Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Conhece a história da primeira vacina contra o vírus sincicial respiratório? E mesmo assim acha bem a promiscuidade entre farmacêuticas e imprensa?

    Conhece a história da primeira vacina contra o vírus sincicial respiratório? E mesmo assim acha bem a promiscuidade entre farmacêuticas e imprensa?


    A farmacêutica francesa Sanofi, em articulação com a anglo-sueca AstraZeneca, conseguiu, no passado dia 4 de Novembro, a aprovação pela Comissão Europeia da sua vacina contra o vírus sincicial respiratório (RSV), que causa uma das mais banais infecções em crianças e idosos, que só constitui preocupação relevante para um grupo muito restrito com comorbilidades (e onde já existia medicamento preventivo).

    Também a Pfizer, a Moderna e a GlaxoSmithKline se encontram em fase avançada de testes, muito interessadas neste novo filão de negócios das vacinas, “empurradas” pela covid-19, que levam a saltarem-se fases à boleia de uns políticos menos prudentes e de uma imprensa histérica.

    Obviamente, as farmacêuticas com as suas novas vacinas contra o RSV querem repetir a “dose” do SARS-CoV-2. Desejam um ambiente de pânico e de interesses promíscuos com os diferentes “autores sociais”, que, tal como se observou na covid-19, aliado a um voluntarismo irracional, resultou numa estratégia de vacinação maciça e praticamente coerciva, injectando quem se devia (por razões de verdadeira emergência e relevância) e quem não se devia nem era prudente fazê-lo, de que os jovens adultos, adolescentes e até crianças são exemplo.

    Nada agora é por acaso.

    Por exemplo, não é por acaso que a imprensa lançou profusas e alarmantes notícias nos primeiros dias de Novembro sobre surtos de RSV. No Google News surgem 190 notícias na última semana quando se pesquisa pelo termo VSR.

    Também não foi por acaso que o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge começou inopinadamente a divulgar os números de internamentos por RSV (que sempre ocorreram em outros anos) apenas a partir de meados de Outubro passado. Foi para preparar a “cama” e assustar pais.

    E também não foi por acaso que o Expresso, certamente em prol do bem comum, se associou esta semana à Sanofi – leia-se, estabeleceu um acordo comercial, que terá (?) de constar no Portal da Transparência do Infarmed – para fazer uma tertúlia em redor do RSV. Pomposamente, chamaram à “coisa” RSV Summit.

    Teve isto tudo presença de uma jornalista (Ana Patrício Carvalho, da SIC Notícias), como mestre-de-cerimónias, do CEO da Impresa, Francisco Pedro Balsemão, e da directora-geral da Sanofi Portugal, Helena Freitas, e até, hélas, a moderação de Carolina Patrocínio.

    No vídeo de marketing desta iniciativa meteu-se, obviamente, umas imagens de ventiladores e máscaras em crianças… Nada é inocente.

    Que as farmacêuticas desempenham um papel crucial na sociedade, que são responsáveis por avanços fundamentais no combate às doenças e na melhoria das condições de vida, não tenhamos dúvidas. Que podem e devem ter lucros, não sejamos invejosos.

    Porém, não cabe à imprensa “aliar-se” às farmacêuticas, como se acentuou pornograficamente nos últimos anos, e que retirou e retira ao jornalismo a visão crítica, isenta e independente à gestão da pandemia da covid-19.

    VSR Summit: uma parceria da Sanofi e do Expresso, não inédita, promíscua e contraproducente.

    A pandemia da covid-19 não pode jamais ser o “abre-se, sésamo” para a entrada definitiva na caverna do tesouro que se julga poder salvar a imprensa mainstream do fracasso da má qualidade jornalística.

    Era bom, aliás, que a prudência e mesmo a desconfiança – grandes virtudes do jornalismo, a par da memória e da investigação – levassem a um olhar distante sobre as novas vacinas contra a RSV, tal como deveria existir face às vacinas contra a covid-19.

    Talvez poucos saibam quais as razões pelas quais uma doença respiratória como a causada pelo VSR não teve nenhuma vacina nas últimas décadas. Talvez seja importante recordar, tanto mais que, apesar de ser doença banal causa mais de 100 mil mortes por ano, sobretudo em países subdesenvolvidos. Está tudo contado, em detalhe em dois artigos científicos: em 2011 na Expert Review of Vaccines, e em 2016 na Clinical and Vaccine Immunology. Em 1967, após anos de ensaios, uma vacina RSV inactivada com formalina combinada com alúmen foi administrada em bebés nos Estados Unidos. Ao contrário daquilo que os ensaios apontavam, a vacina não foi eficaz; e pior, aumentou a gravidade da doença. As hospitalizações foram muito mais prevalentes no grupo vacinado do que entre o grupo de controlo, “vacinado” com placebo: 80% contra 5%. Duas crianças morreram por causa da vacina.

    Estes, e outros artigos científicos, explicam os processos microbiológicos, citoplasmáticos e outros que tais que levaram a este fracasso e a uma exacerbação da doença após a toma daquela vacina.

    Não significa que as novas vacinas contra o RSV – e, por maioria de razão, contra o SARS-CoV-2 – tenham problemas similares, em dimensão àquela vacina. Na verdade, as vacinas são uma história de sucesso no desenvolvimento tecnológico da Humanidade, sobretudo a partir da segunda metade do século XX.

    Mas, para isso, e sobretudo, para que nenhuma má vacina seja a nódoa que cai no melhor pano, estragando-o irreversivelmente, convém muito que o jornalismo e as farmacêuticas joguem em bancos diferentes, não comunguem do mesmo repasto.

    Isso não está a suceder com a vacina contra a VSR. Veja-se a título de exemplo com a Sanofi. Além de conteúdos patrocinados sobre a VSR, o Expresso também tem uma parceria comercial com esta farmacêutica francesa para a gripe (Flu Summit), e este ano encontramos também as mesmas relações comerciais sob a forma de artigos comerciais escritos em estilo jornalístico em outros órgãos de comunicação social, como no Observador, ou ainda sob a forma de patrocínios para prémios, como sucede com o Jornal de Negócios.

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    Se se fizer uma rápida busca nos sites da imprensa mainstream de âmbito nacional enco9ntramos uma profusão de eventos e outras iniciativas patrocinadas – leia-se, financiadas – pelas mais distintas farmacêuticas, sempre apresentadas sob a forma de parcerias.

    Só um ingénuo não consegue concluir que este tipo de eventos – onde, ademais, participam dirigentes das farmacêuticas, responsáveis do regulador (Infarmed), médicos, jornalistas e administradores dos media, e até por vezes políticos – condicionam fortemente a saída de notícias isentas e independentes sobre farmacêuticas e os seus produtos. A forma como (não) houve debate em torno da eficácia das vacinas contra a covid-19, ou o tom quase sempre encomiástico com que estas foram abordadas pela imprensa, são exemplos claros. E isso pode suceder, ou estar a suceder, com muitos outros medicamentos. Nos últimos anos abriu-se uma caixa de Pandora.

    A falta de análise crítica aquando da vacinação dos adolescentes e crianças – de que são exemplos a despublicação do artigo de opinião do médico Pedro Girão no Público em Agosto do ano passado e a cobertura mediática das campanhas inquisitoriais da Ordem dos Médicos sobre clínicos que contestavam a vacinação universal – foi particularmente chocante, e não pode ser vista como algo alheio à dependência financeira da imprensa mainstream com as farmacêuticas.

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    Hoje, no quadro desta dependência, seria impensável que fosse publicado um artigo a destacar que um determinado país retirara 800 mil lotes infantis de vacinas de uma farmacêutica por ser fraca. Por um lado, porque as autoridades reguladoras se politizaram, e os media mainstream se sujeitaram a essa dependência em relação às farmacêuticas.

    Veja-se, aliás, como políticos, farmacêuticas e imprensa apresentam agora as vacinas contra a covid-19: não são ineficazes contra a variante Ómicron; o SARS-CoV-2 é que consegue escapar aos anticorpos criados pela “vacina eficaz”. Hoje, temos “consensos sociais” criados e impostos pelos jornalistas, enquanto os departamentos de marketing da imprensa mainstream onde trabalham esses jornalistas abrem as portas dos cofres para a entrada de dinheiro das farmacêuticas. Isto não é apenas promiscuidade; em Portugal, pela Lei da Imprensa, é ilegal.

    A prazo, esta promiscuidade nem sequer será útil para ninguém: nem para as farmacêuticas – que “compram” uma comunicação favorável, o que as incentiva a serem gananciosas e também negligentes em aspectos cruciais até ocorrer uma “explosão” – nem para a imprensa mainstream, que em cada uma destas parcerias, e com tão dengosa postura, definham cada vez mais a sua credibilidade. E a sociedade deixa de a considerar o seu watchdog. Com isto, perde também a sociedade.

    Por isso, termino com as duas questões do titulo. Conhecendo a história da primeira vacina contra o VSR e perante as agora promíscuas relações da imprensa com as farmacêuticas, não me sinto nada seguro. Mesmo se o “consenso social”, que agora se exige, me diga que nada há para temer.

  • Primeiro mandamento da decência: não invocarás as alterações climáticas em vão!

    Primeiro mandamento da decência: não invocarás as alterações climáticas em vão!


    O ministro da Saúde, Manuel Pizarro, veio esta tarde – e usando, como já é habitual no Governo, os “pés de microfone” da agência Lusa, o Pravda lusitano, que depois trata de viralizar na imprensa mainstream –, declarar que os fenómenos climáticos extremos tiveram “um profundo efeito” nas causas de doença e de mortes dos portugueses e pediu urgência no combate às alterações climáticas.

    E adiantou ainda não querer “antecipar o estudo que está a ser feito, designadamente sobre as diferenças de mortalidade dos últimos anos, mas parece óbvio, numa avaliação preliminar, que para além do impacto terrível da pandemia – e esse impacto da pandemia não está desligado das mudanças climáticas – há também nas causas de doença e de morte dos portugueses um profundo efeito dos fenómenos climáticos extremos”.

    brown and green grass field near body of water under cloudy sky during daytime

    Não sei se os estremeções que estas declarações me causam se devem especificamente às declarações do ministro da Saúde ou se ao deplorável trabalho do jornalista da Lusa que escreveu isto – e que em boa hora se mostra anónimo –, do editor da Lusa – que fez seguir para a imprensa mainstream um textículo digno de uma agência de comunicação, e não de uma agência noticiosa – e dos directores da Lusa – que, em suma, estão a “assassinar” a dignidade de uma profissão.

    Mas deixemos a imprensa mainstream aniquilar-se, e foquemo-nos nas declarações do ministro.

    As alterações climáticas – tenho assumido desde os anos 90, como homem da Ciência e como jornalista, e até como antigo dirigente ambientalista – são uma realidade que, independentemente da causa (antropogénica e/ ou outras), coloca e colocará problemas e desafios diferenciados, e mais ou menos graves, nos diferentes territórios do Mundo. É, contudo, um problema sobretudo político – e de políticas – e diplomático – esqueçam qualquer medida de fundo se não tiver a anuência da China e da Índia.

    Porém, sendo um problema – e permitam-se que não queira agora debater se a estratégia política de combate às alterações climáticas visa retirar direitos aos cidadãos –, jamais pode ser uma desculpa política; uma forma cruel de passa-culpas para um ente invisível e sobrehumano, quando as responsabilidade pela actual situação é inteiramente dos políticos.

    Manuel Pizarro, ministro da Saúde.

    Aliás, jamais pode ser aceitável que Manuel Pizarro queira adiantar já, para uma acrítica comunicação social, que o excesso de mortalidade ao longo dos últimos três anos – e sobretudo de 2022, já com a covid-19 endémica e a população supostamente vulnerável com sucessivos boosters – seja do tempo quente. Esfarrapadas desculpas. Como se a sucessão de meses infindáveis de mortalidade excessiva dos maiores de 85 anos, tanto no Inverno, como na Primavera, como no Verão, como no Outono, pudesse assim ser tão simplesmente explicada pelas alterações climáticas.

    Terão sido as alterações climáticas a matarem a mais de cerca de uma centena de jovens em 30 meses, conforme revelou hoje o PÁGINA UM?

    Terão sido as alterações climáticas a fazerem com que este Governo alimente uma postura de obscurantismo, recusando divulgar qualquer tipo de informação fidedigna?

    Na verdade, querer antecipar conclusões sobre o excesso evidente de mortalidade, empurrando as culpas já para alterações climáticas, é inqualificável.

    E inqualificável porque faz parte de uma estratégia do Governo para ocultar e a manipular a verdade. Nada mais. Não há esforço para mais do que salvar o coiro. Esconder a verdade, esconder a verdade e esconder a verdade: eis a tríade de objectivos do Governo sobre o excesso de mortalidade.

    black and gray cement tombs

    Ainda ontem, assisti a mais um lamentável episódio da Administração Pública na canina defesa de um Governo que anda há três anos (pelo menos) a manipular os portugueses, no decurso do processo de intimação que corre no Tribunal Administrativo, onde está em causa o acesso à base de dados nacional do Grupo de Diagnósticos Homogéneas, que constitui um sistema de classificação de doentes internados em hospitais. O acesso a esta base de dados pelo PÁGINA UM – a par dos dados em bruto do Sistema de Certificação dos Certificados de Óbito (SICO) – mostra-se fundamental para uma avaliação independente – que não atire as culpas para as alterações climáticas –, uma vez que permitirá estabelecer comparações fiáveis entre doenças em função da idade e outras variáveis ao longo dos anos.

    Ora, saber isto publicamente causa um temor enorme à Administração Central do Sistema de Saúde – presidido por Vítor Herdeiro, amigo de longa data da ex-ministra Marta Temido, e que fez “sumir” durante meses outra comprometedora base de dados (morbilidade e mortalidade). E, portanto, vale tudo na argumentação junto do Tribunal Administrativo. Desde Agosto tem sido um festival de mentira e de desavergonha.

    Em causa, na verdade, está apenas saber se a base de dados possui dados nominativos, isto, é se se encontram listados os nomes dos doentes que permita saber, por exemplo, que a D. Gertrudes da Anunciação Perpétua esteve internada no hospital de Guimarães com uma perna partida. Ora, qualquer base de dados moderna permite, com o simples carregar de umas teclas, seleccionar variáveis e suprimir campos, de sorte que o ficheiro de Excel sai limpinho sem qualquer nome mas apenas com códigos em sua substituição.

    Victor Herdeiro, presidente da ACSS, segundo a contar da direita, na sessão de apresentação dos novos Estatutos do SNS no passado dia 7 de Julho. Herdeiro foi companheiro da ex-ministra da Saúde, Marta Temido, durante três mandatos na Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares.

    Porém, começou a ACSS – através de uma sociedade de advogados especializada sobretudo em ganhar contratos por ajuste directo em instituições ligadas ao Ministério da Saúde, como hospitais – a procurar convencer o Tribunal Administrativo da impossibilidade de expurgar dados nominativos, que isso nunca foi feito.

    Atente-se no requerimento da ACSS em 10 de Outubro passado: “(…) Note-se que a natureza dos documentos em causa, documentos nominativos, no quadro de impossibilidade da respetiva anonimização, determina, em face da LADA, que o acesso aos mesmos por terceiro apenas seja admissível nos casos em que se verifiquem os requisitos previstos no artigo 6.°, n.° 5, da LADA, ou seja, a apresentação de autorização escrita do titular dos dados que seja explícita e específica quanto à sua finalidade e quanto ao tipo de dados a que quer aceder ou a demonstração fundamentada da titularidade de um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante, após ponderação no quadro do princípio da proporcionalidade, de todos os direitos fundamentais em presença e do princípio da administração aberta, que justifique o acesso à informação. Tais requisitos não se encontram, porém, verificados no presente caso.”

    Como o PÁGINA UM contra-argumentou dizendo, em síntese, que a ACSS estava a mentir – a anonimização, na verdade, não só é possível como até prevista em duas delegações de competências, em 2019 (Deliberação nº 673/2019) em 2021 (Deliberação nº 835/20921) – veio então a mais despudorada tentativa de atirar areia aos olhos da juíza e da nossa inteligência colectiva.

    Extracto do requerimento da ACSS, através da BAS Sociedade de Advogados, entregue ontem no Tribunal Administrativo.

    Apanhada em falso, veio a ACSS ontem, portanto, dizer isto: “(…) importa reiterar que, relativamente à Base de Dados de GDH, o expurgo dos dados pessoais da mesma, para que o Requerente pudesse ter acesso à mesma, implicaria a criação ou adaptação da base de dados com um esforço desproporcionado que ultrapassa a simples manipulação da mesma”, adiantando depois que isso “não implica que não haja situações em que se tenha de efetuar as operações referidas nos dois pontos anteriores, i.e., adaptar toda a base de dados de forma a expurgar os dados nominativos; porém, em função da grande afetação de recursos que tal operação acarretaria, essas situações têm de ser devidamente ponderadas e o seu benefício ser pelo menos proporcional ao seu elevado custo global.”

    Não dizendo sequer qual o “elevado custo global” – nem que seja ao nível de luvas de nitrilo vendidas, por exemplo, por uma oficina de escapes por ajuste directo ao hospital que foi gerido pelo actual director executivo do novel Serviço Nacional de Saúde –, a ACSS ainda teve a desfaçatez de afirmar que “o benefício de acesso à base de dados de GDH com expurgo de dados nominativos [deve ser] pelo menos proporcional ao elevado custo da operação de expurgo dos referidos dados”, pelo que, “não obstante a elevada consideração da ACSS pelo Requerente [director do PÁGINA UM] e pela sua profissão [jornalista]” não se justifica a “elevada afetação de recursos [para] efetuar as operações necessárias” para a tal anonimização.

    E é assim que as coisas se fazem (ainda) na Administração Pública. Com esta desfaçatez.

    Para salvar o coiro dos políticos.

    Para que os políticos continuem a meter um manto negro sobre os problemas.

    Para que os políticos continuem a manipular os portugueses com a conivência da imprensa “amigável” que não dignifica o jornalismo.

    Para que os políticos, como Manuel Pizarro, possam invocar as alterações climáticas como desculpa para omissões, negligências e crimes.

    Tudo em vão. Tudo (ainda) sem castigo.


    Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Até ao momento, o PÁGINA UM está envolvido em 14 processos de intimação, quatro dos quais em segunda instância, e ainda em duas providências cautelares, uma das quais já ganha. Até ao momento foram angariados 12.222 euros, um montante que começa a ser escasso face à dimensão e custos envolvidos nos processos. Saliente-se que o PÁGINA UM tem de garantir uma “provisão” para as situações em que possa ter sentenças desfavoráveis, o que acarretará o pagamentos de custas que podem ser elevadas por cada processo perdido.

    Na secção TRANSPARÊNCIA começámos a divulgar todas as peças principais dos processos em curso no Tribunal Administrativo. Este processo específico da Administração Central do Sistema de Saúde ficará disponível nos próximos dias.

  • Nos últimos três anos, morreram a mais 102 jovens, mesmo com menor letalidade das doenças respiratórias

    Nos últimos três anos, morreram a mais 102 jovens, mesmo com menor letalidade das doenças respiratórias

    Ao terceiro ano da pandemia, mostra-se cada vez mais evidente que a mortalidade total em Portugal apenas se agravou nas faixas etárias acima dos 55 anos, embora somente com relevância estatística na população em idade de reforma e, nesta, sobretudo nos maiores de 85 anos. Mas há uma gritante excepção, apesar do ensurdecedor silêncio do Governo e dos “peritos da pandemia”: no grupo dos adolescentes e jovens adultos, entre os 15 e os 24 anos, há um inexplicável e surpreendente incremento da mortalidade. Apesar de apenas se terem registado, neste grupo, cinco mortes por covid-19 e as doenças respiratórias até terem sido menos letais durante a pandemia, no somatório dos 10 primeiros meses do triénio 2020-2022 contabilizam-se mais 102 óbitos em comparação com o período homólogo anterior à pandemia. Em todos os outros grupos etários abaixo dos 55 anos, ao invés, observam-se reduções na mortalidade total.


    Mantém-se o silêncio oficial, continua o excesso de mortalidade. Os óbitos registados nos dez primeiros meses deste ano continuam a surpreender no grupo etário dos 15 aos 24 anos, e mostram a contínua “sangria” nos mais idosos, sobretudo dos maiores de 85 anos.

    De acordo com (mais) uma análise do PÁGINA UM, a mortalidade nos adolescentes e jovens adultos (entre os 15 e os 24 anos), que desde 2014 – ano a partir do qual existe informação diária fornecida pelo Sistema de Informação dos Certificados de Óbitos (SICO) – nunca excedera até Outubro os 290 óbitos, atingiu este ano os 321 óbitos. Parecendo uma subida absoluta pequena, a sua dimensão é extremamente relevante.

    three women sitting wooden bench by the tulip flower field

    Com efeito, a mortalidade neste grupo etário – que, nos tempos modernos, e por razões compreensíveis, era inferior a uma morte por dia – está este ano a atingir dimensões surpreendentes. E não podem ser imputadas directamente ao SARS-CoV-2, uma vez que os dados da morbilidade e mortalidade hospitalar, que constam no Portal da Transparência do SNS, indicam apenas cinco óbitos por covid-19 entre os 15 e os 24 anos até Setembro passado. Globalmente, tendo em conta os 866 óbitos por todas as causas neste período, a covid-19 representou 0,6% do total.

    Convém referir, contudo, que a mortalidade por doenças do aparelho respiratório nesta faixa etária diminuiu bastante durante a pandemia. Entre Março de 2020 e Setembro deste ano, a base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar aponta para a ocorrência de 31 óbitos, menos 25 dos que aqueles contabilizados no período homólogo imediatamente anterior à pandemia (Março de 2017 a Setembro de 2019).

    Daí que o baixo contributo da covid-19 e até a situação mais “benigna” das doenças do aparelho respiratório mais adensam o “mistério”, que não parece do interesse do Governo ver desvendado, não apenas porque o Ministério da Saúde tem procrastinado uma análise independente como também porque recusa disponibilizar publicamente os dados anonimizados em bruto do SICO.

    Mortalidade total por grupo etário (idades) nos primeiros 10 meses de cada ano (Janeiro a Outubro) entre 2014 e 2022. Fonte: SICO

    Certo é que algo de estranho se passa neste grupo etário desde o início da pandemia – e não é, efectivamente, por culpa da covid-19. A mortalidade já tinha sido elevada em 2020 em comparação com os anos anteriores, tendo sempre como referência o período de Janeiro a Outubro. No primeiro ano da pandemia registaram-se 289 mortes neste grupo jovem, que confrontava com uma média de 256 mortes no quinquénio anterior (2015-2019). Em 2021 os valores regressaram para níveis “normais” (256), mas voltaram a disparar, e muito, em 2022.

    Caso se junte os três anos mais recentes (2020-2022), os 10 primeiros meses totalizam 866 mortes, enquanto no triénio anterior homólogo (2017-2019) se contabilizaram 764 mortes, ou seja, verifica-se um acréscimo de 102 mortes.

    Este fenómeno não se explica sequer por via do envelhecimento populacional – que justifica uma parte do aumento absoluto dos óbitos na faixa dos mais idosos, porque estão, efectivamente, a crescer nas últimas décadas, em virtude da melhoria da esperança de vida. Na verdade, como tem ocorrido uma redução nos nascimentos nas últimas décadas – e especialmente desde o início do presente século –, seria até expectável uma muito ligeira redução na mortalidade absoluta de jovens, mesmo se a taxa de mortalidade se mantivesse estável.

    Manuel Pizarro, ministro da Saúde.

    Além disso, a mortalidade no grupo dos 15 aos 24 anos surpreende por não encontrar correspondência nas faixas etárias adjacentes. Com efeito, confrontando os 10 primeiros meses deste ano com os períodos de 2017-2021 (incluindo assim os dois primeiros anos da pandemia) e de 2015-2019 (quinquénio anterior à pandemia), os menores de 15 anos registam uma redução nos óbitos contabilizados por todas as causas. No caso dos bebés com menos de um ano, mesmo se a mortalidade deste ano está acima da registada em 2020 e 2021, os valores são bastante mais baixos face ao período pré-pandémico (-11,8%).

    No grupo imediatamente superior – dos 25 aos 34 anos –, a mortalidade total em 2022 pode considerar-se dentro de uma certa normalidade, tanto em relação aos dois primeiros anos da pandemia como ao período pré-pandémico.

    Para aumentar a estranheza dos números registados entre os 15 e os 24 anos, também nos grupos etários dos 35 aos 44 anos e dos 45 aos 54 anos se observa uma significativa redução na mortalidade total ao longo dos primeiros 10 meses deste ano. Face ao período pré-pandémico, a redução no primeiro grupo etário é de 11,3% e do segundo de 5,9%.

    Comparação (variação percentual) nos grupos etários (idades) entre a mortalidade nos 10 primeiros meses de 2022 face à média dos quinquénios 2017-2021 e 2015-2019 e entre a mortalidade nos triénios de 2020-2022 e 2017-2019. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM

    Apenas a partir dos 55 anos se observa novamente um incremento da mortalidade face ao período pré-pandémico, embora com especificidades. Com efeito, embora o número de óbitos ainda esteja fora da normalidade face ao período anterior a 2020, entre os 55 e os 84 anos já se observam este ano valores mais baixos de mortalidade total do que em 2021.

    No confronto entre 2022 e 2021 nos primeiros 10 meses, para o grupo dos 55 aos 64 anos registaram-se menos 252 mortes, no grupo subsequente (65-74 anos) menos 517 e no grupo dos 75 aos 84 anos houve menos 951 óbitos. Em todo o caso, os valores de 2022 ainda continuam a ser bastante mais elevados do que antes da pandemia.

    Apenas no grupo dos maiores de 85 anos – aquele que, paradoxalmente, mais vacinado foi contra a covid-19 –, as mortes continuam a bater recordes. Nos 10 primeiros meses deste ano morreram mais 781 idosos desta faixa etária do que em 2021. Nos três anos da pandemia (2020-2022), no período de Janeiro a Outubro foram contabilizados 132.077 óbitos, que contrasta com as 114.552 mortes no triénio imediatamente anterior à pandemia (2017-2019). Ou seja, um incremento de 15,3%.

    two girls standing while holding her hips

    Em termos relativos, este aumento foi muito próximo do registado para o grupo dos 15 aos 24 anos (13,4%), com a agravante de que todos os outros grupos etários abaixo dos 55 anos tiveram mesmo quedas na mortalidade total durante a pandemia.  

    O PÁGINA UM contactou o Ministério da Saúde, no passado dia 4, para comentar estes valores, e também para saber se o estudo anunciado em Agosto pela ex-ministra Marta Temido sobre o excesso de mortalidade estava mesmo em curso, qual era a equipa (nomes) e qual o período previsto de conclusão. Não houve resposta, o que se mostra um “clássico de reacção” deste organismo governamental, que não se modificou com a entrada em funções de Manuel Pizarro.

  • Juíza quer ver com os próprios olhos se o Instituto Superior Técnico tem um “esboço embrionário” ou uma desculpa esfarrapada

    Juíza quer ver com os próprios olhos se o Instituto Superior Técnico tem um “esboço embrionário” ou uma desculpa esfarrapada

    Assumindo a sua “autoridade científica”, o Instituto Superior Técnico começou, primeiro de forma sobranceira, a recusar ao PÁGINA UM o acesso a um relatório alarmista sobre a covid-19 disponibilizado à Lusa. Intimado através do Tribunal Administrativo de Lisboa, a instituição tem alegado que só fez um “esboço embrionário”. A juíza quer saber se é verdade. E obrigou esta entidade universitária presidida pelo catedrático Rogério Colaço a entregar-lhe o documento, em envelope lacrado, para o analisar.


    A juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa, Telma Nogueira, exige ver o alegado estudo do Instituto Superior Técnico divulgado pela imprensa em finais de Julho que estimava a ocorrência de centenas de mortes por causa das festas populares e festivais de música em Junho passado, numa altura em que, na verdade, se observou uma tendência de redução significativa de casos positivos.

    Em causa estão as estimativas e análises sobre a pandemia elaboradas pelo Instituto Superior Técnico desde Junho de 2021, em parceria com a Ordem dos Médicos, que inclui aquele que se debruçou sobre os efeitos das festividades de Junho, mas que agora a instituição universitária diz não ser, afinal, um relatório, apesar de a agência Lusa ter garantido ao PÁGINA UM que assim é. As estimativas apontavam para a ocorrência da “morte de 790 pessoas com covid-19 devido ao levantamento das restrições e às festividades, dos quais 330 associados [sic] às festas populares de junho”.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes, na sede da Ordem dos Médicos, em Julho do ano passado, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico diz que não houve um acordo escrito desta parceria. O Tribunal Administrativo decidirá se obriga ou não uma instituição pública a ceder dados científicos para validação pública.

    Durante o processo judicial no Tribunal Administrativo, o Instituto Superior começou por defender que não tem o dever de disponibilizar os documentos ao PÁGINA UM – incluindo os dados em bruto e a metodologia – por se estar perante um “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”.

    Já na semana passada, o Instituto Superior Técnico veio argumentar, também em sede do processo de intimação instaurado pelo PÁGINA UM, dizendo que “o requerido [IST] nunca negou ter elaborado um ensaio, apenas afirmou que não se tratava do produto final do estudo, mas uma mera abordagem embrionária, por isso que era um esboço”. E dizia ainda que a pretensão do PÁGINA UM “já se encontra satisfeita”, alegando que “o conteúdo do esboço foi dado a conhecer ao requerente [director do PÁGINA UM] assim que foi solicitado”.

    A instituição universitária presidida pelo catedrático Rogério Colaço argumentava, por fim, que “não se vislumbra também qual a utilidade que um documento incompleto, ou seja, por concluir, possa ter para o requerente [PÁGINA UM], pois tratando-se de um ensaio de projeção/ estimativa, pode não conter informações exatas e precisas, para que o requerente como jornalista possa depois difundir, podendo até sugestionar interpretações contrárias à verdadeira pretensão.”

    Lusa noticiou as conclusões de um estudo do Instituto Superior Técnico sobre o impacte das festividades em Junho na transmissão e mortes por covid-19. Instituição universitária, que faz Ciência, quer convencer o Tribunal que aquilo que fez não foi um estudo, mas apenas “um esboço embrionário”. Ou uma “mera abordagem embrionária”, como agora esclarece.

    Mas agora a juíza Telma Nogueira quer mesmo saber se o Instituto Superior Técnico está a contar a verdade. No seu despacho, e “com vista a apurar se o documento em causa nos autos constitui um ‘esboço’ conforme alegado”, a juíza ordena que o Instituto Superior Técnico entregue, num prazo de 10 dias, “o referido documento que designa de ‘esboço’, em envelope lacrado” e dentro de outro envelope. A juíza dá a alternativa desse documento chegar ao Tribunal em mão ou via correio postal.

    Se o Instituto Superior Técnico conseguir convencer a juíza de que o documento em causa é um esboço – por exemplo, um guardanapo de papel com meros tópicos rascunhados é considerado um “esboço” –, a lei não o obriga a cedê-lo para consulta, mas ficará assim patente que a imprensa mainstream divulgou informação imprecisa, incompleta e errada, com a agravante de lhe chamar relatório. Se o documento estiver minimamente estruturado, então a equipa liderada pelo matemático Henrique Oliveira, e supervisionada pelo próprio presidente da instituição, poderá ser escrutinada sob o ponto de vista científico.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico.

    Relembre-se que o PÁGINA UM viu-se na necessidade de recorrer às instâncias judiciais perante a recusa expressa do Instituto Superior Técnico – incluindo do seu presidente, Rogério Colaço – em ceder tanto esse como os restantes relatórios elaborados desde Junho do ano passado em parceria com a Ordem dos Médicos.

    O PÁGINA UM também viu recusado o pedido de acesso aos dados brutos e à metodologia estatística usada. O PÁGINA UM não fez mais do que pedir elementos essenciais comummente usados em instituições académicas para validação científica – aliás, esta é uma prática pacífica e aceite com respeito mútuo pelo requerido e pelo requerente em meios universitários.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Até ao momento, o PÁGINA UM, contando com o FUNDO JURÍDICO, está envolvido em 13 processos de intimação junto do Tribunal Administrativo, quatro dos quais em segunda instância, e ainda em duas providências cautelares. Até ao momento foram angariados 12.025 euros, um montante que começa a ser escasso face à dimensão e custos envolvidos nos processos. Saliente-se que o PÁGINA UM tem de garantir uma “provisão” para as situações em que possa ter sentenças desfavoráveis, o que acarretará o pagamentos de custas que podem ser elevadas por cada processo perdido. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.

  • Que farei com este livro de Filipe Froes?

    Que farei com este livro de Filipe Froes?


    Chega a ser perturbador ler algumas passagens da magnum opus de Filipe Froes e Patrícia Akester, intitulada A pandemia que revelou outras pandemias: contributos para o conhecimento, que ontem juntou, no Grémio Literário, muitas figuras gradas da narrativa oficial da gestão da pandemia. Hoje, amanhã e quinta-feira está nas bancas, gratuitamente com o Diário de Notícias, permito-me a publicidade.

    Mas permitam-me também dizer, com generosa dose de ironia, que em boa hora a BIAL disponibilizou patrocínio conveniente para o livrinho sair do prelo, porque, de contrário, sem guito de farmacêuticas, o Doutor Froes parece nunca mexer uma palha quanto mais uma caneta, que é como quem diz, um matraquear de teclado.

    Filipe Froes, um dos médicos portugueses com mais ligações à indústria farmacêutica, mantém-se como consultor da DGS e com intenso palco mediático.

    Por outro lado, também em boa hora o Diário de Notícias, cometida a ousadia de permitir que o Doutor Froes & Ca. explanasse as suas opiniões, possibilitou que os textículos esparsamente publicados no periódico, ficassem agora gravados para a eternidade em lâminas de papel, entre capa e contracapa, incluindo generosas badanas. Um livro sempre se mete numa estante, e mesmo que o conteúdo possa ser – e é, neste caso – indigesto, pode-se sempre pegar num momento zen para aumentar a pressão arterial.

    Porém, melhor ainda – e impeliu a perturbação denunciada logo na primeira linha deste meu texto – é o prefácio do senhor almirante – então vice-almirante, o que, estranhamente, aparentava dar-lhe maior dignidade – Gouveia e Melo. Ou melhor dizendo, que assim é apresentado no prefácio, de “Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo, almirante”.

    Nas breves três páginas de auto-elogio do senhor almirante, destaco, contudo, o seu curto relato do episódio da suspensão da vacina da AstraZeneca, por decisão do Infarmed, em 15 de Março do ano passado com base no princípio da “precaução em saúde pública”. Aliás, em 8 de Abril, pouco mais de três semanas, a Direcção-Geral da Saúde passaria a recomendar a administração da vacina da AstraZeneca apenas a pessoas acima dos 60 anos. Na prática, a vacina da farmacêutica anglo-sueca praticamente deixou de ser administrada a partir daí.

    Gouveia e Melo assim relata: ”Muitas destas decisões foram tomadas em cima dos acontecimentos, sobretudo quando surgiam contrariedades. Recordo-me quando tínhamos tudo preparado para vacinar os docentes do ensino básico e secundário e, dois dias antes de se iniciar esse processo, a vacina que seria administrada foi suspensa. Refizemos planos, avaliámos riscos, consultámos stocks e, na semana seguinte, avançámos com a vacinação desse grupo.”

    Passando por cima deste modus operandi, aquilo que me interessa destacar é o facto de o então vice-almirante relatar este acontecimento no livro onde, páginas à frente, se expõe a doutíssima opinião do Doutor Froes por aquelas alturas sobre vacina da AstraZeneca. Com efeito, na página 16 da tal magnum opus, pode-se ler um artigo do Doutor Froes & Ca., publicado originalmente no dia 4 de Março de 2021 – ou seja, apenas 11 dias antes da suspensão da vacina da AstraZeneca –, no jornal Público (o único na obra que não saiu no Diário de Notícias), com o sugestivo título: “Das fake news nem a vacina está a salvo”.

    E que escreveu o Doutor Froes & Ca.?

    Além de defender que urgia “combater a desinformação mais do que nunca”, uma vez que o processo de vacinação estava em curso”, dissertavam eles sobre “duas pragas: (i) infodemia (um tsunami de informação no que respeita à pandemia, por vezes incorrecta e infundada, capaz de confundir e de induzir em erro, tendo na sua origem fontes pouco fidedignas) e (ii) desinformação (informação falsa ou imprecisa disseminada com a intenção deliberada de manipular e/ ou de induzir em erro), de que as Fake News são um dos principais expoentes.” E continuavam depois a batucar nas redes sociais, desinformação para aqui, fake news para ali.

    E depois isto: “Na Alemanha, os media passaram semanas a apregoar que a vacina AstraZeneca era ‘de segunda classe’ e que comportava efeitos secundários, pelo que uma parte não insignificante da população se recusa a ser inoculada com essa vacina, aguardando a chegada da vacina Pfizer Biontech. Consequência: tendo sido recebido, em terras de Merkel, um carregamento de 1,45 milhões de doses de AstraZeneca, em pleno estado de escassez de vacinas pelo mundo fora, apenas 270,986 mil pessoas aceitaram a administração proposta pelas autoridades de saúde em conformidade com o plano de vacinação nacional (New York Times). Resta saber o impacto da não-vacinação ou do seu atraso na população que deveria ter sido vacinada e não o foi…”

    E mais isto: “Agora que o processo de vacinação está em curso urge combater a desinformação mais que nunca. Para se atingir imunidade de grupo, para protecção do indivíduo e da comunidade e resolução progressiva do profundo impacto social e económico da pandemia, é crucial promover uma campanha de informação idónea no tocante à pandemia – divulgada responsavelmente por todos. A melhor forma de impedir que alguém adira ao movimento anti-vacinas, que pode impossibilitar a criação de imunidade de grupo é tolhendo a infecção…”

    Visto está o que sucedeu à AstraZeneca…

    Visto está o que sucedeu à quimérica imunidade de grupo…

    E vista está a base científica inexistente dos certificados digitais…

    E visto está quase tudo o resto que foi escrevendo o dizendo Froes & Ca., nos intervalos das consultadorias das farmacêuticas, a par do contínuo obscurantismo oficial em redor da informação mais sensível…

    E não visto está aquilo que ainda se vai descobrir, e que tornará esta magnum opus um tesourinho deprimente da “ciência pandémica”, digno de estudo futuro, de amostra daquilo que não se deve repetir.

    Resta-nos saber também, entretanto, qual será o impacte das alarvidades do Doutor Froes, mais as suas consultadorias… E resta-nos esperar que a imprensa mainstream deixe de viralizar os seus despautérios – como sucedeu nos últimos dias com o “anúncio” de uma “pandemia tripla”, rapidamente transmitida pelo Diário de Notícias, Observador, RTP, Correio da Manhã e Sapo.

  • Instituto Superior Técnico já diz agora que o seu “esboço” que associou mortes às festividades de Junho “pode não conter informações exactas e precisas”

    Instituto Superior Técnico já diz agora que o seu “esboço” que associou mortes às festividades de Junho “pode não conter informações exactas e precisas”

    Desde Junho de 2021, o Instituto Superior Técnico, investido da sua autoridade científica, elaborou relatórios sobre pandemia em parceria com a Ordem dos Médicos. No último estudo conhecido, divulgado há pouco mais de dois meses pela imprensa, atribuía directamente às festas populares e aos concertos em Junho várias centenas de mortes por covid-19, numa altura em que os casos positivos até apresentavam, afinal, forte tendência decrescente. Perante a recusa em ceder a informação, o PÁGINA UM apresentou um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa. Independentemente do seu resultado prático – acesso à informação –, este processo acaba por ser revelador de uma certa forma de “fazer” Ciência em Portugal, e da postura dos denominados “peritos”.


    Em processo que corre no Tribunal Administrativo de Lisboa (TAL) – intentado pelo PÁGINA UM para aceder a um alegado estudo (incluindo dados numéricos e metodologia) que associava as festas populares de Junho passado a um incremento directo de mortes por covid-19 –, o Instituto Superior Técnico (IST) veio agora reinterpretar o significado de “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”, conceito que usara inicialmente para classificar um relatório profusamente divulgado pela imprensa em final de Julho.

    A notícia original foi elaborada pela agência Lusa – que garantiu ao PÁGINA UM que “o relatório (…) existe, naturalmente, caso contrário (…) não teria feito notícia” – e reproduzido então por mais de uma dezena de órgãos de comunicação social de âmbito nacional.

    Relembre-se que o PÁGINA UM viu-se na necessidade de recorrer às instâncias judiciais perante a recusa expressa do Instituto Superior Técnico – incluindo do seu presidente, Rogério Colaço – em ceder tanto esse como os restantes relatórios elaborados desde Junho do ano passado em parceria com a Ordem dos Médicos. O PÁGINA UM também viu recusado o pedido de acesso aos dados brutos e à metodologia estatística usada. Saliente-se que o PÁGINA UM não fez mais do que pedir elementos essenciais comummente usados em instituições académicas para validação científica – aliás, esta é uma prática pacífica e aceite com respeito mútuo pelo requerido e pelo requerente.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes, na sede da Ordem dos Médicos, em Julho do ano passado, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico diz que não houve um acordo escrito desta parceria. O Tribunal Administrativo decidirá se obriga ou não uma instituição pública a ceder dados científicos para validação pública.

    Numa alegação entregue na passada quarta-feira no TAL, a advogada mandatada por Rogério Colaço veio agora dizer que “o requerido [IST] nunca negou ter elaborado um ensaio, apenas afirmou que não se tratava do produto final do estudo, mas uma mera abordagem embrionária, por isso que era um esboço”. E diz ainda que a pretensão do PÁGINA UM “já se encontra satisfeita”, alegando que “o conteúdo do esboço foi dado a conhecer ao requerente [PÁGINA UM] assim que foi solicitado”.

    Saliente-se, porém, que o PÁGINA UM apenas recebeu de um dos investigadores do Instituto Superior Técnico uma explicação vaga sobre a suposta metodologia, mas nunca lhe foi remetido qualquer parte do alegado relatório escrito – que chegou mesmo a merecer citações expressas no take da Lusa, difundido pela restante imprensa – nem qualquer ficheiro com dados numéricos que possibilitasse qualquer conclusão.

    De acordo com a notícia da Lusa, de 28 de Julho passado – que continha sete citações expressas (vd. em baixo) do suposto relatório –, os peritos do Instituto Superior Técnico – supervisionados pelo próprio presidente – apontavam, entre outros aspectos, para a ocorrência da “morte de 790 pessoas com covid-19 devido ao levantamento das restrições e às festividades, dos quais 330 associados [sic] às festas populares de junho”.

    Lusa noticiou as conclusões de um estudo do Instituto Superior Técnico sobre o impacte das festividades em Junho na transmissão e mortes por covid-19. Instituição universitária, que faz Ciência, quer convencer o Tribunal que aquilo que fez não foi um estudo, mas apenas “um esboço embrionário”. Ou uma “mera abordagem embrionária”, como agora esclarece.

    Sucede, porém, que na realidade ao longo do mês de Junho se registou uma redução sistemática do número de casos positivos e de mortes atribuídas à covid-19, tornando paradoxal, e pouco sustentável cientificamente, que as festividades tivessem tido um impacte agravante. Ou seja, o levantamento das restrições e a maior proximidade física das pessoas sem máscara não foi acompanhada de um acréscimo de casos nem de óbitos.

    Foi exactamente para averiguar o cumprimento de preceitos de rigor científico que o PÁGINA UM pretendeu aceder ao suposto relatório do Instituto Superior Técnico, que a Lusa diz existir, e que a instituição universitária pública esclarece agora que “não se tratava do produto final do estudo, mas uma mera abordagem embrionária, por isso (…) era um esboço”.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico.

    No entanto, esboço ou qualquer outra coisa que seja, certo é que o Instituto Superior Técnico nunca veio a público negar a validade das notícias da Lusa e dos outros órgãos de comunicação social, mesmo se agora a sua advogada garanta que desconhece como aquele (esboço ou relatório) “chegou à comunicação social”.

    Convém, aliás, notar que, na troca de e-mails no final de Julho passado entre o PÁGINA UM e o investigador Henrique Oliveira – coordenador da equipa de peritos do Instituto Superior Técnico –, aquele matemático não ignorava, pelo contrário, a repercussão mediática daquele esboço ou relatório.

    Com efeito, argumentando que toda a equipa estava de férias – e que ele era “o único do grupo de trabalho mandatado a falar sobre esses assuntos de análise” –, Henrique Oliveira fez mesmo gala de ter recusado “diversos convites” da imprensa, “nomeadamente de três televisões nacionais para falar sobre o assunto”. E a sua recusa para falar às televisões não fora por não reconhecer o relatório – ou por não o considerar válido ou validado –, mas sim porque, adiantava ao PÁGINA UM, “entrei de férias e as férias são, digamos, pouco científicas”.

    Resposta de Henrique Oliveira em 29 de Julho ao PÁGINA UM, em que informa ter recusado convites para falar com três televisões nacionais por estar de férias, nunca se demarcando da divulgação de informação não autorizada ou não validada cientificamente pela instituição universitária.

    Acrescente-se também que o PÁGINA UM seguiu o conselho de Henrique Oliveira e pediu o relatório e os dados em bruto ao gabinete de imprensa do Instituto Superior Técnico, mas este não foi satisfeito. Essa recusa seria mesmo reiterada por Rogério Colaço por mensagem enviada do seu telemóvel. Um posterior pedido formal, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, nem mereceu resposta, razão pela qual o PÁGINA UM fez entrar um processo de intimação junto do TAL.

    Mas agora o Instituto Superior Técnico ainda defende que, independentemente da classificação do documento em causa – relatório, ensaio, esboço ou outro qualquer termo –, o PÁGINA UM não deve ter acesso. “Considerando o princípio da proporcionalidade, salvo melhor opinião, não nos parece que o direito à informação do requerente [PÁGINA UM] se revele suficientemente relevante para justificar o acesso a um documento em estado embrionário, um estudo sem estar concluído”, acrescenta a defensora do Instituto Superior Técnico.

    Um relatório anterior do Instituto Superior Técnico alertava que haveria um aumento das infecções com as festividades, mas tal não sucedeu. O suposto relatório de finais de Julho pretendia convencer o público que afinal as previsões estavam quase certas. Mas, na hora de mostrar a base científica dessas conclusões, a instituição universitário optou por recusar essa validação externa. As festas populares em Lisboa este ano tiveram grande fluxo, sem máscaras, mas os casos positivos de covid-19 regrediram face a Maio.

    E conclui ainda que “não se vislumbra também qual a utilidade que um documento incompleto, ou seja, por concluir, possa ter para o requerente [PÁGINA UM], pois tratando-se de um ensaio de projeção/ estimativa, pode não conter informações exatas e precisas, para que o requerente como jornalista possa depois difundir, podendo até sugestionar interpretações contrárias à verdadeira pretensão.”

    Saliente-se que a única pretensão do PÁGINA UM, neste caso, é analisar a qualidade da produção científica do Instituto Superior Técnico que, em articulação com a Ordem dos Médicos, ao longo dos meses apresentou e divulgou estudos sobre a pandemia. E sobretudo perceber se esta instituição científica fez algo para evitar que o seu nome fosse usado mediaticamente para transmitir informação errada ou inexacta, tanto mais que é o próprio Instituto Superior Técnico que admite que o seu (assim classificado) “ensaio de projeção/ estimativa” afinal “pode não conter informações exatas e precisas”.

    Em Março passado, Henrique Oliveira, que é professor do Departamento de Matemática do Instituto Superior Técnico, zurziu no relatório semanal da Direcção-Geral da Saúde, dizendo que era pobre. Em declarações à CNN Portugal disse mesmo que tinha “muito pouca qualidade, nebuloso mesmo”, e que, “como matemático, não hesitaria em chumbar um aluno que me apresentasse um relatório destes”. Sobre os relatórios do próprio Henrique Oliveira, em breve o PÁGINA UM saberá da sua qualidade, se a sentença do Tribunal for favorável a esse conhecimento público.


    Citações (entre aspas) do (suposto) relatório do Instituto Superior Técnico transcritas pela Lusa no take de 28 de Julho passado, que comprovam a existência de um relatório escrito, ou então estaremos perante uma “fraude” (transcrição de citações de um estudo inexistente). A Lusa recusou mostrar prova da existência do relatório, mas garante que existe. O PÁGINA UM apresenta as citações retiradas do artigo publicado pelo Diário de Noticias de 28 de Julho que transcreve o take da Lusa.

    1 – “Se juntarmos os casos não reportados oficialmente atinge-se o número de 340 mil

    2 – “não teriam impacto económico

    3 – “os seus efeitos seriam cumulativamente menores e a descida seria mais cedo e mais rápida

    4 – “O efeito aqui é mais lento e menor do que o efeito das medidas gerais, pois afeta diretamente população mais jovem, mas leva a contágios em cascata que acabam por vitimar os mais suscetíveis a doença grave

    5 – “uma possível correlação com vagas de calor

    6 – “com tendência de atingirmos os valores mais baixos de 2022

    7 – “ter excesso de confiança é o risco que Portugal corre


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Até ao momento, o PÁGINA UM, contando com o FUNDO JURÍDICO, está envolvido em 13 processos de intimação junto do Tribunal Administrativo, quatro dos quais em segunda instância, e ainda em duas providências cautelares. Até ao momento foram angariados 12.025 euros, um montante que começa a ser escasso face à dimensão e custos envolvidos nos processos. Saliente-se que o PÁGINA UM tem de garantir uma “provisão” para as situações em que possa ter sentenças desfavoráveis, o que acarretará o pagamentos de custas que podem ser elevadas por cada processo perdido. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.

  • Colunex: a empresa de colchões foi dar uma “ajudinha” aos hospitais e facturou 1,3 milhões de euros numa semana

    Colunex: a empresa de colchões foi dar uma “ajudinha” aos hospitais e facturou 1,3 milhões de euros numa semana

    No início da pandemia, um mastodôntico Estado com quase nove séculos de História não conseguiu reunir logística suficiente para garantir o suprimento de equipamentos e produtos para contrariar os fenómenos de especulação e disrupção do mercado. Preferiu receber de braços abertos quem se predispusesse a dar uma “ajudinha” para encontrar materiais e produtos, mesmo que custassem os “olhos da cara” aos contribuintes. Até a Colunex, uma empresa de colchões, decidiu “auxiliar” o Estado nesse desígnio. Acabou a facturar 1,3 milhões de euros em máscaras. Em apenas uma semana. Tudo por ajuste directo e sem se conhecer sequer o preço unitário.


    Apesar de ser uma das mais icónicas marcas de colchões, a Colunex nunca vendeu uma só unidade deste produto a qualquer entidade pública, incluindo hospitais. Nem um sobre-colchão, nem uma almofada, nem um jogo de lençóis, nem uma cama articulada, nem um sommier ou um estrado, nem um banco ou uma poltrona, nem sequer uma mesinha de cabeceira. Nada.

    Tudo mudou com a pandemia. Mas não porque o fluxo de doentes nos hospitais justiçasse a compra de mais camas e colchões – na verdade, os internamentos totais reduziram-se, como o PÁGINA UM já revelou – ou que os produtos da Colunex tivessem tido alguma recomendação especial numa das muitas normas relacionadas com a covid-19 da Direcção-Geral da Saúde, por indicação dos seus consultores. Nada disso. Desde Março de 2020, mês oficial da chegada do SARS-CoV-2 a Portugal, a Colunex vendeu zero colchões ao Estado, tanto quanto os que vendera desde que o Portal Base elenca todos os contratos públicos, há mais de uma década.

    woman in black jacket holding white paper

    Porém, vendeu algo que passou a ser corriqueiro ao longo da pandemia para qualquer empresa, desde as multinacionais até às de vão-de-escada: máscaras.

    Não se sabe quantas foram; terão sido muitas. Mas sabe-se quanto o Estado gastou com a compra de máscaras à Colunex. E não se sabe as quantidades, porque tudo foi por ajuste directo com competente direito a nada ficar escrito, sempre invocando a famigerada alínea c do número 2 do artigo 95º do Código dos Contratos Públicos: ”por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade, é necessário dar imediata execução ao contrato”. Portanto, nada se sabe sobre as quantidades nem sobre o preço unitário se sabe. Somente se sabe aquilo que saiu dos cofres dos hospitais, ou seja, do Estado; isto é, dos contribuintes.

    Foi tudo muito repentino, diga-se. Em apenas uma semana, com sábado e domingo de permeio, entre 25 de Março e 1 de Abril de 2020, a Colunex teve artes e virtudes de garantir seis contratos com hospitais, quatro dos quais de três unidades da região do Porto, pelo valor total de 1,3 milhões de euros. Ou, para se ser mais preciso, 1.304.025 euros.

    A Colunex, fundada em 1986, tem sede numa freguesia de Paredes, tendo oito lojas espalhadas sobretudo por centros comerciais de grande dimensão.

    Depois dessa data, pelo menos que conste do Portal Base, nada mais a Colunex vendeu deste ou de qualquer outro produto. Foi um negócio repentino. E assim veio, e assim foi. Um negócio que se assemelhou ao tempo de vida de uma borboleta adulta. Mas um negócio tão “belo” como alguns destes insectos.

    O primeiro contrato da Colunex foi estabelecido com o Centro Hospitalar Universitário do Porto, no dia 25 de Março, por 78.000 euros. Com a mesma data surge um segundo contrato com a mesma unidade de saúde – que integra Hospital Santo António, o Centro Materno Infantil do Norte, o Centro de Genética Médica e o Centro Integrado de Cirurgia de Ambulatório – por 124.200 euros.

    Este contrato foi para aquecer. No dia seguinte terá sido um dia de festa na Colunex. O Centro Hospitalar Universitário de São João – cujo presidente do conselho de administração era o agora director executivo do Serviço Nacional de Saúde, Fernando Araújo – comprou à empresa de colchões 587.325 euros em máscaras. Ao preço unitário agora praticado, apenas 2 cêntimos por unidade, teria dado para adquirir 29.366.250 máscaras – ou seja, para mascarar quase três vezes a população portuguesa inteira, mas naquela altura vendia-se ao preço que se queria e nem se regateava.  

    Fernando Araújo, então presidente do Conselho de Administração do Hospital de São João, autorizou a compra de quase 600 mil euros em máscaras, sem contrato escrito, e sem se saber o preço unitário. Eis o resultado da oferta de ajuda feita pela Colunex.

    No mesmo dia, a Colunex obteve mais um contrato nas redondezas: vendeu 222.500 euros de mais umas quantas máscaras à Unidade Local de Saúde de Matosinhos, que gere o Hospital Pedro Hispano. Este contrato demorou bastante a aparecer no Portal Base: somente surgiu a partir de 8 de Fevereiro do ano passado.

    A 27 de Março surge o único contrato de máscaras fora da região nortenha: o Hospital de Santo Espírito da Ilha Terceira decidiu comprar à Colunex 76.000 euros deste equipamento facial.

    Por fim, com um fim-de-semana pelo meio, esta incursão da Colunex com o mundo das máscaras terminou num contrato a 1 de Abril de 2020 com o Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa. O preço total: 216.000 euros.

    A administração da Colunex não quis esclarecer o PÁGINA UM sobre os meandros destes fugazes contratos nem dos lucros. Tão-pouco houve comentários dos responsáveis da Unidade de Saúde Local de Matosinhos, a segunda entidade pública com valores mais elevados de compras de máscaras à empresa de colchões.

    Quanto ao Centro Hospitalar Universitário de São João, a assessoria de imprensa justifica o recurso a esta e outras empresas que não costumavam vender produtos de uso hospitalar por causa de “quebras nas cadeias logísticas de material de consumo clínico, tendo estado em risco iminente, e por diversas vezes, incapacidade de proteção dos profissionais de saúde para a prestação de cuidados a doentes com covid-19”.

    E explica que “a comunidade civil (pessoas e empresas), ao ter conhecimento desta tremenda dificuldade, manifestaram junto dos hospitais diversas formas de ajuda, sem as quais não teria sido possível cumprir a nossa missão.”, acrescentando que “foi o caso da empresa Colunex Portuguesa S.A., que entrou em contacto com quatro hospitais da região Norte, tendo disponibilizado a sua logística para o transporte para Portugal de máscaras de proteção à covid-19, de forma a evitar rotura destes bens essenciais, pois na altura não existia oferta no mercado”.

    Este centro hospitalar do Porto diz ainda que “as quantidades de máscaras cirúrgicas e FFP2 entregues às quatro unidades hospitalares terão sido similares, bem como iguais os preços unitários”. Contudo, não adiantou qual foi o preço unitário. Está no “segredo dos deuses”, como estranhamente se tornou norma durante a pandemia.

  • Da pandemia tripla ou da tripla estupidez: um caso de ‘bola de cristal’ nas mãos do doutor Filipe Froes

    Da pandemia tripla ou da tripla estupidez: um caso de ‘bola de cristal’ nas mãos do doutor Filipe Froes


    No dia 1 de Novembro, de acordo com os dados do Worldometers, terão morrido 1.144 pessoas por covid-19 a nível mundial. A média móvel de sete dias está em tendência decrescente e, em breve, ficará abaixo dos mil, o que são os valores mais baixos desde 20 de Março de 2020, mesmo no início da pandemia.

    Recorde-se que, ao longo da pandemia, se atingiu o valor mais elevado em 25 de Janeiro de 2021, com 14.772 óbitos registados, ou seja, quase 13 vezes superior à situação actual. Ou, noutra perspectiva, os valores actuais representam uma descida de 92,3% face ao máximo. Desde 15 de Abril deste ano, a mortalidade por covid-19 esteve sempre abaixo dos três mil óbitos a nível mundial.

    greyscale photography of sheep

    Os valores actuais só podem assustar quem, durante mais de dois anos e meio, esteve a ser constantemente massacrado pelos media mainstream e por “peritos” (muitos financiados pelas farmacêuticas) com relatos pavorosos de uma doença omnipresente apresentada como se fosse o Armageddon. Ou seja, quase todo a gente.

    Mas, na verdade, sabendo-se que morrem, em média, mais de 180 mil pessoas por dia em todo o Mundo, mil óbitos por covid-19 representam cerca de 0,6% do total. Por outras causas, em cada 10 minutos, morrem mais pessoas (cerca de 1.280) do que num dia inteiro – que tem 144 períodos de 10 minutos – por covid-19.

    Somos mortais, já o sabíamos. Mas não podemos continuar irracionalmente a viver com medo de morrer.

    Por esse motivo, o que se pode dizer agora de um sujeito chamado Filipe Froes que, em entrevista ao Diário de Notícias –, a pretexto de uma colectânea de textículos (não confundir com testículos) para um livro financiado pela Bial –, responde da seguinte forma à pergunta sobre “que impactos da covid-19 antevê para este Inverno em Portugal:

    Capa da edição de 4 de Novembro de 2022 do Diário de Notícias.

    “É uma excelente pergunta, infelizmente não tenho uma bola de cristal, mas tenho sempre de fazer aquilo que me é exigido: preparar-me para o pior e esperar o melhor. Diria que vamos estar a viver aquilo a que se chama “pandemia tripla”, uma pandemia com covid, com gripe e com vírus sincicial respiratório. Ou seja, vamos estar numa situação em que, apesar das pessoas estarem vacinadas contra a gripe e a covid, vão progressivamente diminuir a sua imunidade. Com as novas variantes de covid, poderá haver alguma diminuição da eficácia contra a infeção e, portanto, vamos ter um aumento de número de casos, um acréscimo da afluência às urgências e, previsivelmente, teremos um aumento da gravidade traduzida em internamentos em enfermaria e cuidados intensivos. Além disso, necessariamente e infelizmente, vamos ter um aumento da mortalidade, nada que já não estejamos a ver lentamente noutros países.”

    Lá vem a conversa das variantes: minhas senhoras e meus senhores, estão identificadas, até agora, 2.204 variantes no Phylogenetic Assignment of Named Global Outbreak Lineages (PANGOLIN). Em 19 de Abril deste ano, listei 1.847 variantes. Em pouco mais de seis meses foram identificadas mais de 350 novas variantes. Num editorial, que então escrevi, intitulado “X: antes a Morte que tal Sorte”, para “o ‘marketing vírico’ em redor do surgimento (supostamente repentino) de novas variantes – que ‘podem’ ser sempre mais perigosas, mais transmissíveis, mais um ‘par de botas’, como propalam jornalistas ‘acéfalos’, porque acríticos e preguiçosos – mostra bem o grau de insanidade colectiva.”

    E propalam, porque acéfalos sem aspas, acreditam em palavras supostamente sábias do sabichão Filipe Froes. Ei-lo aqui, a alarmar:

    “Dentro destas novas variantes, tem havido um esforço muito grande a nível europeu, conjuntamente com o Reino Unido, para avaliar as duas grandes ameaças de variantes que se aproximam. Falo das variantes BQ1.1 e a XBB, sendo esta última conhecida por variante de Singapura por ter um acréscimo de atividade neste país, mas pensa-se que poderá vir a ser dominante no continente europeu, por volta de dezembro ou janeiro. Neste momento, estamos a assistir na Europa a um aumento da variante BQ1 e BQ1.1, e estas variantes significam uma maior capacidade de transmissão porque têm mecanismos de invasão [sic] à imunidade desenvolvida pela infeção, quer natural, quer pela vacina.”

    [N.D., na entrevista escrita, foi transcrita a palavra “invasão“, mas, na entrevista gravada pela TSF, Filipe Froes diz efectivamente “evasão”, no sentido de as novas variantes supostamente “contornarem” a imunidade]

    Música para os ouvidos. Jogos de semântica de encher ouvidos de papalvos. Reparem: não são as vacinas que são ineficazes. São as supostas novas variantes que têm “uma maior capacidade de transmissão porque têm mecanismos de evasão [palavra dita por Filipe Froes] à imunidade desenvolvida pela infecção”.

    white sheep on white surface

    Dito por outras palavras: segundo as palavras deste “doutor da mula ruça”, a vacina não serve para nada por causa das novas variantes, mas mais adiante ele não tem pejo de recomendar: “A meu ver, isto significa que temos de tomar algumas medidas essenciais: uma delas é aumentar rapidamente a vacinação contra a covid e contra a gripe – começando pelos mais velhos e depois alargando ao maior número de pessoas possível –, e temos de melhorar muito os sistemas de vigilância.”

    Enfim, alguém compre uma bola de cristal. Para lha darem… Não vale atirarem. E nem lha tirem: para nigromante, não há pior.

    P.S. Li também, pasmado, todo o editorial da directora da Diário de Notícias (DN), Rosália Amorim, sobre esta entrevista. Assustador, o título: “Guerra de pandemia vai juntar-se à guerra de Putin“. Não podia começar ao melhor estilo do “vamos todos morrer”: “O inverno aproxima-se e além do tormento do conflito na Ucrânia, de um eventual racionamento de energia, alta da taxa de inflação e subida sucessiva das taxas de juro, podemos viver, nos próximos meses, uma ‘pandemia tripla‘ (…).” E acaba este texto inclassificável desta forma: “Vale a pena lembrar os acontecimentos que marcaram as nossas vidas desde março de 2020 – e a esse propósito o DN e os autores Patricia Akester e Filipe Froes lançam um livro na próxima segunda-feira com o título A Pandemia que revelou outras Pandemias – Contributos para o Conhecimento – para que não nos esqueçamos do que passámos e de como a desinformação tentou, tantas vezes, toldar o conhecimento e as tomadas de decisão.”

    Ainda bem que Rosália Amorim fala em desinformação e conhecimento: a directora do DN não informa que o livreco é financiado pela farmacêutica BIAL; e também ficamos sem qualquer conhecimento do montante deste patrocínio. Esperemos que a BIAL o coloque no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed.

  • Excesso de mortalidade não-covid disparou: este ano é mais de 10 vezes superior a 2021

    Excesso de mortalidade não-covid disparou: este ano é mais de 10 vezes superior a 2021

    O ano de 2022 já não é atípico, porque sucedeu a dois completamente anormais por causa da pandemia. Mas assacar responsabilidades somente ao SARS-CoV-2 ou a factores meteorológicos parece cada vez fazer menos sentido. Com vacinas disponíveis e uma variante menos letal (Ómicron), acabou por se morrer este ano muito mais por covid-19 do que em 2020, sem vacinas e com escassa imunidade natural. Mas pior ainda: o excesso de mortalidade não-covid, que já tinha sido elevada nos primeiros 10 meses de 2020, regressou agora em grande força este ano. Explicações oficiais? Não há. O Ministério da Saúde diz estar em estudos; e, enquanto isso, vai “lutando” no Tribunal Administrativo para convencer os juízes a não conceder o direito à informação pelo PÁGINA UM.


    Apesar de pouco detalhados, os dados oficiais do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) não enganam e mostram um cenário aterrador: apesar da mortalidade total no ano passado ser ainda ligeiramente superior à do ano corrente (uma diferença de apenas 1.013 óbitos entre 1 de Janeiro e 31 de Outubro), o excesso de mortalidade não-covid disparou e está em níveis absurdamente elevados.

    A análise do PÁGINA UM mostra que, se se descontar ao total os óbitos oficiais da covid-19 em períodos homólogos dos três anos da pandemia (meses de Janeiro a Outubro), o ano de 2020 surge ainda como aquele que apresenta uma maior mortalidade atribuída a outras causas, embora 2022 esteja a uma pequena distância.

    a boy crying tears for his loss

    Contudo, aquilo que mais surpreende pela dimensão catastrófica surge quando se compara os anos de 2021 – onde se registou um pico de mortalidade por covid-19 em Janeiro e Fevereiro – e de 2022 – marcada pela dominância da variante Ómicron, muito menos letal, e com parte substancial da população com vacinação contra a covid-19 completa e com vários reforços.

    De facto, o ano de 2021 ainda tem mais mortes totais, mas quando se descontam os óbitos por covid-19, ressalta um quadro negro de excesso de mortalidade não-covid ao longo do presente ano: mais que decuplica. Ou seja, aumenta quase 1.000%. Mais chocante do que este espantoso incremento é a inércia do Governo em apurar as causas, sobretudo sabendo-se de o presente ano estar a ser o terceiro consecutivo com mortalidade excessiva. Portanto, já não são apenas os mais vulneráveis a “partirem”; é também, e muito, quem não deveria deixar esta vida tão cedo.

    Analisar os três anos em detalhe ajuda a contextualizar o problema.

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    No primeiro ano da pandemia, entre Janeiro e Outubro, os dados oficiais contabilizam a morte de um total de 98.837 pessoas, das quais 2.544 atribuídas à covid-19, significando assim que por outras doenças se registaram-se 96.293 óbitos. Deste modo, face à média do período homólogo (Janeiro a Outubro) do quinquénio anterior à pandemia (2015-2019), o ano de 2020 teve então um excesso total de 7.095 óbitos, mas que descia para os 4.551 se descontadas as mortes por covid-19. Ou seja, este último valor era o excesso não-covid.

    O ano de 2021 começou com uma inusitada mortandade, fruto de surtos agressivos de covid-19, de uma intensa vaga de frio e do colapso das unidades do Serviço Nacional de Saúde. Só no mês de Janeiro do ano passado morreram 19.649 pessoas, quando a média do período homólogo do quinquénio anterior à pandemia (2015-2019) era de 12.561 óbitos. A mortalidade ao longo do ano passado manteve-se sempre elevada, apesar do programa vacinal contra a covid-19. Entre Janeiro e Outubro acabaram por falecer um total de 103.334 pessoas, das quais 11.190 atribuídas à covid-19.

    Deste modo, o excesso não-covid foi assim de apenas 402 – ou seja, uma descida substancial face ao ano anterior. Note-se, contudo, que subsistem sérias dúvidas sobre a mortalidade atribuída à covid-19, tanto mais que, de acordo com a base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, cerca de um terço das mortes atribuídas a esta doença ocorreram fora de unidades de saúde.

    Óbitos no período Janeiro-Outubro desde 2015 até 2022 por causas diversas, por covid-19 e excesso de mortalidade não-covid-19 face à média (2015-2019) em Portugal. Fonte: SICO.

    Em todo o caso, o excesso global da mortalidade total em 2021, até finais de Outubro, foi elevadíssimo: mais 11.592 óbitos acima da média do período homólogo, ou seja, um acréscimo de 12,6%.

    Já o ano de 2022 não surpreende somente pelo elevado número de mortes por todas as causas, mas sobretudo por se verificar tanto na covid-19 – com uma variante menos agressiva a afectar população vulnerável praticamente toda vacinada e já com largas franjas com imunidade natural – como em causas não-covid. Até finais de Outubro, dos 102.321 óbitos contabilizados, 6.252 foram atribuídos à covid-19 – pouco mais de metade (56%) dos de 2021, mas 146% a mais do que em 2020, quando então não havia sequer vacinas e a população estava naive perante o SARS-CoV-2.

    Saliente-se que nesta comparação deve ser considerado que a covid-19 causou a primeira morte em Março de 2020; porém, mesmo assim era suposto que uma vacina, que chegou ser anunciada como tendo uma eficácia quase total, registasse um impacte muito mais positivo na redução da mortalidade por covid-19 em 2021 e 2022.

    Mas mesmo morrendo mais pessoas do que seria expectável por covid-19, são as mortes não-covid-19 que merecem explicações oficiais, que invoquem mais do que um Verão de temperaturas quentes e uma Primavera mais primaveril.

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    Com efeito, uma das tónicas mais marcantes de 2022 tem sido o sistemático excesso de mortalidade, persistente e não conjuntural, como sucede com as ondas de calor. Este ano, até Julho, todos os meses ultrapassaram os 10 mil óbitos. Os três últimos meses foram mais amenos – Agosto com 9.305 óbitos; Setembro com 8.751 e Outubro com 9.489 –, mas sempre com valores acima do ano passado e da generalidade dos anos anteriores. Considerando a média no quinquénio anterior à pandemia (2015-2019), entre Janeiro e Outubro, o excesso não-covid é de 4.327 óbitos.

    E assim, mesmo que o ano de 2022 acabe com valores abaixo de 2021, a actual situação demonstra estarmos a passar por um estado extremamente periclitante da saúde pública. Três anos de excesso de mortalidade ininterrupta. Vai durar? Se enterrarmos a cabeça na areia, sim…

  • SNS: eu com prisão de ventre e o Governo a cagar para nós…

    SNS: eu com prisão de ventre e o Governo a cagar para nós…


    Hoje presenteio-vos com tema escatológico. Não no sentido filosófico (e teológico) da expressão, embora tenhamos de pensar seriamente no nosso iminente fim se sua Eminência o Serviço Nacional de Saúde não atinar com o seu fim, isto é, com o objectivo para o qual o seu criador – em minúscula, por ser ente político – o fez.

    Na verdade, é fezes – é, podemos assim dizer, na acepção coprológica da função terminal do processo digestivo, sobre fezes que eu aqui obro. Escatologia dura, portanto, confesso-vos.

    E assumindo ser questão que “mete nojo à vontade mais gulosa” – como glosou Bocage (ou terá sido o Abade de Jazente?) no soneto Cagando estava a dama mais formosa –, mesmo assim, sendo “fedentinosa” coisa, necessário falar se mostra, mesmo que não se olhe nem se cheire.

    Pois bem: temos por aqui um (espero ser problema passageiro) pequeno desarranjo intestinal que, enfim, após duas recentes passagens pelas urgências, com terríveis mas efémeras dores abdominais (para os homens sempre insuportáveis) sem diagnóstico conclusivo – análises e raios X deram OK –, deu como sugestão uma consulta da especialidade na competente especialidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Claro. “Marquei através do sistema”, garantiu-me a médica nas urgências do São José. “Mas é capaz de demorar”, avisou.

    Entre a segunda ida às urgência, em 3 de Outubro, e marcação da consulta da especialidade de Gastrenterologia passaram duas exactas semanas. Acresceu mais uma semanita e pouco para expedição e recepção da carta. Leio-a para vós, mas está aqui: “Comunica-se que tem consulta marcada na especialidade acima referida [Gastrenterologia] para as 15:00 horas do dia 24 DE AGOSTO DE 2023 em Capuchos Pav Consult.”, isto é, no Hospital dos Capuchos, em Lisboa.

    Portanto, marcaram-me uma consulta para daí a 311 dias. Um bebé demora menos tempo a criar-se e a sair da barriga da mãe. Ao dia que aqui vos escrevo, faltam ainda 294 dias! Até lá espero dar muitas descargas de autoclismo… de contrário, rebento!

    Mas, entretanto, lembro-me que deve haver, senão uma lei, pelo menos bom senso sobre as consultas do tão apregoado e elogiado SNS, que agora até tem um director executivo novinho em folha.

    Carta-convocatória datada de 17 de Outubro de 2022 para uma consulta em 24 de Agosto de 2023.

    E parto à pesquisa.

    De acordo com a Entidade Reguladora da Saúde, “por regra, a primeira consulta de especialidade hospitalar deve ser realizada em 30, 60 ou 120 dias seguidos e contados a partir do registo do pedido da consulta efetuado pelo médico assistente do prestador de cuidados primários, através do sistema informático que suporta o Sistema Integrado de Gestão do Acesso (SIGA SNS), consoante a consulta seja de realização ‘muito prioritária’, ‘prioritária’ ou ‘normal’, respetivamente.”

    Portanto, sobre o meu caso, e considerando que me devem ter classificado como situação “normal”, estou bem tratado… ou tramado.

    Vou ao site dos Tempos Médios de Espera do Serviço Nacional de Saúde (SNS) – que, em tempos houve políticos que até julgavam que os contribuintes devem saber o que anda a fazer – para aferir a situação concreta do Hospital dos Capuchos para o serviço de Gastroenterologia.

    Pasmo. Nunca sou dos que pensam que as coisas más só a mim sucedem. Nos registos, surge uma pessoa com estado considerado “muito prioritário” que vai ter de esperar 50 dias pela sua consulta, exactamente igual ao tempo de espera média dos 40 casos “prioritários”. E depois contam-se 700 pessoas em condição “normal” com tempo de espera médio de 122 dias. Portanto, estarei largamente acima da mediana do tempo de espera.

    Cheira-me, além disso, a aldrabice estatística: se 40 casos prioritários aguardam em média 50 dias, não sei como 700 casos (17 vezes e meia mais) passam a ter um tempo média de “apenas” 122 dias, ou seja, pouco mais do dobro (2,4 vezes mais).

    Convenhamos que, consultado o site do SNS, concluo que tenho azar de viver na zona histórica da capital. Se o “meu hospital” fosse o Santa Maria, o tempo de espera seria de 92 dias em condição “normal” (tem, neste momento, 452 doentes aguardando consulta). Em condição “prioritária”, contudo, o tempo de espera é mais elevado do que nos Capuchos: 57 dias, em média para os 81 doentes.

    Melhor estaria se fosse utente do serviço de Gastrenterologia do Hospital Amadora-Sintra: 11 casos “muito prioritários” com tempo médio de espera de 23 dias, 105 “prioritários” com 67 dias e 11 “normais” com 81 dias. Nada mau. Dentro dos parâmetros definidos por lei.

    Tempo médio de espera de consulta de Gastrenterologia no Hospital dos Capuchos no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central. Fonte: SNS.

    Idem para o Hospital Garcia de Orta: 10 casos “muito prioritários” com 24 dias de espera média; 30 casos “prioritários” com 51 dias e ainda 179 casos “normais” a aguardarem, em média, 93 dias.

    Fui ver fora de Lisboa: por exemplo, o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Os 11 casos “prioritários” têm um tempo de espera de 52 dias, enquanto as 881 pessoas com condição “normal” aguardam, em média, 200 dias. Ui!

    Isto é uma roda da sorte!

    No Porto, não se está muito melhor. No Hospital de São João, por exemplo, a Gastrenterologia tem 32 dias de espera para os 11 casos “muito prioritários”, 45 dias para os 94 casos “prioritários” e 141 dias para os 782 casos “normais”.

    Busco entretanto ao calhas, sem critério definido. Vejamos o Hospital Distrital de Santarém: pasme-se também, pelo absurdo. Em terras escalabitanas, temos 34 pessoas em condição de “muito prioritário”, com “direito” a tempos de espera de 248 dias. Estranhamente, em grupo, estão estes mais mal servidos do que aqueles que são classificados com condição “prioritária” (235 dias de tempo médio de espera para os 37 doentes) e muito pior do que os que apresentam condição “normal” (73 pessoas esperam, em média, 149 dias pela consulta).

    Sigo para o interior. Imaginemos que sou de Bragança. Azar: não há serviço de Gastrenterologia. Desço para a Guarda: há um serviço no Hospital Sousa Martins, mas nenhum dos doentes ali referenciados (seis “muito prioritários”, 107 “prioritários”, 94 “normais” e três sem atribuição) tem definido um tempo médio de espera. Deve ser quando calhar.

    Já em Viseu, parece ser vantajoso ter ali doença desta especialidade: só há pacientes em condição “normal” (156) com tempo médio de espera de 53 dias. A coisa deve piorar, porém, quando distribuírem os 107 doentes que ainda não têm classificação de prioridade…

    Em Castelo Branco, não está mal, tendo em conta as circunstâncias do país: 21 pessoas, todas classificadas em condição “normal”, têm um tempo de espera médio previsto de 49 dias.

    Em Évora mostra outra situação sem nexo: 27 doentes “prioritários” têm tempos médios de espera (96 dias) superiores aos dos 153 doentes classificados como “normais” (85 dias)

    Poderia continuar a análise, mas não pretendo fazer um tratamento exaustivo sobre o estado da Gastrenterologia no SNS. Basta estes para exemplo. Para mostrar como não há lógica, não há política de saúde pública, enquanto o Estado – ou melhor dizendo, o Governo – olha com sobranceria para os problemas que fogem do mediatismo do momento. Para aquilo que não é prioridade mediática, deixa andar…

    Antes da pandemia, a Gastrenterologia tinha já mais de um terço das consultas a superar os tempos máximos de resposta garantidos (TMRG). A situação terá, certamente, piorado desde a pandemia, e muito; tanto assim que estamos em finais de 2022 e nem sequer dados sobre a situação de 2020 foram já disponibilizados pela Entidade Reguladora da Saúde.

    Sabe-se bem que o tempo de intervenção, em doenças desta especialidade, entre os primeiros sintomas e um diagnóstico, é muitas vezes vital; determina se se vive ou não.  

    Ora, também se sabe que, durante dois anos, o Estado – leia-se, o Governo – não teve mãos para despejar rios de dinheiro para uma doença (covid-19) que, entretanto, se tornou endémica, matando, segundo dados oficiais, um pouco mais de 25 mil pessoas, não se sabendo bem quantos com e quantos por causa do SARS-CoV-2. Só em vacinas foram 660 milhões de euros; de testes e outros materiais e medicamentos, nem se fala.

    Porém, para outro tipo de doenças, de que as do aparelho digestivo são um bom exemplo, o Estado – leia-se, o Governo – deixou degradar os serviços públicos para o nível da indigência. E isto sabendo-se, por exemplo, que os cancros digestivos são responsáveis por cerca de 10 mil mortes por ano, que a dispepsia afecta entre 20 e 40% da população, a doença do refluxo gastro-esofágico 35%, a infecção por Helicobacter pylori entre 60% e 70%, e a síndrome do intestino irritável aproxima-se de um milhão de casos.

    E, na verdade, nem se pode dizer que, globalmente, haja falta de médicos desta especialidade. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística, Portugal tinha 634 gastroenterologistas em 2021, dos quais 253 da Área Metropolitana de Lisboa e 191 no Norte e 130 no Centro. Num relatório de 2011, a Administração Central do Sistema de Saúde considerava que o rácio para os serviços de Gastrenterologia deveria ser de 3,0 médicos por 100.000 habitantes. Significa que, actualmente, temos assim mais do dobro das supostas necessidades.

    man in yellow shirt and brown pants using smartphone

    Mas, então, onde estão esses médicos se os tempos de espera no SNS são, no mínimo, desesperantes?

    Estarão no privado, onde, obviamente, eu terei de recorrer?

    Estaremos a sofrer os efeitos de (mais) uma teia de interesses, que agrada ao Governo, estando os políticos impavidamente a assistir à propositada degradação do SNS até níveis catastróficos, de sorte que, quem tem algumas posses e/ou preza a vida, acaba por optar por médicos em hospitais privados?

    Que se anda afinal a passar no país que canta hosanas, batendo no peito, ao SNS, mas que, pela calada, apaparica as empresas privadas que não param de seduzir médicos, desviando-os do sector público?

    Perguntas pertinentes, mas que não retiram o cerne à (minha) questão interna: ando eu com prisão de ventre e o Governo a cagar para nós…

    E a deixar que Portugal se transforme num país “onde o fedor, e a trampa habita”, como o soneto oitocentista dizia sobre o “sombrio palácio do alcatreiro”.