Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Sim, sou um jornalista que faz perguntas; e isso incomoda até os jornalistas… e o Instituto Superior Técnico, claro

    Sim, sou um jornalista que faz perguntas; e isso incomoda até os jornalistas… e o Instituto Superior Técnico, claro


    No jornalismo há heresias. E há hereges. Bem sei, e por isso, herege me confesso: faço perguntas. Muitas perguntas. Faço perguntas incómodas. Sou relapso e pertinaz: insisto em fazer perguntas e incómodas perguntas. E até pergunto a pessoas que se incomodam porque lhes fazem perguntas. E as pessoas que mais se incomodam quando lhes fazem perguntas são paradoxalmente as pessoas cuja principal função é fazerem perguntas. Questionarem. Questionarem-se.

    Os jornalistas, hélas.

    people raising their hands

    Sim, os jornalistas gostam de fazer perguntas; mas detestam que lhes façam perguntas. Ofendem-se se lhes fazem perguntas. Muitos pelam-se em ser inquisidores, em ser verificadores de factos, em serem, enfim, fact checkers, mas jamais aceitam de bom grado o papel oposto.

    Quando, na sexta-feira passada, abordei a recusa do Instituto Superior Técnico (IST) em ceder um pretenso relatório que atribuía mortes concretas aos festivais musicais e às festas populares, não estava em causa apenas a legítima desconfiança sobre a idoneidade científica de investigadores universitários, obrigados ao cumprimento de uma ética de abertura à comprovação e ao debate.

    Em Portugal, perguntar ainda é visto como sinónimo de desconfiança; e se assim é, em muitos casos deve-se ao facto de existirem motivos para tal; e quem se incomoda por ser alvo de desconfiança – ou dúvida –, na verdade é porque tem motivos fundados, íntimos, para não querer justificar-se.

    Por isso, a recusa do IST – que, certamente, será dirimida no Tribunal Administrativo de Lisboa, até porque o senhor professor Rogério Colaço não pagará aos advogados nem pagará custas nem sequer se envergonhará nem se demitirá se um juiz o obrigar a ceder documentos públicos ou a admitir que estamos perante um relatório-fantoche – releva outro tipo de problema. Grave. Muito grave.

    Instituto Superior Técnico: um bastião da Ciência?

    Ou melhor, vários, e todos muito graves.

    Primeiro, o jornalista (não identificado) da Lusa que relatou ter tido acesso a um relatório do IST tinha a obrigação – de contrário só pode ser tachado, sem complexo, de falta de rigor e ser um “pé de microfone” – de o validar, com sentido crítico. Teria de se questionar se, efectivamente, era plausível que as festividades e o levantamento das restrições em Junho passado tivessem tido a responsabilidade pela morte de 790 pessoas com covid-19, das quais 330 associadas às festas populares.

    O jornalista da Lusa não podia ignorar que a sua própria agência noticiosa tinha divulgado, em 8 de Junho, umas previsões da mesma equipa de investigadores do IST, que se mostraram um falhanço rotundo.

    Esse relatório de 6 de Junho – esse sim, comprovadamente publicado – estimara que “o número de contágios produzidos sem máscara com os níveis actuais de susceptíveis, em eventos como ‘Rock in Rio’ ser[ia] de 40.000 no total, sendo maior no caso dos santos populares em Lisboa e Porto”, e apontara para “um mínimo de 60.000 contágios nos dias mais movimentados em Lisboa e 45.000 no Porto”. Os investigadores do IST garantiam então, nesse início de Junho, que “todas as festas populares no país poder[iam] traduzir-se num total de contágios directos de, num mínimo, de 350.000 no país, podendo atingir valores mais elevados se novas variantes entr[ass]em em Portugal.”

    woman covering her face with white book

    Ora, na verdade o número de casos positivos em Portugal – em todo o território – foi quase linearmente diminuindo ao longo de Junho. Sempre. Paulatinamente. Não houve qualquer aumento nem estagnação. Nem com festas nem sem festas.

    O SARS-CoV-2, caprichoso bicho, foi imune às vontades e às presciências dos modelos catitas dos senhores professores do IST. Do ponto de vista epidemiológico, o impacte das festividades foi nulo. E nem era preciso ser matemático, nem inteligente – bastaria ser um jornalista decente e com uma destreza numérica de quarta classe – para verificar que jamais se poderia identificar, com um modelo matemático ou de forma empírica, qualquer incremento nas transmissões.

    Por absurdo, na realidade, em quantas mais festas se entrava – Santo António, São João, Rock in Rio e outros festivais –, menos casos positivos surgiam.

    Por exemplo, para todo o país, no dia 1 de Junho a média móvel de sete dias estava nos 24.602 casos positivos para todo o país, no dia 8 tinha descido para 20.575 casos, no dia 15 já estava nos 15.368 casos positivos, no dia 22 baixou para os 12.939 casos positivos e no final do mês estava mesmo abaixo dos 10 mil casos.

    Durante o mês de Junho, para desespero dos senhores investigadores – inexactos nas estimativas e precisos no erro –, a covid-19 acelerou mas na redução. Em Julho sucedeu o mesmo. De acordo com os dados do Worldometer para Portugal, no final de Julho contabilizavam-se 3.258 casos positivos (média móvel de sete dias).

    Evolução dos casos positivos de covid-19 em Portugal. Desde o início de Junho, os casos diminuíram de quase 25 mil para cerca de três mil em finais de Julho. Fonte: Worldometers.

    Perante isto – e sobretudo perante o facto de o take da Lusa ter proliferado como notícia viral por outros órgãos de comunicação social –, será legítimo que eu desacredite na veracidade de um relatório, mesmo se citado por jornalistas? Eu julgo que sim, sobretudo porque, de forma clara, não foram cumpridos pelo jornalista da Lusa os preceitos de rigor e de isenção exigíveis à profissão.

    Ademais, não se vislumbra qualquer motivo plausível para que o IST – uma instituição pública da área da Ciência – tenha escolhido especificamente a Lusa para ceder um suposto relatório em exclusivo e recusado posteriormente, e de forma tão enfática e veemente, o acesso a outros órgãos de comunicação social.

    Será porque só a Lusa tem jornalistas credíveis e com capacidade para tratar estudos estatísticos e epidemiológicos? Ou será antes o contrário: os jornalistas da Lusa são permeáveis a aceitar qualquer tipo de “relatório”?

    É, portanto, legítimo um jornalista pedir à direcção da Lusa que lhe apresente uma prova – e não necessariamente o relatório, porque essa é, na verdade, uma obrigação do IST – da existência do dito relatório. E perguntar se foram cumpridas as regras deontológicas e de verificação interna da veracidade dos elementos?

    selective focus photography of people sitting on chairs while writing on notebooks

    Claro que é. Defendo ser justificável e, neste caso em concreto, as dúvidas subsistirão, legitimamente, até que o relatório veja mesmo a luz do dia e possa ser analisado do ponto de vista jornalístico e científico. A gravidade do caso exige-o.

    Mas, na mesma medida que é legítimo eu perguntar, também é legítimo que a jornalista Maria de Deus Rodrigues, directora-adjunta de Informação da Lusa, responda da seguinte forma: “O relatório que refere existe, naturalmente, caso contrário a Lusa não teria feito notícia. E foi tratado segundo as regras jornalísticas. Não cabe à Lusa, no entanto, facultar estudos a terceiros, o que é uma prorrogativa dos autores do mesmo.”

    E, perante estas duas posições – e de não termos provas cabais da existência de um relatório cuja revelação a terceiros é recusado por uma instituição pública científica – que os leitores formem a sua opinião. No limite, que até me critiquem.

    Na verdade, até eu – mantendo dúvidas sobre a existência formal deste (inacreditável) relatório – já formei uma opinião: nos moldes transcritos pela Lusa, gostava que este suposto documento não existisse, porque a existir constituirá uma vergonha científica – as supostas conclusões, com atribuições de mortes concretas, é uma vergonha científica, repito. Existir um relatório assim, saído do IST, será pior do que nunca ter existido, porque aí só estaríamos perante uma fraude. Assim, estamos perante uma vergonha para a credibilidade das instituições científicas portuguesas.

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    Mas, além de tudo isto, há um aspecto que verdadeiramente me preocupa: a facilidade que a imprensa mainstream tem de propalar notícias, tanto verdadeiras como falsas sem qualquer verificação prévia séria. Questionei responsáveis editoriais do Público, Observador, Visão, TSF, Correio da Manhã, jornal i, Sábado e CNN Portugal para saber se, tendo sido publicado o take da Lusa, houvera uma confirmação da veracidade dos dados, se houve confronto de outras fontes e, hélas, se alguém vira o famigerado relatório do IST.

    Só dois responderam: Sábado e jornal i. E confirmaram que não tinham tido acesso ao relatório. Depreendo que todos os outros também não, até porque nem responderam… Responder a perguntas de um jornalista? Onde isso já se viu?

    Mas o relatório existe, diz-nos a Lusa. E existe mesmo, mas só se tivermos fé. É nesta fase que hoje o jornalismo está: acredita por uma questão de fé, de confiança, sem questionar. E quem questiona, ah!, malvado! abrenúncio!, arreda satanás!, meu apóstata!, seu herege!

  • Morticínio da Primavera continua no Verão, enquanto o Governo esconde dados e Procuradoria-Geral da República se mantém impávida

    Morticínio da Primavera continua no Verão, enquanto o Governo esconde dados e Procuradoria-Geral da República se mantém impávida

    Nono mês consecutivo sempre acima de 10.000 óbitos. Enterrou-se como nunca em Maio, Junho e Julho deste ano. O mais recente trimestre superou em 20% a média do último quinquénio, ultrapassando as 31 mil mortes. O Governo nada diz e a Procuradoria-Geral da República meteu todos os magistrados em “férias grandes”. Retrato de um país “esquizofrénico” que, ainda há pouco tempo, garantia que todas as vidas contavam.


    Nove meses seguidos de mortalidade mensal sempre acima dos 10.000 mil óbitos já seria, por si só, calamitoso. Nunca antes sucedeu uma sequência tão longa a superar esta fasquia, mas as estatísticas mostram já muito mais do que uma mera calamidade. Estaremos ao nível de uma catástrofe ímpar; e ímpar até pelo ensurdecedor silêncio de políticos e magistrados.

    O PÁGINA UM faz, entretanto, contas. Este Julho – que termina dentro de algumas horas, e mesmo faltando apurar números definitivos, sobretudo dos últimos dias – será garantidamente o pior de sempre desde que existem registos. E será certamente um máximo histórico para este mês em função da população nacional e da sua estrutura etária.

    woman sitting head resting on hands statue

    De acordo com os dados do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), pelas 18:40 horas de hoje, estavam já contabilizados 10.527 óbitos por todas as causas desde o dia 1 de Julho. Certamente, o valor final superará os 10.600 – aliás, dentro das estimativas feitas pelo PÁGINA UM na passada quarta-feira –, ultrapassando assim o máximo anterior, o ano 2020.

    Recorde-se que, há dois anos, num cenário pós-primeira vaga da pandemia – e quando a mortalidade por covid-19 rondava então somente três óbitos por dia –, o tempo mais quente causou um excesso de mortalidade nunca bem explicado.

    Foi neste contexto que morreram quase duas dezenas de idosos num lar de Reguengos de Monsaraz, em parte por abandono e negligência. Nesse período, a Direcção-Geral da Saúde ainda desaconselhava o uso de ar condicionado por alegado perigo (nunca provado) de disseminação do SARS-CoV-2, agudizando assim as condições de saúde dos mais vulneráveis.

    O mês de Julho de 2020 acabou assim com um saldo de 10.413 óbitos, de acordo com dados definitivos do Instituto Nacional de Estatística, o que já era um valor completamente anormal. Por regra, Julho é o segundo mês menos mortífero do ano (8.151 óbitos no quinquénio anterior à pandemia), ultrapassando apenas Setembro (7.885 óbitos no mesmo período).

    Porém, mais grave ainda do que um Julho de 2022 anormalmente mortífero – com um recorde absoluto e ostentando os dois dias do ano mais letais (dias 14 e 15 com 458 e 454 óbitos, respectivamente) –, é este suceder a um Junho e a um Maio que também bateram recordes absolutos. E em larga escala.

    Com efeito, o Junho deste ano terminou com 10.216 óbitos. Nunca noutro qualquer ano se superara os 10 mil. Cruzando os dados do INE e do Pordata, o Junho anterior mais mortífero foi o de 1981, com 8.867 óbitos, que ficou marcado por uma avassaladora onda de calor de 11 dias seguidos, e que terá causado um excesso de 1.906 óbitos.

    Por sua vez, em Maio deste ano contaram-se 10.373 mortes por todas as causas, bem acima do pior ano anterior: Maio de 2020, em plena primeira vaga da pandemia, contabilizou 9.595 óbitos agregando todas as doenças.

    Para destacar a situação inaudita que se tem estado a viver em 2022 – com o Governo a furtar-se a dar justificações e a recusar revelar bases de dados que intencionalmente esconde –, saliente-se que o mais recente Abril foi o segundo pior de sempre e o Março o quarto.

    Mortalidade acumulada no trimestre Maio-Junho-Julho entre 1980 e 2022. Fonte: INE e Pordata. Análise: PÁGINA UM.

    O morticínio do trimestre Maio-Julho deste ano – pela sua dimensão e persistência – também se releva quando se comparam períodos homólogos. No total, nestes três meses foram já contabilizados 31.116 óbitos, superando em mais de 2.500 mortes o segundo pior trimestre homólogo (2020, com 28.575 mortes).

    Se se considerar a mortalidade média deste trimestre no último quinquénio (2017-2021), o excesso de mortalidade deste ano é de 5.211 óbitos, ou seja, um acréscimo de 20%. Ou, se se quiser noutra perspectiva, em média, nos meses de Maio, Junho e Julho morreram a mais 56 pessoas todos os dias. Todos os 92 dias, incluindo dias úteis, feriados e fins-de-semana.

    E isto incluindo dois dos anos em que a pandemia da covid-19 esteve já presente, um dos quais (2020) sem vacina e com quase toda a população ainda sem contacto com o SARS-CoV-2.

    Apesar deste morticínio da Primavera e Verão de 2022, a mortalidade total acumulada desde o início de Janeiro ainda não supera o ano passado, marcado por um excesso inaudito de óbitos sobretudo em Janeiro e Fevereiro.

    Porém, caso se mantenha a tendência dos últimos meses – que está a atingir especialmente os maiores de 85 anos, o ano de 2022 ultrapassará os níveis de mortalidade total acumulada de 2021 ao longo do próximo mês de Agosto, algo que seria improvável acontecer em Fevereiro último.

    Diferencial acumulado de óbitos por todas as causas ao longo do tempo (até 29 de Julho) entre 2022 e 2021. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Com efeito, uma vez que os dois primeiros meses de 2021 foram anormalmente letais, o diferencial no dia 28 de Fevereiro entre este ano e o ano passado era então de 10.003 óbitos – ou seja, em 2022 morreram em Janeiro e Fevereiro menos 10.003 pessoas do que no ano passado.

    Porém, a partir de Março deste ano a mortalidade disparou, pelo que o diferencial se situa agora em redor de apenas 1.500 óbitos. Se Agosto se mantiver em 2022 tão mortífero como foram os últimos cinco meses, ter-se-á apenas de adivinhar o dia em que o presente ano supera o de 2021 em número acumulado de óbitos.  

  • A opacidade científica do Instituto Superior Técnico e a recusa do senhor presidente via Galaxy

    A opacidade científica do Instituto Superior Técnico e a recusa do senhor presidente via Galaxy


    Ontem, relatei exaustivamente, a novela envolvendo o meu singelo pedido para obtenção dos relatórios e ficheiros informáticos relacionados com as estimativas do impacte das festas populares e dos festivais em Junho na transmissão da covid-19.

    Como se sabe, a notícia começou por ser divulgada pela Lusa, que alegou ter tido acesso ao relatório, mas do relatório nada se conhece.

    Na base das recusas em ceder os dados brutos – um acto banal e corriqueiro em Ciência – por parte de um dos investigadores, Henrique Oliveira, e depois da assessoria de imprensa do Instituto Superior Técnico, pensei estar um “dia mau”, uma sexta-feira aziaga.

    Afinal, não. Está entranhada na cúpula.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes na sede do Ordem dos Médicos, em Julho do ano passado, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico recusa divulgar os estudos e os dados.

    Depois de ter reagido, via e-mail, com surpresa ao teor da recusa pelo seu gabinete de imprensa, desceu esta tarde, do Olimpo, Sua Excelência o Senhor Presidente do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa Professor Doutor Rogério Anacleto Cordeiro Colaço, e não perdeu a oportunidade de disparar do seu Galaxy a seguinte sentença:

    Senhor Pedro Vieira,

    O sr André Pires [assessor de imprensa] respondeu exatamente de acordo com as instruções dadas por mim. O pedido formal ao presidente do IST está respondido e a resposta é negativa”.

    Nem mandou cumprimentos, o Senhor Presidente do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa Professor Doutor Rogério Anacleto Cordeiro Colaço.

    Sucede que o Senhor Presidente do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa Professor Doutor Rogério Anacleto Cordeiro Colaço esquece elementares regras em Democracia – para além de todas as regras deontológicas em Ciência, que não cumpre, porque se recusa a comprovar afirmações de uma gravidade colossal sem provas (mortes em número concreto associadas directamente a festas populares e a festivais de música).

    Resposta de recusa do presidente do Instituto Superior Técnico ao PÁGINA UM, via e-mail.

    Esquece ele, o Senhor Professor Doutor, por muitos canudos e artigos científicos que merecidamente detenha pelo seu intelecto, uma regra democrática elementar: ele não é proprietário, mesmo se circunstancialmente presidente dessa instituição, da informação e dos documentos em posse e realizados sobre a égide do Instituto Superior Técnico. São documentos públicos, que devem ser publicitados, sobretudo quando publicamente foi vincada a participação daquela instituição.

    Pode o Senhor Professor Doutor pensar que o seu grandioso poder lhe permite usar um Galaxy e dizer que a resposta para o pedido de um jornalista é negativa. E ponto final.

    Pode e pode bem, como fez.

    Tal como pode um jornalista, como eu, director do PÁGINA UM, achar essa sua postura lamentável, e que não pode fazer mais “escola” em Portugal. Até porque é ilegal. Até porque é anti-Ciência.

    E, nesse linha, não pode o Senhor Professor Doutor ficar agora surpreendido por ter de responder formalmente, sem ser por Galaxy, a um pedido formal ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, ficando, desde já ciente, como avisado foi, de que uma recusa o sujeitará a ter de se justificar junto do Tribunal Administrativo de Lisboa, e eventualmente a ser obrigado por um juiz (que não recebe recusas por Galaxy) a divulgar mesmo os relatórios e os dados, e a dizer como se processou o acordo estabelecido com a Ordem dos Médicos.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico. Quando foi solicitado o envio de dados em bruto sobre estimativas sob sua supervisão, o seu gabinete de imprensa respondeu que “o Técnico não faculta mais informação sobre esta matéria para além daquela que já é do conhecimento público”. Por Galaxy reiterou secamente a recusa.

    Há pessoas, como Sua Excelência o Senhor Presidente do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa Professor Doutor Rogério Anacleto Cordeiro Colaço, que não pensam que vivem num regime democrático. Ora, enquanto ele ainda existir, o PÁGINA UM quer recordar-lhes que isso lhes dá direitos e também deveres.

    O pedido formal foi esta tarde feito. Aguardam-se 10 dias úteis. Se não houver resposta favorável, segue para Tribunal Administrativo.

    Entretanto, o fim-de-semana pode fazer bem ao Senhor Professor, e fazê-lo portar-se como um cidadão exemplar, e como um cientista exemplar.


    N.D.: O PÁGINA UM tem uma postura intransigente e inflexível perante a falta de transparência e a recusa de acesso a documentos administrativos, estando a recorrer, por sistema, ao Tribunal Administrativo, para petições para intimação de entidades públicas. Esta é, no entanto, uma tarefa complexa e onerosa, do ponto de vista financeiro, que tem estado a ser suportado pelo FUNDO JURÍDICO apoiado pelos leitores através da plataforma MIGHTYCAUSE. O vosso apoio é fundamental para quebrar este tipo de obscurantismo por isso apelamos ao vosso contínuo e generoso apoio. Obrigado.

  • As estimativas da covid-19 do Instituto Superior Técnico e a Ciência que meteu férias: uma novela exemplar

    As estimativas da covid-19 do Instituto Superior Técnico e a Ciência que meteu férias: uma novela exemplar


    Ontem, começando por uma notícia da Lusa – a agência noticiosa portuguesa que aparenta ser uma espécie de Pravda português do século XXI –, foi divulgado pela imprensa mainstream um suposto relatório do Instituto Superior Técnico (IST) que analisa a sexta vaga de covid-19 em Portugal. Apesar de destacar um relatório do IST, nenhuma notícia expôs o estudo nem este surge no site desta instituição universitária.

    Em traços gerais, refere-se que “de acordo com as estimativas mais recentes [do IST], houve cerca de 242 mil casos de covid-19 registados oficialmente devido às festividades dos santos populares e festivais como o Rock in Rio.”. E cita-se mesmo trechos do suposto relatório, como este: “Se juntarmos os casos não reportados oficialmente atinge-se o número de 340 mil”, acrescentando-se em seguida os nome dos investigadores e investigadores do IST: Henrique Oliveira, Pedro Amaral, José Rui Figueira e Ana Serro, superiormente coordenados, segundo as notícias, pelo próprio presidente da instituição, Rogério Colaço.

    black flat screen computer monitor

    Ou seja, não estamos a falar de um trabalheco de uma unidade curricular feita por alunos do primeiro ano de uma licenciatura. Estamos a falar de um “estudo”, enfim, elaborado pela nata do IST e supervisionado pela cúpula.

    Mas continuemos. Na notícia do Público, que é a que se está a seguir, ainda se ajunta que “comparando com um cenário em que se manteria a testagem e a obrigatoriedade do uso de máscara em grandes eventos, a incidência estimada durante o mês de Junho seria inferior”. E acrescenta-se que os autores sublinham que as medidas “não teriam impacto económico”.

    Por fim, salienta-se ainda que “em relação aos óbitos, os peritos apontam a morte de 790 pessoas com covid-19 devido ao levantamento das restrições e às festividades, dos quais 330 associados às festas populares de Junho.”

    Portanto, temos aqui matéria sensível: 790 óbitos por cauda do levantamento das restrições e 330 óbitos associados apenas às festas populares de Junho!

    Qual a base científica disto?!

    Como jornalista de investigação, quis saber como o IST faz Ciência.

    Como chegou a esses valores.

    Quais as variáveis utilizadas.

    Quais os pressupostos considerados.

    Henrique Oliveira, professor e investigador do Instituto Superior Técnico.

    Quais os dados (em concreto) introduzidos no modelo.

    Quais os intervalos de confiança.

    Como foi validado o modelo e confrontado com a realidade.

    Enfim, quis saber se o IST faz Ciência ou se certas pessoas usam o IST como o monge de maus hábitos usa um hábito para se fazer passar por monge não o sendo no íntimo.

    Assim, ontem mesmo, às 21:47 horas, enviei um e-mail aos quatro investigadores do IST, acima elencados, com o seguinte pedido:

    Estou particularmente interessado em ‘reproduzir’ as vossas estimativas iniciais e as vossas estimativas agora feitas sobre o impacte dos festivais de música e festas populares. Nessa medida, venho solicitar que me disponibilizem todos os dados brutos utilizados, e os pressupostos considerados, bem como explicitação da metodologia estatística utilizada. Estou também à vossa disposição para uma conversa, sem prejuízo de ter os dados e a metodologia que agora vos peço.

    Resposta do professor Henrique Oliveira, pelas 23:13 horas:

    Quando regressar em Setembro de férias terei todo o gosto em conversar sobre este assunto. Os dados em bruto são dados pelas estimativas dos presentes nos festivais, pelo coeficiente de redução da transmissão obtido pela máscara, pelos tempos de exposição (1.7 dias), infecção média (2.7 dias), e de tempo entre infecção e morte (12) e, finalmente, por estimativas do número de contactos em eventos concentrados e ainda estimando os susceptíveis remanescentes na população e as percentagens de infectados por escalão etário, usando modelos seird e os dados oficiais. Usamos dois modelos, um em tempo contínuo, seird, e outro discreto. Os dados reais são comparados com a modelação supondo um coeficiente unitário de contágio diário de transmissão mais baixo (o famoso beta do modelo) mantendo todas as outras variáveis fixas. Usamos também os dados oficiais da DGS e a nossa estimativa de under reporting que é de cerca de 2/3 vs. 1/3 neste momento, mas que é difícil de estimar quando a letalidade varia muito. O modelo discreto funciona melhor do que o contínuo como expliquei no encontro de celebração do aniversário da EMS em Edimburgo no final de Março.Usamos o programa Wolfram Mathematica. Entretanto preciso de repouso depois de um ano muito exigente e poderei conversar depois, em Setembro.

    Pode impressionar o detalhe da resposta – onde não se anexou qualquer relatório nem dados concretos (números), mas tudo isto trocado por miúdos significa uma coisa: o IST estima que, por exemplo, as festas populares tenham causado 330 mortes com base num modelo que basicamente estima usando estimativas e mais estimativas, e outras estimativas, de sorte que, de tão complexo, apenas dá um valor que nem sequer é enquadrado num intervalo de confiança, talvez com receio de que o limite inferior fosse negativo, o que significaria que a covid-19 nas festas populares até teria contribuído para ressuscitar gente em vez de matar.

    O Instituto Superior Técnico, integrada na Universidade de Lisboa, foi fundada em 1911.

    Afianço-vos: sem se apresentar dados e metodologia, o Doutor Karamba podia fazer o mesmo, poupando até uns trocos no software Wolfram Mathematica.

    Perante isto, que deve um jornalista sério fazer? Aguardar que o senhor professor, do cimo da sua cátedra, descanse até Setembro? Ou relembrar-lhe que a Ciência é Ciência, e não pode descansar, porque pode e deve ser confrontada a toda a hora? Ainda mais porque não se divulga um estudo desta natureza num dia e se vai de férias no dia seguinte durante mais de um mês. E adeusinho.

    Portanto, reiterei o pedido de dados em bruto:

    “(…) Entre os cinco membros do IST, certamente haverá um disponível para me fornecer os dados brutos e uma explicação metodológica mais explícita para que, passo a passo, se possa chegar a similar conclusão e validar cientificamente o vosso método. Peço-lhe isso como jornalista e como homem da Ciência.

    E adiantava as minhas perplexidades:

    Tenha consciência que os dados que aponta são elevadíssimos tendo em conta que em junho (todo o mês e para todo o país) houve cerca de 400 mil casos positivos. Não sei a base científica por detrás da subnotificação. Deduzo também que não houve cruzamento com dados reais do SINAVE em função dos grupos etários e região. E tenho sérias e legítimas dúvidas, pelo que me descreve da metodologia, se os cinco investigadores do IST não resumiram a fazer correr o primeiro modelo de previsão introduzindo apenas o número estimado com maior aproximação ao real dos frequentadores dos festivais e festas populares, resultando isso apenas numa mera duplicação de eventuais erros do modelo inicial.

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    Retorquiu Henrique Oliveira, já sem esconder o seu incómodo:

    Já vi que está muito interessado no nosso trabalho, o que é muito bom. Mas, como disse e repito, estou de férias desde ontem. Sou o único do grupo de trabalho mandatado a falar sobre esses assuntos de análise. Ontem recusei diversos convites, antes do seu e-mail, nomeadamente de três televisões nacionais, para falar sobre o assunto porque… entrei de férias e as férias são, digamos, pouco científicas. Os meus colegas também estão de férias. Pode pedir o relatório, se é isso que entende por “dados em bruto”, ao nosso gabinete de imprensa (gabinete de comunicação e relações públicas). Eles dão. Os dados em bruto dos números são públicos.

    Preferia estar a discutir metodologias estatísticas, mas acabei num debate de retórica, e assim respondi:

    Peço desculpa pela insistência, mas insisto. Vocês são cinco reputados investigadores de uma prestigiada universidade portuguesa. Não me parece curial que me remeta para o Gabinete de Imprensa quando lhe peço dados em bruto, e não me considere assim tão pouco inteligente ao julgar que lhe estou a pedir o relatório quando lhe peço que os dados brutos que introduziu no modelo.

    Estou a questioná-lo sobre questões científicas, e ambos sabemos o que eu quero, e o que lhe estou a pedir específica e legitimamente como jornalista de um órgão de comunicação social. Tem o direito de dar ou não dar, tal como eu tenho o direito de retirar uma conclusão sobre se o vosso estudo tem validade científica, sendo que a validade científica se apura, desde logo, sobre a possibilidade de replicação do estudo, sendo necessário para isso conhecer as variáveis do modelo, o próprio modelo e a metodologia. Ora, isso não conheço; apenas conheço os números divulgados pela comunicação social, e que são pouco consentâneos com a realidade (casos positivos em Junho a nível nacional).

    Como o Senhor Professor saberá, para um modelo matemático fazer sair um número tem de se meter no modelo números e não batatas. Estou a pedir-lhe as variáveis, a metodologia e os números (não sei se são públicos porque não sei quais foram utilizados, porque não me diz).

    Permita-me dizer-lhe que acho extraordinário (achei muita coisa extraordinária durante a pandemia) que se faça ainda Ciência julgando-se que não se deve dar explicações nenhumas, bastando deitar para fora um qualquer número.

    person raising right hand

    O relatório, além disso, deveria ser público, tendo em conta a relevância do tema. Vou, em todo o caso, pedir o relatório ao gabinete de Comunicação do Técnico.

    Também não me esclarece se houve algum cruzamento com os dados do SINAVE (que não são públicos), nomeadamente ao nível de casos positivos por região (e mesmo concelho) e por grupo etário, no sentido de conferir validade aos vossos resultados. (Aliás, questiono se fizeram auto-critica aos valores apurados pelo modelo e divulgados à imprensa).

    Sem prejuízo disso, insisto sobre as variáveis e os dados usados. O Senhor Professor como pessoa inteligente sabe bem o que lhe estou a pedir, mesmo que não me considere assim tão inteligente ao ponto de sugerir (ou mais do que isso) que eu apenas quero um relatório (uns papéis escritos).

    Sobre toda a equipa de cinco pessoas ficarem de férias no exacto dia da divulgação do ‘estudo’, não tenho de comentar aqui, mas apenas estranho o ‘timing’.

    Por fim, uma questão: todo o acompanhamento que o IST tem feito sobre esta temática tem sido financiado por quais entidades específicas? Qual o valor até agora recebido e até quando está previsto o financiamento?”

    Resposta final do senhor Professor Henrique Oliveira, prestigiado docente e investigador do secular Instituto Superior Técnico, a modos de terminar um debate científico:

    Caro Pedro Almeida Vieira,

    Estou de férias e muito cansado. Pode insistir à vontade e emitir os comentários que quiser, que a resposta será apenas essa.”

    Entretanto, decidi entrar em contacto com o Gabinete de Imprensa do IST, com a seguinte missiva:

    O PÁGINA UM está interessado em escalpelizar o estudo apresentado pelo IST, coordenador pelo Prof. Henrique Oliveira, que estimou o impacte das festas populares e festivais na disseminação do SARS-CoV-2 e da covid-19. Como não encontro o relatório em lado algum, e não existe disponibilidade do Prof. Henrique Oliveira para facultar tanto o eventual relatório escrito como sobretudo os dados em bruto, de modo a replicar as estimativas feitas pelo IST (e confrontar a sua validade científica), venho formalmente fazer esse pedido ao presidente do IST.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico. Quando foi solicitado o envio de dados em bruto sobre estimativas sob sua supervisão, o seu gabinete de imprensa respondeu que “o Técnico não faculta mais informação sobre esta matéria para além daquela que já é do conhecimento público”.

    Resposta do Gabinete de Imprensa do IST:

    Em relação às suas questões posso dizer o seguinte:

    1 – o Técnico não faculta mais informação sobre esta matéria para além daquela que já é do conhecimento público;

    2 – o Técnico não tem nenhum contrato ou protocolo para enquadrar o serviço que tem prestado ao país em termos de modelação e análise da pandemia.

    Decididamente, a Ciência – ou, pelo menos a Ciência do Instituto Superior Técnico – entrou de férias.

    Mas não foi agora. Foi quando contratou o Professor Henrique Oliveira para fazer este tipo de “Ciência” ou quando elegeu responsáveis para encerrar um debate sobre Ciência com “o Técnico não faculta mais informação sobre esta matéria para além daquele que já é do conhecimento público”.

    Ora, o que o IST divulgou foi uma vergonha; portanto, até se compreende que não queiram divulgar mais… para que a vergonha não seja ainda maior.

    Esta é uma “novela” exemplar sobre o estado da Ciência que a pandemia nos trouxe. Haverá aí um antiviral chamado decência?


    N.D.: Nos trechos expostos foram feitas correcções de simples gralhas. A troca de correspondência entre mim e Henrique Oliveira tem interesse público, e decidiu-se publicar por me ter assumido, desde o início como jornalista e ter avisado de que poderia usar a informação recolhida. De igual modo, a troca de correspondência com o Gabinete de Imprensa do IST também tem relevância editorial.

  • Do boneco, da gravidade e dos cúmplices

    Do boneco, da gravidade e dos cúmplices


    Já fiz vários artigos sobre o excesso de mortalidade que se vive em Portugal, numa altura em que a covid-19 é coisa do passado do ponto de vista de Saúde Pública a nível mundial. Em Portugal também, mesmo se o Governo fala em “consolidar a prevenção” (que parvoíce é essa do “consolidar a prevenção”?)…

    Surge agora a “história do calor”, que é uma falácia: agrava a mortalidade, mas porque há toda uma comunidade (sobretudo idosos) que está “presa por arames”. Noutras condições (mais humanas), não morreriam… Morrem agora porque estão abandonados pelo Estado, pelas instituições, pela sociedade que já nem se indigna.

    Evolução da mortalidade total (média móvel de 5 dias) em 2022 e no período de 2015-2019. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Para mim, isto já é um caso de polícia, e a única coisa que preciso de saber é se a Procuradoria Geral da República quer ser cúmplice do crime.

    Como disse, já fiz várias notícias, e mais poderia fazer para provar que estamos perante um crime por negligência e omissão de auxílio. Hoje, porém, deixo-vos apenas um gráfico. Demorou cinco minutos a fazer… ou menos. Acho que o boneco dá para entender a gravidade do que se passa… Até quando, veremos….

  • Mesmo quando as temperaturas são amenas, há excesso de  mortalidade. Média diária anda nos 328 óbitos, mais 53 do que no ano passado

    Mesmo quando as temperaturas são amenas, há excesso de mortalidade. Média diária anda nos 328 óbitos, mais 53 do que no ano passado

    Governo, certos peritos e media mainstream insistem na tónica do excesso de mortalidade causada pelas temperaturas elevadas. E se é certo que o calor extremo pode, em muitas circunstâncias, contribuir ainda mais para piorar a situação, uma análise estatística do PÁGINA UM comprova, analisando somente os dias sem “anomalias térmicas”, que o excesso de mortalidade é estrutural. Mesmo sem tempo quente, o morticínio vai continuar. Até quando? Até quando o silêncio do Governo? Até quando o silêncio (cúmplice) da Procuradoria Geral da República?


    Nem um milagre livrará já Portugal de chegar ao final de Julho com o nono mês consecutivo sempre com a mortalidade total acima da fasquia dos 10 mil óbitos – um fenómeno inédito na História de Portugal, e que não está relacionada com qualquer fenómeno meteorológico, revelando sim um gravíssimo problema estrutural de Saúde Pública ignorado e “abafado” pelo Governo.

    De acordo com a análise estatística do PÁGINA UM, mesmo faltando contabilizar cinco dias para se concluir Julho, está garantido que a mortalidade por todas as causas ficará bem acima dos 10.000 óbitos. E será praticamente garantido que superará Julho de 2020 – já então marcado por uma mortalidade inusitada devida, apenas em parte, ao tempo quente.

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    O Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) indicava, até ao dia de ontem, 9.036 óbitos acumulados no mês em curso, um valor superior em 243 mortes ao então registado há dois anos entre 1 e 26 de Julho. Mesmo assumindo um forte abaixamento da mortalidade diária entre hoje e domingo, para níveis em redor do primeiro quartil deste mês (318), o total deverá rondar os 10.600 óbitos – algo inimaginável nesta época do ano, ainda mais tendo em conta a sucessão de meses em excesso de mortalidade.

    Há dois anos Julho terminou com 10.425 óbitos, ultrapassa-se pela primeira vez este limiar. Saliente-se que, por norma, os meses de Verão são pouco “letais”, sendo Setembro aquele onde se regista um menor número de mortes.

    Mortalidade total no mês de Julho (até dia 26) entre os anos de 2009 e 2022. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    As análises do PÁGINA UM também demonstram ser uma perigosa falácia manter a ideia de ser o tempo quente – e as alterações climáticas – que justificam o excesso de mortalidade, porque tal percepção faz transparecer a ideia de que, terminando as temperaturas elevadas, a situação se “regularizará”. Não é verdade, de todo, em especial quando se cruza a mortalidade diária com os valores do Índice Ícaro.

    Calculado pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), entre Maio e Setembro de cada ano e – ainda disponível, desde 2020, no Portal da Transparência do SNS, podendo ser a qualquer momento retirado para “análise interna” por iniciativa de algum burocrata –, este índice apresenta o risco potencial de morte associado a elevadas temperaturas.

    Mortalidade total nos últimos nove meses em Portugal. Mês de Julho é uma estimativa com valores reais até dia 26 e assumindo que os restantes cinco dias terão, em média, o valor do primeiro quartil deste mês (311 óbitos). Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Contudo, permite também análises interessantes quando se confrontam períodos em que esse índice é zero – ou seja, quando não há qualquer efeito do calor extremo associado à mortalidade. Deste modo, consegue-se, de uma forma simplista mas rápida, conhecer a “mortalidade base” expurgada da meteorologia, comprovando assim a existência ou não de um problema estrutural de Saúde Pública.

    Ora, cruzando os valores diários do Índice Ícaro com a mortalidade, desde 1 de Maio até 26 de Julho, observa-se que, efectivamente, o ano de 2022 está a apresentar um perfil de temperaturas elevadas bastante superior ao ano passado, mas apenas ligeiramente acima de 2020. Com efeito, este ano já se contabilizaram 34 dias com o Índice Ícaro acima de 0, cinco dias mais do que em 2020, e 17 dias mais do que em 2021. No caso de dias com o Índice Ícaro acima de 0,40, no ano passado não se contabilizou nenhum, enquanto este ano já se observaram sete dias, enquanto em 2020 foram cinco.

    Distribuição dos óbitos diários em função dos valores do Índice Ícaro entre 1 de Maio e 26 de Julho para os anos de 2020, 2021 e 2022. Fonte: SICO e Portal da Transparência do SNS. Análise: PÁGINA UM.

    Contudo, sendo certo que um Índice Ícaro efectivamente resulta num incremento da mortalidade – empiricamente, valores acima de 0,40 resultam numa mortalidade diária acima de 350 óbitos, e acima de 0,80 podem ultrapassar os 400 –, também relevante se mostra observar o “perfil de mortalidade diário” quando as temperaturas são normais e amenas. Ora, e é aqui que o ano de 2022 mostra que algo está mesmo muito anormal.

    Com efeito, desde Maio deste ano, mesmo quando o Índice Ícaro está em zero, a mortalidade diária ultrapassou quase sistematicamente os 300 óbitos diários. Este ano, desde Maio, só houve ainda sete dias abaixo desta fasquia, sendo que se registaram 55 dias com Índice Ícaro igual a zero. No ano passado houve 64 dias com mortalidade abaixo de 300 em 71 dias com Índice Ícaro de zero, enquanto em 2020, de entre os 58 dias com temperaturas normais, contabilizaram-se 33 com mortalidade inferior a 300 óbitos.

    Diagramas de caixa para para os dias com Índice Ícaro zero (1 de Maio a 26 de Julho) em 2020, 2021 e 2022, com indicações dos valores extremos, primeiro quartil, mediana e terceiro quartil. Fonte: SICO e Portal da Transparência do SNS. Análise: PÁGINA UM.

    A profunda anormalidade deste ano – que não é fruto de qualquer anomalia meteorológica, apenas se agrava ainda mais quando ocorre uma onda de calor – também se observa numa simples análise estatística descritiva. Com efeito, contabilizando somente os dias com Índice Ícaro zero, constata-se que em mais de 75% dos dias (entre Maio e 26 de Julho), a mortalidade esteve acima de 311 óbitos, enquanto que em 2020 – para similar “perfil de temperaturas” – a mortalidade acima de 311 óbitos registou-se apenas em 25% dos dias.

    Se compararmos medianas da mortalidade diária para os três anos – lidas como representando o valor a partir do qual se observou em metade dos dias – para os períodos em que o Índice Ícaro foi de zero, então ainda se constata que o Portugal de 2022 está estruturalmente doente. Com efeito, este ano, a mediana da mortalidade nesta condições (tempo normal sem excesso de mortalidade associado ao tempo quente) é de 312 óbitos (um valor absurdamente alto), que compara com 296 em 2020 e com apenas 276 em 2021.

    A mortalidade média está com valores próximos da mediana: 328 para este ano, sendo de 275 no ano passado e de 293 em 2020. Em anos com maior prevalência de dias de excessivo calor mostra-se habitual a ocorrência de mortalidade ainda excessiva nos períodos subsequentes, mas nunca na dimensão que está a suceder este ano.

  • Corpo Nacional de Escutas exigia certificado digital ou teste em mega-acampamento, mas afinal agora só é uma “recomendação”

    Corpo Nacional de Escutas exigia certificado digital ou teste em mega-acampamento, mas afinal agora só é uma “recomendação”

    Na próxima segunda-feira, inicia-se o 24º acampamento de escuteiros em Idanha-a-Nova. E o Corpo Nacional de Escutas quis ser, em matéria da gestão da covid-19, mais “papista” do que a própria Direcção-Geral da Saúde, impondo “controlo sanitário” prévio de entradas, com distinção entre vacinados/recuperados e não vacinados. Mas, afinal, confrontada pelo PÁGINA UM por via da ilegalidade desta discriminação e falta de sustentação legal e epidemiológica, a organização diz agora que, afinal, não passa de uma “recomendação”.


    O lema cunhado durante a pandemia, “seja um agente de Saúde Pública”, está a fazer escola, e agora multiplicam-se os casos de “exageros de autoridade”, onde entidades sem funções públicas exigem o cumprimento de regras que nem sequer encontram respaldo nem na Ciência nem em normas da Direcção-Geral da Saúde (DGS) e muito menos na legislação.

    É o caso do Corpo Nacional de Escutas (CNE) que, num mega-acampamento (ACANAC) em Idanha-a-Nova entre 1 e 7 de Agosto, decidiu implementar plano de contingência “fora-da-lei”.

    Foto: ©Agência Ecclesia

    De acordo com os documentos a que o PÁGINA UM teve acesso, a organização deste evento escutista internacional nomeou um número indeterminado de responsáveis com a função de “assegurar que haja um responsável sanitário (poderá ser o responsável de contingente ou não, mas que deverá estar presente em Campo) que se certifique que cada participante do contingente tem pelo menos uma das seguintes condições: certificado de vacinação completo, ou certificado de recuperação válido, ou teste antigénio negativo 24h [24 horas] antes da entrada no ACANAC”. Esse responsável estaria obrigado a assinar um termo de responsabilidade.

    Em e-mail enviado aos pais dos jovens escuteiros, a que o PÁGINA UM também teve acesso, é salientado o facto de se estar perante um “evento privado e como tal, em articulação com as autoridades de saúde pública locais, considerou-se que seria uma mais-valia para a segurança de todos os participantes que fossem cumpridas algumas regras para entrada” no acampamento.

    Sucede, porém, que tanto em eventos privados como públicos, estas exigências não têm já qualquer enquadramento legal nem introduz qualquer benefício sanitário. Um detentor de certificado digital pode estar, no momento da sua exibição, infectado, pelo que a sua entrada sem teste num acampamento – assumindo-se que os testes em assintomáticos são formas eficazes de prevenção epidemiológica – seria até “perigosa”, ao contrário do que sucederia com um não-vacinado a quem se faria um teste para confirmar que estava negativo.

    Idanha-a-Nova vai receber escutistas a partir de segunda-feira.

    Além disso, recorde-se que, actualmente, o detentor de um certificado digital válido não tem já, na prática, e dentro do território nacional, qualquer “direito suplementar” ou benefício face às pessoas não-vacinadas ou que, sendo recuperadas ou recebido doses de vacinas, excederam o prazo do certificado. Todas as normas – algumas de constitucionalidade duvidosa e de eficácia preventiva questionável – que limitavam o acesso apenas a detentores do certificado válido e/ou exigiam, em complemento ou alternativa, um teste ao SARS-CoV-2 foram caindo nos últimos meses.

    Mesmo desde o dia 1 deste mês, por despacho governamental “deix[ou] de ser exigido aos passageiros que entrem em território nacional a apresentação de comprovativo de realização de teste para despiste da infeção por SARS-CoV-2 com resultado negativo ou a apresentação de certificado digital COVID UE ou de certificado de vacinação ou recuperação emitido por países terceiros, aceite ou reconhecido em Portugal”.

    Confirmando ao PÁGINA UM as exigências para a entrada no acampamento que se inicia na próxima segunda-feira, o coordenador de comunicação externa do CNE, Henrique Ramos, diz que a organização pretendeu “garantir o cumprimento de todas as condições de segurança para os participantes, sendo aplicadas e postas em prática pela Equipa Organizadora e de Serviço, todas as medidas que o possam garantir”.

    white and blue labeled bottle

    Henrique Ramos acrescenta ainda que “quer na preparação quer na realização do ACANAC 2022”, se pretendeu que fossem “implementadas todas as medidas vigentes à data”, daí que “com o objetivo de diminuir o risco de contágio entre os participantes, decidiu a Equipa Organizadora do ACANAC solicitar aos agrupamentos participantes que se certificassem que cada participante do seu contingente não constituísse um risco para os restantes participantes.”

    Porém, o porta-voz da CNE acaba por admitir que, “como estas condições não serão confirmadas pela organização, esta solicitação [exigência de certificado ou de teste prévio para acesso ao acampamento] assume na prática a forma de recomendação, sendo que por esse motivo nenhum participante será impedido de participar na maior festa do escutismo em Portugal.”

    O PÁGINA UM contactou a DGS para comentar esta situação, mas mesmo com insistências, não obteve resposta, como quase sempre sucede.

  • D. João V tinha a Gazeta de Lisboa; e D. António Costa tem o Público

    D. João V tinha a Gazeta de Lisboa; e D. António Costa tem o Público


    Em dia de S. João se festejou em Palacio o nome de S. Mag, & houve Serenata no quarto da Rainha Nossa Senhora. Quinta feyra 16, do passado teve primeira audiência de Sua Mag. Mons. De Montagnac Consul da Naçaõ Francesa.

    Gazeta de Lisboa Occidental, 3 de Julho de 1721

    De portas totalmente fechadas, sem declarações à imprensa, nem respostas aos jornalistas. Foi assim o encontro “informal” entre os 17 ministros que António Costa chamou para a Base Naval do Alfeite, em Almada, durante toda a tarde deste sábado. Os governantes chegaram de barco, com partida de Lisboa, e estiveram juntos durante mais de cinco horas. Na sua conta de Twitter, o primeiro-ministro falou de uma reunião “extremamente útil e produtiva”, mas não esclareceu o que esteve em cima da mesa de trabalhos. Segundo informações recolhidas pelo PÚBLICO junto de fonte do executivo, o encontro serviu para “fazer ponto de situação” antes das férias de Verão “e perspectivar os próximos meses”.

    Público, 23 de Julho de 2022

    A Rainha nossa Senhora tomou a novena da gloriosa S. Anna na Igreja do Espirito Santo dos Padres da Congregaçaõ de S. Filippe Nery. O Senhor Infante D. Carlos foy hontem para a quinta, que Antonio Leyte Pacheco Malheyro Macedo, Alcayde mór da Fronteira, tem no sitio de S. Sebastiaõ da Pedreira, para convalescer de algumas leves queyxas, & alli lhe assistem a Senhora Marqueza de Santa Cruz, Aya de Suas Altezas, & D. Christtovaõ Joseph da Gama, Vedor da Casa da Rainha nossa Senhora.

    Gazeta de Lisboa Occidental, 23 de Julho de 1722

    Na mesma publicação, António Costa partilhou imagens da viagem de barco e surge ao lado da ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, do ministro da Educação, João Costa, e do ministro das Finanças, Fernando Medina. Numa segunda publicação, o primeiro-ministro afirma que estes quase quatro meses de mandato do XXIII Governo, o seu terceiro como primeiro-ministro, “têm sido muito activos e exigentes” e que por isso “este dia de reflexão e de análise política e prospectiva para os próximos meses foi muito enriquecedor”.

    Público, 23 de Julho de 2022

    Terça feira da semana passada foy a Rainha N. Senhora com os Principes, e o Senhor Infante D. Pedro à Villa de Bellas,e jantàraõ na quinta dos Condes de Pombeiro. Na quinta feira foy a mesma Senhora, com a Princeza, e o Senhor Infante D. Pedro à Igreja dos Religiozos Carmelitanos, que celebravaõ solemnemente a festa de N. Senhora do Monte do Carmo. Na seta feira foraõ dar principio à Novena da Gloriosa Santa Anna, na Igreja dos Padres da Congregaçaõ do Oratorio, e no Sabbado se divertiraõ na Real Taoada de Alcantara; onde também concorreo o Principe nosso Senhor.

    Gazeta de Lisboa Occidental, 23 de Julho de 1733

    Minutos depois da publicação do primeiro-ministro seria a conta oficial do Governo a partilhar um vídeo que resumiu o “dia de trabalho em equipa, focado na preparação dos próximos meses e na resposta aos desafios que se colocam ao país”.

    Público, 23 de Julho de 2022

    ElRey nosso Senhor, que Deos o guarde, com o Principe, e o Senhor Infante D. Pedro, foram na tarde de segunda feira primeiro do corrente à Ermida de Nossa Senhora do Rosario da Restauraçam, onde estava o Lausperenne; e depois de haverem feito a oraçam, fizeram a honra a Luiz Gonçalves da Camera Coitinho, Padroeiro da mesma Capella, de lançar agua benta na sepultura de seu pay Gastam Jozé da Camera Coutinho, Estribeiro mór que foy da Rainha nossa Senhora.

    Gazeta de Lisboa Occidental, 11 de Julho de 1737

    O encontro entre a equipa de António Costa terminou já depois das 19h30 e o primeiro a abandonar o local foi o ministro das Infra-estruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, só depois António Costa saiu.

    Público, 23 de Julho de 2022

  • Nos dois primeiros anos de pandemia, lucros da Germano de Sousa pulam 490%

    Nos dois primeiros anos de pandemia, lucros da Germano de Sousa pulam 490%

    A testagem massiva, por vezes sem critério e a preços exorbitantes, faz de Portugal um dos países que mais gastou à “cata” do SARS-CoV-2, embora os valores não estejam apurados. Sabe-se, contudo, que cerca de dois em cada três testes feitos ao longo da pandemia foram processados apenas nos últimos sete meses, para apanhar a variante Omicron, mais transmissível, mas muito menos letal. Para os laboratórios pode-se dizer que, na verdade, “ficou tudo bem”. Venderam mais, aumentaram margens de lucro, e foi “dinheiro em caixa”. O Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa S.A. é um bom exemplo. Para os seus accionistas, claro.


    A estratégia de massificação de testagem à covid-19 seguida por muitos países, sobretudo com o surgimento da variante Omicron, tem enchido os cofres dos laboratórios de análises clínicas. De acordo com dados do Worldometers, Portugal é o sexto país, de entre os 78 com mais de 10 milhões de habitantes, com o maior número de testes. Desde o início da pandemia terão sido realizados cerca de 43,5 milhões de testes, o que significa que cada português realizou, em média, um pouco mais de quatro testes (4,3).

    Este indicador é apenas ultrapassado – no grupo dos 78 países de média e grande dimensão – pelos Emirados Árabes Unidos (17,3 testes por habitante), Espanha (10,1), Grécia (8,5), Reino Unido (7,6) e República Checa (5,2).  

    green pink and purple plastic bottles

    Embora não existam números concretos dos gastos com a testagem – nem tão-pouco da distribuição entre gastos do Estado, das autarquias, das empresas e dos particulares –, o PÁGINA UM estimava em Dezembro passado que este mercado já deveria ter movimentado perto de 1.300 milhões de euros em Portugal. No entanto, esses cálculos baseavam-se na quantidade de testes então feitos até 3 de Dezembro de 2021 – um total de 15.884.737, dos quais 39% de antigénio. Esse era já um número quase o triplo dos de 2020 – em que se processaram 5.695.754 testes, quase todos de PCR.

    Deste modo, quase dois terços dos testes (PCR e de antigénio) realizados em Portugal acabaram por ser realizados nos últimos sete meses, sendo que a intensidade de testagem assumiu contornos inimagináveis em Janeiro com uma média diária de cerca de 250 mil testes por dia.

    Em certa medida, essa corrida aos testes observou-se também pela obrigatoriedade de testagem em determinados períodos dos “estados de excepção” e pela “liberalidade” do Estado e de muitas autarquias comparticiparem testes. Por exemplo, em Lisboa houve períodos no início do ano em que era possível realizar até 14 testes por mês, dos quais uma dezena pela autarquia.

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    Saliente-se que a estatística diária da testagem – como muita outra informação ao longo da pandemia – foi “descontinuada” pela Direcção-Geral da Saúde, ou seja, foi intencionalmente retirada por esta autoridade, como já tem sido uma norma para obstaculizar qualquer comparação ou análise cronológica.

    Em todo o caso, sendo evidente que o ano de 2022 será ainda um “ano de ouro” para os principais laboratórios de análises clínicas, certo é que a pandemia lhes tem concedido lucros surpreendentes.

    O PÁGINA UM analisou o relatório e contas do Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa S.A. – um dos maiores do país, fundado por este antigo bastonário da Ordem dos Médicos – que viu os seus lucros “explodirem” com a pandemia.

    Em 2018 e 2019 registou lucros de, respectivamente, cerca de 3,9 milhões e 6,0 milhões de euros. Com o primeiro ano da pandemia (2020), os resultados operacionais quase quadruplicaram face ao ano anterior, passando de 8,1 milhões de euros para os 31,1 milhões. O lucro teve idêntico desempenho, atingindo os 23,2 milhões em 2020.

    O ano de 2021 ainda foi melhor. Os resultados operacionais subiram para 48,4 milhões de euros e os lucros atingiram os 35,1 milhões.

    Comparando os dois anos anteriores à pandemia (2018 e 2019), do Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa S.A., com os dois primeiros anos em pandemia (2020 e 2021), os lucros pularam de um total de 9,9 milhões de euros para uns impressionantes 58,4 milhões de euros. Ou seja, um crescimento de quase 490% comparando os dois períodos homólogos (2018-2019 e 2020-2021).

    No entanto, também fantástica foi a subida da margem de lucro que, de uma forma simplificada, mede a percentagem retirada por cada euro de vendas ou prestação de serviços. De facto, sendo certo que os laboratórios de Germano de Sousa “venderam” quase três vezes mais nos dois anos da pandemia do que nos dois anos anteriores (189,8 milhões de euros vs. 66,2 milhões), o grande sucesso veio da subida impressionante da margem de lucro.

    Em 2018 foi de 12,7%, passou no ano seguinte para 16,8%, e depois pulou nos anos da pandemia: 31,3% em 2020 e 30,4% em 2021. A venda de testes terá contribuído fortemente para este desempenho financeiro, o que basicamente significa que os preços de venda estiveram fortemente inflacionados.

    O ano de 2022 deverá continuar a reflectir ainda o “bom” efeito-pandemia para os laboratórios.

  • Da utilidade e dos fretes da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos para a consolidação de uma Democracia Fantoche

    Da utilidade e dos fretes da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos para a consolidação de uma Democracia Fantoche


    Perante as sucessivas recusas do Ministério da Saúde, e particularmente da Direcção-Geral da Saúde, em ceder qualquer tipo de informação fidedigna e factual em redor da gestão da pandemia e do Serviço Nacional de Saúde durante a pandemia, tomei uma decisão. Simples, legal e constitucionalmente: solicitar arquivo aberto ao Ministério da Saúde.

    Requeri assim, em 2 de Junho passado, à ministra da Saúde, Marta Temido, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), toda a “correspondência oficial, pareceres, relatórios e outros documentos escritos ou em formato audiovisual, na posse do Ministério da Saúde (e respectivas Secretarias de Estado), por si elaborados ou elaborados por outras entidades públicas e privadas, ou mesmo por particulares (incluindo assessores e consultores), produzidos desde Janeiro de 2020 até à data.” E elencava um conjunto de entidades a quem esses documentos tivessem sido remetidos ou que tivessem enviado para o Ministério da Saúde.

    person walking inside the building

    É muita informação? Claro que é! Mas essencial para conhecer os meandros de um Governo opaco que nos faz viver numa Democracia do faz de conta.

    Ora, que fez a senhora ministra?

    Cinco dias depois, a Secretaria-Geral do Ministério da Saúde respondeu-me, dizendo que considerava  “manifestamente excessivo, abusivo e, logo, inexequível”, acrescentando que assim “não nos é possível satisfazer o solicitado”. Retorqui, explicando ser temerária essa postura num Estado de Direito recusar pedidos dessa natureza a jornalistas.

    A senhora Marta Temido – que, aliás, tutela entidades que sistematicamente obstaculizam acesso à informação – mudou de estratégia. E, assim, no dia 15 de Junho informou-me que tinha feito um pedido de parecer à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos – uma entidade supostamente defensora do arquivo aberto da Administração Pública, mas muito ciosa de interpretações enviesadas quando se trata de matéria delicada.

    Nada contra, porém, o Ministério da Saúde pedir esse parecer.

    Mas, obviamente, sucede que, sabendo eu como a CADA “trabalha” em matérias delicadas – ao que acrescenta a morosidade na emissão de pareceres e ao facto de os seus pareceres não serem vinculativos –, tomei a decisão de avançar de imediato com um processo de intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa, no passado dia 24 de Junho.

    Uma “chatice”, suponho, para o Ministério da Saúde, mas que, na verdade, se resolveu facilmente. A CADA, que costuma fazer “marinar” os seus pareceres longos meses, desde o pedido até à emissão do parecer, demorou apenas 24 simples dias para elaborar um parecer a preceito para o Ministério da Saúde. Acredito que deve ter sido um recorde de produtividade para aqueles lados.

    E também quis ganhar tempo no Tribunal Administrativo alegando que ainda não recusara o acesso e que aguardava o parecer da CADA, como se isso fosse relevante para a decisão.

    Ah, e a CADA nem se incomodou a ouvir a minha perspectiva; somente me enviou hoje o dito parecer.

    E o que diz o parecer? Muita coisa, que prova como são esguios e enviesados os campos da transparência e da ética, mas deixo aqui as conclusões.

    A dimensão do acesso solicitado implicaria, para a entidade requerida [Ministério da Saúde], procedimentos ou consequências que parecem exceder o limite aceitável, à luz de um são e avisado critério ético-jurídico do que é o direito de acesso. Assim, não se afigura que a entidade requerida tenha que satisfazer o pedido nos termos em que foi inicialmente formulado”.

    Em trocados: a CADA defende que, não se conhecendo detalhes da documentação de um Ministério, não se pode ter acesso. Portanto, eis a receita: esconda-se tudo, porque assim se justifica não se conhecer nada.

    Ou, se não defende, fez um rico frete.

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    Obviamente, este parecer – que deve ir para os anais da pouca-vergonha democrática – poderá ter um peso nulo no Tribunal Administrativo de Lisboa. Confiemos na juíza que recebeu o processo, e na sua (assim espero) independência.

    Aliás, este é um daqueles processos que, ganhando-se ou perdendo-se, serve muito para responder a uma questão fundamental, que é a seguinte:

    Somos mesmo uma Democracia Plena ou uma Democracia Fantoche?

    Tenho medo que a resposta seja a segunda opção, mas não me surpreende se for.


    N.D. A partir de hoje o PÁGINA UM deixará de recorrer à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, essa inutilidade. Não apenas por este caso, mas porque nenhuma entidade, até agora, cumpriu os pareceres (não-vinculativos) que dali saíram, mesmo quando nos foram favoráveis. Por esse motivo, passámos a recorrer directamente ao Tribunal Administrativo. Continuaremos a fazê-lo enquanto tivermos o apoio financeiro dos leitores para pagamento das taxas de justiça, dos honorários de advocacia e gastos administrativos. Como sabem, as verbas recolhidas pelo FUNDO JURÍDICO, na plataforma MightyCause, destinam-se exclusivamente para este propósito. Até este momento apresentámos sete processos de intimação.