Os especialistas em oncologia têm estado a alertar para a elevada probabilidade de um aumento significativo de mortes por cancros devido à instabilidade e decisões do Serviço Nacional de Saúde (SNS) durante a pandemia, que levou à redução dos rastreios, diagnósticos e tratamentos. Porém, a análise do PÁGINA UM à base de dados da morbilidade e mortalidade do Portal da Transparência do SNS mostra um surpreendente paradoxo: nunca como nos últimos meses se morreu tão pouco nos hospitais por causa de cancros. Ou os doentes terminais andam a ser enviados para casa ou há embuste…
Em cerca de dois anos de presença da covid-19 em Portugal, não cessaram os alarmes nos últimos meses sobre as consequências da gestão da pandemia nos atrasos nos diagnósticos de cancros. No final do ano passado, a Organização Europeia contra o Cancro estimou que mais de 100 milhões de rastreios não se tinham realizado ao longo de 2020 e 2021 no Velho Continente.
Em Portugal, os especialistas na área Oncologia têm alertado para a iminência de uma “pandemia” de cancros, e de mortes, por via da suspensão e atraso de rastreios e diagnósticos, tanto por razões políticas como pelo medo de muitas pessoas em frequentarem unidades de saúde.
Porém, Portugal é um país suigeneris. De acordo com a base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar, disponível no Portal da Transparência, o mês com menos mortes causadas por neoplasias foi Janeiro deste ano, o último com informação desde 2017. Mas este não foi caso esporádico.
De acordo com a análise da informação realizada pelo PÁGINA UM, a redução da mortalidade causada pelos mais diversos cancros tem sido anormalmente baixa desde o início da pandemia da covid-19, em Março de 2020. Com efeito, no período pré-pandemia – e desde Janeiro de 2017, data do início do registo –, os óbitos em meio hospitalar por neoplasias situavam-se entre os 800 e os 1050 por mês. Ou seja, sem grandes oscilações.
Geralmente, os valores ligeiramente mais baixos observavam-se no Inverno, mas por uma razão simples: devido à fragilidade de muitos doentes oncológicos, muitas mortes são “antecipadas” por outro tipo de doenças, sobretudos infecções respiratórias como as pneumonias. Ora, tal significava que as doenças respiratórias acabavam por ser consideradas, em alguns casos, a causa do óbito, e não os cancros.
Em todo o caso, com a chegada da covid-19 em território português, as mortes por cancro tiveram uma queda acentuada. Em Março de 2020, os óbitos desceram para 758. Comparando com os meses homólogos do período anterior à pandemia foi uma descida significativa: em 2017 tinham morrido 914, em 2018 foram 873 e em 2019 situaram-se nos 955.
Óbitos totais por mês, por neoplasias, registados nas unidades do SNS entre Janeiro de 2017 e Dezembro de 2021. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Em Abril de 2020, os óbitos por cancros registados em meio hospitalar ainda desceram mais: somente 678. Nos meses seguintes, apesar de os valores subirem ligeiramente nunca superaram os 830 óbitos.
Com o Outono e Inverno de 2020-2021 – que marcaria o período mais crítico da pandemia, com as mortes por covid-19 a subirem, atingindo, em alguns dias de Janeiro valores a rondarem os 300 óbitos –, os desfechos fatais atribuídos aos cancros reduziram ainda mais. No período compreendido entre Novembro de 2020 e Janeiro de 2021, óbitos mensais situaram-se entre os 700 e os 750. No total, neste trimestre registaram-se 2.173 óbitos por cancro, uma descida de 22% em relação ao período homólogo anterior.
No mês de Fevereiro do ano passado, a queda ainda foi mais notória: 514 óbitos, um valor perfeitamente atípico. Nos meses seguintes, o padrão de anormalmente baixa mortalidade por cancros manteve-se. Sempre abaixo dos 750 óbitos até Agosto, e a partir de Setembro ainda mais baixo. No último mês do ano passado, em Dezembro, as mortes por cancro nas unidades de saúde foi de 554. E em Janeiro deste ano situar-se-ia nos 469 óbitos. Note-se que, nos anos anteriores à pandemia, esta doença matou 900, 967, 980 e 933 pessoas, respectivamente no primeiro mês dos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 – ou seja, antes da pandemia.
Óbitos por neoplasias registados no mês de Janeiro entre 2017 e 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
O absurdo está assim instalado em Portugal, e será provável que se mantenha, excepto se o Ministério da Saúde esclarecer este paradoxo, que se pode caricaturar: a pandemia “eliminou” mortes por cancro.
Obviamente, na verdade, haverá duas possíveis explicações, que poderão estar conjugadas, mas em qualquer dos casos são graves.
Por um lado, um número muito significativo de doentes oncológicos terminais tiveram – e, provavelmente, em muitos casos de forma injustificada – a covid-19 como causa de morte, inflacionado o impacte da pandemia. E, dessa forma, também de forma injustificada, a estatística dos cancros está enviesada, por subestimada.
Note-se que, nos três anos anteriores à pandemia, as neoplasias causavam por ano cerca de 11 mil óbitos, sem grandes variações, o que é normal face aos padrões epidemiológicos das doenças oncológicas em Portugal. Porém, em 2020 (com nove meses em pandemia) desceu para os 9.398 óbitos, e decaiu ainda mais em 2021: apenas 8.067 – uma descida de 28% face ao triénio anterior à pandemia. São mais de três mil mortes a menos.
No entanto, como estas estatísticas se referem somente aos óbitos registados em meio hospitalar – e, portanto, não se inclui as mortes de doentes oncológicos ocorridas em residências e lares –, poder-se-á sempre dizer – à falta da divulgação de dados oficiais pela Direcção-Geral da Saúde (DGS), apesar da existência do Sistema de Informação dos Certificados de Óbitos (SICO) – que os cancros passaram a dizimar menos nos hospitais, porque os doentes terminais foram enviados para casa.
Mas, se assim fosse – e significando assim que se abandonariam muito doentes à sua sorte nos derradeiros momentos de vida, o que parece pouco provável do ponto de vista humano –, deveriam então esses dados ser fornecidos de forma clara e transparente, permitindo avaliações independentes sobre o verdadeiro impacte da pandemia na evolução dos cancros.
Se assim não for, se não houver transparência, se o obscurantismo continuar a imperar, uma coisa é certa: o Governo vai anunciar daqui a uns tempos, com pompa e circunstância, que nunca como antes os problemas oncológicos estiveram controlados.
E que o Governo conseguiu recuperar todos os atrasos no rastreio, nos diagnósticos e no tratamento dos cancros. E a Estatística, se o Governo quiser, dirá que as pessoas, de facto, até morrem menos de cancro. Morreram de outras coisas, e cada vez mais, mas não de cancro… E isso será o embuste em todo o seu esplendor.
O PÁGINA UM começa, a partir de hoje, a apresentar um conjunto de análises à base de dados da morbilidade e mortalidade do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Neste primeiro artigo revela-se que, afinal, houve muitas mortes por covid-19 que “escaparam” a tratamento hospitalar, e que a pressão sobre o SNS foi, na verdade, com excepção de um curto período (Dezembro de 2020-Fevereiro de 2021), atipicamente baixo nos dois anos de pandemia. E essa situação mostra-se evidente sobretudo a partir de Março do ano passado.
São dados oficiais. Indesmentíveis pelo Ministério da Saúde. Os registos da morbilidade e mortalidade hospitalar do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS) revelam que, durante os dois anos da pandemia (2020-2021) morreram afinal menos pessoas nos hospitais portugueses do que nos dois anos anteriores (2018-2019).
E apesar de a covid-19 ter constituído um factor de mortalidade importante (12% dos óbitos nas unidades hospitalares) em 2020 e 2021, estranhamente, ou talvez não, uma parte relevante de doenças mortais acabaram por registar fortes quedas.
A análise do PÁGINA UM a esta base de dados do SNS – com informação detalhada por mês e mesmo por unidade de saúde, incluindo internamentos e óbitos ocorridos em unidades de saúde – desencadeia uma reflexão sobre a forma como decorreu a estratégia política de gestão da pandemia.
Nessa medida, vale a pena olhar para a evolução do registo mensal das mortes em meio hospitalar – que, sem prejuízo do aspecto humano relevante, ademais sabendo-se que houve um acréscimo importante de óbitos fora das unidades de saúde –, pois constitui sempre um indicador fundamental em termos de Saúde Pública. Neste caso, nem que seja por permitir aferir indirectamente o grau de pressão e complexidade dos casos a que sujeita o SNS e os seus profissionais.
Ora, aquilo que se verificou – pegando nos registos das mortes por todas as causas ocorridas em meio hospitalar – é que, com excepção de um curto período, entre Dezembro de 2020 e Fevereiro de 2021, o SNS não denotou uma sobrecarga. No caso de Janeiro de 2021 houve mesmo um evidente colapso com um recorde de 8.590 óbitos. No período anterior à pandemia – e desde 2017, com informação na base de dados do SNS –, nos piores meses contabilizavam-se cerca de seis mil óbitos em meio hospitalar, sobretudo no mês de Janeiro, estando associado aos surtos gripais (causadores de mais mortes por doenças respiratórias) e ao frio (adjuvante de doenças mortais do aparelho circulatório).
Óbitos totais por mês, por todas as causas, registados nas unidades do SNS entre Janeiro de 2017 e Dezembro de 2021. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Porém, excluído esse trimestre, ninguém que agora surgisse por aqui sem saber que houve uma pandemia poderia dizer que o SNS esteve sob pressão. Pelo contrário: desde Março do ano passado, o número de óbitos mensais registados nos hospitais do SNS foi sempre atipicamente baixo (sempre abaixo dos 4.000). E esta situação observou-se sobretudo com chegada das estações associadas a uma maior mortalidade (Outono e Inverno). Por exemplo, em Dezembro passado apenas se contabilizaram 3.793 óbitos. No mês homólogo dos três anos anteriores à pandemia, os óbitos em meio hospitalar foram muito superiores: 5.089 em 2017, 4.637 em 2018 e 4.561 em 2019.
O mês de Janeiro deste ano – que já consta da base de dados do SNS – surge com 3.461 óbitos, um valor extraordinariamente baixo, tanto mais que chega a ser inferior aos meses de Verão pré-pandemia.
Mas uma análise mais detalhada desta base de dados suscita ainda mais perplexidades, e muitos questionamentos.
E a começar pelo número de mortes causadas pela própria covid-19. Apesar de ter sido considerada uma doença de elevada infecciosidade – que obrigou, na esmagadora maioria dos casos ao internamento de casos moderados e graves –, constata-se que, afinal, morreram nas unidades de saúde até Dezembro de 2021 um total de 12.837 pessoas devido à acção directa do SARS-CoV-2. Este valor é “apenas” 68% do total dos óbitos contabilizados pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) em 2020 e 2021. Ou seja, dos 18.974 óbitos por covid-19 contabilizados até 31 de Dezembro de 2021, houve 6.137 que faleceram fora de unidades de saúde, em lares ou nas suas residências.
Óbitos totais por mês, causados por covid-19 (integrados no grupo “Códigos para fins especiais), registados nas unidades do SNS entre Janeiro de 2017 e Dezembro de 2021. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Saliente-se que, na base de dados do SNS, a covid-19 não surge explicitamente como a causa de morte, mas no grupo das doenças catalogada em “Códigos para fins especiais”. A covid-19 e sequelas associadas (código U) são praticamente as únicas doenças mortais inseridas neste grupo, razão pela qual apenas começaram a surgir a partir de Março de 2020.
Nesse mês, oficialmente morreram nos hospitais portugueses 147 pessoas com esta doença, chegando às 626 no mês seguinte. O período mais negro surgiu, como conhecido, entre Novembro de 2020 e Fevereiro de 2021: no primeiro mês deste período morreram 1.431, em Dezembro 1.643, em Janeiro 3.320 e em Fevereiro 2.512.
Até final de 2021, em mais nenhum mês se ultrapassaram os 500 óbitos. Em Janeiro deste ano – quando se registou uma vaga de casos positivos, com quase 1,3 milhões de casos –, nos hospitais morreram 560 pessoas por covid-19. No entanto, a DGS anunciou, para esse mês, um total de 1.002 óbitos, o que significa que 44% terão falecido fora de unidades de saúde. Ou então os números terão sido empolados.
Se causa estranheza esta relevante discrepância entre óbitos por covid-19 em meio hospitalar e fora das unidades de saúde – o que significará que muitos casos graves causados pelo SARS-CoV, susceptíveis de serem (como foram) letais, não terão assim tido tratamento hospitalar –, maior estupefacção surge quando se confronta a mortalidade por grupos de doenças durante a pandemia com o período homólogo anterior.
Nesta primeira parte, analisamos primeiro as doenças respiratórias – que, supostamente, “beneficiaram” do desaparecimento da gripe e, segundo a DGS, das medidas não-farmacológicas.
Óbitos totais por mês, causados por doenças do aparelho respiratório, registados nas unidades do SNS entre Janeiro de 2017 e Dezembro de 2021. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
No período 2018-2019, segundo a base de dados do SNS, contabiliza-se a ocorrência 27.285 óbitos por doenças respiratórias. Ou seja, ainda sem influência do SARS-CoV-2. Com a pandemia, durante os anos de 2020 e 2021, as doenças respiratórias não-covid decaíram para apenas 21.171, uma estrondosa queda de 22,4%. Ou, se se quiser, em valor absoluto 6.114 pessoas.
Deste modo, se se juntasse a covid-19 às doenças respiratórias, então durante a pandemia (2020-2021) terão ocorrido em meio hospitalar um total de 34.008 mortes, o que contrasta com 27.285 óbitos no período 2018-2019.
Nesta medida, só por aqui, o impacte líquido da pandemia será muito menor do que propalado: morreu-se muito por uma nova doença, mas, como em consequência “desapareceram” doenças respiratórias que tinham um impacte letal relevante, o saldo não se mostra assim tão elevado.
Óbitos por doenças do aparelho respiratório registados no mês de Janeiro entre 2017 e 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Contas feitas, em meio hospitalar, o acréscimo líquido é de 6.723 óbitos. Mas atenção: na segunda parte da análise, amanhã, veremos que é redutor estar apenas a usar, para calcular o impacte líquido do SARS-CoV-2, apenas as doenças respiratórias.
Aliás, nos últimos meses, a evolução da mortalidade das doenças respiratórias tem sido absurdamente atípica. No ano passado, houve apenas um mês (Janeiro) em que se ultrapassou a fasquia das mil mortes por este grupo de causas. Em 2017 houve sete meses; em 2018 registaram-se oito, em 2019 foram seis, e em 2020 foram apenas três, curiosamente os do primeiro trimestre, ou seja, imediatamente antes e no mês da chegada da covid-19 a Portugal.
Ou seja, literalmente, a covid-19 “sufocou” uma importante parte das doenças respiratórias.
No passado mês de Janeiro – que já consta na base de dados do SNS –, por doenças respiratórias não-covid foram contabilizadas 632 mortes, um valor completamente irrisório para um mês de Inverno. A título comparativo, em Janeiro de 2017 registaram-se, em meio hospitalar, 2.169 mortes por doenças respiratórias, ou seja, cerca de três vezes mais.
Nos livros, o título não diz tudo, ou nem sequer diz nada. O título desta entrevista também não diz, na verdade, nada de muito relevante sobre esta longa conversa com o José Carlos Barros, primeiro que tudo arquitecto paisagista, mas agora o escritor que hoje recebe o Prémio Leya 2021, um dos mais prestigiados da Literatura portuguesa. O galardão serviu apenas como pretexto para se falar, em tom muito informal, sobre o mundo rural, Évora, Arquitectura Paisagista, o ordenamento do território, autarquias, deputados e, já agora, também sobre a Literatura e os sentimentos dos escritores. Afinal, sobre “coisas” que unem pessoas. As fotografias, esta manhã tirada pela lente de André Carvalho, não poderiam ter sido em lugar mais apropriado: o jardim da Fundação Calouste Gulbenkian, desenhado por dois arquitectos paisagistas de eleição: Ribeiro Telles e Viana Barreto.
Partilhamos a mesma alma mater – a Universidade de Évora, e em particular o Departamento de Planeamento Biofísico e Paisagístico, fundado por Ribeiro Telles. Mas eu sou engenheiro biofísico, e tu és arquitecto paisagista. Quando comecei a publicar romances, perguntavam-me o que tinha sucedido para um engenheiro escrever ficção. Ora, conhecendo eu a nossa formação e a tua obra, aquilo que antes te pergunto é: os teus romances seriam diferentes se não fosses arquitecto paisagista?
[pausa] Eu não sei muito bem o que é causa e consequência. Penso que está tudo um bocado misturado. Eu nasci no mundo rural, fui para um curso em que os aspectos do território são essenciais, e continuo agora a viver no mundo rural. Portanto, se não fosse arquiteto paisagista, não sei se não seria à mesma uma pessoa ligada à ruralidade e ao território. Na verdade, olhando para o que escrevo, parece-me evidente haver uma ligação muito grande entre a arquitectura paisagista e a ruralidade.
O pretexto desta conversa é o teu romance As pessoas invisíveis, mas queria abordar o teu percurso de vida. Se pudesses escolher o guião da entrevista, por onde começavas? Pelo arquitecto paisagista que foi assessor do governo socialista, pelo técnico que foi director do Parque Natural da Ria Formosa? Pelo autarca de Vila Real de Santo António? Pelo deputado da bancada do PSD? Pelo escritor, não apenas romancista, mas sobretudo poeta? Ou seja, como te defines de uma forma curta?
Pois, é uma questão complicada. Eu acho que na minha vida escolhi sempre muito pouco. E, às vezes, temos uma presunção que escolhemos muito. Por vezes, há uma força qualquer, à qual alguns chamam destino, e a que outros chamarão matemática. Acredito muito no poder dos acasos, e deixei-me sempre ir muito por eles. Sempre que um acaso me proporcionava uma qualquer situação, uma mudança ou um determinado caminho, aquilo que eu fiz foi apenas deixar-me levar por esses caminhos, pelos caminhos que ia encontrando. Foi por isso que fui parar a Évora, por causa do romance Aparição do Virgílio Ferreira. Eu estava num curso de Ciências, e de repente descubro que se fosse para Évora, havia duas coisas especialmente fantásticas: ia para aquela cidade branca daquele romance, que me tinha fascinado tanto, e podia ser aluno do Ribeiro Telles. Penso que eu fui o único do meu curso que pôs em primeiro lugar a Universidade de Évora. Não propriamente por uma grande escolha, mas porque em determinada altura me lembrei de um livro e de uma pessoa. E o resto foi acontecendo.
Já me estragaste aqui uma pergunta, porque tinha preparado uma para saber como foste para Évora estudar Arquitectura Paisagista [risos]. Até porque nasceste bem longe, na região de Covas do Barroso, em Boticas. Viveste na vila ou em alguma aldeia?
Nasci em Boticas, mas logo no quinto e sexto ano de escolaridade, pedi transferência para a turma B. A outra era a dos meninos da vila, e a turma B era a dos rapazes e raparigas das aldeias. Acho que foi esse o primeiro acaso que me aconteceu.
Havia essa segregação?
Era uma segregação que teria sobretudo razões horárias, de logísticas. As pessoas das aldeias vinham de camioneta para a vila. Não sei se por uma segregação urbana/rural, mas de facto as raparigas e os rapazes das aldeias estavam na turma B. E eu apercebi-me cedo que essa malta parecia mais interessante, porque o seu mundo era mais carregado de coisas: tinha bruxas, animais fantasmagóricos, acontecimentos absolutamente incríveis. E, olhando agora a esta distância, percebo que havia uma ligação relativamente próxima com o sobrenatural. Próxima e quase natural, passo a expressão. O sobrenatural estava muito próximo de deixar de ser sobre.
Ou seja, não terias sido o escritor que és, ou pelo menos com a naturalidade de falar do sobrenatural, se não tivesses passado para a turma B?
Sim, acho que essa foi, de facto, a primeira descoberta importante. Depois, foi o Padre Fontes [António Lourenço Fontes]. Tinha por volta dos quinze anos e fui parar a casa dele. Visitei-o quando ele publicou os seus livros sobre etnografia barrosã. Percebi que alguém estava a valorizar aquilo, ao contrário das outras pessoas que associavam as aldeias ao atraso, e o mundo rural a coisas menores, digamos assim. Portanto, fui para Vilar de Perdizes, e passei alguns fins-de-semana em casa dele. Fui ao Congresso de Arquitectura Popular, onde apareceu, por exemplo, o Nadir Afonso. O destino sempre me reservou umas ligações ao mundo rural, mesmo quando eu parecia sair um bocadinho disso.
Entras num curso e numa universidade, no Alentejo, num meio completamente distinto. Na Arquitectura Paisagista, o teu coração pendeu sempre mais para a parte das paisagens, da Natureza, e menos para os jardins ou espaços verdes urbanos?
Confesso que me fascinam todas as disciplinas da arquitectura paisagista, incluindo o pequeno jardim e pequena intervenção urbana. Aliás, uma crítica que às vezes até se fazia ao meu curso era ser pouco especializado. A ideia de o arquitecto paisagista poder trabalhar com outros técnicos e outras áreas continua a ser das coisas que mais me fascina, e que mais gostaria de fazer. Não faz sentido nenhum estar a separar as disciplinas como por vezes separamos. Ao falar-se de jardins não se deixa de ser falar de Economia. E tudo isso me fascina por igual. É verdade que o meu estágio foi de ordenamento do território, mas fui sendo empurrado mais para aí, para essa ideia de compreensão da paisagem e das ligações do homem ao território. Quando vou de viagem, olho para a maneira como o território foi transformado.
Vives há muitos anos no Algarve. Qual foi o motivo de seguires para o extremo sul depois de uma infância e adolescência no extremo norte? Também foi um livro? [risos]
Foi o fabuloso poder dos acasos: o acaso de me enamorar por uma algarvia, e acabar por me casar.
E ela venceu na escolha do sítio para viverem? [risos]
Eu estou muito ligado ao sítio onde vivo, mas acho que poderia viver em qualquer lugar. Se for uma zona urbana, prefiro que tenha árvores por perto, e espaços onde se possa sentir essa ligação ao que chamamos de Natureza. Por exemplo, umas das coisas que me liga às árvores é quase filosófica: é a ideia de ver o tempo a passar. Eu preciso essencialmente disso. A minha ligação ao território, à Natureza, às árvores e ao campo tem a ver com essa ideia de perceber o movimento do Mundo. Quando saio da porta da minha casa, o que tenho à minha frente são figueiras e alfarrobeiras mais do que centenárias, e algumas já as conheci com o aspecto que hoje têm. As árvores mostram-nos que há coisas que permanecem, e outras que estão sempre a mudar. Essa ideia de permanência e mudança que encontramos na Natureza é bastante importante para mim.
Há pouco falávamos do Ribeiro Telles, que advogava que a paisagem é uma construção humana. Sendo uma construção humana e havendo uma paisagem tão diversificada entre o norte e o sul de Portugal, o que é que molda o quê? É a paisagem que molda o homem ou o homem que molda a paisagem? Ou ambos interagem?
Cada vez mais me parece evidente que a paisagem é o resultado dessa interação. Por um lado, o modo como nos adaptamos às condicionantes, isto se estivermos a falar de comunidades cultas como as comunidades rurais e das aldeias, que conhecem o território. O problema é as comunidades cultas terem deixado de olhar para o território. Cultas no sentido em que percebem os fenómenos naturais e procuram adaptar-se às condicionantes que o território lhes apresenta, e assim transformam o território de maneira a aproveitar os seus recursos. Portanto, a paisagem é, de facto, uma construção humana. O estado do ambiente pode ver-se sempre pelo modo como tratamos a paisagem. Aliás, quando saio de casa e começo a andar na rua, percebo logo que não existe Ministério da Agricultura. A agricultura não está separada do ambiente e do território, e aquilo que vejo, governo após governo, é o Ministério da Agricultura apenas preocupado a distribuir os fundos comunitários. É um bocadinho arrepiante.
Estiveste alguns anos na Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Algarve e a dirigir o Parque Natural da Ria Formosa. Sentiste essa situação, essa falta de visão? Advém daí a perpetuação dos conflitos quando está em causa a conservação da Natureza e a paisagem?
A paisagem é o reflexo daquilo que nós somos. Por isso dizia há pouco que o estado do Ambiente e da Economia se vê por aí. Para mim isto é evidente há muito tempo, só agora começa a ser consensual que falar de Ambiente é falar de Economia. Não separemos as coisas. Temos um problema de partida: o ordenamento do território é uma disciplina a que ninguém liga ao nível das decisões. Vamos ter não sei quantos milhões da “bazuca” sem que o país esteja preparado para perceber quais os caminhos para chegar aos objetivos genericamente desenhados. Não há apoio para actualizar planos directores municipais (PDM) ou planos regionais de ordenamento do território (PROT). Fez-se, relativamente há pouco tempo, um Programa Nacional da Política de Ordenamento de Território que é sobretudo um plano centralista, muito virado para resolver os problemas de reforço da mobilidade nas duas grandes Áreas Metropolitanas. Mas ninguém ficou muito preocupado com isso. Suscitou muito pouco envolvimento político, mesmo na Assembleia da República, onde eu participei nesse processo. Até parecia um bocadinho estranho que alguém estivesse a perder muito tempo com algo sobre o qual ninguém iria falar.
Referiste a questão de actualização dos planos, mas, se nós formos a ver, os planos anteriores, dos anos 80 e 90, não serviam para muito…
Uma das características do processo de ordenamento do território deveria ser a flexibilidade. Um plano faz-se, e poderia ser alterado depois de uns três ou quatro anos. Esse dinamismo, que devia estar associado aos próprios territórios, nunca foi compreendido. Por exemplo, nos anos 90 fez-se um PDM; passado quatro ou cinco anos houve alterações drásticas das situações e das necessidades e o PDM continuou igual por mais 10 ou 15 anos, já sem capacidade de dar resposta aos desafios que se colocavam. O mesmo com outros planos. Ou seja, nós, de facto, ainda não temos verdadeiramente ordenamento do território.
O facto dos PDM serem tão estanques não se deve também a uma desconfiança relativamente àquilo que os políticos, os autarcas e os decisores podem fazer em benefício de A, B ou C?
Primeiro aspecto: os autarcas e os políticos, de modo geral, fazem aquilo que o povo quer. Eles querem ganhar eleições. A experiência que eu tenho, nomeadamente nos processos de consulta pública em que participei, é de ver que a única preocupação das pessoas era, geralmente, saber se o seu terreno ficava no verde ou no vermelho, se podiam construir ou não. Pouco mais vi, de preocupação, fosse em que plano fosse. Por isso, digo que, em certo sentido, é como se o processo de ordenamento do território ainda não tivesse verdadeiramente começado. Temos dificuldade em passar dessa fase inicial, de entender os planos como coisas que nos dizem se se pode construir ou se não se pode construir. Estes planos, de facto, não dão resposta nenhuma às pessoas, são rígidos e, se calhar, permitem que se olhe para eles conforme os interesses. O meu ponto é este: nós, enquanto sociedade, ainda não valorizamos o processo de ordenamento do território.
No teu romance As pessoas invisíveis, que aliás tem desfecho inesperado, acabas por abordar um curioso e trágico-cómico aproveitamento de informação privilegiada por via de uma decisão política. Inspiraste-te em alguma situação verídica? [risos]
Não. O final do romance é também metafórico. Embora isso não fosse muito evidente, eu gostaria de que a ideia de poder e de ambição fosse atravessando o livro, em várias situações. Portanto, há episódios que eu desejaria que funcionassem como metáforas de poder e de ambição, de coisas que nos desligam do que é essencial.
Mas regressemos ao teu percurso de vida, e à tua experiência autárquica [vereador e vice-presidente da autarquia de Vila Real de Santo António, entre 2005 e 2013]…
Foi, mais uma vez, o poder dos acasos. Eu era técnico na Direção Regional do Ambiente e na CCDR do Algarve, e fui desafiado para as eleições autárquicas [em 2003]. Como era por um partido que nunca tinha ganhado as eleições [PSD], eu até achei que podia ir à vontade…
Podias candidatar-te à vontade, porque não ias ganhar… [risos]
A verdade é que vencemos durante dois mandatos. E foi uma experiência que muito prezo. Vi pessoas a trabalhar muito nas autarquias, e com uma preocupação de interesse público. Para mim foi muito satisfatório, mas também desgastante, porque é extremamente difícil ser autarca a tempo inteiro, estar muito próximo das pessoas.
Depois tiveste mais dois mandatos como presidente da Assembleia Municipal, certo?
Sim, sem funções executivas. Em Portugal, as Assembleias Municipais não são verdadeiramente valorizadas.
Como é que viveste o caso “bicudo” da anterior presidente da autarquia de Vila Real de Santo António, a social-democrata Conceição Cabrita [detida e acusada por suspeita de corrupção]?
Com normalidade, mas, por um lado, com tristeza, porque me ligava e liga uma relação de amizade. Por outro, também com uma vontade muito grande que a Justiça funcione, e que haja um julgamento e se perceba tudo. De facto, isto descredibiliza não só a política, mas o país todo. Não houve ainda um julgamento, não sabemos que culpas existem. Incomoda-me muito esta ideia de que sejam sistematicamente levantadas suspeitas. De resto, espero que as suspeitas sejam infundadas e, se não forem, pois então, que a Justiça funcione.
Depois, temos o José Carlos Barros deputado…
Fui parar à Assembleia da República por mero acaso.
Mais um acaso… [risos]
Exatamente. Absoluto. Ainda por cima, eu nem era militante do partido.
Ainda não és?
Continuo a não ser. Por nenhuma razão especial. Se calhar não fui ainda seduzido de maneira empolgante. Acho que fui parar à Assembleia da República na sequência daqueles desentendimentos que existem muitas vezes no interior dos partidos. Essa minha experiência como deputado tem aspectos mais positivos e menos positivos. O mais positivo é percebermos como a democracia é uma coisa fundamental, haver diferentes visões do Mundo e que se possam pôr em cima da mesa e discuti-las. Portanto, desse ponto de vista, foi uma experiência extremamente interessante. Agora, nem eu consegui mudar grandes coisas, nem ninguém deve ter ficado muito preocupado com isso. Foram quatro anos em que andei à procura de alguns temas, que não tive a capacidade de demonstrar como eram importantes.
Eu estive a consultar a lista das tuas intervenções, e verifiquei que versaram entre o urbanismo e planeamento, e os assuntos culturais. Mas eu não queria perguntar muito sobre esses aspectos. Prefiro saber com quem trocavas impressões sobre Literatura na Assembleia da República…
Com muito pouca gente.
Queres dizer nomes?
Posso dizer um nome, que nem era da minha bancada: a Isabel Moreira [deputada do Partido Socialista], e inclusive estive ligado, por razões pouco relevantes, à edição de um dos seus livros. É um dos poucos exemplos que te posso dar. Passei quatro anos na Assembleia da República, e a maior parte das pessoas nem sabia que eu escrevia.
E em plenário ou pelos corredores da Assembleia da República, viste deputados com um romance nas mãos?
Não quero ser injusto, porque eu próprio andava com poucos romances na mão. Não serão todos os deputados que levam a actividade da Assembleia da República a sério, mas no essencial é um trabalho relativamente intenso, nomeadamente nas comissões. Há alguns casos muito absorventes; anda-se muitas vezes em corridas, e sobra pouco tempo para outras questões. De qualquer modo, não me parece que a Literatura seja uma das grandes prioridades na Assembleia da República, tal como noutros sítios da sociedade.
Mas teríamos melhores deputados se todos eles lessem pelo menos um romance todos os meses?
Eu acho que a Arte, de um modo geral, e portanto também a Literatura, alarga o nosso entendimento do mundo. As pessoas têm uma visão mais alargada das “coisas” se não estiverem fechadas para as “coisas da Arte”. Por isso, sim, sou dos que acreditam que ler, em particular ficção e poesia, ou ir a exposições, dá às pessoas um entendimento mais alargado do mundo, embora não as faça melhores pessoas [risos].
Tu és simultaneamente poeta e romancista. Eu nunca arrisquei escrever poesia, porque é muito fácil escrever um mau poema [risos]. Mas sei que são ritmos diferentes no acto de escrita. Já disseste que, quando escreves poesia, podes sempre voltar a um poema de tempos a tempos, que não é um processo tão intenso. Posso deduzir que aproveitaste alguns daqueles plenários mais chatos para ir versejando?
A poesia é, de facto, diferente da prosa, porque o romance exige uma disciplina que a poesia não exigirá. Isso é muito evidente; os métodos são diferentes. Mas há também uma outra característica diferenciadora: a poesia vive muito de um relâmpago, da fulguração, da interrogação, do espanto. E esse questionamento, feito de coisas tão intensas, e às vezes breves, pode apanhar-nos em qualquer lado. Portanto, mesmo quando estava mais entediado em plenários, que tinham temas que me interessavam muito pouco, nunca estaria a preocupar-me com a prosa, que exige de facto um outro tempo e um outro momento. Mas admito que, de vez em quando, fui apanhado por essa fulguração e por esse relâmpago que a poesia, às vezes, nos traz.
Tens já uma obra literária muito vasta, com romances e sobretudo poesia. Tens aliás, mais livros de poesia do que romances, e até já tinhas ganhado por duas vezes o Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama. Em todo o caso, o Prémio Leya é um dos mais prestigiados. Vamos ter um José Carlos Barros ainda mais empenhado na escrita?
Primeiro, eu gostaria que este prémio ajudasse a que se olhasse melhor para o que eu escrevi, sobretudo na poesia. Muito daquilo que escrevi é absolutamente desconhecido.
Lamentaste mesmo, há uns meses, que o anúncio do Prémio Leya tivesse “apagado” livros de poesia que tinhas recentemente lançado…
Não sei se “apagou”, mas gostaria que pudesse agora contribuir para lhes dar mais visibilidade. Obviamente, a partir do momento em que foi anunciado o Prémio Leya 2021 [em Dezembro passado], ninguém mais me perguntou sobre o meu livro de poemas Penélope escreve a Ulisses ou sobre os meus Poemas do DN Jovem [1984-1989]. No caso da minha poesia, ainda é muito secreta. [risos] Mas o Prémio Leya não vai mudar muito o meu ritmo, desde logo porque eu próprio tenho dificuldade em explicar porque escrevo. Há talvez alguma vaidade, que não será dos sentimentos mais nobres, que nos leva a escrever.
Eu costumava dizer que, em Literatura, escrever é uma espécie de droga dura, dá prazer e sofrimento, e é viciante até pararmos. Falo por mim, que escrevi quatro romances em seis anos, e mais de uma dezena de livros em pouco mais de uma década. E estou há sete anos sem escrever ficção ou não-ficção…
É capaz de haver qualquer coisa parecida com uma adição, sim; porque para mim não é muito divertido escrever. Admito que para algumas pessoas possa ser, mas para mim não é. É uma coisa que me custa, cada parágrafo sai-me com muita dificuldade. Para conseguir uma página que considere boa, demora-me muito tempo.
Quando eu escrevia três páginas numa noitada, sentia-me completamente feliz…
Por isso digo que não é por vencer o prémio que me vou dedicar de imediato à escrita; acho que não tem influência. Há coisas muito mais divertidas para fazer do que escrever. Vou escrever só quando essa inevitabilidade me obcecar. Caso contrário, não vou outra vez meter-me em frente a um muro com uma folha de papel ou um ecrã em branco.
Certo escritor, não me recordo o nome, terá dito: “não gosto de escrever; gosto de ter escrito”… [risos]
Pois, eu percebo isso muito bem, porque o grande prazer vem depois de muito trabalho. Quando percebemos que, depois de muitas dúvidas, há ali qualquer coisa que parece ter chegado a um bom resultado, não é? Aliás, eu olho, por exemplo, para a vaidade que tinham e têm as pessoas do lugar onde eu nasci quando ganhavam o prémio da vaca barrosã. De facto, ganhar esse prémio implica um esforço e uma dedicação; é uma recompensa.
Acontece-te por vezes revisitar um livro e pensar: “isto nem parece que fui eu que escrevi”? Sentir, como leitor, que aquilo está mesmo muito bom…
Sim. Sim, por vezes, sim. Mas eu gosto pouco de reler o que escrevo, porque estou sempre a temer… Para mim, a escrita tem também muito de matemática ou de música, e eu tenho sempre medo de descobrir coisas que podia ter feito melhor, e que não fui capaz, porque o ritmo não está certo. Porque o que está bem feito, é a minha obrigação. Na verdade, não vale a pena fascinar-me muito com o que encontro de melhor. Se perdi tanto tempo, e se fui cuidadoso, é normal que as coisas funcionem. O meu problema é que, quando me releio, estou sempre a encontrar coisas que não estão muito bem.
O Mário Carvalho dizia que os nossos livros nos fazem momices; e deduzo que se referia ao facto de nos apontarem nos seus defeitos os nossos erros… Enfim, mas consideras que é um luxo ser escritor em Portugal, e que quase se tem de pagar para escrever?
Algumas pessoas perguntaram-me o que é que senti quando recebi o prémio. E eu respondi que me agrada receber o dinheiro, ser pago. E não é porque eu goste muito de dinheiro, mas acho uma desgraça não haver esse reconhecimento, de que o acto de escrever deve ser um trabalho pago. Alguns colegas meus, que sabem que escrevo, dizem que a escrita é o meu hobby, como se fosse algo que faço quando não tenho nada para fazer, em vez de ir beber uns copos. Eu não fico ofendido, mas sinto isso quase como uma provocação. Ninguém pede a uma pessoa para executar determinadas tarefas pensando que as vai fazer gratuitamente. Devemos pagar esse serviço que está a ser feito. No caso da escrita, penso que isso é reconhecido muito poucas vezes.
Tem que se mudar esse paradigma?
Sim, claro que sim, porque não se valoriza esse trabalho. Eu sinto isso, diariamente. E há outro drama: pode-se estar anos a escrever, e a fazer até coisas bem interessantes, mas por determinadas circunstâncias não se chegar a ter um editor. É aquilo que acontece com algumas pessoas. Não sei se foi o Picasso que disse – penso que sim, quando lhe perguntaram se ele acreditava na inspiração – acreditar nela, imenso, mas que esperava que quando essa inspiração viesse o encontrasse a trabalhar.
Agora, vamos regressar ao teu recente romance. Qual a mensagem que pretendeste transmitir com as pessoas ditas invisíveis? O que é que te fez ter, como linha central, pessoas sem rosto, mas ambiciosas?
Isto pode ter várias leituras. Eu acho que os bons leitores alargam o próprio entendimento de um livro, não é? Porque se um livro tiver alguma complexidade, há-de ter camadas que o próprio autor, por vezes, nem identifica muito bem. E é através do processo de leitura e de crítica que um livro vai ganhando o seu verdadeiro entendimento. As pessoas invisíveis foi um título que me apareceu, que se me impôs, quando percebi que algumas das personagens surgiam como se não contassem. Aliás, esta ideia das pessoas invisíveis veio-me quando comecei a intuir que aquilo que designamos por interesse público, que gera quase sempre uma factura paga por pessoas que não contam para nada, que são invisíveis. A industrialização da floresta, por pinheiro-bravo, durante o Estado Novo, foi um processo intenso, e que muitas desgraças deu, feito contra o interesse do mundo rural. O mesmo com as barragens de elevado valor hidroeléctrico. Eu admito que haja um interesse público em fazer essas barragens, mas há um conjunto de pessoas no mundo rural que vão pagar essa factura. O mesmo foi com o volfrâmio, e agora com o lítio. Eu não discuto o interesse público em explorar o lítio, o que seria de nós sem as baterias dos telemóveis, não é? Há-de haver um interesse obviamente público, mas o que eu sei é que as pessoas de Covas do Barroso, que eu conheço, ainda antes de ser emitida qualquer licença de exploração, já tinham explosivos à porta de casa, máquinas a abrir buracos por todo o lado, problemas com a água e encostas que estão completamente mexidas de uma ponta à outra. E isto à custa do único valor que aquelas pessoas têm, que é o seu território e a sua paisagem. E, portanto, estão a pagar o interesse público do lítio porque contam pouco. Nesse sentido, o nome do livro foi-se me impondo de uma maneira um bocadinho metafórica, a pensar que é assim que geralmente acontece com o mundo rural. Pessoas que não elegem deputados, ou que elegem muito poucos, não importam muito para a sociedade.
Falámos já sobre a importância do mundo rural e de fenómenos quase paranormais. A tua escrita denota aquilo que se denomina realismo mágico, que está muito associado ao mundo rural. Ora, o mundo rural está em perda. Achas que o realismo mágico desaparecerá na Literatura com a extinção do mundo rural?
Eu acho que sim, porque o mundo rural é um mundo difícil. Eu escrevi sempre sobre o mundo rural, mas eu gostaria que nunca fosse de um modo muito apologético, no sentido de achar que os seus valores são melhores do que os urbanos. Aliás, muitas vezes, tento desarmar esse romantismo à volta do mundo rural. Na verdade, é um mundo muito difícil, muito dependente de factores como o clima e a meteorologia, onde não havia médicos e o Estado nunca esteve presente para ajudar em nada. Portanto, eu diria que era quase normal que as pessoas daquele mundo tivessem que procurar outras ajudas, que vêm tanto da ideia de Deus como do sobrenatural nas suas diferentes formas. E agora, num mundo em que não estamos tão dependentes da Natureza, em que o pensamento se desligou da mão, como diria a Sophia [de Mello Breyner Andresen] num dos seus poemas, acho que, de facto, esta magia vai, naturalmente, desaparecer.
O romance está estruturado em três partes: a corrida ao volfrâmio, no início do Estado Novo; o massacre de Batepá, em 1953 em São Tomé e Príncipe, que eu, aliás, desconhecia; e no período da morte do Sá Carneiro. Que te fez escolher estes três momentos numa narrativa em elipse?
No caso do massacre de Batepá, eu fiquei muito surpreendido com a dimensão daquilo que aconteceu durante uma viagem, e sobretudo por não saber nada até então, o que é uma coisa que me incomoda imenso. Eu quero escrever sobre o meu tempo, mas não consigo fazê-lo sem olhar um bocadinho para trás, para perceber como é que chegámos até aqui. E o que espoletou foi, de facto, essa ideia do massacre. E para perceber como é que se chega a 1953, fui à procura da política colonial e ao que esteve associado. Eu escrevo por ignorâncias, sobre o que não sei, e tenho de ir à procura. Neste processo, descobri que estava afinal a escrever sobre o Estado Novo. Sobre o Portugal do Estado Novo, um país que tinha colónias, mas que, simultaneamente, era um país rural, supersticioso e pobre. Aí, percebi que tinha que escrever sobre essa ruralidade e, ao mesmo tempo, sobre um país que tinha um Império. Ora, eu queria entrar no 25 de Abril exactamente pelo preconceito que tinha, de que ia ser muito difícil um Portugal democrático, por causa de todo aquele passado e dos primeiros anos a seguir à Revolução. Sabendo que corria alguns riscos, a minha ambição era constituir um olhar possível do que é o Portugal do Estado Novo. Não era esse o propósito inicial quando comecei a escrever, mas foi impondo-se.
Então, como fizeste a construção do romance?
Eu andei com este romance dez anos. Comecei a escrevê-lo por causa do massacre de Batepá. Entretanto parei, depois regressei e aquilo já não estava bem. O meu principal método de escrita, para o bem e para o mal, é não ter método nenhum, mas isto é muito propositado. Eu sei mais ou menos sobre o que é que quero escrever, mas quero que seja o próprio processo que me vai dizendo que personagens devem desaparecer ou que devem entrar.
Coloquei-te esta questão exactamente por entender que podias ter começado o romance pelo meio, e depois recuar e, por fim, avançar…
A vida é feita de imperfeições e de acasos, e a cronologia é uma das coisas que conta pouco para a nossa vida. Eu gostaria que a minha escrita não tivesse esse método muito cronológico, pré-definido. O primeiro capítulo foi das últimas coisas que eu escrevi. Enfim, tudo isto levou a este livro; poderia ser outro qualquer. Mas, se eu tivesse tido disponibilidade, de tempo e também mental, para me poder dedicar à escrita, este livro seria provavelmente mais perfeito, e também desinteressante.
[risos] O próprio Machado Assis também dizia que um livro está sempre a ser reconstruído, e é verdade. Provavelmente, se o voltares a ler daqui a uns anos, talvez tenhas vontade de o alterar. Aliás, o final até abre portas para uma continuação, não é?
Sim, embora me apeteça contar outras histórias. Mas, por exemplo, a determinada altura da escrita, eu percebo que há uma questão mal resolvida, que tem a ver com o fim da escravatura. Pensava que a escravatura fora abolida no século XIX, e ponto final. E, afinal, percebi que, através dos sistemas de contrato, e de outros subterfúgios, o fim da escravatura foi apenas um fim legal, e não um fim real. Em 1947, no conhecido relatório de Henrique Galvão [inspector-geral da Administração Colonial, também escritor e mais tarde opositor de Salazar], denuncia-se uma realidade mais grave do que a criada pela escravatura pura. Pode ser complicado imaginar o que será pior do que a escravatura pura, mas, de facto, um escravo, sendo um objecto para o proprietário, esse não gostaria que o objecto se partisse, e até tinha bons hospitais e condições para o escravo durar mais tempo. Portanto, foi o próprio processo de escrita que me foi levando a estas situações, começando por um ponto e puxando pelo novelo. E por aí fora…
Numa democracia não se deve proibir de discutir nada. Mas, em abono da verdade, deve haver temas que teremos mesmo de descartar para um debate aos primeiros sinais. Logo ao lermos as primeiras linhas. À cabeça deve estar a possibilidade de regressarmos à ditadura, ao regime de um homem-só, salvífico, protector e redentor.
Nem sequer me apetece discutir demasiado as minudências e consequências deste anteprojecto – de onde se destaca a possibilidade de uma autoridade de saúde, a mando de um Governo, impôr restrições às liberdades individuais e colectivas, sob pena de prisão.
Apetece-me, sim, abordar conceitos, porque a democracia também são conceitos e princípios.
O dito anteprojecto da LPESP começa logo mal. Diz que tem “por objeto o conjunto de procedimentos e ações, regulamentares, científicas, organizativas e materiais, com a finalidade de conter, tratar e eliminar as causas e as consequências de doenças que tenham por efeito gerar elevado risco ou provocar danos severos na saúde pública”.
Note-se: inclui procedimentos científicos – os procedimentos da Ciência a serem regulamentados por legislação política. Começa bem, mesmo – ou melhor, começa mal.
Depois, seguimos para o artigo 2º, referente às definições. Ler aquilo, deveria logo levar-nos a devolver ao remetente estas desgraçadas páginas. Portanto, uma “emergência de saúde pública” é, para os doutos autores desta lamentável peça, apenas uma manta de retalhos sem indicadores, sem métricas, sem Ciência, acabando por ser definida como uma “ocorrência extraordinária, ou a ameaça iminente, de uma doença ou condição de saúde (…) que constitua um risco para a saúde pública ou com efeitos graves no funcionamento de sectores críticos da sociedade e da economia”?
Não admira que, desde as Descobertas, a Ciência nunca foi bem tratada em Portugal.
Ademais, o conceito de “pandemia” e “epidemia” – que constituem factores para desencadear a suposta “emergência de saúde pública”, a par, entre outros, do bioterrorismo, de acidentes radiológicos ou nucleares, e de uma enigmática “ocorrência ambiental” – seria risível, se não configurasse um enorme perigo. No anteprojecto surgem como sinónimos e definidos, simplesmente, como “surtos de doenças de natureza e localização disseminada”.
Minhas senhoras e meus senhores, aqui cabe tudo.
Um surto de gripe, num qualquer Inverno, pode transformar-se numa “emergência de saúde pública”. Até uma constipação.
Uma nova variante do SARS-CoV-2 – das centenas e centenas que já se formaram, e mais haverá – pode alcandorar-se, num estalar de dedos, a uma “ameaça iminente” e lá temos a “emergência de saúde pública”.
A própria possibilidade imprevista no tempo, mas previsível do ponto de vista histórico de surgir uma nova pandemia (tantas que já houve) pode sempre encaixar-se no conceito (não especificado) de “ameaça iminente”, e portanto pode accionar-se uma “emergência de saúde pública” hoje, amanhã, para a semana, quando o Governo estiver em queda de popularidade…
Os serviços secretos “desenterram” uma sempre secreta ameaça de bioterrorismo? Hélas, aqui vai uma redobrada “emergência de saúde pública”.
Um anúncio de “onda de calor” no Verão? Meta-se tudo dentro de casa e encerrem-se as praias.
Extraordinário é ver que, de acordo com o artigo 6º do tal anteprojecto, é o Governo que decreta a “ocorrência extraordinária”, e somente tem de apresentar os “elementos disponíveis” e uma “análise de risco”. E em que deve consistir isso? Nada se diz. A Doutora Graça Freitas há-de inventar qualquer coisa.
Sabendo como sabemos o obscurantismo da gestão da pandemia da covid-19 – com a recusa sistemática da Direcção-Geral da Saúde e do Infarmed, a par de uma “imprensa mansa” –, já se antevê que “elementos disponíveis” nos preparam, e que “análise de risco” nos mostrarão. Se for como os famosos e vergonhosos “relatórios de monitorização das linhas vermelhas”, estamos conversados.
Mas o mais espantoso neste anteprojecto – que deveria envergonhar qualquer pessoa com uma sinapse de pendor democrático – é que todas estas decisões políticas – apenas políticas – desencadeiam depois a constituição de um Conselho Científico. Pasmo absoluto: uma decisão que deveria ser baseada sobretudo em Ciência – ou previamente ratificada por cientistas –, acaba por ser uma decisão política de um Governo que depois vai procurar “cientistas” que digam ámen.
A fantochada anti-democrática chega ao ponto de determinar, no artigo 39º e seguintes, que o Conselho Científico, sendo um “órgão pluridisciplinar de apoio à decisão”, é nomeado imediatamente pelo Governo, sendo que seis dos nove membros são escolhidos pelo próprio primeiro-ministro. E outros três por entidades políticas (Assembleia da República e Governos Regionais). Coisa nunca vista em democracia.
Gente sem escrúpulos e ausentes de “coluna vertebral”, como uns Filipes Froes ou umas Raquéis Duarte, terão certamente, nestes Conselhos Científicos, a sinecura que ambicionam. E farão todos os fretes políticos que lhes solicitarem. Serão mais papistas do que o papa.
Aliás, serão cooperantes, até porque o anteprojecto não se esquece de vincar o direito a mordomias – leia-se “regime de compensação pelo exercício de missão” – determinadas por despacho do primeiro-ministro, e com a possibilidade de perpetuarem o posto, porque o dito Conselho Científico “mantém-se em funções até à declaração de cessação da emergência de saúde pública”.
Posto tudo isto, escalpelizar o articulado deste anteprojecto de “aborto antidemocrático” – que, em súmula, aplica aquilo que foi a gestão da pandemia – acaba por ser exercício desnecessário.
Isto não pode sequer chegar ao nível de uma discussão em Assembleia da República. E aprovar um diploma deste jaez equivale a Golpe de Estado; é accionar um mecanismo que pode transformar uma democracia numa ditadura quando o primeiro-ministro quiser.
O novo presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, esteve muito bem quando, no dia 8 de Abril, passado interrompeu um habitual discurso xenófobo de André Ventura contra os ciganos, para lhe dizer: “Permita-me que o interrompa para lhe dizer que não há atribuições coletivas de culpa em Portugal e, portanto, solicito-lhe que continue livremente a sua intervenção, como tem direito, mas respeitando este princípio.”
Perante o ar escandalizado do líder do Chega por esta inusitada interrupção, Augusto Santos Silva justificou-a com o n.º 3 do artigo 89º do Regimento do nosso Parlamento: “O orador é advertido pelo Presidente da Assembleia da República quando se desvie do assunto em discussão ou quando o discurso se torne injurioso ou ofensivo, podendo retirar-lhe a palavra”.
Augusto Santos Silva no passado dia 8 de Abril, enquanto repreendia André Ventura.
Há, porém, um detalhe neste artigo que, em democracia, estando previsto, acaba por ser um abuso se usado. Com efeito, nenhumas dúvidas sequer éticas ou morais assistem a que Ventura, ou outro qualquer deputado de qualquer partido, seja advertido pelo Presidente da Assembleia da República “quando o discurso se torne injurioso” – como, e muito bem, repita-se, fez Augusto Santos Silva. Porém, se o presidente do Parlamento avançar com a parte final do artigo – “podendo retirar-lhe a palavra” –, já consubstancia, mesmo se previsto no regimento, uma “possibilidade” de abuso.
Eu acho que Ventura deve ser advertido e contestado as vezes que forem necessárias. E serão muitas. E muitos outros também devem ser advertidos se for caso disso. Mas, numa democracia, retirar a palavra, impor o silêncio, ainda mais num Parlamento, é algo contra-natura; aí “derrotam-se” ideias ou argumentos com palavras; não com imposições de silêncio.
Julgar que se derrotam ideias, mesmo se más ou nefastas, com silêncio em vez de ser com palavras é um erro.
Numa sociedade democrática jamais se pode impor ideias ou argumentos restringindo a liberdade de expressão e de opinião. Isso fazem as ditaduras. A diferença entre uma ditadura e uma democracia não se estabelece apenas pela questão do sufrágio; isso é quase um pormenor.
Por isso mesmo, fico extremamente preocupado perante uma pergunta “retórica”– mas não ingénua – do mesmo Augusto Santos Silva, anteontem num encontro com jovens, em que abordou a velha questão da “desinformação”. Disse ele, passo a citar: “A pergunta que se coloca hoje é saber se o nível de ódio, de desinformação e até de violência que assaltou as redes sociais nos obriga ou não a ser um pouco menos minimalistas e um pouco mais avançados nesta regulação dos conteúdos das redes sociais”.
Já aqui defendi que a “desinformação” é uma externalidade negativa da existência da democracia; e que se uma democracia anunciar o fim da “desinformação” por decreto – passando a definir o que é verdade, podendo transformar as “verdades incómodas” em “desinformação” –, então passa a ser uma ditadura. Sem tirar nem pôr.
Ora, numa democracia pouco sólida – o mesmo se aplicando a uma ditadura –, facilmente se cai no abuso de rotular “desinformação” uma simples opinião minoritária, não necessariamente errada. Uma democracia pouco sólida tende assim a decretar o fim da “desinformação” usando, mesmo que eufemisticamente, as mesmas armas das ditaduras para controlar a liberdade de expressão: a censura e o silenciamento, através de leis ou comissões.
Ao invés, numa democracia sólida, a “desinformação” é auto-regulada – se for mesmo sinónimo de “falsa informação” –, e tende a ser reduzida ou eliminada pelo debate de ideias e pela liberdade de expressão. E sucede através de um processo pacífico – e não político ou governamental –, porque a sociedade tem, per si, e de forma inculcada na esmagadora maioria das pessoas, elevados padrões de Educação e de Cultura. E de convivência democrática, passe o pleonasmo.
Assim, quanto mais bem-sucedidas tiverem sido as políticas públicas de um país na área da Educação e da Cultura, menor será a probabilidade de proliferação de “desinformação”, e maior será a probabilidade de termos debates de ideias onde até as opiniões minoritárias tenham oportunidade de dirimir argumentos – e serem justamente sublimadas como verdades, ou eliminadas como falsidades.
Ora, nem de propósito, o senhor Professor Doutor Augusto Santos Silva – com um impressionante currículo académico e político – já foi tanto ministro da Educação (2000-2001) como ministro da Cultura (2001-2002). Pertenceu a Governos durante 14 anos.
Os seus Governos, e ele, falharam em incutir melhores padrões de Educação e de Cultura. Não conseguiu ele, por essa via, reduzir (ou eliminar) a “desinformação”.
A pergunta retórica do presidente da Assembleia da República só demonstra o quão débil se encontra a nossa democracia.
Não queiramos, não permitamos que ele, Augusto Santos Silva, por eventualmente se sentir um falhado político como membro de tantos Governos, queira acertar agora como presidente da Assembleia da República promovendo a eliminação da “desinformação” por decreto. E deitando fora, nesse nefasto processo, os princípios democráticos, e brindando-nos com uma ditadura. Sem tirar nem pôr.
Estou, em todo o caso, esperançoso que Augusto Santos Silva – com a sua proposta de controlar a “desinformação” através de uma alteração da Constituição da República – tenha tido apenas uma má ideia no sítio certo, na Assembleia da República. Afinal, lembremo-nos das suas palavras no passado dia 29 de Março, aquando da sua tomada de posse: “Todas as ideias podem ser trazidas, mesmo as que contestam a democracia. Essa é a mais óbvia vantagem da democracia sobre a ditadura”. Touché.
A Ordem dos Médicos abriu mesmo um processo disciplinar a Jorge Amil Dias, presidente do Colégio da Especialidade de Pediatria, por delito de opinião, através de uma queixa de médicos com ligações à indústria farmacêutica. Amil Dias está obrigado a responder até ao final deste mês. Este é já o segundo processo disciplinar intentado contra este especialista pela Ordem dos Médicos durante o mandato de Miguel Guimarães. Sempre por delito de opinião.
A Ordem dos Médicos, dirigida pelo urologista Miguel Guimarães, decidiu mesmo dar provimento à queixa de 16 médicos – alguns dos quais com fortes ligações à indústria farmacêutica, como Filipe Froes, Carlos Robalo Cordeiro e Luís Varandas – contra Jorge Amil Dias, presidente do Colégio da Especialidade de Pediatria.
A queixa já foi “processada” pelo Conselho de Disciplina da Regional Sul da Ordem dos Médicos, presidida por Maria do Céu Machado, ex-presidente do Infarmed, e o PÁGINA UM teve conhecimento que a acusação foi já formulada com vista à aplicação de uma sanção. O pediatra Amil Dias tem até ao final deste mês para apresentar defesa.
O “crime” deste renomado especialista em gastroenterologia pediátrica é simples de explicar: durante a pandemia da covid-19, tomou posição pública, a título pessoal, ao considerar a vacinação de crianças “desproporcionada” e “desnecessária”, além de advogar a relevância da imunidade natural. Além disso, foi um dos subscritores de um abaixo-assinado que integrou quase uma centena de médicos e outros profissionais de saúde, alertando também para os riscos da vacinação num grupo etário de baixíssimo risco.
O processo disciplinar contra o presidente do Colégio de Especialidade de Pediatria – que não é escolhido, assim como nos outros colégios, nas mesmas eleições do bastonário, e beneficia de independência – resultou de uma carta-denúncia no início de Fevereiro, assinada por médicos afectos ao bastonário e à indústria farmacêuticas.
Miguel Guimarães, que se manifestou incomodado por pediatras contrariarem as suas posições de médico urologista a falar de assuntos de pediatria, anunciou mesmo que levaria o assunto a reunião do Conselho Nacional Executivo. O PÁGINA UM sabe, contudo, que nenhum efeito teria: aquele órgão da Ordem dos Médicos não tem poder para destituir membros de um Colégio da Especialidade.
Mais do que qualquer castigo relevante que possa atingir Jorge Amil Dias, este processo da Ordem dos Médicos revela o “clima de guerra” que alimenta as relações entre estes profissionais de saúde no mandato de Miguel Guimarães, que escancarou portas a procedimentos inquisitoriais por meros delitos de opinião, sobretudo com o advento da pandemia.
Miguel Guimarães tem sido, além disso, criticado internamente por não acatar os pareceres técnicos dos Colégios de Especialidade – e até de os esconder publicamente, razão pela qual o PÁGINA UM está a preparar um processo de intimação junto do Tribunal Administrativo –, optando antes por criar órgãos de consulta não-estatutários.
Um exemplo paradigmático foi o Gabinete de Crise contra a Covid-19, dirigido por Filipe Froes, um dos médicos portugueses com mais relações promíscuas com a indústria farmacêutica. Só este ano, Filipe Froes vai já em 18 mil euros recebidos deste sector, aproximando-se assim dos 400 mil euros declarados no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed desde 2013.
Miguel Guimarães (à direita), urologista e bastonário da Ordem dos Médicos, ao lado de Carlos Robalo Cordeiro, um dos subscritores da queixa contra Jorge Amil Dias.
Embora Miguel Guimarães continue sem impor um código de conduta, optando por rodear-se de médicos com ligações à indústria farmacêutica – e a própria Ordem dos Médicos recebeu, no ano passado, cerca de 430 mil euros deste sector –, a sua veia punitiva não tem deixado de latejar contra quem não segue a sua opinião.
Além deste processo contra Amil Dias, a Ordem dos Médicos intentou, durante a pandemia, diversos processos a membros do denominado grupo Médicos pela Verdade. Até mesmo Fernando Nobre, fundador da AMI e ex-candidato à Presidência da República, foi alvo de um processo disciplinar com proposta de sanção, estando actualmente em fase de recurso.
Mas mesmo antes da pandemia, durante o “reinado” de Miguel Guimarães, a Ordem dos Médicos começou a querer punir profissionais que simplesmente davam a sua opinião. Um exemplo, apurou o PÁGINA UM, é a carta-aberta, publicada no jornal Público em Outubro de 2019, de um conjunto de 10 pediatras, entre os quais também Jorge Amil Dias, que criticava a então situação problemática das urgências pediátricas.
JOKE LANGENS e DIRK TIMMERMAN (tradução: Pedro Branco e Marta Jacinto)
Editora (Edição)
Casa das Letras (Março de 2022)
Cotação
10/20
Recensão
Por vezes, são os estrangeiros que, pelos seus olhos, nos revelam o quão bela e pitoresca é a nossa cidade. São eles que, amiúde, nos convencem, no entusiasmo dos seus encómios e deslumbres, a desfrutar de pequenas maravilhas que, por tão presentes no nosso quotidiano, nos escapam, se esfumam no bulício das nossas trepidantes e alheadas vidas.
Por esse motivo, aprecio sempre a visão dos estrangeiros sobre Portugal e, particularmente, Lisboa. Na historiografia portuguesa e olisiponense, sobretudo dos séculos XVIII e XIX, são célebres os relatos dos costumes e paisagens por olhos estranhos, para o nosso bem e para o nosso mal, pela visão de estrangeiros como Charles Fréderic de Merveilleux, Charles Brockwell, Joseph Baretti, Charles François du Périer (conhecido por Dumouriez), James Murphy e, em especial, Lord Byron.
Não se exigiria que Lisboa em 10 Histórias, da belga Joke Langens (em parceria com Dirk Timmerman, que curiosamente não aparece na capa), publicada pela Casa das Letras, viesse refazer essa tradição do quotidiano de uma cidade desvendada por olhos estrangeiros para surpreender também os nativos.
Mas, convenhamos, sendo este livro, como todos, uma aposta editorial – que assim “condicionará” a possibilidade de outro projecto similar nascer nos tempos mais próximos –, esperar-se-ia que fosse exigido muito mais. Dos autores e da edição.
Com efeito, Lisboa em 10 histórias anuncia na badana que na capital “não existe esquina, passeio ou recanto (…) que não esteja repleto de histórias por contar”, mas depois reduz-se a um mero repositório, em quase toda a sua extensão, de descrições como que retiradas de um qualquer vulgar compêndio histórico, cheio de lugares-comuns ou mesmo baseando-se em mitos sem sustentação na História.
Um dos casos mais marcantes (ou chocantes, pelo menos para mim) surge no capítulo sobre o terramoto de Lisboa, onde o papel supostamente pragmático do futuro marquês de Pombal é, também aqui, artificialmente sublimado. Um erro crasso. E também erradamente se salienta uma falsa rapidez na reconstrução da chamada Baixa Pombalina, que, na verdade, demorou décadas.
Isto já sem falar na questão religiosa, que também de forma errada é abordada: na verdade, nunca houve, naqueles tempos, uma visão científica sólida que defendesse a causa natural dos terramotos, e uma das primeiras medidas régias pós-terramoto até foi o pedido ao Papa para que o jesuíta São Francisco de Borja fosse “tido como patrono e protector” do Reino de Portugal contra novas calamidades deste género. Só a queda em desgraça dos jesuítas, após o atentado ao rei D. José I, terminaria com esta veneração.
Enfim, não ajuda na apreciação desta obra que logo a seguir, na sua quarta história, seja apresentada uma temerária tese logo no título: “Como Napoleão criou de forma involuntária o Fado”. A sequência de acontecimentos que os autores associam Napoleão ao fado são, na verdade, risíveis, e no mínimo são mais fracos do que aqueles que aliariam, se alguém assim quisesse, D. Afonso Henriques à nossa mais célebre forma de canto. Dizer que a História do Fado aqui retratada é demasiado forçada é um eufemismo.
Com estas duas “maleitas”, o livro tem depois dificuldades em se redimir. Embora a escrita seja escorreita, o registo nunca excede o tom jornalístico, demasiado descritivo, sem rasgos nem chama, mesmo quando o tema é a calçada portuguesa, a recuperação do Chiado, a Lisboa dos hotéis e seus espiões, a frente ribeirinha da Expo, os elevadores e eléctricos que dominam as colinas, ou a arte urbana – capítulo, aliás, de uma inaceitável pobreza franciscana, por se ater somente às obras do artista plástico Bordalo II.
O livro tem também uma enorme, enormíssima falha, pouco compreensível numa editora prestigiada. A escolha das fotografias é fraca, do ponto de vista qualitativo, os locais não estão identificados em legenda (portanto, impossível de ser visitado numa edição com pretensões a ser um guia), e existem falhas gritantes.
Não se compreende, por exemplo, que o capítulo do terramoto não tenha a foto de um dos seus símbolos – as ruínas do convento do Carmo –, e depois surjam três fotos distintas deste monumento no capítulo referente à recuperação do Chiado após o incêndio de 1988. O fogo não chegou às imediações do Largo do Carmo, ó céus! E, no capítulo do fado, nem um(a) fadista ou uma casa de fado com o seu ambiente nocturno para amostra.
Os centros de vacinação COVID (CVC) no Alentejo não dão alternativa imediata a quem não queira ser inoculado com doses de lotes que beneficiaram de extensão ad hoc do prazo de validade. Infarmed diz agora que houve autorização da Agência Europeia do Medicamento, mas não disponibiliza o documento nem apresenta justificação para o secretismo da medida. Ministra da Saúde mantém silêncio, não se sabendo sequer quantas pessoas foram vacinadas nestas condições nem sequer como e quem avaliará eventuais efeitos adversos da decisão de maximizar o uso de vacinas apenas para, supostamente, se poupar algum dinheiro.
Diversos Centros de Vacinação COVID (CVC) do Alentejo que estão a usar lotes de vacina fora de prazo de validade – cuja administração obteve uma autorização informal do Infarmed, através de um simples e-mail enviado em Março, conforme ontem divulgado pelo PÁGINA UM – estão a recusar uma alternativa imediata aos utentes que não queiram ser injectados nessas condições. Se recusarem, as pessoas não são vacinadas com outro lote, e ficam a aguardar convocatória em data incerta.
Contudo, não é certo que todos os utentes estejam a ser avisados, uma vez que o consentimento informado para a administração destas vacinas é meramente oral, sem comprovativo escrito sobre as condições das vacinas e efeitos adversos previsíveis apresentados de forma quantitativa.
Em causa está assim um número indeterminado de doses pertencentes a três lotes específicos de vacinas contra a covid-19, e que receberam uma autorização ad hoc para continuarem a ser administradas após o prazo de validade. São os casos dos lotes FP9632 e 1F1047A da vacina Comirnaty/Pfizer (com prazo de validade até 14 de Março e 5 de Março, respectivamente), e ainda do lote 000063A da vacina Spikevax/Moderna. Para o lote desta segunda vacina, alguns frascos tinham expirado o prazo de validade em 27 de Fevereiro e outros em 4 de Março.
Em circunstâncias normais, os frascos destes lotes deveriam ser imediatamente destruídos após esgotar-se o prazo de validade, segundo as normas do “resumo das características do medicamento” – inseridas no Portal Infomed. Porém, em Março, através de uma simples comunicação por correio electrónico à Administração Regional de Saúde (ARS) do Alentejo, o Infarmed concedeu uma autorização de prorrogação do prazo de validade .
Essa autorização especial não consta, porém, em qualquer das habituais circulares informativas do Infarmed nem sequer foi introduzida, com identificação dos lotes em causa, no resumo das características do medicamento.
Ontem à noite, pelas 22:21 horas, o PÁGINA UM recebeu um esclarecimento do Infarmed – por “solicitação do gabinete de comunicação do Ministério da Saúde”, informando que “a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) aprovou, este ano, a extensão do prazo de alguns lotes de vacinas contra a COVID-19, em condições de ultracongelação”, acrescentando ainda que “a extensão de prazo, de três meses e de seis meses aplica-se a todos os Estados-membros e tem efeitos retroactivos relativamente a lotes de injetáveis produzidos antes da aprovação.”
Em vez de uma circular informativa, que esclarecesse e justificasse a medida de prorrogação do prazo de validade, o Infarmed decidiu apenas comunicar por correio electrónico a sua decisão ad hoc à ARS do Alentejo. Ignora-se quantas doses já foram usadas dos lotes em causa.
No entanto, apesar de reiterado o pedido de indicação dos lotes autorizados, o Infarmed não respondeu. O PÁGINA UM tentou obter informação no site da EMA, mas sem sucesso. Existem, no entanto, autorizações especiais de prorrogação de prazo para certos lotes da vacina da Pfizer pelo National Health Service (NHS), do Reino Unido, mas nenhum dos lotes são aqueles que o Infarmed autorizou ad hoc para o Alentejo.
O Infarmed também não quis explicar os motivos para não ter sido produzida qualquer circular – como é habitual sempre que formalmente existe uma decisão do Conselho Directivo – sobre esta matéria.
No seu esclarecimento de ontem, o INFARMED diz apenas que a decisão de “utilização das vacinas” fora do prazo se baseou em “estudos de estabilidade apresentados pelos laboratórios”, mas não os enviou nem nunca os disponibilizou.
Após a recepção deste esclarecimento, o PÁGINA UM questionou ainda o Infarmed no sentido de saber se o regulador informou a ministra da Saúde sobre a decisão de administrar vacinas fora do prazo sob autorização “especial”. E questionou também o Infarmed sobre se não se estaria perante um “ensaio clínico” ilegal, porquanto, como o PÁGINA UM salientou ontem, nos e-mails entre o Infarmed e a Administração Regional de Saúde do Alentejo prevê-se a monitorização específica das pessoas injectadas com vacinas fora do prazo inicial de modo a avaliar posteriormente os efeitos adversos e a efectividade vacinal.
O PÁGINA UM também insistiu, junto dos três assessores de imprensa da ministra da Saúde, Marta Temido, para saber se o Governo tinha conhecimento deste expediente autorizado pelo Infarmed, para conhecer se outras ARS foram abrangidas, quantas pessoas tinham sido vacinadas com estes lotes e se esta estratégia será mantida. Não houve, até agora, qualquer resposta.
No Alentejo, foram administradas a um número indeterminado de pessoas vacinas contra a covid-19 fora do prazo. A decisão foi tomada no passado mês de Março em articulação entre o Infarmed e a Administração Regional de Saúde daquela região, mas sem base legal e contra as normas dos fabricantes. Apesar de garantir ser um processo seguro, o Infarmed acabou por estabelecer a obrigatoriedade de recolha de informação sobre as pessoas injectadas com estes lotes para posterior avaliação de eventuais acréscimos dos efeitos adversos ou de redução da efectividade vacinal. O PÁGINA UM revela os lotes das vacinas da Pfizer e da Moderna que foram injectadas já depois de expirar o prazo de validade. O Ministério da Saúde (ainda) não comentou se sabia desta decisão nem esclareceu (ainda) se houve mais lotes fora do prazo usados em outras regiões do país.
O Infarmed autorizou o uso de três lotes de vacinas contra a covid-19 fora do prazo de validade em centros de vacinação do Alentejo durante o mês de Março e Abril, em condições que aparentam um ensaio clínico não autorizado, que não cumpre os mínimos princípios éticos e de consentimento informado.
De acordo com mensagens electrónicas a que PÁGINA UM teve acesso, na noite de 14 de Março passado a directora do Departamento de Contratualização da Administração Regional de Saúde (ARS) do Alentejo, Sandra Silva, informou diversos responsáveis daquela região que “tendo em consideração as quantidades de vacinas existentes nas ARS com prazo de validade excedido”, o Infarmed tinha autorizado a sua utilização.
Em causa estava um número indeterminado de frascos dos lotes FP9632 e 1F1047A da vacina Comirnaty/Pfizer, com prazo de validade até 14 de Março e 5 de Março, respectivamente, e ainda um lote 000063A da vacina Spikevax/Moderna, sendo que alguns frascos tinham expirado o prazo de validade em 27 de Fevereiro e outros em 4 de Março.
No e-mail daquela noite, além de acrescentar que seria enviada no dia seguinte “informação mais detalhada”, Sandra Silva transcrevia o parecer do Infarmed, constituído somente por duas frases escritas em português algo macarrónico: “Podem ser utilizadas as referidas vacinas dos lotes abaixo mencionadas por mais 15 a 30 dias apos o prazo de validade expirado de 30 dias referente ao prazo após descongelação, nas condições de 2C a 8C no entanto deverá ser preenchido no sistema Vacinas a administração das referidas vacinas mencionando validade e data de descongelação, de modo a monitorizar reações adversas se as mesmas existirem. Mais se informa que os referidos lotes de vacinas foram avaliados pelo Infarmed no que diz respeito à integridade do mRNA quando libertadas pelo fabricante da vacina”.
E-mail enviado pela directora do Departamento de Contratualização da ARS do Alentejo na noite de 14 de Março passado, informando sobre a decisão do Infarmed.
No site do Infarmed não consta qualquer aviso sobre esta matéria. Sobre as condições de conservação das vacinas covid-19, a última actualização é de 3 de Fevereiro deste ano, onde nada consta sobre a possibilidade de alargamento do prazo de validade.
E no Portal Infomed, e no caso do resumo das características do medicamento da vacina Comirnaty/Pfizer, além de se elencar de forma exaustiva as exigentes condições de conservação, salienta-se que, após descongelação, “os frascos para injectáveis por abrir podem ser conservados durante um total de 10 semanas a uma temperatura entre 2 oC e 8 oC, nunca ultrapassando o prazo de validade (VAL) impresso”.
No caso especifico da Spikevax/Moderna, o resumo das características do medicamento no Portal Infomed vão no mesmo sentido: “Não utilize esta vacina após o prazo de validade impresso no rótulo após VAL [prazo de validade]. O prazo de validade corresponde ao último dia do mês indicado”.
Em todo o caso, nunca fazendo referência às indicações dos fabricantes, na manhã do passado dia 15 de Março, a directora de Inspecção e Licenciamentos do Infarmed, Maria Fernanda Ralha, enviou um e-mail para ARS do Alentejo, explicitando melhor a “autorização” concedida.
Na mensagem aquela responsável do Infarmed garantia que “os referidos lotes das vacinas Comirnaty adulta e Spikevax mantém-se estáveis assumindo-se que nenhuma das outras condições de conservação/transporte aprovadas foi excedida [e que] poderão eventualmente se manter , por mais 15-30 dias, para além da validade aprovada quando as vacinas forem mantidas entre 2ºC e 8ºC desde a sua descongelação” (sic).
Maria Fernanda Ralha sugeria também que, “pela natureza destas vacinas COVID-19 e pelos dados de estabilidade disponíveis para outros lotes”, não se antevia para estes lotes fora de prazo “problemas de segurança”, mas em seguida acrescentava que “há no entanto que estar atentos a eventuais notificações de reações adversas em utentes que receberão estas doses pelo que é recomendado o registo deste desvio às condições aprovadas na plataforma Vacinas”. (sic)
Nessa medida, esta responsável do Infarmed acabou por instruir os responsáveis da ARS do Alentejo para tomarem obrigatórios “procedimentos, tendo em conta a salvaguarda da saúde pública”, entre os quais o registo na plataforma Vacinas da data de descongelação e administração da dose da vacina fora de prazo, de modo a ser possível uma “futura avaliação da efetividade vacinal e eventuais questões de farmacovigilância decorrentes destes desvios”.
Ou seja, assumia subliminarmente que não existiam certezas sobre a inocuidade do prolongamento do prazo de validade nem tão-pouco se ficaria afectada a protecção vacinal.
Esta decisão do Infarmed e da ARS do Alentejo não se deveu a qualquer quebra de stock de vacina. Pelo contrário, tem sido a fraca adesão às doses de reforço, sobretudo da população abaixo dos 50 anos, que tem causado “sobras” e, portanto, risco de partes de lotes expirarem o respectivo prazo de validade. Tanto assim é que a responsável do Infarmed recomendou que “as vacinas descongeladas e cujo prazo de validade aprovado já foi ultrapassado devem ser usadas antes de vacinas descongeladas em qualquer uma das datas subsequentes e só quando terminar o stock existente se passe para as vacinas descongeladas noutros dias”. (sic)
O PÁGINA UM contactou Maria Fernanda Ralha, directora de Inpecção e Licenciamentos do Infarmed, que não quis fazer comentários sobre este assunto, alegando estar de férias e que todas as informações respeitantes às vacinas contra a covid-19 deveriam ser fornecidas pela Direcção-Geral da Saúde.
Também o gabinete da ministra da Saúde, Marta Temido, foi questionado sobre se tinha conhecimento desta decisão do Infarmed e da ARS do Alentejo, e sobre quantas pessoas tinham sido vacinadas com vacinas fora do prazo de validade. E também se questionou o Ministério da Saúde sobre se noutras regiões se tinha usado similar procedimento, e se sim, se este procedimento seria mantido no futuro. Não houve, até agora, qualquer reacção.
Sobretudo a partir de 2020, os principais grupos de media olham para o jornalismo como “galinhas de ovos de ouro” e têm estado a assinar cada vez mais contratos de prestação de serviços com autarquias e mesmo com órgãos do Governo. O PÁGINA UM detectou já 56 contratos susceptíveis de condicionar ou limitar a linha editorial de órgãos de comunicação social de âmbito nacional. Não estão aqui incluídos contratos comerciais com empresas privadas envolvendo “mercantilização” de jornalistas. Conheça e consulte os contratos em causa.
O Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) diz ter conhecimento da existência de contratos entre a imprensa e entidades públicas susceptíveis de condicionar ou limitar a autonomia editorial, mas recusa confirmar se irá em concreto investigar os principais grupos de media nacionais que assinaram contratos “suspeitos” com entidades públicas.
Na deliberação de 16 de Março passado, em que se confirmou a existência de uma “prescrição de gaveta” que beneficiou o Porto Canal – controlado pelo Futebol Clube do Porto SAD – é afirmado que “amiúde são divulgadas notícias relativas a este [Porto Canal] e outros órgãos de comunicação social, alguns passíveis de avaliação através do portal dos contratos públicos (…), nada obstando que o Conselho Regulador da ERC, querendo, determine a abertura de um procedimento de fiscalização desta natureza, eventualmente mais abrangente”.
Público, e o seu director Manuel Carvalho, têm executado contratos comerciais susceptíveis de interferirem com a independência editorial do jornal.
Tendo em consideração que o PÁGINA UM tem vindo a denunciar diversos casos de prestações de serviços com a participação de jornalistas e mesmo directores – nomeadamente do Público, Expresso, Diário de Notícias, Jornal de Notícias, TSF, Visão e SIC, entre outros –, foi solicitado em 21 de Abril passado ao presidente da ERC, Sebastião Póvoas, que esclarecesse se já tinham sido abertos “procedimentos de fiscalização” e, se sim, que identificasse os órgãos de comunicação social. Pediu-se também que, no caso de não ter sido aberto qualquer procedimento, que fosse indicada a razão para tal, uma vez que a ERC admitia ter conhecimento de diversos casos.
A resposta ao PÁGINA UM apenas surgiu ontem, dia 5 de Maio. Sebastião Póvoas diz que “o Conselho Regulador solicitou, nesta data, à Unidade de Transparência de Media (UTM) que procedesse ao rastreio, no Portal dos Contratos Públicos, de contratos de entidades públicas com o Porto Canal que possam colocar em causa os princípios pelos quais se deve pautar e cuja observância incumbe à ERC garantir”.
Sobre a realização concreta de diligências para investigar cláusulas ilegais ou suceptíveis de colocarem em causa a isenção editorial e informativa em contratos de prestação de serviços assinados por grupos de media nacionais – como a Global Media (detentora, entre outros, do Jornal de Notícias, Diário de Notícias e TSF), a Impresa (Expresso e SIC), Trust in News (Visão, Jornal de Letras e Exame), Cofina (Correio da Manhã, CMTV, Sábado e Jornal de Negócios), Público e TVI –, o presidente do Conselho Regulador da ERC nada disse.
Exemplo de um contrato de prestação de serviço: Câmara do Barreiro pagou quase 20 mil euros por um debate e cobertura noticiosa no Diário de Notícias. O debate foi moderado pela subdirectora do DN, Joana Petiz.
Instado esta manhã a esclarecer se a não-menção a outros grupos de media na sua resposta ao PÁGINA UM, significava ou não que aqueles estariam isentos a uma investigação, a ERC manteve-se em silêncio.
O PÁGINA UM decidiu assim, elencar uma lista exaustiva de contratos “suspeitos” entre entidades públicas e os principais grupos de media assinados desde o ano de 2020, ou ainda em vigor naquele ano.
De entre esses contratos, nenhum se refere a contratos de publicidade – que são absolutamente legais e constituem o financiamento habitual da imprensa – nem à venda de assinaturas nem à realização de eventos ou encartes promovidos pelos departamentos comerciais e de marketing sem participação de jornalistas ou sem interferência na linha editorial do órgão de comunicação social.
No total, foram identificados 56 contratos, cinco dos quais de 2022 e 27 assinados em 2021. Por grupos de media, a Global Media (e subsidiárias) assinou 19, a Cofina 15, a Trust in News sete, a Impresa e Público seis cada, e a TVI três.
O jornalista Paulo Baldaia foi o “mestre de cerimónias” de um evento pago pelo Ministério do Ambiente em Dezembro do ano passado. A SIC recebeu 19.750 euros por uma emissão a promover uma acção governativa.
Nesses contratos, grande parte dos quais de simples prestação de serviços, encontram-se envolvidas mais de duas dezenas de câmaras ou empresas municipais. E estão também órgãos do Governo. Em diversos casos, o Governo financiou a divulgação e promoção de iniciativas governamentais em órgãos de comunicação social, através de eventos em que jornalistas funcionaram como “mestres de cerimónias”. Os 56 contratos identificados pelo PÁGINA UM envolveram um total de 1.936.340 euros.
A selecção de contratos “suspeitos”, realizada pelo PÁGINA UM, agrega a prestação de serviços para a produção de eventos com a participação activa de jornalistas ou o pagamento de cobertura noticiosa (excluindo publireportagens ou encartes). Em diversos desses contratos, sobretudo para a realização de eventos, já participaram mesmo directores de órgãos de comunicação social, como Manuel Carvalho (Público), Rosália Amorim (Diário de Notícias), Inês Cardoso (Jornal de Notícias) e Mafalda Anjos (Visão).
Rosalia Amorim, directora do Diário de Notícias, é uma habitué na moderação de eventos realizados pela Global Media e pagos pelo Estado, empresas e autarquias.
Em diversos destes contratos, não é possível esclarecer, através do Portal Base, todos os detalhes da prestação de serviços, uma vez que o adjudicante (a entidade pública) não inseriu o caderno de encargos no Portal Base, uma sistemática forma de manter a obscuridade de muitos contratos públicos.
O PÁGINA UM poderia solicitar os cadernos de encargos de todos estes contratos, mas essa tarefa hercúlea não é função de um pequeno órgão de comunicação independente com escassos meios humanos. É função do regulador. Mesmo de um regulador que faz “prescrições de gaveta” ao fim de quatro anos.
LISTA CRONOLÓGICA DOS CONTRATOS NO PORTAL BASE ASSINADOS POR EMPRESAS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
Nota: clicando no nome de entidade adjudicante pode consultar os dados do contrato. Nos casos em que se apresenta o título de um órgão de comunicação social, significa que foi identificada uma cobertura noticiosa e/ou participação activa de jornalistas na execução desse contrato comercial.
Produção de três vídeos e campanha de divulgação dos mesmos em canal de imprensa escrita, digital, papel e televisão para o Programa Operacional Capital Humano (POCH).
Aquisição de serviços de Media Partner para a realização do Evento Anual do POSEUR – Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos.
Programa de Dinamização da Economia Local (Praça do Natal 2021), incluindo a definição e promoção da comunicação e divulgação do evento junto da imprensa e de outros meios de comunicação social.
Aquisição de serviços para evento para divulgação dos Resultados da avaliação da estratégia de comunicação do POCH através de um talk-webinar a realizar presencialmente e online.
Aquisição, sem exclusividade, do direito de uso temporário das marcas “Splash Seixal” e “Cofina Boost Solutions”, respectiva activação e execução plano de promoção e publicidade.
Aquisição de serviços para elaboração da “Comunicação e divulgação da Estratégia do Cávado 2030 (programação dos FEEI 2021-2027 no território do Cávado)”.
Aquisição de serviços de campanha de comunicação para divulgação e promoção do seminário “O investimento público no pós-pandemia”, a realizar nos Paços do Concelho.
Aquisição de serviços de elaboração, produção e impressão de duas revistas, em formato físico e digital, assim como de 6 (seis) newsletters a desenvolver para e com a COTEC no âmbito do Programa Advantage 4.0..
Aquisição de serviços para uma Campanha de Comunicação no âmbito do Plano de Apoio Económico e Social, para os estabelecimentos de comércio tradicional a retalho e de restauração e bebidas, durante 20 dias no Diário de Noticias (Digital e imprensa).
TIN PUBLICIDADE E EVENTOS, LDA. (Jornal de Letras)
Programa de Dinamização da Economia Local (Praça do Natal 2020), incluindo a definição e promoção da comunicação e divulgação do evento junto da imprensa e de outros meios de comunicação social.
Aquisição de Serviços de Organização da Conferência “Aveiro no Centro da Resposta à Pandemia”, no âmbito do “JN Praça da Liberdade – Ciclo de Conferências”.
A emissão de um clip promocional/conteúdo com uma cara TVI com 120” de promoção turística do destino Açores nos canais televisivos TVI, TVI24 e TVI Ficção, com presença obrigatória em programa de Manuel Luís Goucha.