Este texto fez-se sozinho. Ou quase. Ou melhor dizendo, fez-se com citações ipsi verbis de uma palestra do pneumologista Filipe Froes no passado dia 23 de Outubro na Visão Fest – uma “feira de vaidades” da revista Visão, sempre com competentes patrocínios empresariais, nomeadamente da Janssen (tem de haver agora sempre uma farmacêutica), da Tabaqueira (que anda empenhada em vender saúde), da Delta Café (porque fica sempre bem um cafezinho), da McDonalds (que o fast food é uma boa dieta) e da EPAL (ter uma empresa pública a apoiar serve como bênção do Governo).
Podia destacar o papel de nigromante de Filipe Froes – que também é –, ao anunciar que virá aí, no futuro, nova pandemia que será causada pelo “vírus influenza, sobretudo de origem aviária, talvez o H2; [ou por] um novo coronavírus; ou [por] um agente X, um micro-organismo que ainda não identificámos”.
Filipe Froes, um dos médicos portugueses com mais ligações à indústria farmacêutica, mantém-se como consultor da DGS e com intenso palco mediático.
Podia destacar o papel de vendilhão de Filipe Froes – que também é –, ao anunciar que “precisamos de um programa nacional para o long-covid”, porque vivemos um “pandemónio” depois da pandemia, sabendo-se que a sua amiga Pfizer anda a tentar convencer as autoridades norte-americanas a aprovarem o Paxlovid como panaceia (ou trapaceia) dessa nova condição de saúde, da qual potencialmente padecem os mais de 600 milhões de seres humanos que tiveram covid-19 e sobreviveram.
Mas prefiro destacar o papel de grandessíssimo cara-de-pau de Filipe Froes – que sobretudo é –, através desta passagem integral da sua alocução, a partir do minuto 2:43, na dita Visão Fest. Atentem:
“É habitual nós falarmos – quando um médico é convidado para uma sessão destas –, que lhe é atribuído cerca de 20 minutos, apresentarmos os nossos conflitos de interesse. Nós nunca temos conflitos de interesses. Eu não tenho qualquer conflito de interesses. Mas eu pus este slide para vos mostrar que os principais conflitos de interesses são aqueles que muitas vezes não são revelados. E em Ciência há dois conflitos de interesses que são extremamente importantes, e que vão condicionar muito o futuro que nós vamos encontrar: são os chamados conflitos científicos. O primeiro conflito científico é o preconceito – isto vem numa revista médica. O conflito de interesses mais enraizado em Medicina é a dificuldade em reverter uma opinião prévia. Nós temos a nossa opinião, e tudo fazemos para encontrar aquilo que a gente procura para justificar a nossa opinião. E esse é o segundo conflito de interesses, também identificado por Stephen Hawking, que é ‘escolher as cerejas’, cherry-picking, que é eu escolho aquilo que me dá jeito e não mostro aquilo que põe em causa o que quero. E, portanto, estes é que são os conflitos de interesses mais frequentes em Ciência: o preconceito e a ‘escolha das cerejas’. E o que nós estamos a viver cada vez mais é uma pandemia que resulta destes dois conflitos de interesses, como eu vos vou mostrar.”
Filipe Froes apresentando um slide na sua apresentação na Visão Fest, onde revelou que “não tem conflitos de interesses”.
Para contextualizar os mais distraídos, Filipe Froes recebeu 41.474 euros de farmacêuticas em 2020, mais 56.097 euros em 2021 e este ano vai já em 38.692 euros. Desde o início da pandemia contabiliza 136.263 euros de financiamentos de 15 distintas farmacêuticas, entre as quais a Pfizer, a Merck Sharp & Dohme, a AstraZeneca e a Gilead, todas com interesses comerciais muito directos no tratamento da covid-19, sendo que Froes integra a comissão da Direcção-Geral da Saúde que define as terapêuticas. Na última década, Froes recebeu 419.524 euros de 24 empresas farmacêuticas.
A promiscuidade faz-se ao mais alto nível. Ao nível rasteiro da própria Ordem dos Médicos que, sendo uma mera associação privada, se tem arvorado de inquisidor-mor sobre a independência dos profissionais de saúde, ameaçando e cerceando opiniões divergentes. Froes é um peão feito torre, que agora assume a patética função de coordenador do Gabinete Estratégico para a Saúde Global, uma invenção do urologista Miguel Guimarães, circunstancial bastonário, criada ao arrepio dos colégios da especialidade deste outrora respeitável grémio.
E perante isto ainda tem ele, Filipe Froes, o desplante de dizer que não possui conflitos de interesses, e de o dizer num encontro organizado por um (suposto) órgão de comunicação… E, ainda por cima, sabendo que lhe baterão palmas e lhe darão também palmadinhas nas costas, e convicto fica ele de novos convites per omnia saecula saeculorum, aproveitando a lábia de nigromante e de vendilhão; tudo isto com a mesmíssima cara-de-pau com que nos tem brindado nos últimos dois anos e meio. Haja paciência! E haja vergonha!
P.S. Consta que, no próximo dia 7, Filipe Froes apresentará no Grémio Literário, um livro sobre a pandemia, “editado” por um conhecido Diário e “patrocinado” por uma farmacêutica, como convém. E tendo como convidado especial uma figura grada de alta patente militar que garantiu ter derrotado o vírus no ano passado. Nada de novo no “reino da Dinamarca”.
Nota: A palestra integral de Filipe Froes na Visão Fest, enquanto estiver disponível, pode ser visionada aqui.
Esta tarde, o Expresso divulgou que o Banco de Portugal, dirigido por Mário Centeno, multou um banco em um milhão de euros por práticas ilícitas, mas manteve o anonimato do infractor porque este pagou a coima.
Também hoje, a generalidade dos media mainstream noticiaram que o mesmo Banco de Portugal instaurou, durante o primeiro semestre deste ano, um total de 59 processos de contraordenação a 25 instituições – também todas sob anonimato – que resultaram, maioritariamente, “de indícios de violação de normas em matéria de movimentação da conta de depósito à ordem, de denúncia do contrato de abertura de conta e de bloqueio de instrumento de pagamento”.
Ainda no ano passado, em 19 de Julho, o mesmo jornalista do Expresso, Diogo Cavaleiro, já referia que 80% das coimas aplicadas pelo Banco de Portugal não tinham a identificação da instituição financeira infractora, destacando que Portugal era o “único [país] que tem condenações sob anonimato no Mecanismo de Supervisão”.
E, presumo, que em 2023 continuará a fazer o mesmo…
Os portugueses, como contribuintes, têm aparado, ao longo das últimas décadas, os mais atrozes desvarios financeiros de bancários e seus sequazes, sob a suposta supervisão do Banco de Portugal. A partir da sua torre de marfim – por inépcia, por compadrio ou por irresponsabilidade –, altos funcionários públicos permitiram casos como os do Banco Português de Negócios (BPN) e do Banco Espírito Santo (BES), só para citar os que criaram mais mossa. E aqueles que estão vivos, ainda estão bem e recomendados.
Perante isto, que devem fazer os jornalistas?
Fazer como a imprensa, como o Expresso, que, ano após ano, lá vai batendo o ponto, noticiando a falta de transparência assumida pelo Banco de Portugal, protegendo os infractores da censura pública, e convidando-os a continuar a prevaricar, até porque o “valor do crime” compensa as eventuais multas a pagar?
Ou fazer como o PÁGINA UM que, ao invés dessas “passivas denúncias” da imprensa mainstream, se mune de um espírito de jornalismo interventivo e independente, e com o apoio dos seus leitores, luta – com armas muito desiguais, é certo – para que o anonimato termine, para que o obscurantismo cesse?
O tempo da simples denúncia tem de terminar. Por isso, em 21 de Julho passado, requeremos formalmente ao governador do Banco de Portugal o acesso integral ao processos de contra-ordenação de 2021 e do primeiro semestre deste ano.
Como recusou, interpusemos em 25 de Agosto passado uma intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa contra o Banco de Portugal. Nunca nenhum outro órgão de comunicação social defendeu assim o direito de acesso à informação consagrado na Constituição e na Lei da Imprensa.
E sabíamos o quão difícil seria quebrar este “estado de coisas” até porque o PÁGINA UM não recolhe, compreensivelmente, a simpatia da imprensa mainstream e, portanto, não teríamos a sua “solidariedade”, pelo menos divulgando o nosso acto que seja: o PÁGINA UM surgiu sobretudo porque a imprensa não tem apenas o dever e o direito de informar. Nem apenas de denunciar. Tem o dever de defender a democracia, quer esta esteja ausente; ou apenas presente no papel, mas não nos actos do quotidiano.
Ainda ontem, nem de propósito, o PÁGINA UM interpôs um recurso para o Tribunal Central Administrativo do Sul. Gastou mais 306 euros em taxas de justiça que seguem para o Estado, porque perdemos na primeira instância. Perdemos na primeira parte, e continuaremos até saber se é lícito pensarmos que vivemos ainda numa democracia em Portugal, ou se o obscurantismo e a protecção de certas elites fala mais alto.
E recorremos sobretudo porque não ficámos satisfeitos com a sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, no passado dia 10 de Outubro, que determinou que quem tem competência para decidir sobre se os processos de contra-ordenação são ou não consultáveis por um jornalista é o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, sediado em Santarém.
Está bem de se ver a “estratégia”: não sendo um jornalista uma das partes directas – apenas querendo o acesso público aos documentos administrativos –, e sabendo-se que a esmagadora maioria dos processos de contra-ordenação levantadas às instituições financeiras nem sequer chega ao tribunal (porque os tornaria públicos após o seu término), o juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa – este em particular, pelo menos – quis embrulhar tudo para se manter tudo em contínuo anonimato, em contínuo obscurantismo. O Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão jamais pode determinar o acesso a processos que nem sequer lhe chegaram…
Além disso, não se poderia ficar indiferente a um preocupante detalhe desta sentença de primeira instância do Tribunal Administrativo de Lisboa: o juiz do processo é casado com um alto quadro do Banco de Portugal, que aliás já foi assessora num ministério. O PÁGINA UM tem, aliás, documentos que provam essa ligação.
Pessoalmente, já tenho muitas dúvidas de que um tribunal de recurso venha a dar razão ao PÁGINA UM, concedendo-lhe o direito de consultar estes documentos administrativos – que é isso que são os processos de contra-ordenação concluídos em qualquer entidade pública.
E se tenho dúvidas não é por duvidar da legalidade ou da justeza dessa pretensão – que, aliás, deveria ser um direito de qualquer contribuinte.
Tenho dúvidas sim por ter plena consciência de que a luta do PÁGINA UM em prol da transparência será quixotesca, enquanto a imprensa mainstream continuar como anda: papagueando apenas aquilo que o Banco de Portugal e os outros poderes querem mostrar, e pouco mais fazendo do que denunciar, ano após ano, um perpétuo obscurantismo.
Sem uma “vaga de fundo” da nossa imprensa – que abane consciências –, o pântano que se anda a criar em redor da nossa democracia só nos pode levar ainda mais para o fundo.
N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Até ao momento, o PÁGINA UM está envolvido em 13 processos de intimação, quatro dos quais em segunda instância, e ainda em duas providências cautelares. Até ao momento foram angariados 11.653 euros, um montante que começa a ser escasso face à dimensão e custos envolvidos nos processos. Na secção TRANSPARÊNCIA começámos a divulgar todas as peças principais dos processos em curso no Tribunal Administrativo. Este processo específico do Banco de Portugal pode ser consultado aqui.
Dei o benefício da dúvida à sueca Greta Thunberg – ou até mais do que isso –, quando, há quatro anos, começou a dinamizar movimentos sociais de jovens para uma “emergência climática”.
Que existem impactes atmosféricos e climatéricos das actividades humanas, não tenho já qualquer dúvida. Antes mesmo de se ter tornado uma “moda” e todos se mostrarem muitos crentes, a tal ponto que se tornou uma espécie de “profissão de fé” para muitos, que não fazem mais do que greenwashing. Há muito, desde os anos 90, acompanho este tema, escrevo sobre assuntos ambientais, e sei distinguir o trigo do joio.
A poluição atmosférica, desde a Revolução Industrial, é uma triste realidade. O incremento da industrialização e do tráfego automóvel é, sobretudo nos grandes centros urbanos, e mesmo em Portugal, uma das principais causas de problemas respiratórias e cardíacos.
As mortes anuais causadas pela poluição atmosférica – incluindo por partículas finas, por chumbo e outros metais pesados, e ainda por excesso de ozono troposférico como poluente secundário – estão estimadas entre os 5,9 milhões e os 7,5 milhões de pessoas. Se juntarmos a poluição da água e de outros tipos pode-se acrescentar mais dois milhões. Vale a pena ler um artigo de Maio deste ano sobre esta matéria no Lancet Planet Health.
As alterações climáticas decorrentes das emissões de dióxido de carbono (e de outros gases com efeito de estufa) colocam questões muito mais complexas e heterogéneas, porque nem sempre quantificáveis nem sempre negativas em todos os países, e mais dependentes de vontade dos políticos (e das políticas) do que dos comportamentos individuais. Aliás, não vale a pena mexermos uma palha na Europa, nem apelar a qualquer sacrifício colectivo ou individual, se por exemplo a China (maior emissor de dióxido de carbono) não alterar o seu paradigma energético.
Por isso, na minha opinião, tem sido contraproducente a monopolização da temática das alterações climáticas no debate científico, e sobretudo político, porque tem menorizado ou relativizado todos os outros, mesmo aqueles que lhe estão intimamente associados. Aliás, com a desculpa das alterações climáticas, enviesa-se a causa fundamental de muitos problemas ambientais, que têm um histórico, radicando especialmente em ineficiência (energética e não só) e má gestão.
Por exemplo, a escassez de água que Portugal pode vir a atravessar no futuro não advirá apenas dos efeitos das alterações climáticas, mas sobretudo da sua crónica má gestão dos recursos hídricos. Temos o exemplo gritante da péssima gestão dos perímetros de rega em Portugal, de que o Alqueva é um paradigma. Água (quase) de borla é e continuará a ser insustentável mesmo se invertêssemos agora as alterações climáticas.
O mesmo se aplica ao caso dos incêndios rurais. As alterações climáticas têm vindo, aliás, a servir como bode expiatório da péssima gestão florestal, de um território abandonado, de uma externalização (negativa) dos benefícios sociais concedidos pelos espaços florestais sem qualquer vantagem para os proprietários, e de uma política de status quo na prevenção e combate assente, em Portugal, num obsoleto e ineficaz sistema de pseudo-voluntariado. O nosso país arde em média mais agora do que ardia nos anos 80 do século passado; os outros países mediterrânicos ardem muito menos.
Também à conta das alterações climáticas, temos agora um lobby dos carros eléctricos, que não passa de uma estratégia de substituição de um modelo poluente por outro um pouco menos poluente (ou com outro tipo de problemas de poluição). A questão da mobilidade e do consumo energético – e da poluição atmosférica e, daí, das emissões de dióxido de carbono – coloca-se ao nível de um novo paradigma de planeamento territorial e de transporte colectivo, mais seguro, fiável e confortável; não muda passando a usar mais carros eléctricos do que a combustão. Não podemos, por exemplo, ter um autarca em Lisboa muito preocupado com as alterações climáticas e nem ser capaz de pôr a funcionar de forma minimamente decente as bicicletas eléctricas Gira.
E temos agora também, à conta das alterações climáticas, o ressurgimento em força do lobby das centrais nucleares, apresentadas como uma (falsa) panaceia, esquecendo que este tipo de energia apenas produz electricidade, que representa somente cerca de 20% de toda a energia necessária. E que constitui, e constituirá sempre, um perigo em termos de segurança, não apenas por acidentes ou por guerras, mas também pelos resíduos e pela possibilidade dos países produzirem armamento nuclear.
E, no meio disto, agora, deparo-me com a nossa ressurgida jovem Greta Thunberg a confirmar-se como apenas uma activista pop star, um ícone, uma flor da lapela da irreverência juvenil, sobre a qual os adultos (leia-se, políticos) até apreciam apaparicar… e manipular.
Estando “apagada” desde 2020, por força da pandemia, vejo que, em dois anos, a jovem Greta cresceu mal. Há cerca de duas semanas, veio ela criticar o encerramento já há muito previsto, após amplo debate, de centrais nucleares na Alemanha.
Torci o nariz.
Mas pior ainda fiquei, para a manutenção de qualquer ténue esperança de estarmos perante uma jovem visionária, quando li hoje a sua entrevista no jornal Público.
Eis ali um completo vazio de ideias, um discurso cheio de chavões e lugares-comuns, sem uma proposta concreta, um rasgo inovador – o que já não se compreende, atendível ao facto de ela ter, certamente, ao fim de alguns anos, uma boa equipa de marketing e de consultores, além de todos os contactos ao maior nível científico e técnico.
Bem sei que é uma miúda de 19 anos, mas é descoroçoante ler uma entrevista de uma potencial Prémio Nobel da Paz (ou do que se quiser) e ver as suas duas últimas respostas:
Público – Pensa em ir para a universidade?
Greta Thunberg – Não sei. Gostaria, mas ainda não sei. Tenho de decidir em breve.
Público – Seguiria alguma área específica?
Greta Thunberg – Não sei. Sei que, independentemente do que faça, continuarei a ser uma activista, só resta saber de que forma. Porque a necessidade de termos activistas climáticos não vai abrandar, só aumentará – sobretudo tendo em conta o actual estado do mundo.
E eu, perante isto, também não sei o que diga mais sobre Greta Thunberg…
Há, por certo, pessoas mais válidas e com ideias concretas que deviam estar a ser ouvidas. E não estão, porque um ícone pop, um autêntico flop, lhes está a ocupar o espaço mediático. Talvez fosse mesmo bom que a nossa Greta passasse a saber se quer ir mesmo para a universidade e, se sim, qual a área específica.
Depois sim, pode e deve regressar, com saber, para nos ajudar mesmo a salvar o Planeta – é que o activismo, por si só, é um vazio…
Nem só de uvas se faz vinho, já diz o dichote. E durante a pandemia, nem só de bebidas viveu uma conhecida empresa vinícola da Bairrada. Localizada na Anadia, a Caves da Montanha nunca conseguira vender uma garrafa a qualquer entidade pública, mas soube aproveitar a “onda” e fartou-se de vender máscaras e autotestes, incluindo ao Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte, que gere o hospital de Santa Maria. No total foram seis contratos públicos, cinco dos quais por ajuste directo, num total de 340 mil euros. Ninguém explica como empresas sem experiência no sector conseguiram, de repente, convites directos para contratos. Esta é a terceira parte da investigação do PÁGINA UM sobre o LUVASGATE (que não inclui apenas luvas de nitrilo).
“Mais do que bebidas, produzimos momentos de prazer. Esperemos que gostem!” – esta é a divisa da Caves da Montanha, empresa familiar da Anadia fundada em 1943, que já vai na quarta geração. No site da empresa diz-se que está “focada na produção, comercialização e distribuição de bebidas”, sendo “líder da produção de espumantes Bairrada”.
E assim, a acreditar nas palavras da empresa, pela “dedicação e paixão” que metem naquilo que fazem, mostra-se “fácil de entender o motivo pelos qual as pessoas se deixam seduzir tão facilmente pelos nossos espumantes”. Imaginar-se-ia, por isso, que o próprio Estado e entidades públicas tivessem andado a comprar paletes de bebidas comercializadas pela Caves da Montanha, nem que fosse pela Passagem do Ano ou para acompanhar um repasto de leitão à Bairrada.
Mas não. Nada disso.
Depois dos tempos da actriz Soraia Chaves a promover os seus espumantes…
Nunca a Caves da Montanha vendeu ao Estado, ou às autarquias, à Administração Pública, ou outro qualquer ente público uma garrafa que fosse das 14 marcas que comercializa de espumante; nem uma só garrafa das sete marcas de champagne; nem uma só garrafa das 24 marcas de vinho tinto, branco e rosé; nem uma só garrafa das 10 marcas de licores (incluindo groselha); nem uma só garrafa das quatro marcas de aguardente (incluindo bagaceira); nem uma só garrafa de 11 marcas de spirit (incluindo absinto e rum); nem uma só garrafa de água da marca Voss (originária da Noruega a 3,5 euros meio litro). Nem uma para amostra.
Porém, a pandemia teve o condão de fazer com que até os empresários do ramo vinícola pudessem experimentar voos nunca conseguidos antes, e sobretudo em negócios que nunca se imaginariam possíveis.
Por isso, só por uma rebuscada associação, sabendo-se que muitos crimes são cometidos sob efeito do álcool, se poderia imaginar ver em 26 de Novembro de 2020 a Caves da Montanha a vender à Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais “material de protecção individual no âmbito do plano de contingência para o novo coronavírus-covid 19 do hospital prisional”. Valor do contrato: 25.500 euros, por ajuste directo.
… a Caves da Montanha passou a usar narinas e zaragatoas para promover a sua nova linha de negócio.
Como o contrato não foi reduzido a escrito, ignora-se as quantidades e produtos, sabendo-se apenas que o valor em causa daria para comprar cerca de 1.400 garrafas de Espumante Montanha Real Grande Reserva 2010 Branco Bruto, que no mercado se encontra a 17,9 euros.
A este primeiro contrato, de material não especificado, seguiu-se outro em Fevereiro do ano passado, desta vez uma venda de 43.500 euros de máscaras FFP2 para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Foi também um contrato sem redução a escrito, pelo que se ignora igualmente a quantidade e o preço unitário, assim tendo sido realizado por “motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade”. Isto apesar da pandemia já então durar há quase um ano.
Quem vende máscaras – ficou a saber-se durante esta pandemia –, também consegue comercializar todo o “pacote” associado. E assim o terceiro contrato público da Caves da Montanha foi de “testes profissionais nasofaríngeos”, comprados pelo município de Leiria. Valor do contrato: 25.000 euros, que se concretizou em Maio. Não se sabe a quantidade de testes, embora o Portal Base indique que o contrato foi cumprido integralmente um dia após ser assumido pelas partes.
No quarto contrato, a Caves da Montanha chegou finalmente a um hospital – e dos grandes. O Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte – que integra os hospitais de Santa Maria e Pulido Valente – lançou um raro concurso público, tendo a empresa vinícola da Bairrada apresentado o melhor valor face às outras 15 propostas, grande parte das quais apresentada por empresas do sector de produtos hospitalares e de saúde. Por cada um dos 80.000 testes, a Caves da Montanha cobrou 1,885 euros, mesmo assim um valor cerca de 60% acima do actual preço de mercado.
Se teve ou não pouco lucro neste negócio, ignora-se, mas, em todo o caso, a Caves da Montanha conseguiu que as portas em Lisboa se reabrissem pouco mais tarde. O mesmo centro hospitalar adquiriu à empresa vínicola da Bairrada mais autotestes, por duas vezes já este ano: em 20 de Janeiro, por 57.681 euros, e em 28 de Junho, por 37.700 euros. Em ambos os contratos a compra por ajuste directo foi justificada, mais uma vez, “por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade”.
Sobre estes contratos, com o Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte, o PÁGINA UM solicitou esclarecimentos à sua administração, presidida por Daniel Ferro, mas não obteve qualquer resposta.
Administração do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte não explica as razões da selecção de uma empresa vinícola para a compra de testes de detecção do SARS-CoV-2.
Não explicando como estabeleceu parcerias com estas entidades públicas para vendas por ajuste directo, a Caves da Montanha diz apenas que a empresa, “fruto da sua experiência e contactos comerciais, garantiu a representação para Portugal de uma das principais marcas internacionais neste sector [materiais como autotestes e máscaras], conseguindo apresentar ao mercado preços mais competitivos, face aos valores apresentados por outras entidades e prazos de entrega mais reduzidos.”
E também não esclarece se o negócio deste tipo de produtos veio para ficar, sendo certo que o PÁGINA UM teve conhecimento de várias vendas feitas a supermercados ainda ao longo deste ano, quer de máscaras cirúrgicas quer de autotestes.
A empresa mantém ainda operacional uma loja virtual, disponibilizando álcool gel, autotestes e máscaras. Neste último caso, já bem baratinhas: passe a publicidade, uma caixa de 50 unidades fica agora a 1,99 euros, ou seja, quatro cêntimos cada… Nas farmácias ainda estão ainda a 7,5 euros a caixa de meia centena.
Uma empresa da freguesia de Milheirós, no concelho da Maia, com uma experiência de 40 anos a reparar automóveis, passou em três tempos a entregar muitos milhões de luvas de nitrilo a hospitais, facturando, em ajustes directos, mais de 1,5 milhões de euros. Tudo parece legal, e sempre justificável com a urgência da pandemia, mas já se mostra anormal a facilidade com que as administrações hospitalares fizeram ajustes directos sem contrato escrito de produtos que, sem justificação económica plausível, quadruplicaram de preço. Esta é a segunda parte da investigação do PÁGINA UM sobre o LUVASGATE.
Saberá bem a uma empresa com quatro décadas de existência ver as portas do Estado abrirem-se. Em 2 de Março de 2020, a Escape Forte Lda. – com oficinas numa freguesia da Maia e outra de Vila do Conde – teve o seu primeiro contrato público: a reparação do motor de uma ambulância do Instituto Nacional de Emergência Médica. Custo do serviço: 7.261 euros, acrescidos de 76 cêntimos. Ajuste directo, como se compreenderá numa urgência.
A partir dessa “encomenda”, a vida começou a correr melhor à gerência da Escape Forte. Não que passassem a vender a instituições públicas mais serviços de reparação, descarbonização e reconstrução de filtros de partículas ou de substituição de catalisadores – o seu forte, ou, se se quiser, o seu core business. Nada disso. A visita por razões mecânicas do INEM foi pontual. Isolada.
Sede da Escape Forte é uma oficina em Milheirós, no concelho da Maia.
Mas há mistérios na vida das empresas, que não são fáceis de prever, mesmo em Março de 2020, quando já se estava a anunciar a pandemia por terras portuguesas. Não se sabendo se houve qualquer associação, porque ninguém a admite, certo é que quatro meses após este conserto da ambulância do INEM, a Escape Forte estava a ter a sua segunda experiência com entidades da área da saúde: entrava portões dentro no Hospital de São Sebastião, em Santa Maria da Feira, para cumprir um contrato de venda de luvas de nitrilo.
Era o dia 2 de Julho e o contrato com o Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga (CHEDV) – que gere os hospitais de Santa Maria da Feira, Oliveira de Azeméis e São João da Madeira – não era pequeno: quase 850 mil luvas de nitrilo no valor de 80.820 euros. Preço por luva: 9,58 cêntimos, mais de quatro vezes o valor unitário no início da pandemia. Ajuste directo sem necessidade de redução a escrito, por alegados “motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis”.
Esse contrato foi, curiosamente, aprovado pela administração do CHEDV no mesmo dia em que a Escape Forte fez a alteração do seu objecto social, passando a partir daí a ser também uma empresa de “comércio por grosso de produtos farmacêuticos, comércio por grosso de produtos de proteção individual e material hospitalar”, e ainda de “produção e fabrico de produtos de proteção individual e material hospitalar (EPI)”.
Nada mau, portanto: no primeiro dia em que passou a poder vender luvas de nitrilo, conseguiu mesmo vender luvas de nitrilo.
E não parou por aí.
Pouco mais de um mês depois, em 6 de Agosto, novo contrato. Ajuste directo, claro. Para a mesma entidade pública. Mais substancial: 108.658 euros. O preço reduziu um pouquinho: 8,98 cêntimos por unidade, pelo que, nos meses seguintes, a Escape Forte foi ao Hospital de São Sebastião fazer entregas de 1.210.000 luvas de nitrilo.
Ganhou-lhe o gosto, o hospital de Santa Maria da Feira, porque ainda nesse ano, em 3 de Novembro, saiu um terceiro contrato com a Escape Forte, que se comprometeu, a troco de 142.400 euros, a entregar esterilizadas mais cerca de 1,5 milhões luvas de nitrilo, a um preço unitário de 9,58 cêntimos. Também novamente por ajuste directo e sem contrato escrito.
Como não há três sem quatro, em Janeiro de 2021, lá veio a administração do CHEDV concordar com mais um contrato por ajuste directo com a Escape Forte. E bem forte, porque foi por um montante superior a metade da facturação que esta empresa tinha tido em 2019 a prestar serviços com filtros de partículas e catalisadores.
Hospital de São Sebastião, em Santa Maria da Feira, comprou nove milhões de luvas de nitrilo à Escape Forte.
Neste quarto contrato, o Hospital de São Sebastião comprou à empresa da Maia, desta vez, luvas num montante total de 557.600 euros, o que significa que foram entregues 5,44 milhões de unidades. O preço de cada luva subiu para os 10,25 cêntimos, mais de cinco vezes superior ao valor imediatamente anterior à pandemia.
No total, a Escape Forte conseguiu em sete meses, sempre por ajuste directo com a administração do Hospital de São Sebastião, contratos no valor de quase 890 mil euros para a entrega de nove milhões de luvas de nitrilo. Esta unidade hospitalar tem cerca de mil funcionários, incluindo serviços técnicos e administrativos. Em Setembro passado, os três hospitais do CHEDV contava com 2.415 funcionários, dos quais 505 médicos (incluindo internos) e 779 enfermeiros.
Mas não foi apenas o CHEDV que se abriu ao Escape Forte. O Hospital Distrital da Figueira da Foz pagou 95.950 euros por um número indeterminado de luvas, em contrato por ajuste directo sem redução a escrito feito em Outubro de 2020.
Em 20 de Janeiro do ano passado, o Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA) decidiu que a empresa da Maia seria a mais ajustada para ser a receptora de 522.650 euros de dinheiro público em troca de um número indeterminado de luvas, cujo número se desconhecer por também não haver contrato reduzido a escrito nem a administração daquela unidade do SNS os ter desejado revelar.
Rui Lopes, gerente da Escape Forte.
Certo é que, apesar da concorrência num mercado com empresas detentora de larga experiência no sector, o sucesso repentino da Escape Forte na venda de luvas de nitrilo levou o seu gerente, Rui Lopes a criar ainda em 2020 outras empresa, a Be Epic Pharma, com um capital social de 5.000 euros, alargando a actividade para outros materiais e produtos descartáveis na área da saúde.
Esta nova empresa, sem loja física e sem sequer indicar preço no respectivo site, foi constituída em 19 de Agosto daquele ano, e até final de Dezembro encaixou seis contratos com entidades públicas: um com a Administração Regional de Saúde do Algarve (50.600 euros), outro com o município de Albergaria-a-Velha (12.140 euros) e quatro com a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (no valor global de 149.900 euros).
No ano seguinte, em 2021, a Be Epic Pharma apenas fez três contratos públicos. Um com o Centro Hospitalar Universitário do Algarve (157.000 euros), outro com a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (33.800 euros) e um terceiro com o Hospital da Horta (21.726 euros).
Este ano, a empresa associada à Escape Forte conta já com cinco contratos, sendo dois com a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (55.000 euros, no total), um com o Serviço Regional de Protecção Civil da Madeira (46.165 euros), um com o Hospital de Ponta Delgada (13.200 euros) e um com o Centro Hospitalar Barreiro-Montijo (1.350 euros). Apenas estes dois últimos contratos foram firmados por concurso público; todos os outros foram por ajuste directo ou mera consulta prévia.
Para explicar como conseguiu estabelecer-se tão rapidamente neste mercado, a Escape Forte mostrou-se parca em explicações, através de Rui Pinto, que se assumiu como representante de Rui Lopes, apresentado como “Administrador do Grupo Escape Forte”. A empresa Escape Forte, diga-se, é uma simples sociedade por quota unipessoal, com um capital social de 5.000 euros. Tem assim gerentes, pois só há administradores em sociedades anónimas. Além disso, não existe uma holding nem grupo económico.
Aspecto de uma das oficinas da Escape Forte.
Independentemente desta frivolidade, sobre as questões colocadas pelo PÁGINA UM sobre como se iniciaram e frutificaram os negócios das luvas de nitrilo, que contactos tinham ou estabeleceram com os hospitais (sobretudo o CHEDV), como adquiriam os produtos que vendiam e os preços praticados, o representante da empresa diz que, além dos dados constantes no Portal Base, “toda e qualquer informação está protegida pelo sigilo contratual previsto no Código dos Contratos Públicos, entre a entidade adjudicante e o adjudicatário, estando a Escape Forte e os seus profissionais, vinculados ao mesmo.”
Em todo o caso, Rui Pinto adianta que as mercadorias vendidas pela Escape Forte provieram de “algumas operações de importação e fornecimento de material de combate à pandemia, quer a entidades públicas, quer privadas”. E diz ainda que a empresa cumpriu a legislação em vigor, designadamente o “Despacho 4699/2020 de 18 de abril, que limitava as margens de lucro nos produtos necessários ao combate à pandemia”, além de ter pautado a sua conduta pelo “bom senso comercial e pessoal.”
Sendo certo que a Escape Forte não teve um desempenho que se aproxime da Raclac – também alvo da investigação do PÁGINA UM –, uma vez que não é produtora de luvas de nitrilo (as margens operacionais são assim mais baixas), não se pode dizer que a empresa de filtros de partículas da Maia se tenha saído mal nos últimos dois anos. Face a 2019 – antes da pandemia –, os nove empregados (com um salário de mil euros) conseguiram uma facturação de 901 mil euros e um lucro de 31 mil euros.
Com a pandemia a “desviar” a actividade da empresa para a venda de luvas de nitrilo, a facturação da Escape Forte em 2020 ultrapassou os 1,7 milhões de euros e o lucro subiu para os 82 mil euros. E isto com apenas dois empregados, deduzindo-se assim que a empresa tenha suspendido grande parte da sua actividade normal nas oficinas por via dos lockdowns.
No ano passado, o volume de negócios ainda aumentou mais, para cima dos 2,25 milhões de euros, com os lucros a aproximarem-se dos 147 mil euros. O número de empregados aumentou para os 13, significando assim que a Escape Forte retomou também a sua actividade original, mantendo forte a venda de luvas de nitrilo.
A estes resultados da Escape Forte em 2021 devem acrescentar-se os da Be Epic Pharma. Nesse ano, a novel empresa registou uma facturação de cerca de 1,76 milhões de euros e um lucro de 82 mil euros, fruto do trabalho de apenas duas pessoas.
Mas, enfim, porque motivo foi a Escape Forte, que nunca tivera qualquer experiência com luvas de nitrilo ou equipamentos de protecção individual, escolhida por hospitais e outros entes públicos?
O PÁGINA UM perguntou a três dos hospitais que lhes fizeram compras: Hospital da Figueira da Foz, Centro Hospitalar do Algarve e o CHEDV, que foi o melhor cliente da Escape Forte.
Anúncio da Escape Forte no Facebook: “vai ficar tudo bem!” Para a empresa de reparação automóvel, ficou…
Ilda Geraldo, do gabinete de relações públicas do CHEDV, diz que “tivemos conhecimento da disponibilidade de oferta destes produtos por parte da empresa [Escape Forte] através de comunicações que chegaram ao conhecimento do Serviço de Compras da instituição.
Aquela responsável alega que, “quando se iniciou a relação” com a Escape Forte, “o mercado era altamente deficitário em termos de resposta face às necessidades de aquisição, acrescentando que “a credibilidade da empresa foi aferida através da validação das luvas a fornecer pela Comissão Técnica da instituição, constituída por profissionais de saúde habilitados para o efeito.”
E não se diga que o CHEDV esteja arrependido. “Numa altura em que era frequente o não cumprimento dos prazos de entrega de material, esta foi uma das empresas mais cumpridoras, deslocando-se ao hospital sempre que necessário”, refere Ilda Geraldo, informando que “não foi registada qualquer queixa da qualidade das luvas por parte dos serviços utilizadores.” Caso a Escape Forte “decida concorrer e cumprir o estabelecido no Código dos Contratos Públicos para o tipo de procedimentos a desenvolver, nomeadamente, concursos públicos”, o CHEDV “poderá vir a adquirir[-lhe] mais luvas ou outros materiais”, adianta.
Escape Forte: das feiras de reparação automóvel até à venda de luvas de nitrilo., bastou uma pandemia temperada por ajustes directos.
Mais a sul, o gabinete de comunicação do CHUA disse apenas ao PÁGINA UM que as aquisições de louvas de nitrilo à Escape Forte foram feitas “como último recurso, porquanto, devido à pandemia”, uma outra empresa que tinha ganhado uma adjudicação “no âmbito de um concurso realizado ao abrigo do acordo quadro, não conseguiu garantir o fornecimento”.
E acrescenta ainda que “na falta de fornecimento por parte dessa empresa, não se encontrou mais nenhuma outra no mercado [a não ser a Escape Forte] que comercializasse este material e que garantisse as entregas atempadamente.”
Tudo, portanto, perfeito… E normal, cada vez mais normal, em Portugal.
A Lusa – sempre a Lusa –, useira e vezeira, em mau serviço público, escreveu ontem sobre um eclipse que seria visto hoje, neste momento que vos escrevo. Erradamente.
Mal não traria ao mundo se, enfim, mesmo existindo esse mau serviço pago pelos nossos impostos, a imprensa mainstream não fosse preguiçosa e, mais ciosa de cliques do que em informar e diversificar, e não se predispusesse acriticamente a divulgar takes atrás de takes vomitados por esta agência noticiosa do Estado e da Global Media, que são duas entidades que estão bem uma para a outra, para mal dos nossos pecados.
O eclipse da desgraça do jornalismo português, ou o Sol no bairro da Graça, hoje em Lisboa, pelas 12:43 horas, sem vislumbre de um “anunciado” eclipse.
Vejamos a tal notícia do eclipse parcial do Sol deste ano, tratada por um take da Lusa, e viralizada pela imprensa mainstream. Pela noite dentro, em cerca de uma hora, o dito take foi copiada pelos principais órgãos de comunicação social, fluindo em títulos e textos similares. Um fartote, ontem à noite:
O Diário de Notícias, pelas 20:44 horas, titulava: “Eclipse parcial do Sol visível na terça-feira em Portugal se tempo deixar”.
A Rádio Renascença, pelas 20:49 horas, titulava: Eclipse parcial do Sol visível na terça-feira em Portugal… se o tempo deixar”.
Transmissão ao vivo do eclipse em space.com,mas não visível em Portugal.
A TSF, pelas 20:56 horas, titulava: “Eclipse parcial do Sol visível na terça-feira se o tempo deixar”.
O Observador, pelas 21:40 horas, titulava: “Eclipse parcial do Sol visível esta terça-feira em Portugal. Mas é preciso que as condições meteorológicas o permitam”.
O Público, pelas 21:42 horas, titulava: “Eclipse parcial do Sol poderá ser visto em Portugal – se o tempo deixar”.
O Jornal de Notícias, pelas 21:44 horas, titulava: “O último eclipse parcial do Sol de 2022 é esta terça-feira”.
Em hora indeterminada, mas perto das 22:00 horas, a CNN Portugal titulava: “Vai poder ver em Portugal um eclipse parcial do Sol… se o tempo deixar”.
Idem, a SIC Notícias titulava: “Eclipse parcial do Sol visível na terça-feira em Portugal”.
E podia continuar… Houve muito mais a viralizar o infecto take da Lusa.
Todas notícias iguais. Com variações de palavras no título. Quase sem alterações no conteúdo, remetendo todas até para um site credível de Astronomia, o Space.com.
Sucede, porém, que todas sem excepção eram completamente falsas. E para confirmar isso bastaria, enfim, clicar no próprio site do Space.com…
Na verdade, para se conseguir ver em território português este eclipse solar, que está neste momento a ocorrer, não precisaríamos apenas que o São Pedro ajudasse – como até ajudou, porque está um ensolarado dia (escrevo-vos de Lisboa); precisaríamos que, em vez de ter sido Napoleão a invadir Portugal, fosse D. João VI a invadir a França e Paris fosse ainda hoje parte de Portugal.
E o mais ridículo é que o próprio site referenciado no take da Lusa, e replicado por toda a imprensa mainstream, explicitava de forma taxativa que o eclipse seria visível na Europa, excepto em Portugal. Até um mapa dinâmico mostravam, e até se podia colocar um pin para confirmar se em determinado local seria visível ou não,
Nenhuma alminha, antes de colocar a notícia no ar, foi confimar a veracidade daquilo que oferecia aos seus leitores. Nem o jornalista da Lusa se deu ao trabalho de entrar no site que referenciou no take. Nem ninguém com responsabilidades editoriais dos outros órgãos de comunicação social foi confirmar.
Sai na Lusa, sai tudo igual
Enfim, a Lusa fez (mais) uma fake news. E a imprensa mainstream num par de horas tratou de a viralizar, tornando-a “verdadeira”, mesmo que de forma efémera.
Mapa do Space.com indicando regiões da Europa onde o eclipse foi visível, podendo obter-se a informação explícita de não ser visível em Portugal.
De facto, é certo que, com as evidências (não houve eclipse visível em solo português, apesar do céu limpo), e certamente chamadas de atenção de leitores, muitos órgãos de comunicação social foram “corrigindo o tiro”, embora muitos sem assumir o erro, a fake news, que tanto os preocupa mas apenas se forem nas redes sociais e em temas em que se mostram comprometidos.
Este caso do falso eclipse em Portugal não teria grande gravidade se não fosse paradigmático do clima desbragado de notícias erradas, de autênticas fake news, que grassam diariamente pela nossa imprensa mainstream: incompetente, negligente, preguiçoso, homogénea ou monotemática, sem mostrar competitividade, não se importando de fazer igual aos demais, replicando textos como vírus, independentente de serem verdadeiras ou falsas.
Fazem tudo isto em conjunto, em manada.
E com isto eclipsam a sua credibilidade, esquecendo que sendo uma evidência que existem fake news a pulularem nas redes sociais, tal fenómeno se deve ao actual descrédito do jornalismo e dos jornalistas. Por causa de “coisas” como o eclipse.
Viu-se isso vezes sem conta nos últimos anos, com a pandemia e a forma manipulatória, enviesada, incorrecta e mesmo falsa (por omissão ou de forma explícita) de muitas notícias. Vê-se isso agora, vezes sem conta, com a propaganda em redor de muitos assuntos, desde a guerra da Ucrânia às medidas governamentais, e tendo muitas vezes como rastilho a agência noticiosa do Estado.
A Lusa faz e a imprensa mainstream transforma-se numa caixa de ressonância que, em demasiados casos, qual Midas, transmuta merda em ouro, mentira em verdade.
Lamentavelmente, ao contrário do que sucede nos eclipses, que duram poucos minutos, temo que este eclipse do jornalismo perdure, ajudando a corromper a nossa já débil democracia.
Afinal, Portugal terá já gastado mais de 660 milhões de euros (e não 500 milhões) em vacinas contra a covid-19. Embora o Ministério da Saúde remeta para a Direcção-Geral da Saúde a divulgação dos contratos, assume que foram compradas 45 milhões de doses desde finais de 2020. Contas feitas, entre vacinas tomadas, doadas e revendidas, o stock actual é de 9,5 milhões de doses que valerão pelo menos 140 milhões de euros. Entretanto, com a previsível redução do “consumo”, a Pfizer prepara-se para quadruplicar o preço das vacinas para o próximo ano. O negócio tem de continuar.
Desde Dezembro de 2020, Portugal já comprou quase 45 milhões de vacinas contra a covid-19 e tem um stock actual de cerca de 9,5 milhões de doses, mesmo se a adesão da população aos reforços esteja a ficar muito aquém das expectativas. Quase todos os contratos relativos a essas compras ainda não constam do Portal Base de contratação pública, sem que a Direcção-Geral da Saúde dê qualquer explicação.
O número total de doses já adquiridas pelo Estado português foi transmitida esta semana ao PÁGINA UM por fonte oficial do Ministério da Saúde, que indicou que até ao dia 14 deste mês, “Portugal recebeu 44,9 milhões de vacinas”, tendo doado 7,8 milhões de doses, sobretudo aos PALOP, e revendido 2,6 milhões de doses.
O Ministério da Saúde acrescenta ainda que “até 17 de Outubro foram administradas cerca de 25 milhões de vacinas”, pelo que restam assim 9,5 milhões de doses em armazém. O número de vacinas administradas fica, porém, aquém do número estimado esta semana pelo PÁGINA UM (quase 26,8 milhões de vacinas administradas), calculado em função da cobertura vacinal por grupo etário indicada semanalmente pela DGS. O site Ou World in Data aponta para a administração de 25.965.516 doses em Portugal até 14 de Outubro.
Deste modo, considerando um custo médio unitário de 14,7 euros – valor dos lotes financiados pela União Europeia através do Compete 2020 –, Portugal já terá afinal despendido cerca de 660 milhões de euros em vacinas contra a covid-19, e o stock actual (9,5 milhões de doses) terá um valor de quase 140 milhões de euros. Na semana passada, o PÁGINA UM tinha avançado que teria sido gastos 500 milhões de euros, mas desconhecia ainda a quantidades de doses em stock agora confirmado pelo Ministério da Saúde.
A questão, neste momento, é saber se a procura por vacinas contra a covid-19 justificara a compra de tantas doses, quando se observa a nível mundial uma redução da adesão sobretudo nas idades mais jovens na toma de reforços.
Em Portugal, a campanha de reforço em curso – denominada de “sazonal”, embora seja a quarta ou quinta dose para a maioria dos casos – foi iniciada na primeira quinzena de Setembro, foram “alcançadas”, por agora, pouco mais de um milhão de pessoas.
De acordo com os dados ontem divulgados pela DGS, 60% dos maiores de 80 anos tinham recebido esse reforço, sendo que essa taxa descia para os 30% no grupo etário dos 65 aos 79 anos. Essas percentagens representam cerca de 407 mil e 485 mil pessoas, respectivamente. Abaixo dos 65 anos, a DGS diz que tomaram reforço sazonal 5% das pessoas com idades entre os 50 e 64 anos e 1% das pessoas com idades entre os 25 e os 49 anos, ou seja, um total de pouco mais de 140 mil pessoas.
Embora o coordenador do programa de vacinação, Penha Gonçalves tenha adiantado, anteontem, ao Público que 1,27 milhões de pessoas acima dos 60 anos tinha tomado já dose de reforço, e que “a vacinação está a decorrer dentro daquilo que está planeado”, as expectativas de se repetir um ritmo similar ao ano passado – que incluiu a vacinação de jovens e de crianças – parecem baixas.
Sendo certo que entre 3 de Setembro e 14 de Outubro deste ano se vacinaram, de acordo com o OurWorldinData, quase tantas pessoas como em período homólogo do ano passado (1.052.968 pessoas vs. 1.070.286), até agora, nesta fase, foram abrangidas sobretudo os mais idosos, incluindo os residentes em lares. Porém, enquanto ao longo do Outono de 2021 e Inverno de 2021-2022, houve uma grande adesão da população portuguesa – entre Setembro do ano passado e Março deste ano foram administradas quase 8,5 milhões de doses –, incluindo de adolescentes e jovens adultos, agora não parece ser muito previsível a repetição desse fenómeno.
Com efeito, face à vacinação primária – que a DGS garante ter sido de 100% acima dos 25 anos e de 98% entre os 12 e os 24 anos –, a adesão ao primeiro reforço foi bastante mais baixa, sobretudo abaixo dos 50 anos. Entre os 25 e os 49 anos foi de 68% e entre os 18 e os 24 anos apenas de 55%. A DGS não recomendou, ao longo dos primeiros nove meses de 2022, o reforço para os menores de idade. Recuperou recentemente o apelo, através de declarações de Graça Freitas, embora sem a existência de uma justificação científica.
Esta tendência de recusa dos reforços estará também relacionada com a percepção de um muito menor risco da Ómicron – que já atingiu quase metade da população portuguesa este ano, atendendo aos casos positivos acumulados –, que tem efectivamente uma taxa de hospitalização e de letalidade muitíssimo mais baixa do que as variantes anteriores. Além disso, a confirmação de que a imunidade natural dá garantias fortes de protecção, sobretudo às pessoas mais novas e saudáveis, pode ainda afastar mais as pessoas de optarem pelo reforço vacinal.
Além disso, a falta de transparência – e mesmo obscurantismo – em redor das vacinas tem resultado num aumento da desconfiança alimentada pela “fadiga vacinal”. Aliás, existe um receio de que, com tanta pressão para se vacinar contra a covid-19, as pessoas mais vulneráveis à gripe possam até recusar a vacina contra esta doença.
Em Portugal também não tem ajudado a postura das autoridades de Saúde, que aparentam estar sobretudo a defender os interesses das farmacêuticas e a proteger decisões políticas polémicas. Recorde-se, por exemplo, que o Infarmed continua a recusar o acesso ao Portal RAM, que cataloga os efeitos adversos das vacinas contra a covid-19, estando o processo de intimação ainda a decorrer no Tribunal Administrativo, por iniciativa do PÁGINA UM.
Entretanto, esta semana soube-se que a Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 terá funcionado à margem da lei, sem sequer registar a sua actividade em actas, como agora alega a Direcção-Geral da Saúde, que poderá também estar, na verdade, a sonegar informação comprometedora.
Neste cenário, as farmacêuticas preparam já uma eventual descida do “consumo” para não perderem uma “receita” comercial de sucesso. Na sexta-feira passada, a agência Reuters anunciou que a Pfizer tem um plano para quadruplicar o preço nos Estados Unidos a partir do próximo ano, para valores entre os 110 e os 130 dólares por dose. Esta decisão, que deverá ser acompanhada pelas outras farmacêuticas, terá um impacte favorável das receitas da Pfizer de até três mil milhões de dólares por ano, segundo analistas.
Em 17 de Março de 2020, no dia seguinte à primeira morte por covid-19 em Portugal, o director do Público, Manuel Carvalho, como se (já) fosse um ideólogo do regime em matéria de políticas de saúde, traçava aquilo que viria a ser uma linha orientadora do seu jornal e, talvez não por coincidência, da narrativa oficial e das medidas de mitigação da covid-19. No seu editorial, escrevia:
“(…) E mesmo que o estado de emergência não altere significativamente o modo de vida que a maioria dos portugueses já adoptou, o simples facto de ter sido activado vai servir para convencer os mais recalcitrantes ou os que teimam em considerar que a epidemia não passa de um exagero.”
E continuava:
“(…) Não é populismo, nem cedência aos impulsos primários dos cidadãos que se trata: é a urgência de garantir a cumplicidade das pessoas e de criar um sentimento de comunidade que precisamos mais do que nunca para derrotar a epidemia. Em momentos drásticos como o de hoje, é necessário recorrer a medidas drásticas. Essa atitude não bastará para travar as consequências da doença. Mas servirá ao menos para todos sentirem que o seu esforço, o seu desconforto e as suas ansiedades são reflectidas por quem nos governa.”
Recordo estas palavras, supostamente de grande sentido de responsabilidade humanitária e patriótica, porque ajudam a compreender os equívocos, as falácias, os enviesamentos de semântica e a manipulação que grassaram (e nos desgraçaram) ao longo da pandemia, alimentada pela imprensa mainstream. Viu-se isso em todas as medidas de gestão da pandemia, na forma acrítica (e entusiástica) como eram aceites pelos directores dos órgãos de comunicação social.
Isso passou-se para as vacinas, e daí para uma das suas alegadas (e mais polémicas) características, que justificou a mais infamante medida discriminatória de que há memória na nossa geração: o certificado digital.
Mais do que um instrumento de gestão epidemiológica, o certificado digital (de vacinação e de recuperação) foi, na verdade, apenas uma arma de persuasão ou de coação em prol da vacinação, porquanto “castigava” quem não o detivesse. Ou seja, quem não se tivesse vacinado, independente do motivo ou da motivação. Invocava-se ainda por cima a Ciência, mas nada houve de científico, embora muito argumento de autoridade tivesse sido vergonhosamente usado.
Não deveria ser necessário recordar que, numa sociedade, temos direitos e deveres, subsumindo-se daí que, existindo inúmeras vantagens da integração individual num grupo, tal não significa que o indivíduo possa ser sacrificado por ter como consequência uma vantagem para o grupo. Em concreto, mesmo que uma vacina contra a covid-19 pudesse trazer mais vantagens inequívocas globalmente se todos os indivíduos fossem vacinados – a tal imunidade de grupo –, mesmo assim não seria lícito, pelo menos eticamente, obrigar todos os indivíduos se a vantagem para si não fosse inequivocamente superior às eventuais desvantagens. E, havendo uma desvantagem potencial, é lícito que o indivíduo possa recusar.
Ainda mais sabendo duas coisas fundamentais: o risco da covid-19 é incomensuravelmente diferente nos diversos grupos etários; e não se conhecem ainda todos os efeitos adversos das vacinas face à sua tecnologia nova e à inexistência de um histórico.
Mas ainda se poderia colocar a hipótese de estarmos mesmo num “momento drástico”, e que as vacinas contra a covid-19 pudessem mesmo criar a “imunidade de grupo” – isto é, quebrar as cadeias de transmissão –, erradicando assim o vírus. Não seria impossível, mas pouco provável em tão curto espaço de tempo.
Na verdade, apenas dois vírus foram virtualmente erradicados por acção das vacinas (varíola e peste bovina), estando outra (poliomielite) em vias desse desfecho. Foram, contudo, necessárias algumas décadas neste processo. A pressa é, em Medicina, uma péssima conselheira. E nunca com uma vacina em fase inicial da sua implementação – para não dizer que se encontra numa fase experimental, tantos são os estudos de farmacovigilância em curso) –; e nunca através de um programa de vacinação maciça que pretendia abranger em apenas um ano pelo menos 70% da população mundial.
Contudo, na verdade, em relação à covid-19, nunca estivemos sequer perto de almejar vacinas com capacidade de criar imunidade de grupo – ou seja, medicamentos que, além de reduzirem o risco de hospitalização e morte, concedessem uma menor transmissibilidade. Se tal pudesse suceder, ainda se poderia admitir a legitimidade ou de não de premiar os vacinados em detrimento dos não-vacinados – através designadamente de certificados digitais.
Porém, essa discussão somente deveria ser colocada se, efectivamente, ficasse provada, pela Ciência, que a vacina reduzia de forma muito relevante a capacidade de um vacinado infectar outros, quer vacinados quer não-vacinados.
E isso nunca ficou provado antes – e mesmo depois – da aprovação do certificado digital imposto pela Comissão Europeia em 14 de Junho de 2021, onde, no ponto 7 do preâmbulo, se diz o seguinte:
“As pessoas vacinadas ou as que obtiveram um resultado negativo num teste de despistagem à COVID-19 recente e as pessoas que recuperaram da COVID-19 nos seis meses anteriores parecem ter um risco reduzido de infetar outras pessoas com o SARS-CoV-2, de acordo com dados científicos atuais, ainda em evolução. A livre circulação de pessoas que não representam um risco significativo para a saúde pública de acordo com provas científicas sólidas, por exemplo porque são imunes ao SARS-CoV-2 e não o podem transmitir, não deverá ser restringida, uma vez que tais restrições não seriam necessárias para alcançar o objetivo de salvaguarda da saúde pública. Se a situação epidemiológica o permitir, estas pessoas não deverão ser sujeitas a restrições adicionais à livre circulação relacionadas com a pandemia de COVID-19, tais como testes para despistagem da infeção por SARS-CoV-2 por motivos de viagem, ou cumprimento de quarentena ou autoisolamento por motivos de viagem, a menos que essas restrições adicionais sejam, com base nos dados científicos disponíveis mais recentes e em conformidade com o princípio da precaução, necessárias e proporcionadas para o efeito de salvaguardar a saúde pública, e não sejam discriminatórias.”
Foi neste pressuposto – “dados científicos actuais, ainda em evolução” –, completamente falso, que se baseou o certificado digital, primeiro para viagens transfronteiriças, e mais tarde para segregar não-vacinados mesmo no seu país.
Como se sabe, a Pfizer veio este mês admitir que, nos seus ensaios iniciais, nunca estudaram a questão da menor transmissibilidade dos vacinados. E, de facto, nunca houve uma assumpção clara das farmacêuticas de que as vacinas tinham esse nível de eficácia. Mas as farmacêuticas, nem que fosse por omissão, foram entrando no “jogo”, não se comprometendo e até “patrocinando” a imprensa e os políticos que iam “vendendo” as vacinas como “bóia de salvação” com efeitos milagrosos. Por isso, quando foi “vendida” ao povo a ideia de que a vacinação evitava a transmissão, as farmacêuticas sabiam que assim venderiam mais. Por omissão, pactuaram.
Onde esteve o jornalismo mainstream durante este processo que levou à imposição do certificado digital baseada numa falsidade?
De facto, jornais como o Público – muito antes de se discutir a aplicação do certificado digital – estiveram a fazer lobby pela vacinação, mesmo para aqueles que fossem recuperados.
Por exemplo, em 14 de Janeiro de 2021 – ou seja, cerca de duas semanas após o início do programa de vacinação em Portugal –, o Público noticiava que até as pessoas com a chamada imunidade natural (adquirida através de uma infecção prévia) seriam capazes de transportar o SARS-CoV-2 no nariz e na garganta e transmiti-lo a outras pessoas.
E estavam empenhadíssimos em falar da imunidade de grupo, como se fosse uma evidência. E da necessidade de promover rapidamente taxas de cobertura elevadas.
Por exemplo, em 26 de Janeiro de 2021, o Público divulgava nas suas páginas um artigo do Washington Post, onde surgia a seguinte passagem: “(…) embora as vacinas sejam um passo crítico para abrandar a propagação de um vírus que já causou mais de dois milhões de mortes em todo o mundo, os especialistas têm alertado repetidamente que ser vacinado não significa um regresso imediato à vida pré-pandémica.”
E porquê?
Porque, explicava-se, “as autoridades de saúde pública dizem que pelo menos 70% da população precisa de ser inoculada para que o país alcance a imunidade de grupo e pare a propagação do vírus”, e acrescentava-se que “com o vírus a continuar a propagar-se rapidamente por grande parte do país [e pelo mundo], muitas formas de socialização implicam algum nível de risco, incluindo reuniões entre pessoas que estão totalmente vacinadas”.
Ninguém estranhava esta falácia: tinha de se chegar aos 70% para haver imunidade de grupo, mas até os totalmente vacinados estariam pouco seguros entre eles enquanto essa meta não fosse atingida?
Esta notícia é, aliás, paradigmática do enviesamento da Ciência ao longo da pandemia sempre que usada pela imprensa mainstream. Apesar de diversos cientistas, entre os quais um médico de doenças infecciosas de Houston (Robert Atmar), acabarem a fazer uma declaração de fé: aqueles que receberam as suas vacinas “deram um passo para nos aproximar a todos daquela luz ao fundo do túnel e voltar a ter uma certa sensação de normalidade”.
E continuou. Em 11 de Fevereiro de 2021, o Público titulava “CDC [agência norte-americana de controlo e prevenção de doenças] diz que as pessoas vacinadas (com as duas doses) não precisavam de cumprir quarentena após exposição de risco”. E porquê? Porque “a vacinação demonstrou prevenir quadros sintomáticos de covid-19”. Mas, e quanto à transmissão? Podiam transmitir, se novamente infectadas. O CDC dava a resposta: “o risco de transmissão do SARS-CoV-2 de pessoas vacinadas para outras ainda [era] incerto”, mas acrescentava-se na notícia que “os especialistas acreditam que as pessoas que se encontram na fase sintomática e pré-sintomática ‘têm um papel maior na transmissão’ do que as pessoas que permanecem sem sintomas”. Acreditam! Eis a fé.
O primeiro trimestre de 2021 foi, efectivamente, o período em que a imprensa mainstream seguia, sem pestanejar nem questionar, a tese da menor transmissibilidade dos vacinados, através de declarações de “profissão fé” por parte de especialistas, mesmo se esses especialistas jamais apresentassem provas. Não precisavam: o argumento de autoridade bastava por si.
Por exemplo, o Público divulgou um take da Lusa, nesse mesmo dia 11 de Fevereiro de 2021, sobre um suposto estudo da Universidade de Aveiro que indicava ser prioritário vacinar primeiro os chamados “super-disseminadores”, ou seja, pessoas “com contacto directo com um grande número de pessoas”. Isto porque, supostamente, vacinando-se aquele grupo se “limita[ria] muito mais a propagação do coronavírus e pode[ria] diminuir o número global de mortes do que a estratégia que está a ser seguida pelos países da União Europeia (…), de vacinar primeiros os idosos e sucessivamente os grupos etários de idades inferiores”
É certo que, no dia seguinte, 12 de Fevereiro de 2021, até se divulgava que para a Organização Mundial da Saúde “não é claro” que os vacinados não transmitissem covid-19. Mas a responsável da OMS dava uma no cravo e outra na ferradura, não se querendo comprometer: “há relatos de que quem está vacinado, se ficar infectado, a carga viral será menor. Por isso, a hipótese de infectar os outros é menor.” Palpites!
Mesmo assim, numa altura em que se estava já a preparar o certificado digital, a OMS foi talvez a única entidade que, inicialmente, colocou reservas. Em 3 de Março de 2021, o Público noticiava, através de um take da Lusa, que a OMS defendia que “estar vacinado contra a covid-19 não pode ser um requisito para viajar”, realçando que a “utilização de ‘certificados de imunidade’ para viajantes internacionais (tanto para os que foram vacinados como para os que possuem anticorpos após superar a doença) não é recomendável nem está sustentada actualmente por provas científicas”.
Pouco importou. A falácia e a semântica falaram mais alto. Em 25 de Março de 2021, uma resolução do Parlamento Europeu, instava a “Comissão e os Estados-Membros a desenvolverem, com caráter prioritário, um certificado de vacinação comum e um sistema de reconhecimento mútuo dos procedimentos de vacinação para fins médicos, acrescentando que “uma vez que as vacinas tenham sido disponibilizadas ao público em geral e existam provas científicas suficientes de que as pessoas vacinadas não transmitem o vírus, o certificado pode ser considerado, para efeitos de viagem, como uma alternativa aos testes PCR e aos requisitos de quarentena (…).
Repita-se: teriam de existir “provas científicas suficientes de que as pessoas vacinadas não transmitem o vírus”…
Nunca surgiram essas provas, mas também a imprensa mainstream – imbuída do espírito de missão em prol do “consenso social” para a vacinação – nada questionou quando o certificado digital foi implementado em 14 de Junho de 2021.
Aliás, em meados do ano passado, foi dando palco a sucessivos “especialistas”, cheios de argumento de autoridade, que continuavam a falar da imunidade de grupo como a quimera para o término da pandemia, mesmo quando a vacina tinha sido desenvolvida para uma variante que não a então dominante (Delta).
E que se deveria então fazer? Ora, fazer o absurdo: vacinar mais, como defendeu mais um “especialista” na imprensa mainstream, como no Público (20 de Junho de 2021) ou no Diário de Notícias (29 de Junho de 2021). Com efeito o médico intensivista José Artur Paiva, imbuído do seu estatuto de autoridade, acriticamente aceite pelos jornalistas, teve o desplante de dizer que com a variante Delta, a imunidade de grupo só se deverá atingir perto dos 85% de taxa de vacinação em vez de ser nos 70%.
Mas, a esquizofrenia epidemiológica do Público continuava. No dia 21 de Junho, o diário de Manuel Carvalho divulgava a opinião de Miguel Castanho que, embora recomendando a vacinação em quase tudo o que mexesse, dizia taxativamente que “essa ideia [imunidade de grupo] está ultrapassada porque as vacinas não são 100% eficazes, por um lado, mas sobretudo porque as vacinas não protegem contra a infecção e contra a capacidade de transmissão e, portanto, qualquer pessoa mesmo vacinada em algum grau contribui para a transmissão do vírus”.
Em 30 de Julho de 2021, o Público escrevia que “a variante Delta”, então já dominante, “se propagava tão facilmente como a varicela à medida que os casos aumentam nos Estados Unidos e novas investigações sugerem que as pessoas vacinadas podem espalhar o vírus.”
Escrevia ainda que vários estudos mostravam “que indivíduos vacinados que foram infectados com a variante Delta podem ser capazes de transmitir o vírus tão facilmente como aqueles que não estão vacinados”, acrescentando que “as pessoas vacinadas que ficaram infectadas com a variante Delta têm cargas virais semelhantes àquelas que, não estando vacinadas, estão infectadas com a variante.”
Alguém da imprensa contestou que não fazia sentido continuar com o certificado digital? Claro que não: o Público, então, continuava a sua cruzada para obter o “consenso social” em torno da vacinação, em vez de fazer jornalismo.
Tanto assim que continuou a dar palco ao mais destrambelhado clínico desde os tempos de Viriato: Gustavo Carona, que não teve pejo em escrever o seguinte na sua croniqueta de 19 de Agosto de 2021 em prol da vacinação pediátrica: “A vacina previne infecção e transmissão na ordem dos 50 a 80%, diminui a carga viral caso infectada, e diminui os dias de potencial contágio. Ou seja, as crianças têm muito menos probabilidade de levar o vírus para casa, com o que daí possa vir.”
Em 29 de Outubro de 2021, a “machadada final” em qualquer justificação científica para a manutenção do certificado digital: um take da Lusa, também publicado pelo Público, revelava que um artigo científico na revista The Lancet Infectious Diseases concluía que “as pessoas infectadas com a variante Delta do vírus SARS-CoV-2 registaram um pico de carga viral semelhante independentemente do estado de vacinação contra a covid-19”.
Porém, em 25 de Novembro de 2021, a generalidade da imprensa mainstream “aplaudiu” a medida do Governo de António Costa que usou o certificado para segregar não-vacinados, obrigando que este vergonhoso passaporte sanitário passasse a ser “obrigatório no acesso a restaurantes, estabelecimentos turísticos e alojamento local, eventos com lugares marcados e ginásios” a partir do mês seguinte, e que esteve em vigor até finais de Fevereiro deste ano.
Vergonhosamente, para branquear esta infâmia, o Público ainda deu palco a epidemiologistas que se venderam ao sistema, como Henrique Barros, como se viu numa entrevista inclassificável em 31 de Dezembro de 2021. Intitulava-se: “As vacinas são para prevenir uma doença que eu posso transmitir aos outros. Não são um tratamento individual”. De uma forma surpreendente, dizia ele, nessa altura, que “quando eu decido vacinar-me, eu estou a fazer um contrato entre mim e os outros em que beneficio eu porque me protejo e em que beneficiam os outros porque eu, ao proteger-me, também os estou a proteger. A vacina, como medida de saúde pública, é diferente de um tratamento que uma pessoa queira ou não queira fazer para a sua doença. Não é um tratamento, é um esforço de prevenção. Por outro lado, previne uma doença que eu posso transmitir aos outros; e transmito aos outros no lado mais indispensável do ser vivo, que é respirar.”
Balelas. O essencial não era dito: as vacinas nunca provaram os pressupostos subjacentes ao certificado digital e, por maioria de razão, às medidas segregacionistas a si associadas.
Além disso, se prova ainda fosse necessária de que a vacina jamais teve a capacidade de evitar a infecção e a transmissão, basta observar o que sucedeu após o surgimento da variante Ómicron a partir de Novembro de 2021. Em menos de um ano, com uma taxa de vacinação de cerca de 85%, mais de 40% dos portugueses foram infectados (casos positivos). Ou seja, grosso modo, metade da população vacinada “alegremente” foi infectada e infectou-se…
Nunca mais se ouviu alguém defender a capacidade das vacinas em evitar a infecção ou a transmissão do SARS-CoV-2. Só a Direcção-Geral da Saúde e o Instituto Nacional da Saúde, nos seus habituais relatórios de monitorização, a dizerem, sem se rir, que a malvada variante Ómocron (que, na verdade, foi uma “bênção” face às outras variantes, muito mais letais) tem “uma capacidade de evasão à resposta imunitária”… concedida pela vacina… e também concedida pelo soro fisiológico… ou pela água da torneira….
Mas mais vergonhoso ainda foi ver o desprezo com que a comunicação social mainstream (não) acompanhou a consulta pública da renovação do certificado digital na primeira metade deste ano. Foi, de muito longe, o mais participado diploma legislativo em discussão na União Europeia, como o PÁGINA UM foi salientando durante o período de consulta pública, entre 3 de Fevereiro e 8 de Abril deste ano. Foram 385.463 comentários de cidadãos e entidades.
Mas já deram notícia sobre a aprovação da renovação do certificado digital em Junho passado, por mais um ano.
E continua em vigor, embora caduco, porque nenhum país já o usa, pela sua própria inutilidade.
Mas não o devemos esquecer. Nunca. Nem esquecer que o papel da imprensa mainstream, da qual o Público é um paradigma, num dos momentos de discriminação mais torpes que se possa imaginar, porque colocou no papel de odioso as pessoas que, legitimamente, não se quiseram vacinar pelos mais diferentes motivos.
Nota final: Como é do conhecimento público, não me vacinei, porque, com base na Ciência, confiei nos estudos que foram confirmando e reforçando os dados sobre a imunidade natural, após ter ficado doente, e em estado bastante grave, em Junho do ano passado.
Tenho acompanhado os meus níveis de imunidade natural realizando, desde Dezembro passado, análises serológicas (IgG) com periodicidade trimestral. No passado mês de Julho, testei positivo e com sintomas bastante ligeiros compatíveis com a variante Ómicron, confirmando assim a forte e duradoura imunidade natural, que prescinde a toma de vacina em condições normais, mesmo por pessoas que tiveram em estado grave numa primeira infecção.
Poucos dias depois desta reinfecção, fiz novo teste serológico com um resultado de 846 BAU/ml, que confronta com os 331 BAU/ml que obtivera em finais de Junho, pouco antes da infecção. Estava, portanto, com imunidade natural antes dessa nova infecção; reforcei a imunidade natural com a nova infecção. Estou, portanto, com a imunidade reforçada porque não andei a fugir do vírus.
Considero que, com base nos estudos e dados disponíveis, a Ómicron apresenta, independentemente da eficácia das vacinas, uma muitíssima menor taxa de letalidade face às anteriores variantes, sem prejuízo de continuar a ser uma infecção respiratória eventualmente relevante para pessoas vulneráveis. A Ciência deve prevalecer; não uma estúpida e incompreensível burocracia.
Nunca usei nem usarei o certificado digital, mesmo tendo tido “direito”. Constitui um factor de discriminação sem qualquer justificação epidemiológica.
O Diário de Notícias foi o paradigma da rotulagem à contestação da gestão da pandemia com os epítetos de “negacionismo” e “negacionistas”. Em resposta a uma queixa junto da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), a directora do periódico da Global Media, Rosália Amorim, defendeu que “os portugueses” esperavam que Fernando desse “o exemplo na vacinação”, e que, por não o ter dado, colocou “em causa a segurança de outros cidadãos”, constituindo “especial motivo de indignação”. O fundador da AMI diz que estas declarações são “estapafúrdias”. Por sua vez, a ERC defende agora que, “doravante”, o Diário de Notícias deve “diligenciar no sentido de um mais amplo e rigoroso enquadramento dos factos noticiados”.
São 834 resultados disparados numa pesquisa interna do site do Diário de Notícias quando se colocam as palavras “pandemia” e “negacionistas”. No topo dos mais relevantes, destaca-se uma notícia de 31 de Março de 2021 intitulada “Extrema-direita e negacionistas da pandemia aproximaram-se”. Estava lançado o mote.
Rui Castro, sempre chamado “juiz negacionista”, foi uma presença constante nesta pesquisa, sobretudo durante o processo que levou à sua expulsão pelo Conselho Superior da Magistratura. Há, no site do Diário de Notícias, por agora, 148 notícias com esta expressão no título ou no conteúdo.
A polarização social, política e mesmo partidária foi uma constante desde o início da pandemia nas páginas deste secular diário. Num artigo de opinião de Bernardo Pires de Lima, actual conselheiro político do presidente da República, publicado em 4 de Abril de 2020, no início da pandemia, e sugestivamente intitulado “A insustentável leveza dos negacionistas”, começou a ser óbvia a colagem ideológica que se preparava então para pôr políticos polémicos (Trump, Bolsonaro, Salvini, Órban) em linha com qualquer pessoa que contestasse minimamente a narrativa imposta. E vice-versa.
Com efeito, nas centenas e centenas de notícias e artigos de opinião do Diário de Notícias onde o tema central é a pandemia, “negacionista” é o rótulo invariavelmente escolhido quer para quem jurava que o SARS-CoV-2 nunca existiu, quer para quem dizia que se está perante uma cabala, quer para quem contestava que a gestão da pandemia violava direitos fundamentais – que, aliás, agora têm estado a ser confirmadas pelo Tribunal Constitucional –, quer para quem alertava para os riscos de se menorizar as outras doenças, quer para quem denunciava a existência de manipulação e sonegação de informação por parte das autoridades; quer para quem questionava a vacinação universal em todos os grupos etários…
Nunca interessou ao Diário de Notícias, e a bem dizer à imprensa mainstream, fazer distinções nem promover o debate: tudo foi metido no mesmo saco, numa explícita e depreciativa alusão aos movimentos negacionistas do Holocausto.
Rosália Amorim, directora do Diário de Notícias.
Por isso, não surpreende que aquando do anúncio de a Ordem dos Médicos ter aberto um processo disciplinar a Fernando Nobre, fundador da AMI e antigo candidato à Presidência da República, o Diário de Notícias tenha escrito, em 21 de Setembro do ano passado, que essa decisão advinha das declarações que prestara “numa manifestação de negacionistas da pandemia de covid-19 realizada junto à Assembleia da República”.
Ora, tal como já sucedera com a notícia sobre os “agentes negacionistas” (assim rotulados só por não se terem vacinado), também este artigo do Diário de Notícias, desta vez sobre Fernando Nobre, caiu na alçada da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), em resultado de uma queixa não-identificada. E em deliberação de Setembro passado (mas apenas divulgada na passada semana), o regulador concluiu que “a abordagem jornalística dada pelo Diário de Notícias deveria ter providenciado um enquadramento mais amplo e fundamentado da problemática”. A ERC acrescentou ainda que o jornal da Global Media deverá, “doravante, diligenciar no sentido de um mais amplo e rigoroso enquadramento dos factos noticiados”.
Sem relevância significativa, por não ter efeitos sancionatórios, quer o processo quer esta deliberação contra o Diário de Notícias têm, contudo, dois aspectos peculiares muito relevantes.
Por um lado, o Conselho Regulador da ERC foi muito mais crítico com o Diário de Notícias do que fora, numa análise similar, com o Observador que, também em 21 de Setembro do ano passado, noticiara, nos mesmos moldes, o processo aberto contra Fernando Nobre.
O Diário de Notícias usou e abusou de expressões que, antes da pandemia, estavam “reservadas” apenas para quem negasse o Holocausto.
Essa notícia do Observador, tal como a do Diário de Notícias, também destacou que a causa do processo da Ordem dos Médicos tinha sido as declarações “numa manifestação de negacionistas em frente à Assembleia da República”, salientando, igualmente, as posições do fundador da AMI sobre o uso da máscara, os testes e os medicamentos que, alegadamente, “não têm eficácia comprovada no tratamento da covid-19”.
A deliberação da ERC sobre o Observador, logo aprovada em Dezembro do ano passado, foi porém muitíssimo mais branda. Na verdade, o regulador arquivou a queixa, “por não se verificarem indícios de desrespeito pelos limites à liberdade de imprensa”.
Note-se, contudo, como o PÁGINA UM já revelou noutros casos, a ERC tem vindo, ao longo deste ano, a mudar a sua posição sobre o uso indiscriminado do termo “negacionista”, muito em voga pela imprensa durante a pandemia. Até finais de 2021, aceitava o uso desta terminologia; a partir deste ano começou a “torcer o nariz”.
Por esse motivo, a defesa da directora do Diário de Notícias, Rosália Amorim, não foi particularmente bem acolhida pelo regulador. E compreende-se. Nas nove páginas da sua argumentação, a que o PÁGINA UM teve acesso – e que divulga na íntegra por o considerar um testemunho relevante sobre a imprensa nacional –, a directora daquele periódico tece considerações surpreendentes.
O uso do termo “negacionista” foi mediatizado como sinónimo de anti-ciência e de ideologias extremistas.
Rosália Amorim começa logo por evocar, através do seu advogado, o adágio popular: “Quem não quer ser lobo, não lhe vista a pele”, aludindo assim ao suposto direito de se chamar “negacionista” a Fernando Nobre e a quem estivesse presente na manifestação em frente à Assembleia da República.
Alegando que o termo “negacionista” sempre foi usado por vários órgãos de comunicação social e opinion-makers – remetendo mesmo para artigos de Pacheco Pereira e do ex-secretário de Estado Manuel Delgado, demitido por causa do escândalo da associação Raríssimas em 2017 –, Rosália Amorim defendeu que “é, cremos, medianamente evidente, [que] escrever sobre o tema [pandemia e vacinação], censurando a palavra em causa [negacionismo], será pretender ‘enfiar a cabeça na areia’ e fazer o serviço que tais movimentos pretendem”.
Apesar de rejeitar a existência de “qualquer incentivo ao ódio e à discriminação contra pessoas que não se querem vacinar”, e também considerar que as queixas junto da ERC por jornalistas usarem indistintamente a palavra “negacionista” configuram “uma pressão ao jornalismo”, a directora do Diário de Notícias acaba por se insurgir sobretudo com as posições de Fernando Nobre.
Não apenas foram catalogados de “negacionistas” quem negava claramente a existência do vírus SARS-CoV-2; o termo passou a ser aplicado para qualquer pessoa que fugisse da “narrativa oficial”.
Na carta à ERC, Rosália Amorim assegura que “os portugueses [presume-se que todos] esperam que cidadãos com as especiais obrigações de Fernando Nobre (como responsável médico e anterior candidato à Presidência da República) dêem o exemplo na vacinação e, se o não fazem, além de poderem pôr em causa a segurança de outros cidadãos e de instigarem outros a fazê-lo, causam especial motivo de indignação”.
E acrescenta que “foi este o objecto noticioso, cumprindo o DN [Diário de Notícias]– a quem compete sempre noticiar (e não esconder) –, o dever de informação aos leitores acerca do que se passa no seu país, observando os princípios fundamentais que regem a liberdade de imprensa”.
Contactado pelo PÁGINA UM, Fernando Nobre considera serem “estapafúrdias” as declarações da directora do Diário de Notícias. “Foi precisamente por eu ter a responsabilidade que tenho perante o povo português que fiz questão de deixar a minha posição como testemunho futuro”, diz o presidente da AMI.
“Não podia ficar calado”, acrescenta o médico, para se insurgir sobre a questão do exemplo que deveria supostamente dar: “Só faltava essa”. E afirma que voltaria a defender o que afirmou diante da Assembleia da República há um ano.
Destacando os efeitos secundários que, na sua opinião, estas vacinas têm, Fernando Nobre garante que nunca se vacinará para dar o exemplo, porque “seria violar a minha consciência enquanto pessoa, enquanto médico, cientista e também político, que fui.”
Sobre o andamento do processo disciplinar instaurado em Setembro de 2021 pela Ordem do urologista Miguel Guimarães, o fundador da AMI adianta nada saber. “Há um ano que aguardo para ser ouvido na Ordem dos Médicos; há um ano que as minhas testemunhas, incluindo figuras de relevo, aguardam para serem ouvidas na Ordem dos Médicos”, salienta.
Fernando Nobre acusa ainda a comunicação social, em geral, de ter sido parcial ao longo da pandemia. “Nunca deu direito ao contraditório. Houve dois posicionamentos e devia ter havido contraditório para o esclarecimento da população”, argumenta. E conclui: “O unanimismo [que se criou] só existe em regimes ditatoriais, não é compatível com a argumentação científica”.
A Direcção-Geral da Saúde (DGS) escreveu ao PÁGINA UM para informar “sobre os motivos para a inexistência de actas formais das reuniões da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19”. Graça Freitas diz, desta vez, que havia “urgência para salvar vidas”, pelo que não houve tempo para actas mas apenas para pareceres, que, diga-se, não identificam sequer quem votou contra. A DGS não quantifica quantas vidas se perderiam se as actas – obrigatórias por lei e que revelariam o debate científico entre os membros – fossem escritas e divulgadas. O PÁGINA UM vai pedir ao Ministério Público que apure se Graça Freitas está a dizer a verdade ou se procura sonegar informação comprometedora, depois de uma sentença do Tribunal Administrativo a ter intimado a mostrar as actas ao PÁGINA UM
A Direcção-Geral da Saúde justifica que foi por causa das “circunstâncias de elevada pressão sobre os serviços de saúde e urgência para salvar vidas” que não se mostrou possível “elaborar as actas formais das reuniões” da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC).
Esta comissão consultiva, criada em Novembro de 2020, conta com 13 membros efectivos, peritos supostamente independentes, a que acrescem 16 membros consultivos. Aparentemente, nenhum terá tido tempo ou disponibilidade – à conta de salvar vidas – para escrever e aprovar actas onde, por exemplo, ficasse expresso quem foram os membros que, por exemplo, votaram contra o processo de vacinação dos adolescentes e das crianças aquando da discussão destas questões em Agosto e Dezembro de 2020, respectivamente.
Graça Freitas diz agora que não há actas da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19: um acto ilegal, se for verdade; um crime, se for mentira.
Recorde-se que a CTVC tem como funções a elaboração de pareceres técnicos sobre as vacinas contra a covid-19 e as estratégias de vacinação, de recomendações sobre os grupos-alvo da vacinação COVID-19 e a sua priorização, bem como apresentar propostas e acompanhar o desenvolvimento de estudos sobre os programas vacinais e ainda pronunciar-se sobre necessidade de formação.
Na carta hoje recebida pelo PÁGINA UM, Graça Freitas diz que “face à urgência na tomada de decisões fundamentadas e fundamentais que permitissem a célere implementação do processo de vacinação da população residente em Portugal, e a redução do consequente impacte da infecção na saúde dos cidadãos, todos os esforços foram alocados para assegurar a atempada fundamentação técnico-científica e ética das decisões e a sua rápida implementação, através da elaboração e atualização de Normas da DGS”.
Mas agora, acrescenta, parece que haverá tempo ao fim de dois anos de existência da CTVC. Graça Freitas assegura que “com a não prorrogação do estado de alerta a 30 de setembro de 2020, bem como com a cessação da vigência de diversos decretos-leis e resoluções aprovadas no âmbito da pandemia, será assegurada a elaboração das atrás das reuniões ocorridas após aquela data”.
Dossier dos pareceres da CTVC consultados pelo PÁGINA UM em Março. A DGS sempre recusou revelar as actas. Agora, intimada pelo Tribunal Administrativo, diz que afinal nunca houve actas, mas que a CTVC vai agora começar a fazê-las.
Destaque-se, contudo, que nenhum decreto-lei nem nenhuma resolução aprovada no âmbito da pandemia permitia que uma comissão consultiva como a CTVC não tivesse de elaborar actas, até por não ser algo que exigisse um dispêndio de tempo e de recursos relevante.
Apesar da obrigatoriedade legal, e de não existir qualquer regime de excepção – e ser crucial conhecer a fundamentação técnica e científica de cada um dos membros, no pressuposto de que todos pugnavam apenas por princípios éticos e científicos, e não de outra natureza, mormente comerciais –, em mais de duas dezenas de pareceres não terão sido assim, alegadamente, elaboradas actas. Ou então está-se perante falsas declarações agora que o Ministério da Saúde foi intimado pelo PÁGINA UM a disponibilizar as actas.
Esta situação mostra-se ainda mais anormal por terem sido indicados, dentro do grupo, um coordenador – Válter Fonseca, então director do Departamento de Qualidade da Saúde da DGS – e um coordenador-adjunto, Luís Graça. Este médico imunologista – que não andou a salvar vidas nos hospitais –, porquanto é investigador do Instituto de Medicina Molecular na área da regulação de linfócitos, acumula ainda a presidência da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa.
Esta entidade é sobretudo conhecida por promover os Prémio Pfizer, que distingue anualmente investigação médica com uma recompensa monetária de 60 mil euros por ano. Além disso, Luís Graça tem tido, a título pessoal, ao longo dos últimos anos, diversas ligações a outras farmacêuticas com interesses nas vacinas, como a AstraZeneca. Da farmacêutica anglo-sueca recebeu oficialmente 3.050 euros nos últimos dois anos. Aparentemente, Luís Graça – que não respondeu às questões do PÁGINA UM – não teve assim tempo disponível para escrever uma acta sequer relativa a uma comissão consultiva para a qual não foi compelido a aceitar.
Também nenhum outro membro da CTVC terá tido tempo para escrever actas nem a responder às questões do PÁGINA UM.
Luís Graça (à esquerda), coordenador-adjunto da CTVC, não teve tempo para elaborar actas, mas teve tempo para conversas amigáveis com Paulo Couto Ferreira, relações públicas da Pfizer, em Novembro de 2021. E também para colaborar com a AstraZeneca por diversas vezes em 2021 e 2022.
Recorde-se que a justificação da directora-geral da Saúde sobre a inexistência de actas desta importante comissão científica – que a confirmar-se significa que a sua “ciência” da CTVC se sustenta em coisa nenhuma – surge depois de largos meses sem que esta responsável manifestasse essa situação. Pelo contrário.
Em Março passado, o gabinete jurídico da DGS informou o PÁGINA UM que “por despacho da Senhora Diretora-Geral da Saúde, datado de 18 de Março de 2022, foi solicitada apreciação jurídica sobre as duas questões requeridas” pelo PÁGINA UM, a saber: a identificação dos membros que votaram contra e se abstiveram face ao parecer (homologado em 28/07/2021) relativo à vacinação contra a covid-19 em adolescentes, e o mesmo em relação ao parecer sobre a mesma matéria, homologado em 8 de Agosto de 2021. Ora, apesar desse parecer nunca ter sido enviado ao PÁGINA UM, pressupunha que existia um documento oficial onde constavam as orientações de voto e a sua justificação. Ou seja, uma acta.
Também num processo levantado pela Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, Graça Freitas nunca alegou que as actas não existiam. E nem mesmo nas diversas intervenções no processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa, do qual o Ministério da Saúde era réu, foi suscitada a inexistência de actas. Só agora que uma juíza sentenciou a obrigatoriedade de entrega, sob risco de multa, vem a DGS dizer que não há actas… porque se esteve sempre a salvar vidas.
O PÁGINA UM vai solicitar ao Ministério Público diligências para apurar se as actas não existem mesmo ou se estão a ser sonegadas ou mesmo eliminadas.
N.D. Todas as diligência do PÁGINA UM nos processos entrados no Tribunal Administrativo, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Até ao momento, o PÁGINA UM está envolvido em 13 processos de intimação, quatro dos quais em segunda instância, e ainda em duas providências cautelares. Até ao momento foram angariados 11.131 euros, um montante que começa a ser escasso face à dimensão e custos envolvidos nos processos. Na secção TRANSPARÊNCIA começamos a divulgar todas as peças processuais dos processos. em curso no Tribunal Administrativo. Este processo específico pode ser consultado aqui.