todos os mistérios desabrochavam e perdiam insensivelmente a graça da virgindade”, Torga mal podia imaginar e, no entanto,…
— Foi quando a filha do Prudêncio casou! É verdade, os roubos começaram no dia do casamento, há uns cinco anos atrás…
Aníbal morde o beiço e põe-se a meditar. Aí, os fregueses do Café do Agostinho param de jogar às cartas, pedem mais uma rodada e ficam a ouvir. Sentem-se obrigados a comparticipar — atentamente — na conversa. Aníbal sabe falar.
— A coisa repetiu-se há uns dois anos e o ano passado tentaram fazer mais três desvios. Só de uma vez queriam levar 14 bois de engorda… Em cinco anos roubaram-nos dezenas de cabeças de gado.
Sem dar conta, temos um grupo de velhotes à volta da nossa mesa. A mirar e a inventariar. João Louro, jovem proprietário e guardador de vacas, continua a história.
— O homem comprou os animais em Santarém e volvidos poucos dias os ladrões tentaram levá-los. Como estava a chover muito, o carro deles afundou-se. Foi por isso que tiveram de soltá-los todos para fora. Um Mercedes é que veio puxar o carro da lama. Eles costumam tirar os animais dos cerrados [zonas vedadas por muros de pedra] e depois forçam-nos a entrar nas camionetas mesmo à porrada. Uma vaca chegou a vomitar o bucho. Ela já devia ir morta ou perto disso…
Um velhote despega-se do grupo e diz que não se deve esconder nenhum bocado da história. As características da região impõem que o gado ande à solta, pelo menos, nove meses por ano e esteja, assim, mais à mercê dos ladrões. Mas há outros ladrões. Os caçadores não roubam, mas destroem muita coisa a pretexto de darem uns tiritos aos tordos: “cortam pinheiros a tiro, furam bidons de água para o gado, deitam muros de pedra abaixo e dão cabo da calma e da vida das gentes das serranias“.
Serra de Santo António.
Montes, muitos montes, trilhos, veredas e meia dúzia de casas dispersas. Uma paisagem de pedregulhos alvos e de erva bem verde. Ali vivem 1.000 almas e 3.000 cabeças de gado que produzem uns 15.000 litros de leite por dia, mais alguma carne. A edificação de quatro moradias afrancesadas e as manobras nocturnas dos 60 homens da milícia armada para combater os ladrões de gado — face ao aparente sonambulismo das autoridades — são os primeiros sinais palpáveis da vida que por ali corre.
Aníbal Agostinho e João Louro acompanham-me à Junta de Freguesia. O presidente, Lourenço Rosa, manda-nos entrar. Enquanto trocamos as primeiras palavras aparece um latagão que se abeira do guichet e se queda a escutar. Lourenço Rosa faz o ponto da situação:
— As rondas vão prolongar-se, pelo menos, até ao final do Verão. Depois, logo se verá. A GNR não tem capacidade para fazer mais. Foi essa a razão que levou os proprietários a fazer a sua própria segurança, formando uma escala de serviço para guardar o gado. Vai ser preciso um desastre para que as autoridades comecem a preocupar-se com isto. Mas nessa altura, quando isso vier a suceder, não virão cá fazer nada. Já será tarde… Os ânimos estão exaltados. Já lá vão umas dezenas de cabeças de gado roubadas na área e isto é muito grave. Com as pessoas a terem que guardar os seus bens, estamos no Far West…
A segurança é efectuada diariamente por dois grupos armados com dois homens cada um. As rondas começam depois do pôr do Sol. A escala de serviço (secreta, se faz favor!) obriga cada homem válido a patrulhar todos os 15 ou 19 dias, faça o tempo que fizer.
Esta noite estão de guarda o João Louro e Aníbal Agostinho numa zona, e dois homens da serra, noutra. Decido acompanhar os primeiros. A patrulha começa com uma ´bica´ na tasca do Agostinho. Depois, cada grupo segue o seu caminho. Levamos umas latas de atum e uma garrafa de bagaço. Os outros, um pedaço de carne assada. O regresso só está previsto para as 05:00 da manhã, hora em que começam a circular os “carros do comércio”.
Faz frio. Do sítio elevado onde nos encontramos controlam estradas e atalhos. A carrinha está escondida atrás de um muro de pedra. Os dois homens encostam-se ao pára-choques e puxam das caçadeiras. Mil e um ruídos surdos invadem a serrania. É altura de meter conversa.
— Isto é um bocado chato…
— Pois é, mas se ninguém o faz há roubos. — conta João.
— Eu gostava mais de estar na cama ou ir até ao café, mas temos de salvaguardar os nossos interesses.
Ouvimos passos que se aproximam. Os dois homens levantam as caçadeiras. O ruído cessa. Uma voz áspera grita que ali vai “gente de paz“. Sorrimos. O outro grupo decidiu visitar-nos. E ainda bem. A noite estava a tornar-se longa.
Sentamo-nos ao lado de uma casota de pedra. Pergunto quais foram as últimas peripécias da “força armada” da serra. Os cowboys começam por nada dizer, mas quando Aníbal se decide a abrir a boca para contar a história do cunhado (que atirou um tiro para o ar quando um forasteiro saiu do carro para urinar de noite e acabou por fugir a sete pés) a língua solta-se a todos os outros.
João Costa Gaspar, 68 anos, 34 vacas, é o veterano do corpo de intervenção da serra. O homem fala pelos cotovelos. Diz que antigamente tinham o gado à toa. Passavam dois ou três dias sem o ver, mas andavam descansados. Agora, quando lhes falta uma rez, pensam logo que foi roubada. E as aventuras?
João Louro aproveita a deixa para contar. Uma vez, alguns rapazes de fora da serra foram de noite para uma gruta e um dos homens da patrulha ouviu um deles dizer aos outros para mandarem a corda, “que esta já está“. Eles queriam dizer a pedra, mas o guarda entendeu que era uma vaca. “Veio cá acima chamar a gente enquanto o outro ficou lá em baixo de espingarda apontada. Só não foi parar dentro da gruta com um tiro porque houve controlo…”
O velhote volta ao ataque. Uma outra noite, viu a luz de uma camioneta com taipais altos. Mandou-a parar. O condutor respondeu-lhe que não era ladrão de vacas. Transportava azeite. Ora, para o senhor Gaspar, “transportar azeite em Setembro é uma mentira“. Além disso, o veículo circulava numa estrada intransitável. “Se ele não tivesse com mau sofisma ia pela estrada directa. Em seguida, até mudou de residência. Era uma forma de declarar que deve mesmo ser ele, porque não se sente bem ao pé da gente.“
Arménio Santos Duque, 32 anos (e co-autor das listas de ronda) conclui que “é ingrato e grave” terem de fazer justiça. O ancião dá-lhe uma cotovelada sorrateira e adianta que se vir alguém a andar com vacas atira “como aos coelhos, tal e qual, igualzinho. Atiro, decidido, logo. Ou mato ou morro. Mesmo se, como agora, ando um bocado destreinado…“
Bebemos um trago, damos uma última volta pelas propriedades vizinhas e voltamos à aldeia. O dia não vai tardar em nascer. Na estrada aparecem os primeiros comerciantes. Os cowboys da serra têm de despachar-se. Mudar de roupa e de ofício. Amanhar a terra, ordenhar as vacas e trabalhar na fábrica.
Uma fonte próxima do posto da GNR de Alcanena (do qual depende a Serra de Santo António) limita-se a confirmar que “há poucos efectivos” para a região e nada se pode fazer para impedir patrulhas privadas. Os roubos de gado assolam o país de Norte a Sul. A iniciativa dos homens da Serra de Santo António, ao tomarem nas suas mãos a defesa das suas manadas, pode ser eficaz. Mas também pode ser que um dia destes algum inocente acabe por apanhar com os ricochetes.
Reportagem originalmente publicada na revista Grande Reportagem, na edição de 10 a 16 de Maio de 1985, Lisboa.
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