Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Vacinas: Manuel Pizarro com processo de intimação no Tribunal Administrativo por esconder contratos

    Vacinas: Manuel Pizarro com processo de intimação no Tribunal Administrativo por esconder contratos

    O Ministério da Saúde recusa divulgar os contratos das compra das vacinas contra a covid-19. Desde Março de 2021, não é colocado no Portal Base qualquer documento sobre compras às farmacêuticas. Até então teriam sido compradas menos de 11 milhões de lotes, menos de 25% do total eventualmente adquirido. Ignora-se também as condições acordadas, nomeadamente ao nível da responsabilização e de eventuais compras obrigatórias no futuro.


    O PÁGINA UM entrou hoje, último dia do ano, com mais um processo de intimação para obrigar o Ministério da Saúde a revelar documentos administrativos, que continua a esconder. O processo tem já o número 3879/22.1BESLSB, devendo ser distribuído na segunda-feira. O Ministério da Saúde será notificado para responder obrigatoriamente durante a próxima semana.

    Desta vez, já com Manuel Pizarro como ministro da Saúde, pretende-se a “consulta presencial e obtenção de cópia, em qualquer formato disponível, de todos os contratos integrais (incluindo anexos e cadernos de encargos) assinados entre a Direcção-Geral da Saúde (ou outras entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde) e as farmacêuticas que comercializam vacinas contra a covid-19, desde 2020 até à data, incluindo documentos de entrega (guias de transporte), bem como toda a documentação (troca de correspondência) entre as entidades adjudicantes e adjudicatárias ao longo desde período.”

    Apesar da obrigatoriedade legal de colocar todos os contratos públicos no Portal Base, o Governo, através da Direcção-Geral da Saúde – que terá sido a única entidade pública a efectuar as aquisições –, está intencionalmente a omitir a inclusão de qualquer contrato relacionado com as vacinas contra a covid-19 desde Março de 2021. Ignoram-se assim, de forma inequívoca, quantos lotes foram adquiridos a cada farmacêutica, os preços unitários e as condições de venda, incluindo as relacionadas com responsabilização.

    Manuel Pizarro, ministro da Saúde.

    Na plataforma da contratação pública, ainda hoje consultada pelo PÁGINA UM, apenas constam quatro contratos todos do primeiro trimestre de 2021: duas compras de vacinas à Pfizer Biofarmacêutica (no valor de 54.489.660 euros, em 19 de Fevereiro; e de 34.419.238 euros em 23 de Março) e mais duas à Moderna (27.247.155 euros e 18.780.000 euros, ambas em 23 de Março). No total constam assim apenas as compras de um pouco menos de 135 milhões de euros.

    No caso destes contratos com a Pfizer foram então compradas 6.761.401 doses, ao preço unitário de 12 euros, mas ignora-se o custo unitário das vacinas da Moderna, porque são omitidos documentos fundamentais. Em todo o caso, se se considerar um preço unitário similar, nestes quatro contratos terão sido adquiridas cerca de 10,6 milhões de doses de vacinas contra a covid-19.

    Essa é uma pequena percentagem da quantidade já administrada. Em Outubro passado, o Ministério da Saúde revelou ao PÁGINA UM que, desde Dezembro de 2020, Portugal já comprara quase 45 milhões de vacinas contra a covid-19 e que teria então um stock de cerca de 9,5 milhões de doses. O Ministério da Saúde acrescentava ainda que “até 17 de Outubro foram administradas cerca de 25 milhões de vacinas”. Esta semana, o gabinete de Manuel Pizarro disse que tinham sido administradas 26,5 milhões de doses nos dois últimos anos. Em causa estará um negócio global que terá já custado, pelo menos, 675 milhões de euros ao Estado português.

    person holding white ballpoint pen

    Para confirmar as condições das compras e da assumpção de responsabilidades, o PÁGINA UM solicitou formalmente, após diversos pedidos informais, que o Ministério da Saúde disponibilizasse todos os contratos e documentos complementares. O pedido foi formulado em 22 de Novembro passado, e no dia 6 de Dezembro a Secretaria-Geral do Ministério da Saúde assumiu ao PÁGINA UM que “não possui a informação pretendida”, e que tinha enviado o pedido, conforme imposição legal, para a Direcção-Geral da Saúde (DGS) “para pronúncia e resposta”.

    Como habitualmente, a directora-geral da Saúde, Graça Freitas – que esta semana anunciou a reforma – nem sequer respondeu. Como a DGS não tem personalidade jurídica para responder em processos administrativos, será o Ministério da Saúde que foi intimado junto do Tribunal Administrativo.

    Este processo de intimação será o terceiro instaurado pelo PÁGINA UM ao longo de 2022, sendo o primeiro no mandato de Manuel Pizarro, que assim mantém a filosofia de obscurantismo da sua antecessora, Marta Temido.

    Os outros dois ainda estão em fase de decisão, em recurso. Além destes processos, o PÁGINA UM entrou com intimações por obscurantismo – ou seja, recusa de acesso a documentos administrativos – envolvendo outras entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde, nomeadamente a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (que venceu), a Administração Central do Sistema de Saúde (que venceu em primeira instância, estando em recurso) e Infarmed.

    Neste último caso, o PÁGINA UM perdeu um processo – por o Tribunal Administrativo considerar que os documentos sobre segurança dos medicamentos estão abrangidos por segredo comercial – e está em curso outro, desde Abril passado, relativo aos efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 e do antiviral remdesivir.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Em caso de derrota, os custos podem, não incluindo honorários do nosso advogado, atingir mais de 1.400 euros. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.

  • Irmão do presidente da República ganha contrato na NAV três dias após nomeação de Alexandra Reis para liderar a empresa pública

    Irmão do presidente da República ganha contrato na NAV três dias após nomeação de Alexandra Reis para liderar a empresa pública

    Não foi apenas a negociar a indemnização de 500 mil euros por rescindir com a TAP que os caminhos do advogado Pedro Rebelo de Sousa e da ex-secretária de Estado do Tesouro se cruzaram. Três dias após a nomeação formal de Alexandra Reis para liderar a NAV, esta empresa pública contratou a sociedade do irmão do presidente da República para prestar serviços jurídicos na área do trabalho. Em todo o caso, já se sabia desde Abril passado que a agora ex-secretária de Estado do Tesouro iria para aquela empresa pública de gestão da navegação aérea. Quanto a Pedro Rebelo de Sousa, apesar do seu irmão, o presidente da República, defender que tem já pouca influência na gestão do sociedade de advogados que fundou, imagine-se então se tivesse muita: o PÁGINA UM revela aqui a evolução dos contratos públicos sacados pela SRS – Sociedade Rebelo de Sousa & Advogados Associados, na esmagadora maioria por ajuste directo.


    A sociedade de advogados de Pedro Rebelo de Sousa, irmão do presidente da República, conseguiu ganhar um contrato de prestação de serviços à Navegação Aérea de Portugal (NAV), no valor de 66.861 euros, apenas três dias após a nomeação formal de Alexandra Reis como presidente do conselho de administração daquela empresa pública.  O despacho de nomeação, assinado pelo ainda ministro das Finanças, Fernando Medina, e pelo demissionário ministro das Infraestruturas Pedro Nuno Santos tem data de 24 de Junho deste ano; o contrato entre a NAV e a SRS – Sociedade Rebelo de Sousa & Advogados Associados é de 27 de Junho, embora tenha entrado em vigor retroactivamente, em 14 de Junho daquele mês.

    Embora Alexandra Reis não tenha estado directamente envolvida no contrato – terá sido assinado por dois vogais em funções, uma vez que só assumiu a presidência formal em 1 de Julho –, há muito era conhecida a sua indigitação para liderar a empresa de gestão do tráfego aéreos. E as suas ligações a Pedro Rebelo de Sousa eram óbvias: o advogado negociara, no início deste ano, a famosa indemnização de 500 mil euros pela rescisão do cargo de vogal do conselho de administração da TAP.

    Pedro Rebelo de Sousa, como surge no site da SRS – Sociedade Rebelo de Sousa & Advogados Associados

    Alexandra Reis saíra da companhia aérea estatal em Fevereiro passado – em rota de colisão com a CEO Christine Ourmieres-Widener –, mas em 11 de Abril já estava o seu currículo em análise pela Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração (CReSAP).

    O contrato de prestação de serviço, disponível no Portal Base, não identifica sequer quem assinou o contrato de ambas as partes – o que é uma situação ilegal e de pouca transparência, uma vez que a protecção de dados não se aplica aos nomes das pessoas envolvidas na sua assinatura –, e apenas refere, de forma muito abstracta, o objecto: “serviços de assessoria jurídica no âmbito da área de prática de Direito do Trabalho”, remetendo para um caderno de encargos não disponibilizado (o que também não é legal). Sabe-se apenas que a sociedade de Rebelo de Sousa foi a escolhida, ignorando-se os critérios, depois de uma consulta prévia a outros três conhecidos escritórios de advogados: PLMJ, Garrigues e Vieira de Almeida.

    Alexandra Reis foi nomeada para liderar uma empresa que três dias depois contratou o advogado que negociara a sua indemnização pela rescisão na TAP.

    Este contrato de Rebelo de Sousa acaba por ser, porém, apenas mais um dos muitos que a sua sociedade tem conseguido nos últimos anos.

    Apesar de Marcelo Rebelo de Sousa, presidente da República, ter já tentado desvalorizar o papel do irmão na sociedade SRS (que fundou e onde é manager partner), dizendo que tem “uma posição simbólica” –, na verdade os contratos com entidades públicas e similares têm estado a aumentar nos últimos três anos. E este ano bateu já mesmo um recorde: contabilizam-se 10 contratos com o valor total de 471.216 euros, sem IVA incluído.

    Este ano, o contrato mais elevado foi assinado com a Secretaria de Estado Regional da Economia da Madeira (100.000 euros). Aliás, no arquipélago madeirense, Pedro Rebelo de Sousa conseguiu seis contratos nos últimos dois anos no valor de 234.950 euros.

    Acima do valor do contrato com a NAV, a SRS obteve também um contrato de 70.000 euros com a ATEC, uma academia de formação nascida de um acordo entre o Instituto de Emprego e Formação Profissional e empresas alemãs (Volkwagen, Autoeuropa, Siemens e Bosch).

    No lote de entidades públicas com contratos este ano com Pedro Rebelo de Sousa conta-se ainda a Fundação Centro Cultural de Belém (15.000 euros), os municípios de Sever do Vouga (50.000 euros) e do Porto (44.955), a própria Ordem dos Advogados (20.000 euros), a Ordem dos Contabilistas Certificados (59.400 euros), a Secretaria Regional de Equipamentos e Infraestruturas da Madeira (25.000 euros) e a Transtejo (20.000 euros).

    Uma evidência dos negócios da sociedade de Pedro Rebelo de Sousa estarem de vento em pompa é a evolução da facturação. Nos últimos três anos (2020-2022), a SRS concretizou contratos públicos no total de 1.286.751 euros, quando no triénio anterior facturara, em contratos deste género, apenas 455.378 euros.

    Evolução do valor total dos contratos públicos da SRS – Sociedade Rebelo de Sousa & Advogados Associados. Fonte: Portal Base.

    Se se considerar a média dos 10 anos anteriores a 2020, a SRS registara apenas um valor anual de 158.054 euros, que contrasta com os 428.917 euros de média anual do triénio 2020-2022. Ou seja, um aumento de 171%.

    Além disto, nos últimos três anos, Pedro Rebelo de Sousa conseguiu também angariar 17 novos clientes entre as entidades públicas, ou seja, antes de 2020 nunca com estas estabelecera contratos. E também desde 2020, grande parte dos contratos obtidos foram concretizados apenas pela “linda cor dos olhos” do irmão do presidente da República: 73% do montante nestes últimos três anos foi obtido em ajustes directos, sem concorrência, apenas por contactos privilegiados.

    Note-se que alguns dos contratos entretanto assinados nos últimos anos podem não estar ainda no Portal Base.

  • #TwitterFiles: da vergonha e da liberdade

    #TwitterFiles: da vergonha e da liberdade


    Desde o dia 2 de Dezembro, o PÁGINA UM tem acompanhado detalhadamente os #TwitterFiles, a súmula de documentos disponibilizados por Elon Musk sobre as práticas da anterior administração do Twitter sobre liberdade de expressão, propaganda e manipulação de massas.

    escrevemos 11 artigos sobre esta matéria, fazendo um esforço suplementar de acompanhamento destas revelações, através das notícias das jornalistas Elisabete Tavares e Maria Afonso Peixoto.

    Elon Musk

    A imprensa mainstream, internacional e nacional, vê o elefante na sala e nota-se o incómodo no silêncio. Consigo imaginar a sua consciência a remoer, já no vazio. É fácil ignorar uma notícia, uma investigação, uma história… Mas como conseguir isso perante uma catadupa de provas sobre interferências ao mais alto nível de instituições ditas democráticas que colidem com os mais básicos direitos e garantias de sociedades democráticas?

    Mas a imprensa conseguiu isso. Uma vez, duas vezes, já vai na casa da primeira dezena de vezes. Os jornalistas da imprensa mainstream olham e não vêem. Pior: não querem ver porque se recusam a olhar. Ou pior ainda: não querem ver porque lhes dizem que não devem olhar para ali. E muito obedientemente assim agem.

    Como jornalista, pergunto aos outros jornalistas da dita imprensa mainstream: não sentem vergonha de estarem ostensivamente a desviar os olhos de algo como os #TwitterFiles, que são apenas a ponta do icebergue de algo tenebroso que a classe jornalística deveria combater?

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    De forma passiva, mas também activa por isso, pactuam V. Exas. com o “apagamento” das revelações, censurando assim as notícias da censura? Ignorando as manipulações feitas, “desculpando-as” no pressuposto de que os meios justificam bons fins, esquecendo que esses mesmos maus meios servem sempre maus fins?

    São vocês jornalistas? Querem que os leitores vos considerem credíveis depois disto? Têm a noção do suicídio?

    Não tenho por vós comiseração alguma: enquanto se envergonham, eu tenho um imenso orgulho no PÁGINA UM. No trabalho que fazemos. E na liberdade alcançada a pensar nos leitores. Sem a hipocrisia de ocas declarações de fé sobre independência e coisas que tais.

  • Fernando Medina: o incompetente sempre-em-pé

    Fernando Medina: o incompetente sempre-em-pé


    Há um mistério na vida política portuguesa: por mais porcaria que, como pessoa e político, Fernando Medina faça, tudo se lhe mantém igual. Ele é o iceberg que afunda o Titanic, e ainda faz uma perninha a tocar na orquestra enquanto o transatlântico afunda.

    Do seu percurso profissional, a política partidária, sempre ligada ao Partido Socialista, é a sua única imagem de marca, sempre com bons padrinhos. Nada há de marcante na sua vida que não seja a política, mas sem qualquer pensamento que nos fixe ao homem. Desde cedo assim tem sido. Ainda nos anos 90, da então verdura dos seu 20s, foi assim que chegou a assessor ministerial, primeiro através de Marçal Grilo, para a Educação, e depois para o gabinete de António Guterres até à demissão do então primeiro-ministro em 2002.

    Um “tacho” – não há outro termo – na Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) permitiu-lhe curta travessia no deserto durante a governação social democrata de Durão Barroso e de Santana Lopes, até a liderança do Governo ter caído no colo de José Sócrates, outro “político de profissão”. Pois bem: como entrado estava nos 30s, José Vieira da Silva chama-o para secretário de Estado do Emprego e Formação Profissional, depois segue para a Secretaria de Estado da Indústria e Desenvolvimento.

    Perdidas as eleições para Passos Coelho, seguiu ele a carreira política na Assembleia da República, em oposição, até lhe surgir novo padrinho. António Costa levou-o para a Câmara de Lisboa como número 2, e ainda com um presente suplementar: a cadeira do poder na autarquia se, como sucedeu, o actual primeiro-ministro assegurasse o cargo de secretário-geral do Partido Socialista.

    Estávamos então em Abril de 2015, e aos 42 anos lá chegava Fernando Medina a um verdadeiro lugar de responsabilidade. E pôde então começar a mostrar a sua fantástica incompetência. Numa época gloriosa de turismo na capital, Medina conseguiu piorar a qualidade de vida dos lisboetas, com uma gestão caótica desde os transportes à recolha de lixos e limpeza urbana, passando por intervenções urbanas onde Manuel Salgado punha e dispunha.

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    Perder as eleições de 2021 – que até o rato Mickey ganharia se fosse socialista, nas condições políticas de então – foi somente o corolário da sua patente incapacidade de liderança do principal município português, mais ainda manchado pela divulgação de um procedimento torpe e intolerável num país democrático: o envio da identidade de manifestantes em Portugal à embaixada da Rússia, bem como às de outros países “repressivos”, como Angola, China e Venezuela.

    Num país decente, perder umas eleições não seria a única consequência deste “feito”. Mas foi, para Medina. E pior, para nós: recebeu ele a tutela das Finanças do novo Governo de António Costa.

    Ser ministro das Finanças com uma visão de merceeiro é o que Fernando Medina nos tem mostrado: com uma inflação galopante, tem ele apenas sido um façanhudo porteiro da caixa-forte, aproveitando-se da intolerável inflação para sacar mais dinheiro dos contribuintes. Vamos ter de o ouvir, num país de baixa literacia financeira, a vangloriar-se de um produto interno bruto (PIB real) a crescer 6,8%, mas a omitir que se usou um deflator de 3,6%, quando a inflação será de 8,1%. Ou seja, na verdade, o PIB cresceu poucochinho (2,3% se considerado um deflator de 8,1%). O Governo português, como outros, manipula números e apresenta os brilharetes, aproveitando o desconhecimento do povo.

    white and blue airplane on airport during daytime

    Mas Medina poderia ser apenas um sofrível ministro das Finanças, sem rasgo nem ousadia, porque já tivemos similares, e teremos piores, por certo. Porém, é mais do que isso: Medina consegue meter-se em sarilhos, culpando os outros, encontrando bodes expiatórios.

    Ainda como presidente da autarquia, Medina “imolou” o responsável pela protecção de dados. Em consequência desse processo, também não retiraria quaisquer ilações políticas – nem António Costa, que o convidaria para o Governo – quando a Comissão Nacional de Protecção de Dados multou a Câmara Municipal de Lisboa em 1,2 milhões de euros por 225 contraordenações.

    Já em funções governamentais, vimos então ainda Medina envolvido no convite ao ex-jornalista Sérgio Figueiredo – que o levara a ser comentador na TVI – para consultor especial no Ministério das Finanças. A polémica levou ao afastamento de Figueiredo, e não de Medina.

    E agora tivemos o caso moralmente abjecto da secretária de Estado do Tesouro, Alexandra Reis, com a sua saída da TAP com uma indemnização legal, mas indecente. Medina, que a escolhera este mês, sai também aparentemente incólume. As notícias dizem mesmo que ela se demitiu do cargo governamental “a pedido de Fernando Medina”.

    E numa nota do Ministério das Finanças diz-se que a demissão de Alexandra Reis visa “preservar a autoridade política do Ministério das Finanças num momento particularmente sensível na vida de milhões de portugueses”, tendo em consideração ser “essencial que (…) permaneça um referencial de estabilidade, de autoridade e de confiança dos cidadãos.”

    Troque-se, na última frase, Alexandra Reis por Fernando Medina, e esta passaria a ser verdadeira. De contrário, não. Mas seria uma violação dos “princípios” do ministro das Finanças que, em cada mês, mostra e demonstra ser um incompetente sempre-em-pé, que derruba a nossa esperança num mundo de decência.

  • Expresso beneficia de “preferência” da Biblioteca Nacional

    Expresso beneficia de “preferência” da Biblioteca Nacional

    Contrato assinado em Novembro prevê entrega até Fevereiro do próximo ano de 2.565 edições digitalizadas do semanário da Impresa, fundado em 1973, para substituir microfilmes já obsoletos. Directora-geral da Biblioteca Nacional diz não estarem previstos contratos similares com outros jornais, mas abre essa possibilidade se houver garantias de qualidade. Novo modelo de depósito legal já prevê agora entrega de exemplares digitalizados sem custos para o Estado.

    ESTA NOTÍCIA MERECEU UM DIREITO DE RESPOSTA, PUBLICADO VOLUNTARIAMENTE PELO PÁGINA UM, QUE PODE SER LIDO AQUI.


    A Biblioteca Nacional comprou directamente à Impresa a digitalização de todas as edições do Expresso desde a sua fundação, em 6 de Janeiro de 1973 até finais de 2021 para substituir as suas cópias em microfilme, considerada uma tecnologia já obsoleta. A aquisição, cujo contrato foi assinado em meados do mês passado, englobará um total de 553.010 imagens digitais, correspondentes à versão impressa de todos os cadernos de 2.565 edições daquele semanário, e terá um custo total de 135.990 euros, incluindo IVA.

    Esta opção de aquisição directa ao grupo fundado por Francisco Pinto Balsemão – e que contou com o actual presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, como um dos seus directores – será mais onerosa do que a digitalização de fotogramas de cerca de seis dezenas de títulos de jornais antigos, contratada entretanto à RFS-Telecomunicações em Junho passado.

    Sala de leitura principal da Biblioteca Nacional.

    De entre os periódicos antigos abrangidos por este contrato estão os jornais O Século (1880-1990), com 350.439 imagens; Novidades (1885-1974), com 172.597 imagens; Diário da Manhã (1931-1974), com 120.021 imagens; Diário dos Açores (a partir de 1870), com 106.311 imagens, Diário de Luanda (1936-1976), com 134.873 imagens; A Voz (1927-1974), com 101.900 imagens; e A Aurora (1910-1920), com 1.419 imagens.

    Nesse caso, a Biblioteca Nacional comprometeu-se a pagar 171.511 euros por um volume de páginas que variará ente 1.000.000 e 1.162.000 imagens. Ou seja, terá um custo unitário de entre 14,8 e 17 cêntimos. A Impresa receberá – por uma digitalização que, na verdade, já fez – um valor unitário de 24,6 cêntimos, ou seja, cerca de 45% a mais.

    A directora-geral da Biblioteca Nacional, Inês Cordeiro, justificou ao PÁGINA UM a opção por adquirir a digitalização integral em alternativa à digitalização dos microfilmes por “garantia de completude da cópia integral do jornal”, bem como pela “melhor qualidade da cópia digital”, que será a cores (ao contrário do microfilme, que é a preto e branco), e pela rapidez do processo. A Impresa garantiu a entrega das cópias digitais –até finais de Fevereiro de 2023, que depois poderão ser consultadas pelos leitores, mas exclusivamente nos terminais da Biblioteca Nacional, por razões de direitos de autor (que geralmente pertencem aos jornalistas e não aos donos dos jornais).

    Recorde-se que somente a partir de Janeiro de 2022 o Governo passou a permitir o envio de jornais tradicionais (impressos) em formato digital para efeitos de cumprimento da Lei do Depósito Legal, que até então exigia a entrega de 11 exemplares em papel por edição, a serem posteriormente distribuídos por determinadas bibliotecas do país. A legislação não previu a entrega gratuita de versões digitais de forma retroactiva, ou seja, de edições anteriores a este ano.

    A Biblioteca Nacional poderia optar por digitalizar os exemplares em papel que estão no seu acervo, mas essa tarefa arriscava causar algum grau deterioração. Aliás, uma grande parte dos exemplares de jornais antigos que sejam requisitados pelos leitores para consulta são já em microfilmes, que agora serão gradualmente substituídos por cópias digitais.

    O contrato que abrange a compra do Expresso digital abre também a possibilidade de outros grupos de media poderem encaixar receitas extraordinárias no caso de também já possuírem colecções digitalizadas das suas edições. Embora Inês Cordeiro adiante que “neste momento não se encontram previstos contratos similares [ao da Impresa] com outros órgãos de comunicação social”, diz, contudo, que “tal hipótese poderá vir a ser considerada caso se detete que o proprietário/ detentor dos direitos de determinado jornal impresso possui uma cópia digital do mesmo capaz de substituir o microfilme existente na Biblioteca Nacional” com as vantagens apresentadas pelo Expresso.

    Essa possibilidade, porém, terá um custo muito superior ao do Expresso se aplicado, por exemplo, a diários como o Público, que está a completar 33 anos de existência e conta já com quase 12 mil edições.


    N.D. Por lapso, escreveu-se inicialmente que uma empresa contratada pela Biblioteca Nacional se denominava RSF-Telecomunicações, quando, na realidade, se chama RFS-Telecomunicações.

  • China + imprensa tablóide = obscurantismo + especulação = desinformação

    China + imprensa tablóide = obscurantismo + especulação = desinformação


    No Índice da Liberdade de Imprensa dos Repórteres Sem Fronteiras (RSF), a China ocupa a 175ª posição, em 180 países, apenas à frente de Myanmar, Turquemenistão, Irão, Eritreia e Coreia do Norte.

    No seu site, a RSF salienta que a China “é a maior prisão mundial para jornalistas e o seu regime conduz uma campanha de repressão contra o jornalismo e o direito à informação em todo o Mundo”, estimando-se que estejam detidos 120 profissionais da imprensa. Além disso, o regime chinês “usa vigilância, coerção, intimidação e assédio para impedir que jornalistas independentes façam reportagens sobre questões que consideram sensíveis”. Os jornalistas independentes e mesmo autores de blogs “que se atrevam a relatar informações sensíveis são frequentemente colocados sob vigilância, perseguidos, detidos e, em alguns casos, torturados.” E ainda, “para receber e renovar suas carteiras de imprensa, os jornalistas devem baixar um aplicativo (…) que pode colectar seus dados pessoais.”

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    Portanto, sobre informação fidedigna das autoridades chinesas e sobre o que, na realidade, se passa naquele vasto território de mais de 1,4 mil milhões de habitantes, deveríamos estar conversados. Em assuntos políticos, em assuntos económicos, em assuntos sociais e… em assuntos de saúde.

    Em consequência, nos assuntos relacionados, hélas, com o SARS-CoV-2 e com a pandemia da covid-19.

    Ainda hoje, três anos após o “baptismo” do SARS-CoV-2 e da covid-19 – que terá surgido na cidade chinesa de Wuhan – desconhecemos qual a sua origem: se foi um salto zoonótico, através da passagem da doença de um outro animal para os humanos; ou se um acidente laboratorial. Por muito que a China e até a imprensa ocidental tenham sempre “preferido” a primeira hipótese, as autoridades chinesas nunca permitiram um acesso integral aos dados, e os Estados Unidos, a Organização Mundial da Saúde e os países europeus por arrasto, nunca estiveram muito interessados em desvendar o mistério.

    Atente-se, aliás, num artigo científico de um investigador italiano, Mario Coccia, publicado em Agosto passado na revista Environmental Research – e não é o único a abordar esta temática –, onde se aponta que “a probabilidade média de ocorrência de um grande desastre natural que gera em dois anos (…) mais de seis milhões de mortes no Mundo ou mais de 958.400 mortes nos Estados Unidos, como a covid-19, é infinitamente pequeno – ou seja, a probabilidade de ocorrência é um evento raro”. Na verdade, é aproximadamente 0%.

    woman in black jacket and black pants standing on gray concrete floor during daytime

    Ao invés, o mesmo investigador salienta que “muitos laboratórios e instituições, antes do surgimento do novo coronavírus, desenvolveram muitas pesquisas científicas sobre a relação entre morcegos e SARS-CoV, detectadas em uma pesquisa aprofundada no banco de dados on-line da Scopus”, acrescentando que “a nível global, desde 2005 (primeiro ano disponível na base de dados da Scopus, 2022) até 2018 (antes da emergência da COVID em 2019), existem 133 resultados documentais no tópico específico relativo a ‘Morcego e SARS-CoV’”.

    Desses estudos, atente-se, 75 foram desenvolvidos pela China (incluindo Hong Kong) e um pouco menos de meia centena nos Estados Unidos. O National Institute of Allergy and Infectious Diseases, liderado por Anthony Fauci, financiou 27 destes estudos; diversas entidades governamentais chinesas um total de 32. Nessa perspectiva, Coccia estima que a probabilidade de uma falha de biossegurança causar a saída de um vírus causador desta mortalidade é de entre 13% e 20%.

    Contudo, em Março do ano passado, a Organização Mundial de Saúde publicou um extenso documento de 120 páginas com as conclusões de uma investigação conjunta, previamente acordada, com as autoridades chinesas sobre a origem do SARS-CoV-2. E descartou logo a possibilidade de um acidente nos laboratórios existentes em Wuhan, dizendo taxativamente que é uma “hipótese extremamente improvável” [extremely unlikely pathway].

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    Como argumento contra essa possibilidade explicitou-se apenas, em menos de meia página, que “não há registo de vírus intimamente relacionados ao SARS-CoV-2 em qualquer laboratório antes de Dezembro de 2019, ou genomas que em combinação poderiam fornecer um genoma SARS-CoV-2”, adiantando que “os três laboratórios em Wuhan, trabalhando com diagnóstico de coronavírus (CoVs) e/ou isolamento de CoVs e desenvolvimento de vacinas, tinham instalações de nível de biossegurança de alta qualidade (BSL3 ou 4) que eram bem administradas, com uma equipa de saúde e programa de monitoramento sem relato de doença respiratória compatível com covid-19 durante as semanas e meses anteriores a Dezembro de 2019, e nenhuma evidência sorológica de infecção em trabalhadores por triagem sorológica específica para SARS-CoV-2”. Isto apesar do laboratório do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) de Wuhan se ter mudado em 2 de Dezembro de 2019 para perto do mercado onde oficialmente surgiu o primeiro surto.

    A verdade depende do poder. E foi nesta nebulosidade sobre as origens do SARS-CoV-2, nesta insustentável incerteza informativa, que nasceu e proliferou uma pandemia que colapsou o Mundo nos últimos três anos.

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    E é sobre a verdade imposta pelo poder que temos estado, todos nós, sujeitos. A verdade depende, cada vez mais de quem detém o poder para dizer : “isto é A verdade”; e não tanto da realidade. Sempre foi assim no passado, com os governos absolutos, com a Inquisição, com as ditaduras – desenganem-se os ingénuos se pensavam que num mundo maioritariamente democrático seria muito diferente.

    Ora, mas como alguém de bom senso pode acreditar em qualquer informação da China a respeito da covid-19? Seja ela proveniente de via oficial ou oficiosa ou de fontes não identificadas ou alegadamente anónimas.

    Um jornalista tem o dever de não publicar se não tiver uma confirmação segura; mais do que o direito de publicar. E isso nunca sucede quando se trata da China.

    Mesmo com a estratégia de covid zero, seria insensato julgar que o berço da pandemia tivesse uma mortalidade pela doença causada pelo SARS-CoV-2 de quatro óbitos por milhão de habitantes, sendo assim um dos países com menor letalidade do Mundo. Poder-se-ia acreditar nisto? Claro que não.

    person in white jacket wearing blue goggles

    Por exemplo, Portugal apresenta, neste momento, 2.536 mortes por milhão. Até nos dois países com políticas radicais mais próximas de uma covid zero chinesa – a Nova Zelândia e a Austrália, ambas ilhas – se conseguiu valores daquela ínfima ordem de grandeza. No primeiro daqueles países a taxa de letalidade é, actualmente, de 701 óbitos por milhão de habitantes; no segundo de 650.

    Mas, perante falsos números do governo chinês seria lícito especular sobre números da covid-19 naquele país e sobre a eficácia de aplicar da sua estratégia em países ocidentais, como sucedeu em 2020 e 2021? Não. Porém, foi isso que sucedeu: os lockdowns ocidentais “nasceram” na China, foram beber a um modelo que falseava descaradamente dados.

    Posto isto, ninguém de bom senso deveria assim acreditar em qualquer número oficial passado, presente ou futuro apresentado pela China.

    Porém, o obscurantismo chinês não pode ser agora, e só agora – para simplesmente ressuscitar o pânico –um salvo conduto para a imprensa ocidental cometer os mais desvairados atropelos aos princípios deontológicos e de rigor do jornalismo.

    Sobretudo nas últimas semanas – após a inédita contestação popular ter levado as autoridades chinesas a levantarem as restrições –, a comunicação social ocidental não tem parado de especular em redor da pandemia em território chinês. Até ao absurdo.

    man in brown coat wearing white face mask

    Sendo previsível que haja um aumento de casos positivos na China numa população que terá pouco imunidade natural – e sem que a eficácia da “sua” Sinovac tenha tido sequer a possibilidade de ser verificada no “terreno” –, não podem é os jornalistas especular com base em fontes não identificadas, que vão desde as alegadas filas de carros funerários com mortos até supostos extenuados trabalhadores de crematórios, e muito menos através dos habituais modelos matemáticos de-trazer-por-casa, onde surgem valores redondinhos para impressionar, mas sem qualquer contexto. E onde se pode sempre usar o “pode” no título e corpo da notícia.

    A especulação desbragada é, na verdade, desinformação, mesmo se se estiver perante um país com obstáculos à informação.

    Não se deve, por isso, como tem estado a fazer a imprensa mainstream, noticiar acontecimentos na China com base exclusivamente em fontes anónimas e em supostos documentos que nunca se verão nem será jamais suposto ver-se.

    Por exemplo, hoje, tanto o Financial Times como a Bloomberg – que, por sua vez, constituíram fonte de replicação pela generalidade da imprensa mundial, incluindo a portuguesa – garantem que só na passada terça-feira terão sido detectados 37 milhões de casos positivos em toda a China, ou seja, cerca de 2,6% da população.

    Trecho da notícia da Bloomberg sobre a incidência da covid-19 na China, com base numa minuta oficial que não apresenta fonte.

    Mas como se soube? A Bloomberg diz que soube através de minutas de um alto responsável de saúde, mas não as revela. Temos de acreditar. OK, acreditemos. Mas isso está ao nível da crença, similar à religião. O bom jornalismo não é uma questão de fé.

    Já o Financial Times, que indica 250 milhões de infectados este mês (que contrasta com apenas cerca de 75 mil novos casos desde 1 de Dezembro apontados pelas autoridades chinesas) garante que os números foram assumidos por Sun Yang, subdirector do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) chinês durante um briefing, mas a informação chegou através de “two people familiar with the matter” [duas fontes anónimas conhecedoras do assunto].

    Depois o jornalista escreve ainda que Sun disse, nessa reunião, que a taxa de transmissão da covid-19 estava ainda em crescimento e que “estimava que mais de metade da população em Pequim e Sichuan estava já infectada”.

    Foi mesmo isso que o senhor Sun que disse? Bom, o Financial Times afinal acrescenta que foram “the people briefed on the meeting” [pessoas que terão tido acesso à informação da reunião]. E mais adiante ainda se acrescenta que a “explosão” de casos assumidos pelo senhor Sun, no decurso do levantamento das restrições – que tinha mantido prevalências baixas, através de testes maciços, quarentenas obrigatórias e lockdowns draconianos – contrastava com os números oficiais baixos. Ah!, mas salientava ainda, enfim, que os números do senhor Sun “were provided in a closed-door meeting” [foram fornecidos numa reunião à porta fechada”.

    Trecho da notícia do Financial Times sobre os níveis de infecção na China.

    Ou seja, tudo, tudo, tudo, fontes anónimas – por três vezes o Financial Times sustenta um número de suma relevância, que sabia vir a ser disseminada por milhares de órgãos de comunicação social, sem um documento, baseada em alegadas informações não confirmáveis. Tudo isto sem um documento. Tudo isto tão passível de ser falso como falsos serão os números oficiais chineses.

    Tudo isto para concluir que este tipo de notícias não é informação; é especulação.

    Este tipo de especulação pode bem ser tão falsa como falsa sempre foi a informação vinda da China sobre a pandemia. E o jornalismo não deve responder à falsidade com dados não confirmáveis. De contrário, vale-tudo. E o vale-tudo não deve valer num mundo democrático, porque senão é bastante arranjar “two people familiar with the matter” ou obter declarações de “the people briefed on the meeting” ou sacar informações que “were provided in a closed-door meeting” para, por exemplo, comprovar sem duvidar que o PÁGINA UM faz mau jornalismo. Ou que, enfim, o António Costa é um péssimo primeiro-ministro.

  • O fascínio pelas ruínas

    O fascínio pelas ruínas

    título

    Edifícios abandonados em Portugal

    autor

    RICARDO RAIMUNDO

    Editora (Edição)

    Manuscrito (novembro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Na última década, Ricardo Raimundo, agora com 41 anos, tem-se dedicado a divulgar, através da escrita de livros, vários e interessantes episódios da nossa vasta História. Começou em 2011, com Vidas surpreendentes, mortes insólitas na História de Portugal , continuous dois anos mais tarde com Escandalos da monarquia portuguesa e em 2014 com Os maus na História de Portugal , todos editados pela Esfera do Livro.

    A partir de 2016 mudou de editora, para a Manuscrito, mas não de temáticas, sempre focadas em episódios mais ou menos conhecidos, todos rocambolescos, da nossa historiografia. Em fevereiro passado tinha publicado, na Manuscrito, a sua quarta obra nesta editora: Enigmas e mistérios da História de Portugal.

    Agora, com Edifícios abandonados em Portugal , Ricardo Raimundo – que tem uma licenciatura em Filosofia e um mestrado em História Moderna – inflete de tema, mas não completamente. Na verdade, como confessa na introdução, neste novo livro dá asas ao seu fascínio sobre edifícios em ruínas ou abandonados, que lhe nasceu desde a infância, quando viajava com os pais e avós até Trás-os-Montes. Não por acaso, um dos 15 edifícios retratados – dir-se-ia esventrados no sentido de revelado – é o Solar dos Pimentéis, um palacete do século XVIII da aldeia de Castelo Branco, no concelho de Mogadouro, que tem a particularidade de possuir 365 portas e janelas.

    O tema dos edifícios abandonados tem sido registrado – nem sempre com bons propósitos (eg, vandalismo) – um crescente interesse e curiosidade, por mor da aventura, mas esta obra de Ricardo Raimundo não tem, como propósito, mostrar através de imagens e fotografias aquilo que o tempo, esse grande destruidor, e a ação humana, ainda maior do que aquele, causaram em espaços outra de riqueza e esplendor.

    De facto, embora todos os 15 edifícios tenham uma fotografia actual, a intenção de Ricardo Raimundo foi tão-só (e é muito bom nisso) contar a história, com todos os pormenores, da origem e evolução de cada um dos edifícios, e seus protagonistas, bem como as causas que levaram ao seu abandono e decadência, que, em muitos casos ainda se mantém, ou que levaram mesmo até à quase ruína.

    Num estilo descomprometido, quase jornalístico, mas com rigor, apresentando uma quantidade colossal de detalhes interessantíssimos, temos aqui um livro de leitura bastante atractiva, sem sofrer de qualquer mácula de escrita hermética, como muitas vezes sucede em livros de divulgação escritos por especialistas em História . No entanto, a atender à longa lista bibliográfica – não apenas histórica, mas também da imprensa, para abordar o passado mais recente dos edifícios –, nota-se que Ricardo Raimundo fez um meticuloso trabalho de investigação.

    Retratando, como se disse, 15 edifícios (e não apenas de habitação), também equilibrados se encontram a sua distribuição geográfica: Lisboa (dois, o Palácio da Quinta das Águias e o Pavilhão Carlos Lopes), Mogadouro, Caldas da Rainha, Carregal do Sal , serra da Arrábida, Porto, Coina, Braga, Caramulo, Sabugal, Vila Franca de Xira, Ponta Delgada, Almada e Sintra.

    Lendo um “edifício” por dia – tarefa exequível, por enquanto cada capítulo tem entre uma dezena e duas dezenas de páginas – ficará a saber o bem que lhe fará um pouco de História e curiosidades, sobretudo quando se cruzar, um destes dias, com algum deles.

    Em todo o caso, resta uma sensação de incompletude: este tema mereceria uma edição mais completa, com maior número de edifícios e uma apurada “cobertura” fotográfica (e iconográfica, se possível) para se chegar à perfeição. Assim, sabe apenas a aperitivo, mas dos excelentes.

  • A prodigiosa vida e os estupendos milagres do verdadeiro Pai Natal

    A prodigiosa vida e os estupendos milagres do verdadeiro Pai Natal

    O verdadeiro Pai Natal não nasceu na Lapónia, mas sim na Anatólia, actual Turquia. Tendo vivido nos séculos III e IV, o arcebispo de Myra de seu nome Nicolau andou por terrenos e tempos atribulados, ao longo do antigo Império Romano, que só com o imperador Constantino se tornaria cristão. A sua fama de benemérito inspirou em 1823 um professor norte-americano a “criar” o Pai Natal, que viria depois a ser aproveitado pela Coca Cola para uma campanha de marketing. Mais fantasiosa ainda é, contudo, a sua hagiografia – isto é, a sua vida em livro – escrita por um padre português do século XVIII, João Antunes Monteiro, prior da alfacinha freguesia de São Nicolau e influente conselheiro do rei D. João V. Nem contada nem lida se acredita.


    Na véspera de Natal de 1822, o norte-americano Clement Moore, professor de grego contou aos seus filhos, através de um poema, a história de um certo Nicolau, por sinal santo homem da Igreja Católica do século IV, que viajava num trenó puxado por renas, desde o pólo Norte, e distribuía brinquedos pelas crianças, enfiando-se pelas chaminés.

    A fábula pegaria bem de estaca nas décadas seguintes, alimentando-se também de aspectos do folclore alemão e holandês, que então celebravam a data da morte de São Nicolau – dia 6 de Dezembro – com a oferta de prendas.

    Daí até se encontrar uma figura para o mais famoso e aguardado velhinho foi um pulo. Na segunda metade do século XIX, vários cartoonistas criariam uma iconografia, sempre em evolução: primeiro a preto e branco, mais tarde, já na terceira década do século XX – através de uma campanha de marketing da Coca Cola – com as suas inconfundíveis roupas vermelhas e brancas.

    As primeiras versões do Santa Claus – a alteração fonética da fusão do alemão Sankt Niklaus e do holandês Sinterklaas – até foram pouco politicamente correctas: o velhinho, mais do que bonacheirão – na verdade, a barriga era descomunal –, promovia o tabagismo.

    Os primeiros cartoons – desenhados por T. C. Boyd, F. O. Darley e, sobretudo, pelo anticlerical Thomas Nast – apresentavam-no quase invariavelmente com um fumegante cachimbo nos beiços.

    A Igreja Católica, claro, não apreciou muito. E se, porventura, os autores da brincadeira tivessem vivido um século antes teriam tido problemas. Parodiar um santo do quilate de Nicolau de Myra seria então inadmissível; heresia, no mínimo, com direito, eventualmente, ao crepitar de lenha.

     Ilustração de Thomas Nast de 1881 do Pai Natal

    Se São Nicolau parece ter sido, de facto, um bom filantropo, as suas vidas – a terrena e a celestial – mostram que foi homem que, embora piedoso, não andou por aqui em grandes brincadeiras. O próprio diabo que o diga, que supostamente sofreu amarguras diversas sempre que com ele se cruzou. Pelo menos é o que mostram os biógrafos deste santo, em escritos fantásticos disseminados ao longo dos séculos. Uma dessas biografias – que bebeu inspiração a vários sermões seculares – até é bem portuguesa; publicada em 1720, pelo então prior da paróquia lisboeta de São Nicolau, João Antunes Monteiro.

    Este padre foi, curiosamente, uma figura preponderante na Corte lusitana da primeira metade do século XVIII. Era para o rei D. João V, aquilo que porventura Vítor Melícias foi para o antigo primeiro-ministro António Guterres.

    Ou seja, o prior da alfacinha paróquia de São Nicolau – no centro da Baixa, que foi freguesia até 2013, estando agora integrada na de Santa Maria Maior – era um dos conselheiros predilecto do Magnânimo, não apenas espiritual, mas também em negócios de Estado. Por exemplo, chegou a desempenhar funções de gestão em algumas fases da construção do Aqueduto das Águas Livres. A sua influência no Terreiro do Paço foi tanta que não admira que a dita biografia do nosso Pai Natal – pomposamente intitulada Breve compêndio da prodigiosa vida e estupendos milagres do glorioso Arcebispo de Myra S. Nicolao Taumaturgo, advogado universal de todos os peccadores – tivesse sido oferecida à Virgem Maria pela soberana, augusta e excelsa mão do magnânimo, generoso, esclarecido e sempre memorável monarca D. João V Nosso Senhor”, conforme consta no frontispício. Portanto, estamos perante uma obra escrita para ser levada a sério. Na verdade, muito a sério – naquela época, claro.

    A linguagem usada pelo padre João Antunes Monteiro na biografia de São Nicolau torna-se deliciosa – alguns poderão dizer delirante – pela forma como descreve, em minuciosos e mirabolantes detalhes, a vida daquele santo. Embora não existam quaisquer documentos, as biografias apontam para o ano de 270 depois de Cristo, na antiga cidade marítima de Patara, uma região de Lycia, na actual Turquia. Na Anatólia, portanto – um tanto afastado da comercial aldeia do Pai Natal, na Lapónia.

    E por falar em Jesus Cristo, saiba-se que as hagiografias dizem que São Nicolau teve um nascimento, supostamente a 15 de Março, com contornos semelhantes. Com efeito, remetendo para a biografia do padre João Antunes Monteiro, os pais do santo – Epifânio e Joana – “sendo casados em muita paz, concórdia e santos costumes” desejavam um filho. E tantas instâncias fizeram que a Virgem Maria “apresentou no Consistório da Santíssima Trindade” aqueles desejos paternais, pelo que, pouco tempo depois, “lhe enviou o Senhor do Céu um anjo que os certificou (…) que brevemente haviam de ter um filho muito mais santo e com muito mais préstimo para o serviço de Deus do que tinham desejado”. E assinalou-lhes ainda o dia e hora da chegada.

    A Coca Cola “apropriou-se” do Pai Natal na década de 20 do século XX, dando-lhe o “formato” que hoje conhecemos.

    O recém-nascido parece ter dado sinais de evidente santidade logo que viu a luz do dia. Estava a parteira para o lavar e “ele se pôs de pé com muita notável firmeza (…), com os olhos postos no Céu e as mãos erguidas e postas sobre os peitos”. São Vicente Ferrer – um clérigo do século XIV, actual patrono da Comunidade de Valência – diria que aquele prematuro acto era de agradecimento a Deus por “o ter feito criatura racional à sua imagem e semelhança e porque o tinha livrado dos perigos que poderia ter dentro do cárcere do ventre de sua mãe”.

    Foi por este prodígio que São Nicolau se tornou também, em muitos países, o santo protector dos partos difíceis. Depois disto, o facto de ele, por “mais meiguices que sua mãe lhe fazia para tomar o peito”, ter jejuado, com precisão, às quartas e sextas-feiras, já não pode causar muita admiração ao mais cépticos…

    O seu primeiro grande milagre estava, porém, reservado para a idade escolar, antes de completar os sete anos, segundo a biografia setecentista. Como os pais eram ricos, costumava ele levar dinheiro para distribuir pelos pobres antes de entrar na sala de aulas. Consta que, em certo dia, uma pobre aleijada chegou atrasada, devido à deformidade, e lastimou-se da sorte. Pois bem, o pequeno Nicolau condoeu-se e “levantando o coração a Deus”, fez o sinal da cruz sobre a cabeça da rapariga e disse: “Em nome do Senhor Jesus Nazareno, levanta-te e anda”. O resultado, claro, foi imediato!

    Mas foi em artes da ressurreição que Nicolau de Myra deu cartas, de acordo com os seus biógrafos. E aqui bateu mesmo Jesus Cristo, que apenas fez Lázaro regressar à vida. O primeiro lote de ressuscitados ocorreu ainda na sua adolescência, durante uma peste na região de Lycia. O padre João Antunes Monteiro diz mesmo que “Deus o conservava para ressuscitar mortos” ou coloca como hipótese que “temeu a morte ter encontros com quem a podia consumir e sepultar”.

    Mesmo assim, não teve dotes para salvar os progenitores, embora o prior lusitano informe que a Virgem Maria “lhe limpava as lágrimas e o consolava, mostrando-lhe no Céu as almas dos seus pais entre os coros dos Bem-Aventurados.

    Herdada a fortuna dos pais, Nicolau pôde então dar largas à sua costela filantrópica, que está na base da fábula do Pai Natal. O seu lusitano biógrafo destaca sobretudo a história de um velho viúvo com três filhas donzelas, a quem o demónio tentava, a expô-las ao perigo de perder a castidade” – que é, como quem diz, a prostituí-las.

    Biografia do padre João Antunes Monteiro, publicada em 1720, prior da freguesia de São Nicolau, então pertencente a Lisboa Ocidental.

    Assim, certa noite, Nicolau decidiu deitar anonimamente, pela janela da casa do velho, uma bolsa de ouro suficiente para pagar o dote da primeira filha. Na segunda noite, repetiu a dose, para outra filha. E o mesmo sucedeu na terceira, para a última.

    No entanto, desta vez, o velho fez uma espera e surpreendeu o benemérito, pelo que Nicolau fez-lhe prometer que não divulgaria a sua acção. A manutenção do segredo custou alguns dissabores ao velho, porque o seu tão repentino enriquecimento causou murmuração entre a vizinhança. Como é normal, estes “mais depressa se inclinaram a julgar mal do que bem”, pelo que, para salvar a honra do velho, Nicolau de Myra se viu na contingência de se denunciar como o obsequiador.

    A sua entrada num mosteiro, em data desconhecia, teve como consequência um aumento dos seus milagres, que se sucederam em catadupa, quase sempre tendo o demónio por inimigo. Os seus sucessivos exorcismos até levam mesmo o diabo, certa vez, a lamentar-se: “Ai que Nicolau me vence em tudo e não me deixa executar meus intentos”, assim relata o padre João Antunes Monteiro.

    E como o dito belzebu já não conseguia endemoninhar ninguém, decidiu, noutra ocasião, incendiar uma cidade, mas Nicolau interveio mais uma vez, pelo que o fogo se extinguiu sem deixar lesão alguma nos edifícios. À conta disto, Nicolau também se tornou o padroeiro contra os incêndios urbanos.

    Pouco tempo depois, faria ele uma viagem até à Terra Santa, seguindo os passos de Cristo, tendo os anjos como cicerones, segundo o seu biógrafo. E pelo caminho foi curando enfermos, cegos, surdos, paralíticos e um ou outro endemoninhado. Regressado ao seu mosteiro, teve tempo ainda para multiplicar um pão para dar de comer a 70 operários que estavam construindo uma igreja. E como estes, mesmo de barriga cheia, não conseguiram mover uma grande coluna, Nicolau benzeu a gigantesca pedra e, com a ajuda de apenas dois clérigos, colocou-a no sítio exacto.

    Pouco depois de ter sido nomeado arcebispo de Myra – cargo para o qual tinha recebido três premonições, a última das quais envolvendo Cristo –, houve de obrar mais uma fantástica ressurreição. Dois estudantes de Atenas, em peregrinação, acabaram na salgadeira de um estalajadeiro, cortados em postas. Nicolau, sendo avisado pelo Espírito Santo, obrigou o estalajadeiro a mostrar-lhe os despojos e, juntando-os, ressuscitou os jovens.

    Situação similar terá ocorrido anos mais tarde, numa viagem até Roma. Neste caso, Nicolau descobriu a malvadez de outro estalajadeiro que lhe apresentou um prato de carne retirada de três mancebos, em vez do atum que lhe pedira. Nesta mirabolante viagem, conforme a descrição do padre João Antunes Monteiro, até os animais beneficiaram das suas artes.

    Passagem da biografia onde se destaca a acção de oferta “furtiva” de São Nicolau de Myra.

    Numa noite, perto de Bari, mais outro estalajadeiro foi tentado pelo demónio e, porque o arcebispo de Myra e o seu companheiro fizeram parca despesa, cortou as cabeças dos burros que os transportavam. Na manhã seguinte, ainda um pouco antes da aurora, perante aquele espectáculo, Nicolau mandou coser as cabeças aos respectivos corpos dos burros – ressuscitaram, claro. Com um pequeno percalço nesta operação sem luz, quase às cegas: os burros ficaram com as cabeças trocadas. Ou seja, o burro que era branco ficou com a cabeça do burro que era preto; e ao preto, claro, restou-lhe a cabeça do branco.

    Ainda antes destas aventuras, Nicolau chegou a ser perseguido, preso e mais tarde deportado, durante a época de Lícinio, que liderou o Império Bizantino entre os anos de 313 e 324, quando então foi derrotado por Constantino, o Grande, que concedeu liberdade religiosa aos cristãos. A partir daí tudo se alterou para Nicolau de Myra; mandou arrasar templos pagãos – em especial os dedicados a Diana –, substituindo-os por igrejas. No meio deste processo, a biografia do nosso prior lisboeta diz que os demónios se lamentavam e berravam pelos ares, “testemunhando que iam vencidos pela virtude de Nicolau”.

    Na biografia escrita pelo padre João Antunes Monteiro existem mais uns quantos prodígios obrados por Nicolau de Myra até à sua morte aos 65 anos, supostamente no dia 6 de Dezembro – aliás, a data em que o calendário litúrgico e alguns países o evocam. A causa é desconhecida, mas não terá sido mártir.

    Cripta na igreja de Bari, onde estão depositadas as ossadas de São Nicolau.

    Se a vida lhe cessou, os milagres não. Daí que a segunda metade do livro do padre João Antunes Monteiro, a partir da página 113, seja ocupada a detalhar a infindável quantidade de curas milagrosas e mais ressurreições, por via do maná que saía ininterruptamente do seu corpo, enterrado na zona de Myra.

    Na verdade, eram dois, os manás: um que lhe brotava da cabeça, com a consistência de óleo; outro que lhe escorria dos pés, com aspecto aquoso. Na lista de supostos beneficiados pelos poderes desse santo maná, conforme o relato do seu lusitano biógrafo, constam mesmo duas portuguesas, que no início do século XVIII sofriam de supostas febres malignas.

    Mas, nessa altura, as ossadas de Nicolau já há muito se encontravam em Bari, na Itália. Em 1087, umas dezenas de marinheiros e clérigos conseguiram, no meio de algumas peripécias, roubar as relíquias do santo da sua sepultura original em Myra, região entretanto perdida em 1071 pelo cristão Império Bizantino, no decurso da batalha de Manzikert, para o islâmico Império Seljúcida.

    toddler in black sweater standing in front of Santa Claus

    A chegada desta comitiva com as santas ossadas a terras italianas foi celebrada ao som de sinos, tambores e clarins. Mas essa alegria acabou em tragédia: como o bispo de Bari e os aventureiros não se entenderam quanto ao local para depositar as ossadas, entraram em vias de facto. E daí a pouco “houve pendência, e nela mortes e feridos”.

    O nosso biógrafo lusitano do Pai Natal não esclarece se, após esta estapafúrdia batalha campal, houve ressurreições por intercessão de São Nicolau. Apenas informa que as ossadas acabaram transladadas pelo papa Urbano II para a actual Igreja de São Nicolau. Depois, a biografia é rematada com uma novena. Amen


    N.D. Uma primícia versão deste artigo foi publicada no final de Dezembro de 2006 na extinta revista GR-Grande Reportagem.

  • A prodigiosa vida e os estupendos milagres do verdadeiro Pai Natal

    A prodigiosa vida e os estupendos milagres do verdadeiro Pai Natal

    O verdadeiro Pai Natal não nasceu na Lapónia, mas sim na Anatólia, actual Turquia. Tendo vivido nos séculos III e IV, o arcebispo de Myra de seu nome Nicolau andou por terrenos e tempos atribulados, ao longo do antigo Império Romano, que só com o imperador Constantino se tornaria cristão. A sua fama de benemérito inspirou em 1823 um professor norte-americano a “criar” o Pai Natal, que viria depois a ser aproveitado pela Coca Cola para uma campanha de marketing. Mais fantasiosa ainda é, contudo, a sua hagiografia – isto é, a sua vida em livro – escrita por um padre português do século XVIII, João Antunes Monteiro, prior da alfacinha freguesia de São Nicolau e influente conselheiro do rei D. João V. Nem contada nem lida se acredita.


    Na véspera de Natal de 1822, o norte-americano Clement Moore, professor de grego contou aos seus filhos, através de um poema, a história de um certo Nicolau, por sinal santo homem da Igreja Católica do século IV, que viajava num trenó puxado por renas, desde o pólo Norte, e distribuía brinquedos pelas crianças, enfiando-se pelas chaminés.

    A fábula pegaria bem de estaca nas décadas seguintes, alimentando-se também de aspectos do folclore alemão e holandês, que então celebravam a data da morte de São Nicolau – dia 6 de Dezembro – com a oferta de prendas.

    Daí até se encontrar uma figura para o mais famoso e aguardado velhinho foi um pulo. Na segunda metade do século XIX, vários cartoonistas criariam uma iconografia, sempre em evolução: primeiro a preto e branco, mais tarde, já na terceira década do século XX – através de uma campanha de marketing da Coca Cola – com as suas inconfundíveis roupas vermelhas e brancas.

    As primeiras versões do Santa Claus – a alteração fonética da fusão do alemão Sankt Niklaus e do holandês Sinterklaas – até foram pouco politicamente correctas: o velhinho, mais do que bonacheirão – na verdade, a barriga era descomunal –, promovia o tabagismo.

    Os primeiros cartoons – desenhados por T. C. Boyd, F. O. Darley e, sobretudo, pelo anticlerical Thomas Nast – apresentavam-no quase invariavelmente com um fumegante cachimbo nos beiços.

    A Igreja Católica, claro, não apreciou muito. E se, porventura, os autores da brincadeira tivessem vivido um século antes teriam tido problemas. Parodiar um santo do quilate de Nicolau de Myra seria então inadmissível; heresia, no mínimo, com direito, eventualmente, ao crepitar de lenha.

     Ilustração de Thomas Nast de 1881 do Pai Natal

    Se São Nicolau parece ter sido, de facto, um bom filantropo, as suas vidas – a terrena e a celestial – mostram que foi homem que, embora piedoso, não andou por aqui em grandes brincadeiras. O próprio diabo que o diga, que supostamente sofreu amarguras diversas sempre que com ele se cruzou. Pelo menos é o que mostram os biógrafos deste santo, em escritos fantásticos disseminados ao longo dos séculos. Uma dessas biografias – que bebeu inspiração a vários sermões seculares – até é bem portuguesa; publicada em 1720, pelo então prior da paróquia lisboeta de São Nicolau, João Antunes Monteiro.

    Este padre foi, curiosamente, uma figura preponderante na Corte lusitana da primeira metade do século XVIII. Era para o rei D. João V, aquilo que porventura Vítor Melícias foi para o antigo primeiro-ministro António Guterres.

    Ou seja, o prior da alfacinha paróquia de São Nicolau – no centro da Baixa, que foi freguesia até 2013, estando agora integrada na de Santa Maria Maior – era um dos conselheiros predilecto do Magnânimo, não apenas espiritual, mas também em negócios de Estado. Por exemplo, chegou a desempenhar funções de gestão em algumas fases da construção do Aqueduto das Águas Livres. A sua influência no Terreiro do Paço foi tanta que não admira que a dita biografia do nosso Pai Natal – pomposamente intitulada Breve compêndio da prodigiosa vida e estupendos milagres do glorioso Arcebispo de Myra S. Nicolao Taumaturgo, advogado universal de todos os peccadores – tivesse sido oferecida à Virgem Maria pela soberana, augusta e excelsa mão do magnânimo, generoso, esclarecido e sempre memorável monarca D. João V Nosso Senhor”, conforme consta no frontispício. Portanto, estamos perante uma obra escrita para ser levada a sério. Na verdade, muito a sério – naquela época, claro.

    A linguagem usada pelo padre João Antunes Monteiro na biografia de São Nicolau torna-se deliciosa – alguns poderão dizer delirante – pela forma como descreve, em minuciosos e mirabolantes detalhes, a vida daquele santo. Embora não existam quaisquer documentos, as biografias apontam para o ano de 270 depois de Cristo, na antiga cidade marítima de Patara, uma região de Lycia, na actual Turquia. Na Anatólia, portanto – um tanto afastado da comercial aldeia do Pai Natal, na Lapónia.

    E por falar em Jesus Cristo, saiba-se que as hagiografias dizem que São Nicolau teve um nascimento, supostamente a 15 de Março, com contornos semelhantes. Com efeito, remetendo para a biografia do padre João Antunes Monteiro, os pais do santo – Epifânio e Joana – “sendo casados em muita paz, concórdia e santos costumes” desejavam um filho. E tantas instâncias fizeram que a Virgem Maria “apresentou no Consistório da Santíssima Trindade” aqueles desejos paternais, pelo que, pouco tempo depois, “lhe enviou o Senhor do Céu um anjo que os certificou (…) que brevemente haviam de ter um filho muito mais santo e com muito mais préstimo para o serviço de Deus do que tinham desejado”. E assinalou-lhes ainda o dia e hora da chegada.

    A Coca Cola “apropriou-se” do Pai Natal na década de 20 do século XX, dando-lhe o “formato” que hoje conhecemos.

    O recém-nascido parece ter dado sinais de evidente santidade logo que viu a luz do dia. Estava a parteira para o lavar e “ele se pôs de pé com muita notável firmeza (…), com os olhos postos no Céu e as mãos erguidas e postas sobre os peitos”. São Vicente Ferrer – um clérigo do século XIV, actual patrono da Comunidade de Valência – diria que aquele prematuro acto era de agradecimento a Deus por “o ter feito criatura racional à sua imagem e semelhança e porque o tinha livrado dos perigos que poderia ter dentro do cárcere do ventre de sua mãe”.

    Foi por este prodígio que São Nicolau se tornou também, em muitos países, o santo protector dos partos difíceis. Depois disto, o facto de ele, por “mais meiguices que sua mãe lhe fazia para tomar o peito”, ter jejuado, com precisão, às quartas e sextas-feiras, já não pode causar muita admiração ao mais cépticos…

    O seu primeiro grande milagre estava, porém, reservado para a idade escolar, antes de completar os sete anos, segundo a biografia setecentista. Como os pais eram ricos, costumava ele levar dinheiro para distribuir pelos pobres antes de entrar na sala de aulas. Consta que, em certo dia, uma pobre aleijada chegou atrasada, devido à deformidade, e lastimou-se da sorte. Pois bem, o pequeno Nicolau condoeu-se e “levantando o coração a Deus”, fez o sinal da cruz sobre a cabeça da rapariga e disse: “Em nome do Senhor Jesus Nazareno, levanta-te e anda”. O resultado, claro, foi imediato!

    Mas foi em artes da ressurreição que Nicolau de Myra deu cartas, de acordo com os seus biógrafos. E aqui bateu mesmo Jesus Cristo, que apenas fez Lázaro regressar à vida. O primeiro lote de ressuscitados ocorreu ainda na sua adolescência, durante uma peste na região de Lycia. O padre João Antunes Monteiro diz mesmo que “Deus o conservava para ressuscitar mortos” ou coloca como hipótese que “temeu a morte ter encontros com quem a podia consumir e sepultar”.

    Mesmo assim, não teve dotes para salvar os progenitores, embora o prior lusitano informe que a Virgem Maria “lhe limpava as lágrimas e o consolava, mostrando-lhe no Céu as almas dos seus pais entre os coros dos Bem-Aventurados.

    Herdada a fortuna dos pais, Nicolau pôde então dar largas à sua costela filantrópica, que está na base da fábula do Pai Natal. O seu lusitano biógrafo destaca sobretudo a história de um velho viúvo com três filhas donzelas, a quem o demónio tentava, a expô-las ao perigo de perder a castidade” – que é, como quem diz, a prostituí-las.

    Biografia do padre João Antunes Monteiro, publicada em 1720, prior da freguesia de São Nicolau, então pertencente a Lisboa Ocidental.

    Assim, certa noite, Nicolau decidiu deitar anonimamente, pela janela da casa do velho, uma bolsa de ouro suficiente para pagar o dote da primeira filha. Na segunda noite, repetiu a dose, para outra filha. E o mesmo sucedeu na terceira, para a última.

    No entanto, desta vez, o velho fez uma espera e surpreendeu o benemérito, pelo que Nicolau fez-lhe prometer que não divulgaria a sua acção. A manutenção do segredo custou alguns dissabores ao velho, porque o seu tão repentino enriquecimento causou murmuração entre a vizinhança. Como é normal, estes “mais depressa se inclinaram a julgar mal do que bem”, pelo que, para salvar a honra do velho, Nicolau de Myra se viu na contingência de se denunciar como o obsequiador.

    A sua entrada num mosteiro, em data desconhecia, teve como consequência um aumento dos seus milagres, que se sucederam em catadupa, quase sempre tendo o demónio por inimigo. Os seus sucessivos exorcismos até levam mesmo o diabo, certa vez, a lamentar-se: “Ai que Nicolau me vence em tudo e não me deixa executar meus intentos”, assim relata o padre João Antunes Monteiro.

    E como o dito belzebu já não conseguia endemoninhar ninguém, decidiu, noutra ocasião, incendiar uma cidade, mas Nicolau interveio mais uma vez, pelo que o fogo se extinguiu sem deixar lesão alguma nos edifícios. À conta disto, Nicolau também se tornou o padroeiro contra os incêndios urbanos.

    Pouco tempo depois, faria ele uma viagem até à Terra Santa, seguindo os passos de Cristo, tendo os anjos como cicerones, segundo o seu biógrafo. E pelo caminho foi curando enfermos, cegos, surdos, paralíticos e um ou outro endemoninhado. Regressado ao seu mosteiro, teve tempo ainda para multiplicar um pão para dar de comer a 70 operários que estavam construindo uma igreja. E como estes, mesmo de barriga cheia, não conseguiram mover uma grande coluna, Nicolau benzeu a gigantesca pedra e, com a ajuda de apenas dois clérigos, colocou-a no sítio exacto.

    Pouco depois de ter sido nomeado arcebispo de Myra – cargo para o qual tinha recebido três premonições, a última das quais envolvendo Cristo –, houve de obrar mais uma fantástica ressurreição. Dois estudantes de Atenas, em peregrinação, acabaram na salgadeira de um estalajadeiro, cortados em postas. Nicolau, sendo avisado pelo Espírito Santo, obrigou o estalajadeiro a mostrar-lhe os despojos e, juntando-os, ressuscitou os jovens.

    Situação similar terá ocorrido anos mais tarde, numa viagem até Roma. Neste caso, Nicolau descobriu a malvadez de outro estalajadeiro que lhe apresentou um prato de carne retirada de três mancebos, em vez do atum que lhe pedira. Nesta mirabolante viagem, conforme a descrição do padre João Antunes Monteiro, até os animais beneficiaram das suas artes.

    Passagem da biografia onde se destaca a acção de oferta “furtiva” de São Nicolau de Myra.

    Numa noite, perto de Bari, mais outro estalajadeiro foi tentado pelo demónio e, porque o arcebispo de Myra e o seu companheiro fizeram parca despesa, cortou as cabeças dos burros que os transportavam. Na manhã seguinte, ainda um pouco antes da aurora, perante aquele espectáculo, Nicolau mandou coser as cabeças aos respectivos corpos dos burros – ressuscitaram, claro. Com um pequeno percalço nesta operação sem luz, quase às cegas: os burros ficaram com as cabeças trocadas. Ou seja, o burro que era branco ficou com a cabeça do burro que era preto; e ao preto, claro, restou-lhe a cabeça do branco.

    Ainda antes destas aventuras, Nicolau chegou a ser perseguido, preso e mais tarde deportado, durante a época de Lícinio, que liderou o Império Bizantino entre os anos de 313 e 324, quando então foi derrotado por Constantino, o Grande, que concedeu liberdade religiosa aos cristãos. A partir daí tudo se alterou para Nicolau de Myra; mandou arrasar templos pagãos – em especial os dedicados a Diana –, substituindo-os por igrejas. No meio deste processo, a biografia do nosso prior lisboeta diz que os demónios se lamentavam e berravam pelos ares, “testemunhando que iam vencidos pela virtude de Nicolau”.

    Na biografia escrita pelo padre João Antunes Monteiro existem mais uns quantos prodígios obrados por Nicolau de Myra até à sua morte aos 65 anos, supostamente no dia 6 de Dezembro – aliás, a data em que o calendário litúrgico e alguns países o evocam. A causa é desconhecida, mas não terá sido mártir.

    Cripta na igreja de Bari, onde estão depositadas as ossadas de São Nicolau.

    Se a vida lhe cessou, os milagres não. Daí que a segunda metade do livro do padre João Antunes Monteiro, a partir da página 113, seja ocupada a detalhar a infindável quantidade de curas milagrosas e mais ressurreições, por via do maná que saía ininterruptamente do seu corpo, enterrado na zona de Myra.

    Na verdade, eram dois, os manás: um que lhe brotava da cabeça, com a consistência de óleo; outro que lhe escorria dos pés, com aspecto aquoso. Na lista de supostos beneficiados pelos poderes desse santo maná, conforme o relato do seu lusitano biógrafo, constam mesmo duas portuguesas, que no início do século XVIII sofriam de supostas febres malignas.

    Mas, nessa altura, as ossadas de Nicolau já há muito se encontravam em Bari, na Itália. Em 1087, umas dezenas de marinheiros e clérigos conseguiram, no meio de algumas peripécias, roubar as relíquias do santo da sua sepultura original em Myra, região entretanto perdida em 1071 pelo cristão Império Bizantino, no decurso da batalha de Manzikert, para o islâmico Império Seljúcida.

    A chegada desta comitiva com as santas ossadas a terras italianas foi celebrada ao som de sinos, tambores e clarins. Mas essa alegria acabou em tragédia: como o bispo de Bari e os aventureiros não se entenderam quanto ao local para depositar as ossadas, entraram em vias de facto. E daí a pouco “houve pendência, e nela mortes e feridos”. O nosso biógrafo lusitano do Pai Natal não esclarece se, após esta estapafúrdia batalha campal, houve ressurreições por intercessão de São Nicolau. Apenas informa que as ossadas acabaram transladadas pelo papa Urbano II para a actual Igreja de São Nicolau. Depois, a biografia é rematada com uma novena. Amen


    N.D. Uma primícia versão deste artigo foi publicada no final de Dezembro de 2006 na extinta revista GR-Grande Reportagem.

  • Este ano contam-se nove meses com mais de 10.000 mortes; antes da pandemia havia dois ou três em cada 12 meses

    Este ano contam-se nove meses com mais de 10.000 mortes; antes da pandemia havia dois ou três em cada 12 meses

    Nos últimos 36 meses registam-se 19 meses com mais de 10.000 óbitos, uma situação sem memória nos tempos modernos. No triénio anterior (2017-2019) houve apenas sete no total, todos em meses de Inverno. Neste ano de 2022 agravou-se o cenário dos dois primeiros anos de pandemia: em 2020 houve seis meses acima daquela fasquia, e em 2021 foram quatro. Tamanha persistência em números elevados é completamente absurda, ainda mais com uma taxa elevadíssima de vacinação contra a covid-19, que supostamente seria eficaz para debelar os efeitos da pandemia. O contínuo excesso pode ser agora por causa das alterações climáticas, como diz o ministro da Saúde… ou, se calhar, com maior grau de probabilidade, de tudo o resto, a começar pelo alheamento do Governo à situação. E pela forma como escondem informação.


    O ano ainda não terminou, ainda faltam nove dias para Dezembro acabar, mas um trágico recorde está garantido: o ano de 2022 contará nove meses com uma mortalidade acima de 10.000 óbitos. Somente Agosto (9.306 mortes), Setembro (8.754) e Outubro (9.525) não superaram aquele número. Dezembro ainda não atingiu as 10.000 mortes, mas será uma questão de tempo: até dia 21 registam-se 8.502 óbitos – uma média diária de quase 405, o que significa que até à passagem de ano será expectável chegar-se a valores que rondem os 12.500 óbitos.

    Esta é uma situação inaudita nos tempos modernos, e mesmo nos dois anos anteriores, em pandemia. Em 2020 foram contabilizados seis meses com mais de 10.000 óbitos: Janeiro (antes da chegada do SARS-CoV-2), Março, Abril, Julho, Novembro e Dezembro. No ano seguinte contabilizaram-se quatro: Janeiro, Fevereiro, Novembro e Dezembro. Nos primeiros dois meses de 2021, a mortalidade total foi, contudo, extraordinariamente elevada: 19.646 e 12.747 óbitos, respectivamente.

    woman in black dress holding brown paper bag

    O significado de nove meses (em 12) com um número de óbitos acima de 10.000 é muito relevante face ao perfil tradicional da mortalidade portuguesa, claramente com uma evolução sazonal: Inverno mais mortífero Verão mais “ameno”. No presente século, e no período anterior à pandemia, geralmente registavam-se somente dois ou três meses com valores acima daquela fasquia – por regra entre Novembro e Fevereiro. Em 2011 e 2004 até só houve um mês com esse nível de mortalidade (Janeiro, com 10.575 óbitos).

    Consultando dados mensais do Pordata a partir de 1980, no final do século XX até era raro um ano ter mais de dois meses acima de 10.000 óbitos, observando-se mesmo um (1982) que não registou qualquer mês nessas circunstâncias.

    A mortalidade em 2022 sempre em níveis anormalmente elevados – e ainda mais sucedendo a dois anos com mais de 120 mil óbitos, em cada um – constitui mais um indicador de uma “mortalidade estrutural”, isto é, que não advém de eventos sazonais associados a infecções respiratórias e/ ou ondas de calor.

    Mortalidade total por mês em 2022. Valor de Dezembro estimado em função da média diária de óbitos até dia 21. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Antes da pandemia, por norma, a mortalidade diária entre o último terço do Outono e em grande parte do Inverno situava-se entre os 350 e os 450 óbitos (em picos de surtos gripais intensos), havendo uma tendência de decréscimo ao longo da Primavera. O Verão constitui a época menos letal, mesmo quando surgem repentinas e mortíferas ondas de calor. Por norma, o mês de Setembro até costuma ser o menos letal, seguindo-se Agosto.

    Em situações normais, o “comportamento letal” do Verão também dependia de como o Inverno tinha sido, e vice-versa. Ou seja, após uma elevada mortalidade associada a um surto gripal, geralmente sucedia um Verão ameno, mas se fosse demasiado ameno, o Inverno seguinte tinha tendência a ser mais mortífero.

    Ora, nada disto sucedeu em 2022, ainda mais quando 2020 e 2021 já tinham sido anos de excesso de mortalidade. Com efeito, se contabilizarmos Novembro e Dezembro de 2021, até Julho deste ano contabilizaram-se nove meses consecutivos acima de 10.000 óbitos, o que significa que houve, grosso modo, em média, mais de 330 óbitos diários. Nem essa inaudita sequência refreou o ressurgimento de níveis elevados de mortalidade, após o período estival geralmente menos letal.

    Número de meses com mais e com menos de 10.000 óbitos entre 1980 e 2022. Fonte: Pordata. Análise: PÁGINA UM.

    Comparando o período pandémico – no pressuposto de que a pandemia ainda assim continua a ser considerada pela Organização Mundial de Saúde – com o período homólogo imediatamente anterior, confirma-se o problema “estrutural” do excesso de mortalidade em Portugal, e que nem se pode argumentar que seja muito por causa da covid-19.

    Com efeito, este ano a covid-19 está a contribuir para a mortalidade total em níveis similares a 2020 (5,7% e 5,6%, respectivamente), o que não deixa de ser paradoxal, uma vez que 2022 tem uma elevada taxa de imunidade vacinal (e com reforços) e o primeiro ano de pandemia apenas começou a contabilizar mortes por covid-19 a partir de meados de Março.

    Em todo o caso, 2022 não se compara com 2021, em que a covid-19 terá representado, de acordo com as classificações oficiais, 9,5% de todas as mortes. Convém, contudo, salientar que a taxa de letalidade a partir do surgimento da variante Ómicron esteve quase sempre abaixo de 0,25%, até início de Outubro, quando a Direcção-Geral da Saúde modificou a estratégia de testagem (quebrando a série estatística). Ou seja, em praticamente todo o ano de 2021, antes da Ómicron, e já com o programa de vacinação em pleno, a taxa de letalidade da covid-19 (então dominada pela variante Delta) até era francamente superior; chegou mesmo a ultrapassar os 3% em Janeiro de 2021 e registou alguns picos acima de 1% entre meados de Outubro e a primeira quinzena de Novembro daquele ano.

    Comparação da evolução da mortalidade diária (média de sete dias) entre 15 de Março de 2020 e 20 de Dezembro de 2022 (1.011 dias) e o período homólogo de 2017 a 2019. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Certo é que o contínuo excesso de mortalidade ao longo dos meses deste ano – e depois de dois anos já de excesso – é difícil de compreender. Ou melhor dizendo, é difícil de admitir, ademais tendo em conta o aparente alheamento das autoridades de Saúde e do Governo, que mostram uma apatia para apurar as verdadeiras causas desta situação.

    Na verdade, não é apatia, é activa atitude obscurantista: recorde-se que o Ministério da Saúde, quer através da Direcção-Geral da Saúde, quer da Administração Central do Sistema de Saúde, tem sistematicamente recusado disponibilizar, entre outras, as bases de dados do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) e dos Grupos de Diagnósticos Homogéneos (GDH) – que permitiriam ao PÁGINA UM apurar os desvios sobre as principais causas de morte e hospitalização nos últimos anos.

    E recorde-se também que o actual ministro da Saúde, Manuel Pizarro, em nada mudou a filosofia da sua antecessora, Marta Temido, no sentido de não promover uma investigação independente às origens do excesso de mortalidade. Aliás, preferiu conjecturar em torno das alterações climáticas como culpadas pelo excesso de mortalidade.