Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Faltam obstetras no Verão? Ora, proíba-se o “truca-truca” entre Outubro e Janeiro

    Faltam obstetras no Verão? Ora, proíba-se o “truca-truca” entre Outubro e Janeiro


    Durante a pandemia, os apelos directos para desopilar dos hospitais, de sorte a salvar os doentes-covid, tiveram consequências ainda hoje não mensuradas. Só em 2020, foram suprimidas 700 mil cirurgias programadas e 50 mil urgentes, de acordo com o Conselho Nacional da Saúde, que só acordou para o assunto este ano.

    Embora não tenha havido uma proibição expressa, a censura social e o medo levaram também muitas pessoas a fugirem dos únicos locais que lhes poderiam salvar a vida em casos mais extremos.

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    Mas houve muitas proibições desde 2020. Lockdowns, restrições às actividades económicas sociais, permissões após com base num documento administrativo, tudo imposto à generalidade da população sem critério científico. Tudo se endossou, em termos de responsabilidades e “culpas”, aos cidadãos, obrigando-os a pagar a fava: era o povo que deveria salvar o SNS da pandemia; não o SNS a salvar o povo dos efeitos da pandemia.

    Esta postura, entre o paternalista – em que disciplina o menino mal-comportado – e o indolente – o Estado esquece-se de que serve a sociedade, e não é a sociedade a servir os políticos –, foi ganhando escola. Está tão enraizada, que já se encontra quase universalmente aceite. Numa democracia, veja-se.

    Agora, proíbe-se genérica e cegamente, sem sequer ser necessário uma justificação técnica e política. Basta comunicar, decretar, uma Resolução de Conselho de Ministros serve perfeitamente, que a acrítica imprensa mainstream facilita a tarefa.

    Neste momento, uma proibição – que passe pela retirada de direitos adquiridos – constitui uma eficaz “arma política” de desresponsabilização.

    Por um lado, o Governo assume que só proíbe porque está em causa o bem comum – logo, ele é o lado bom.

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    Por outro, coloca o “problema” num patamar de nível gigantesco, sobre-humano; logo, se falhar, falha apenas porque… exacto, o problema era de nível gigantesco.

    Além disso, a proibição é sempre entendida como uma acção: o Governo age. E, com a proibição, mostra o “músculo”: coerção e censura social, pelo menos.

    Mostra-se autoritário contra os “faltosos” e contra aqueles que os criticam. Melhor ainda assim. Se houver contestatários, tanto melhor: serão transformados em “óptimos” bodes expiatórios. Lembrem-se dos tão “úteis negacionistas” (para onde se “chutaram” até as vozes incómodas e sensatas para forçar o unanimismo). E lembrem-se da epidemia dos não-vacinados…

    Passada a pandemia (será?), temos agora nova onda de proibições com o intuito de resolver problemas políticos do Governo.

    A floresta está mal gerida e o sistema de combate é obsoleto, e à conta disso os incêndios podem assumir um risco catastrófico? Cria-se uma “onda de calor” (antes mesmo de se assumir que se está perante uma), decreta-se uma situação de alerta (ou quejanda) para todo o país e generaliza-se uma proibição até ao absurdo, incluindo encerramento de monumentos. Depois inventa-se um algoritmo para dizer o impensável: podia ser pior se não fosse o Governo.

    people walking near fire

    Os Governos europeus geriram estupidamente a “guerra financeira” contra a Rússia em consequência da Guerra da Ucrânia? Pois bem, imponha-se “proibições e limitações na climatização e iluminação de espaços comerciais e públicos”, sem critério nem análise de benefícios (antecipar fecho de lojas para poupar energia terá um balanço positivo, tendo em conta que as pessoas assim vão para casa?). E não se fale na ineficaz política de eficiência energética em Portugal, nem na crónica fraca aposta na ferrovia nem nos projectos de mobilidade de fazer de conta.

    Temo que o Governo não pare por aqui na arte do proibicionismo endossando culpas para a sociedade, que assim merece castigo.

    Por exemplo, para “solucionar” a falta de obstetras em Julho, Agosto e Setembro, a arte do proibicionismo pode ser aplicada. Bem sei que, antes da pandemia, já havia queixas nesta época do ano. Em 2019. Em 2018. Em 2017. Em 2016. E por aí fora.

    Ora, mas o Governo pode bem convencer-nos que a culpa não é das fracas condições dadas aos obstetras e ginecologistas no Serviço Nacional de Saúde – e que migram assim para os privados. Nem se deve ao facto de ser habitual que se concentrem as férias no período estival, levando a uma redução no número de médicos disponíveis em todas as especialidades (bem nos avisa a Dra. Graça Freitas).

    Número médio de nascimentos por mês (período: Janeiro de 2011 a Maio de 2022). Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Na verdade, o Governo pode agora “culpar” as grávidas, que, enfim, concentram os partos no Verão e no início do Outono. Podem culpar o timing dos casais que, sem noção das consequências nove meses depois, engravidam entre Outubro e Janeiro.

    Donde, na nova “escola de fazer política”, a solução está à mão: proíba-se o truca-truca em Outubro, Novembro, Dezembro e Janeiro. E, com esse singelo acto, em Resolução de Conselho de Ministros eficazmente transmitida pela Lusa e “viralizada” pela imprensa mainstream, conseguir-se-á a paz absoluta durante o Verão em todas as maternidades e urgências de Obstetrícia.

    Ah!, e temos bodes expiatórios. Quem não tiver espírito de missão, pelo bem comum, saiba que o “objecto” do crime será detectado. E sem contemplações, os agentes nocivos da sociedade serão multados convenientemente pelo Estado (por antipatrióticos e egoístas) e censurados e ostracizados pela sociedade como párias. Amen.

  • Pobre democracia podre: a Administração Pública nos “tempos da borracha”

    Pobre democracia podre: a Administração Pública nos “tempos da borracha”


    Desde Abril, o PÁGINA UM, apresentou já nove processos de intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa para a prestação de informações, consulta de processos e passagem de certidões.

    Em paralelo, desde Janeiro, mais de uma dezena de pareceres foram elaborados pela Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), sob pedido do PÁGINA UM, devido à recusa de diversas entidades públicas em satisfazer pedidos para consulta de processos.

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    Bem sei haver por aí entidades e pessoas – a começar por aquelas que regulam o sector da comunicação social e jornalistas – que tentam “vender” a ideia de que tantas demandas do PÁGINA UM – recorrendo agora, por sistema, aos tribunais – é sinal de uma postura “belicista”.

    Manobras de diversão. Areia para os olhos.

    O problema – verdadeiramente chocante numa democracia a caminho do meio século de existência – não é a (suposta) estratégia conflituosa do PÁGINA UM; é sim a postura de intransigente obscurantismo da Administração Pública.

    A borracha da IGAS passou por aqui…

    Qualquer jornalista que se preze, e detenha ainda memória e princípios, sabe ser normal uma certa renitência da Administração Pública em ceder dados sensíveis ou que permitam uma avaliação crítica ao seu desempenho.

    Não é bem a Administração Pública, que é um ente abstracto; são as pessoas que circunstancialmente a integram, zelosas dos seus (pequenos ou grandes) poderes, e que resistem a ingerências externas, sobretudo pelos jornalistas.

    Até um certo nível, isso é compreensível. Mas agora, nos tempos que correm, a resistência passou para um perfeito e absoluto bloqueio.

    Hoje, qualquer informação é considerada comprometedora, de acesso obstaculizado. Bases de dados públicas, antes disponíveis, são apagadas ou mutiladas. Tudo serve para não ceder. Ou porque é demasiada informação, ou porque o jornalista tem de justificar o fim da consulta dos documentos – como defende, hélas, o próprio Conselho Superior da Magistratura – ou porque os documentos contêm dados nominativos sob reserva.

    A interpretação abusiva – e se não fosse abusiva e grave, seria então apenas risível e patética – de até os simples nomes, incluindo de funcionários públicos no exercício de funções, deverem ser protegidos está, entretanto, a fazer “escola” dentro da Administração Pública.

    O princípio é falacioso: qualquer cidadão tem direito de privacidade; porém, também todo o cidadão tem direito a sindicar o que os outros cidadãos que exercem funções públicas andam a fazer no exercício dessas mesmas funções, incluindo a sua identificação.

    E porquê? Ora, porque, de contrário, a coberto do anonimato de uma suposta justa defesa da privacidade, um funcionário público, um dirigente da Administração Pública, um político (em última análise) jamais poderia ser identificado pelos demais. Todos os seus actos legais e ilegais ficariam no limbo, escondidos para todo o sempre.

    No limite do absurdo, não poderíamos sequer conhecer o nome do primeiro-ministro, o nome de qualquer ministro, o nome de qualquer secretário de Estado, o nome de um director-geral ou de um presidente de um instituto público, nem o nome de qualquer funcionário, donde jamais se conheceriam o que fizeram, de bem ou de mal. Tudo secreto, tudo obscuro.

    Dou aqui um exemplo paradigmático.

    … e por aqui…

    O PÁGINA UM solicitou à Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) um conjunto de documentos relacionados com processos de fiscalização. A IGAS não os enviou numa primeira fase; não os cedeu de imediato após um parecer da CADA – e, portanto, o PÁGINA UM remeteu um pedido de intimação para o Tribunal Administrativo de Lisboa no passado dia 1 de Agosto, processo que está em curso.

    Ontem, recebi um telefonema da IGAS, informando que os documentos seriam enviados por e-mail. E foram. Só que têm um “problema”: tudo o que era nomes e mesmo funções foram literalmente apagados. Centenas ou milhares de páginas, de algumas dezenas de processos, foram expurgadas de elementos essenciais. Para não parecer tão mal, não se usou rasura a negro; foi a branco.

    Peguemos num exemplo: o Processo de Fiscalização 0020/2018-FIS teve como objecto a “verificação do cumprimento da legalidade dos procedimentos sobre a aplicação do regime jurídico das incompatibilidades”. O processo tem 154 páginas.

    Logo na primeira página consta um espaço sobre a Entidade.

    Qual? Não se sabe. Foi apagada pela borracha da IGAS.

    Segue-se o nome do instrutor/a.

    Quem foi? Não se sabe. Foi nome apagado pela borracha da IGAS.

    Houve um secretário/a?

    Talvez, mas aparentemente o nome também foi apagado pela borracha da IGAS.

    Vá lá: não apagaram a data da instauração do processo: 31-07-2018.

    Na página 2 consta a Ordem de Serviço nº 81/2018.

    Sobre qual entidade? Não se sabe. Foi apagada pela borracha da IGAS.

    Nome do chefe de equipa, dos dois inspectores e da inspectora-geral? Nada. Apagado.

    E assim se segue na página 3, com pelo menos quatro nomes apagados.

    … e por aqui… e por mais centenas e muitas mais centenas de páginas.

    Na página 4 terão sido apagados 10 nomes de entidades.

    E por aí fora.

    Por exemplo, na página 20 do processo, fica-se a saber que alguém cujo nome foi apagado enviou às 14:47 horas de 2 de Outubro de 2018 um e-mail para a Exma. Senhora Presidente do Conselho Directivo APAGADO a informar do adiamento de uma acção de fiscalização “por motivos ponderosos de última hora”.

    Nas páginas 25 e 26 são apagados todos os nomes dos membros dos júris de concursos de dispositivos médicos num hospital desconhecido porque também foi apagado pela borracha da IGAS.

    Chegam a ser listadas, neste processo, diversas declarações de inexistência de incompatibilidades. De quem? Não se sabe. A IGAS meteu-lhe borracha.

    Enfim, poupemos os leitores. Já basta. Não ficou nem um nome esquecido. Foi trabalho meticuloso. Moroso, acredito. Até porque em todas as outras dezenas de processos o modus operandi foi similar.

    Limparam tudo. Muito bem. E agora, de certeza, vai ainda a descarada IGAS “vender” ao Tribunal Administrativo de Lisboa que já deu a informação ao PÁGINA UM toda a informação, alegando assim uma “inutilidade superveniente da lide” para se furtarem da transparência. Mandaram sim uma montanha de vergonhosa inutilidade.

    Agora, já compreendem os leitores do PÁGINA UM a importância da intervenção dos tribunais para arejar a Democracia? Se não forem os juízes, esta nossa pobre Democracia apodrecerá.

    São eles, agora, os juízes, como foram os militares em 1974, que podem salvar-nos de um regime vicioso, que não merecemos. Ou merecemos, se continuarmos impavidamente a aceitar o que certos senhores nos querem fazer.


    N.D. Os leitores que desejem conhecer o exemplo aqui exposto, o Processo de Fiscalização 0020/2018-FIS, para conferir o aqui exposto, pode solicitar o seu envio para o e-mail geral@paginaum.pt. O ficheiro tem cerca de 91.544 KB.

  • Chumbada: presidente do regulador dos jornalistas teve das piores notas no concurso para a magistratura

    Chumbada: presidente do regulador dos jornalistas teve das piores notas no concurso para a magistratura

    A lei obriga à escolha de um jurista de mérito, mas o currículo de Licínia Girão para presidir à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) está longe de ser excepcional. Advogada-estagiária aos 57 anos, concorreu nesta Primavera ao concurso para formação de magistrados, e os resultados dificilmente poderiam ser piores. Ninguém quis assumir ao PÁGINA UM como chegou ela à presidência do órgão que regula e disciplina os jornalistas.


    Reprovada sem apelo nem agravo. Eleita em Maio passado para a presidência da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) por alegadamente ser uma “jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social”, como determina a lei, Licínia Girão – a jornalista freelancer e advogada-estagiária de 57 anos – foi chumbada logo na primeira fase deste ano do concurso para formação de magistrados. E com um desempenho que, no mínimo, se pode considerar muito sofrível.

    De acordo com as pautas consultadas hoje pelo PÁGINA UM no Centro de Estudos Judiciários em Coimbra, onde realizou as provas, o sonho de Licínia Girão em se tornar magistrada ficou adiado, pelo menos por um ano. E nem esteve próxima dessa meta.

    Licínia Girão preside à CCPJ por ser considerada “jurista de mérito reconhecido”, Nas provas do concurso deste ano para o curso de magistrados do CEJ foi das piores candidatas.

    Com efeito, atendendo às suas notas nas três provas escritas – Direito Civil, Direito Penal e Desenvolvimento de Temas Culturais, Sociais ou Económicos –, certo ficou que não lhe bastará ser considerada, entre alguns dos seus pares, uma “jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social” para ser aceite nos cursos de formação de juízes e delegados do Ministério Público. Vai ter muito que estudar.

    Sendo exigido aos candidatos – para passar à segunda fase do concurso que escolherá, este ano, 104 alunos – a obtenção de notas positivas em todas as três provas (pelo menos 10, em 20), o melhor que Licínia Girão conseguiu foi, contudo, um 10,50 em Direito Civil. Mesmo assim, foi apenas a 96ª melhor classificação entre 269 candidatos.

    No caso de Direito Penal, “apanhou” um 5,05 (em 20). Houve 249 candidatos com melhor nota.

    Já bastaria, por si só, o “chumbo” a Direito Penal para Licínia Girão ser excluída, mas ainda teve direito a um duplo carimbo por força da negativa (8,75) à prova de Desenvolvimento de Temas Culturais, Sociais ou Económicos.

    Nesta última prova, seria expectável um melhor resultado por parte de uma jornalista, porquanto foram colocadas aos examinados, para dissertar, duas questões de cultura geral – sobre capacidade de carga turística e sobre o impacto da digitalização na transformação das práticas culturais dos portugueses – a partir de trechos de notícias do Público e do Gerador. Licínia Girão não conseguiu os mínimos, isto é, uma nota de 10 ou superior. Só foi melhor do que 16 candidatos.

    Apesar de ser irrelevante na passagem para a fase seguinte – provas orais e análise curricular –, uma vez que para a exclusão bastava uma negativa, Licínia Girão obteve, no cômputo geral das três provas, um total de 24,30 valores (num total de 60 possíveis), colocando-a assim no lugar 230 em 269 candidatos.

    Saliente-se que passaram para a segunda fase, 119 candidatos (por esta via académica), ou seja, a taxa de aprovação foi de 44%. Nos 10 melhores classificados, constam sete mulheres.

    Pautas expostas nas instalações do Centro de Estudos Judiciários em Coimbra. Foto: ©António Honório Monteiro.

    A este desempenho de Licínia Girão nas provas para o curso de formação de magistrados do CEJ – que colocam em causa o seu estatuto de “jurista de mérito” –, acresce ainda, como já noticiou o PÁGINA UM, o facto de ser advogada-estagiária num escritório em Santo Tirso, apesar de morar em Coimbra, e de se assumir como “coordenadora da comunicação interna do Instituto de Certificação e Formação de Mediadores Lusófonos (ICFML)”, uma tarefa que poderá ser considerada incompatível face ao estabelecido no Estatuto do Jornalista. 

    Porém, o seu fraco currículo não a impediu de ser escolhida para a presidência do órgão regulador e disciplinar dos jornalistas. Criada em 1995, a CCPJ foi sempre presidida por magistrados durante duas décadas: Eduardo Lobo (entre 1995 e 2001; juiz de direito à data); Eurico dos Reis (entre 2001 e 2005; juiz desembargador à data); Pedro Mourão (entre 2005 e 2014; juiz desembargador à data).

    Depois, foi escolhido em 2015 o advogado Henrique Pires Teixeira, que exercia aquela profissão desde 1982 e ocupara também o cargo de director de um jornal regional (A Comarca). Antes de Licínia Girão, o cargo de presidente da CCPJ foi ocupado por Leonete Botelho, advogada desde 1992, de acordo com os registos da Ordem dos Advogados, e jornalista do Público desde os anos 90, sendo actualmente grande repórter, depois de já ter sido editora das secções Política (2009-2016) e de Sociedade (2003-2006).

    Folha com notas de Maria Licínia Vieira Girão, candidata 287, excluída. Foto: ©António Honório Monteiro.

    Sobre a indicação de Licínia Girão para o cargo de presidente da CCPJ, o PÁGINA UM não conseguiu saber como o seu nome surgiu para o cargo. A própria não quis esclarecer esta questão.

    O PÁGINA UM também quis saber junto dos oito jornalistas membros da CCPJ – que elegeram Licínia Girão – quem (pessoa ou entidade) a indicou para o cargo, se tinham visto o seu currículo e se houvera outros candidatos para o cargo. Contudo, nenhum destes jornalistas – Jacinto Godinho, Anabela Natário, Miguel Alexandre Ganhão, Isabel Magalhães (nomeados pelos jornalistas), e Cláudia Maia, Paulo Ribeiro, Luís Mendonça e Pedro Pinheiro (nomeados pelos operadores do sector) – respondeu às questões do PÁGINA UM nem prestou qualquer esclarecimento até agora.


    N.D. No passado dia 12 de Agosto, o PÁGINA UM criticou, com veemência, uma inaudita recomendação da CCPJ, sem enquadramento legal, que visou “censurar” um trabalho de investigação sobre a Sociedade Portuguesa de Pneumologia. Tem também o PÁGINA UM colocado diversas questões à CCPJ, algumas ainda no tempo de Leonete Botelho como presidente. Em alguns casos sem resposta. Os artigos do PÁGINA UM sobre Licínia Girão, a actual presidente da CCPJ, são de indiscutível relevância e interesse público, e sustentam-se exclusivamente em factos, tendo-se sempre dado primazia ao contraditório. Na nossa opinião, a existência de discórdias não pode condicionar a linha editorial do PÁGINA UM. Se assim fosse, tendo em conta que o PÁGINA UM tem até processos de intimação em tribunal contra o Ministério da Saúde, tal significaria, por absurdo, que teríamos de deixar de noticiar temas sobre Saúde ou sobre Marta Temido.

  • Previsão: mortalidade em Agosto ficará abaixo dos 10.000 óbitos, mas será o segundo pior desde 1980

    Previsão: mortalidade em Agosto ficará abaixo dos 10.000 óbitos, mas será o segundo pior desde 1980

    Apesar de um abrandamento, o excesso de óbitos continua ainda em Agosto. Os dias com menos de 300 óbitos tornaram-se mais frequentes, mas mesmo assim a média continua acima daquele patamar, o que se mostra intolerável face a um excesso de mortalidade que vem desde finais de Fevereiro. Com base na situação até dia 18, o PÁGINA UM prevê que este será o segundo mais mortífero Agosto deste século, apenas ultrapassado por 2003 que registou uma das piores onda de calor.


    Apesar de uma redução da mortalidade nas últimas três semanas, o presente mês de Agosto continua a estar com níveis muito acima do expectável. De acordo com a análise do PÁGINA UM, a partir do perfil e especificidades em anos anteriores e ao longo do mês em curso, será provável que a mortalidade total em Agosto de 2022 fique apenas abaixo da registada em 2003, quando uma onda de calor intensa no início daquele mês fez disparar os óbitos. Naquele ano, Agosto contabilizou 10.111 óbitos.

    Agosto de 2003 registou uma das mais inclementes ondas de calor de que há registo, que se iniciou em 30 de Julho e se prolongou até ao dia 15 daquele mês. Quando a população estava menos envelhecida, foi estimado um excesso global de 1.953 óbitos, sobretudo no interior. Nos distritos de Guarda, Castelo Branco, Portalegre e Évora a mortalidade foi superior a 80% face ao expectável.

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    Agora, sendo quase garantido que no presente mês de Agosto se interromperá a inédita série de nove meses, iniciada em Novembro do ano passado, com mortalidade total acima dos 10 mil óbitos, mostra-se muito provável, em todo o caso, que se fique bem acima dos 9 mil, mesmo assim um valor bastante elevado para esta época do ano.

    Até dia 18, de acordo com os dados disponível do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito terão morrido 5.447 pessoas, ou seja, 7% acima da média do último quinquénio.

    Desde 2009, no período homólogo apenas 2018 apresenta um número mais elevado (5.617), mas muito por força também de uma onda de calor que, no início de Agosto daquele ano, causou uma elevada mortalidade, mas à qual sucedeu uma queda acentuada na segunda quinzena.

    No caso de Agosto deste ano, a mortalidade continua bastante elevada, mesmo nas semanas em que as temperaturas estiveram mais amenas. Apesar do mês em curso ter tido 10 dias em mortalidade diária abaixo dos 300 óbitos – algo que somente acontecera em sete dias até finais de Julho –, a média continua elevadíssima (303 por dia), sobretudo porque o excesso de mortalidade tem estado omnipresente desde finais de Fevereiro.

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    Nessa medida, e com o aumento da temperatura para os próximos dias, será expectável que a mortalidade diária continue a rondar os 300 óbitos, o que a confirmar-se significará que Agosto de 2022 será o segundo pior de sempre, a seguir a 2003. O PÁGINA UM prevê que a mortalidade do final de Agosto estará compreendida entre 9.300 e 9.500 óbitos.

    Recorde-se que o Ministério da Saúde prometeu apenas para 2023 revelar as conclusões de um estudo, do qual pouco se sabe, sobre as causas do excesso de mortalidade em Portugal, mantendo, por outro lado, a recusa em divulgar o acesso aos dados em bruto do SICO ao PÁGINA UM, uma questão que está a ser dirimida no Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Também a base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, que poderia dar indicações sobre as causas principais desse excesso, foi retirada pelo Ministério da Saúde do Portal da Transparência do SNS – e depois mutilada –, razão pela qual também ontem o PÁGINA UM intentou outro processo de intimação junto do Tribunal para obrigar a Administração Central do Serviço de Saúde a disponibilizar a versão original.


    N.D. Foi alterado o título e alguns pormenores do texto em 28 de Agosto, porque se constatou que, pelo menos até aos anos 40 do século XX, em grande parte devido à elevadíssima taxa de mortalidade infantil, os meses de Verão eram bastante mortíferos, ao contrário do que passou a verificar-se nos últimos 50 anos.

  • Tribunal decide se amigo de Marta Temido repõe versão original (que “mutilou” para impedir investigações do PÁGINA UM)

    Tribunal decide se amigo de Marta Temido repõe versão original (que “mutilou” para impedir investigações do PÁGINA UM)

    Depois de dois processos contra o Ministério da Saúde (um dos quais em “representação” da Direcção-Geral da Saúde), de mais dois contra o Infarmed e de mais um contra a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, o PÁGINA UM decidiu apresentar uma nova intimação desta vez contra a decisão da Autoridade Central do Sistema de Saúde. Em causa está o “expurgo” da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, que foi retirada em Maio passado do Portal da Transparência, após o PÁGINA UM ter publicado investigações comprometedoras. A base de dados foi “reposta” no início deste mês, mas completamente “mutilada” , impossibilitando qualquer análise séria que possa, por exemplo, explicar as causas para o excesso de mortalidade em Portugal desde finais de Fevereiro.


    Vítor Herdeiro, amigo de longa data da ministra da Saúde e presidente da Administração Central do Serviço de Saúde, vai ter de justificar junto do Tribunal Administrativo de Lisboa as razões para a retirada da base de dados original da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar que constava do Portal da Transparência do SNS.

    Esta é a consequência imediata do processo de intimação apresentado hoje pelo PÁGINA UM – o sexto envolvendo o Ministério da Saúde ou entidades tuteladas pela ministra Marta Temido – que tem, como objectivo primordial, a reposição da base de dados que permitia uma avaliação rigorosa do desempenho do SNS durante a pandemia, auxiliando também a perceber quais as doenças que estarão a causar um excesso de mortalidade desde finais de Fevereiro.

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    Como denunciou o PÁGINA UM em editorial no dia 16 de Junho, o Ministério da Saúde decidiu “expurgar” a base de dados com informação mensal desde Janeiro de 2017 sobre o número de internamentos e de óbitos, envolvendo 62 unidades do SNS, desagregados por sexo (dois) e por grupo etário (sete). Essa base de dados, que em Janeiro deste ano contava 440.036 linhas de informação, permitira ao PÁGINA UM elaborar um dossier específico de oito artigos, entre 13 de Maio e 1 de Junho, que mostrava uma situação muito distinta da “narrativa oficial” quanto aos números da pandemia e sobre o desempenho das diferentes unidades hospitalares mesmo em relação a outras doenças.

    Esses dados permitiram, por exemplo, ao PÁGINA UM concluir que houve menos 51 mil hospitalizações de crianças durante a pandemia por todas as doenças; apurar que a Ómicron tinha indicadores de letalidade inferior aos da gripe; identificar problemas graves (com aumento de taxas de letalidade mesmo em alas não-covid); determinar que a taxa de mortalidade da covid-19 foi evoluindo ao longo da pandemia e em função dos hospitais, sendo 30% superior à das doenças respiratórias; desmistificar a alegada elevada pressão durante a pandemia, até porque houve menos 280 mil doentes por outras causas não-covid; e também identificar que estranhas descidas na mortalidade por cancros e outras doenças, bem como colocar dúvidas sobre a mortalidade por covid-19 nos hospitais.

    Um dos artigos do dossier “Investigação SNS”, publicado entre 13 de Maio e 1 de Junho no PÁGINA UM, com informação obtida a partir da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, agora “apagada”.

    O ministério liderado por Marta Temido nunca assumiu terem sido razões políticas, em resultados das investigações do PÁGINA UM, a determinarem o “apagão” da base de dados, embora haja uma coincidência entre a decisão de retirar essa informação do Portal da Transparência e a publicação dos primeiros artigos noticiosos.

    A ACSS adiantaria, mais tarde, como causa do “expurgo”, a necessidade de uma “análise interna”, mas nunca explicou cabalmente qual o propósito.

    Certo é que após um pedido expresso do PÁGINA UM para acesso à base de dados original, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), Vítor Herdeiro decidiu em 5 de Agosto repor no Portal da Transparência um “sucedâneo” da base de dados, mas que constitui uma autêntica mutilação da versão pública original, tornndo-a inútil.

    Com efeito, a base de dados original foi partida em três completamente separadas – por sexo, por faixa etária e por instituição –, impedindo assim, por exemplo, comparações entre unidades de saúde em função do grupo etário.

    Também ficou impedido de se conhecer os números absolutos de internamentos e de óbitos em unidades de saúde por tipologia de doença, impossibilitando apurar-se que tipo de doenças estarão a tornar-se mais mortíferas desde finais de Fevereiro, quando Portugal iniciou um período sem precedentes de contínuo excesso de mortalidade.

    A intimação agora apresentada ao Tribunal Administrativo de Lisboa pretende assim que, independentemente de Marta Temido concordar com a “mutilação” da base de dados agora exposta no Portal da Transparência do SNS, a versão original seja disponibilizada ao PÁGINA UM. Isto é, o objectivo é o Tribunal sentenciar o amigo da ministra da Saúde a entregar obrigatoriamente a base de dados original (existente antes e existente agora) da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar – que esteve disponível ao público até Maio deste ano – ao PÁGINA UM.

    Se o Tribunal Administrativo de Lisboa condenar a ACSS a entregar essa base de dados original, o PÁGINA UM compromete-se a disponibilizá-la imediatamente no seu site. E continuará a dissecar essa informação – vital para compreender o excesso de mortalidade em curso –, sob a forma de análises e notícias rigorosas e isentas.

    Saliente-se que a intimação para a prestação de informações, consulta de processos e passagem de certidões é um processo considerado e, por isso, os prazos são curtos. A entidade pública responsável dispõe de 10 dias para responder, e o juiz deve decidir em cinco dias, embora possam ser pedidos mais informações.

    Marta Temido (ministra da Saúde) e Victor Herdeiro (presidente da ACSS), terceiro e quarto a contar da esquerda, juntos na sessão de apresentação dos novos Estatutos do SNS no passado dia 7 de Julho. Foram companheiros durante três mandatos na Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares.

    Caso a entidade pública continue sem satisfazer o pedido, após intimada pelo tribunal para o fazer, o juiz deve determinar a aplicação de sanções pecuniárias compulsórias, sem prejuízo da responsabilidade (civil, disciplinar, criminal) a que possa haver lugar.

    Além dos seis processos de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboam envolvendo entidades públicas na área da Saúde (Ministério da Saúde, Infarmed, Inspecção-Geral das Actividades em Saúde e agora AACS), o PÁGINA UM tem ainda em curso mais três acções similares (satisfação de pedidos de acesso a documentos administrativos) sobre a Ordem dos Médicos, Ordem dos Farmacêuticos e Conselho Superior da Magistratura (CSM), tendo já vencido duas acções em primeira instâncias. Porém, nesses dois casos, as duas entidades (CSM e Ordem dos Médicos) recorreram da decisão para o tribunal superior, demonstrando uma cultura pouco atreita à transparência.


    N.D. – Os custos e taxas dos processos desencadeados pelo PÁGINA UM no Tribunal Administrativo são exclusivamente suportados pelo FUNDO JURÍDICO financiado pelos seus leitores. Rui Amores é o advogado do PÁGINA UM neste e nos outros processos administrativos em curso. Até ao momento, estão em curso oito processos administrativos e mais dois em preparação.

  • Reuters, Roche & Público: a mulher de César que não parece séria, e talvez não seja

    Reuters, Roche & Público: a mulher de César que não parece séria, e talvez não seja


    Regresso ao tema. O Jornalismo não é credível apenas porque grita que é sério e independente. Tem de mostrar, demonstrar, estar acima de qualquer suspeita. Significa isto que, no quotidiano, quando um leitor folheia um jornal, um ouvinte sintoniza o noticiário, um telespectador se senta perante um telejornal, ou um internauta passa os olhos pelo ecrã, não pode jamais desconfiar dos propósitos (directos e indirectos) de um artigo noticioso.

    Aliás, para começar, as pessoas não podem sequer ter a mínima dúvida de que uma notícia feita por um jornalista seja mais do que uma notícia feita por um jornalista.

    Só que começaram. E têm motivos para que a “mínima dúvida” se transmute em “mínima certeza”.

    two people shaking hands

    Para mal dos pecados do Jornalismo, tenho andado cada vez mais a desconfiar do Jornalismo. Não há mal nenhum na desconfiança. Na verdade, é uma das maiores virtudes de um jornalista: olhar para a verdade que se (nos) apresenta(m) e colocar sempre a hipótese de não ser a realidade. Bem sei que um jornalista que coloca dúvidas, que exige comprovativos, que necessita de olhar para os dados em bruto não seja muito popular. Mas, mesmo assim tem de desconfiar.

    Porém, o meu “drama” não é duvidar: é confirmar que tinha motivos para desconfiar, e ainda bem que desconfiei. Lamentavelmente, desconfiar de jornalistas e acertar na desconfiança é péssimo para o Jornalismo.

    Ora, vem isto a propósito de uma notícia publicada no Público na quarta-feira passada intitulada “Porque se tem detectado poliomielite em Londres, Nova Iorque e Jerusalém? E quão perigosa é?”. A notícia destaca os 230 casos de poliomielite no Mundo, explicando as causas e a relevância da vacina.

    Ponto prévio: não há qualquer dúvida, nos dias que correm, que a vacina contra a poliomielite – uma doença incapacitante e letal em crianças, considerada um horror até há meio século – tem contribuído decididamente para a erradicação do vírus, que está quase.

    Notícia do Público não informa os leitores em que circunstâncias o artigo original da Reuters foi produzido.

    Sendo eu um adepto da vacinação em sentido genérico, tal como sou de todos os outros medicamentos, acabo agora sempre a desconfiar dos timings de certas notícias sobre vacinas (já perfeitamente estabilizadas quanto ao perfil de eficácia e de segurança) e das suas encapotadas motivações.

    É certo que a notícia publicada pelo Público sobre a poliomielite está genericamente bem construída, didáctica, rigorosa.

    Mas, tendo já reparado que nas últimas semanas se tem noticiado várias vezes supostos surtos de poliomielite (2.300 casos a nível mundial, o que não é nada), começa sempre a parecer-me que querem vestir o “hábito” de vacinas bem-sucedidas a todas as outras.

    Aliás, todos nós sabemos que o marketing político e das farmacêuticas (arrigementando “peritos”) procurou, ao longo da pandemia, usar a boa fama de outras vacinas – com décadas e décadas de existência, na maior parte dos casos – para a colar às vacinas contra a covid-19, sobre as quais cada vez surgem mais dúvidas relativamente à eficácia e aos efeitos secundários [esconder a informação, como faz o Infarmed em Portugal, convenhamos, não ajuda].

    E, por isso mesmo, quando li a notícia no Público – e a referência à Reuters –, desconfiei. E fui à procura da notícia original daquela agência noticiosa.

    E voilà: o artigo original da Reuters (copiado pelo Público) não é uma notícia “tradicional”; é um conteúdo explicitamente patrocinado [Sponsored] pela farmacêutica Roche.

    É certo que a Roche nem produz vacinas contra a poliomielite. As farmacêuticas que a produzem são a Sanofi Pasteur, a GlaxoSmithKline, a Bilthoven Biologicals e o Staten Serum Institute. É também certo que no artigo patrocinado na Reuters surge o seguinte aviso: “Sponsors are not involved in the creation of this or any other Reuters news articles”.

    Mas é isto música para os ouvidos: temos aqui a mulher de César a gritar que é séria para evitar que a acusem, pelo seu patente comportamento, que não é séria.

    Caramba!, custa-me a entender por que tem a Roche ou outra qualquer farmacêutica ou outra qualquer empresa de outro qualquer ramo de actividade a necessidade de sponsorizar jornalismo, e depois garantir que jamais influencia, jamais mete um dedo sequer em nada do que seja a linha editorial de um órgão de comunicação social.

    Não lhes bastaria fazer anúncios separados claramente das notícias? Como antigamente?

    Porque têm agora as marcas cada vez maior necessidade de estarem associadas a notícias? Exigem que tal seja feito.

    E qual o motivo de os órgãos de comunicação aceitarem as “novas regras” em que os anunciantes passaram a ser patrocinadores de jornalistas?

    Ninguém entende o perigo para a credibilidade disto para os órgãos de comunicação social?

    Ninguém quer perceber como, de forma, subliminar (ou até explícita) funcionará a prazo este tipo de sponsorizações para a liberdade editorial dos órgãos de comunicação social?

    Ninguém percebe o risco para a independência real e percepcionada dos jornalistas por parte dos cidadãos?

    black and silver stethoscope on brown wooden table

    E como se explica que um artigo da Reuters patrocinado por uma farmacêutica possa viralizar em outros órgãos de comunicação social “transformando-se” num artigo noticioso banal? O Público não sabia que estava a publicar um artigo sponsorizado? Sabia, mas optou por não avisar os seus leitores?

    Não está aqui, repito, o caso concreto do conteúdo deste artigo (poliomielite) patrocinado pela Roche à Reuters, e que acaba como notícia normal no Público, mas sim o actual modus operandi da feitura de muitas notícias sem que os consumidores de notícias se apercebam.

    A dependência económica do Jornalismo perante os seus anunciantes – agora patrocinadores – está a dar cabo da sua credibilidade e independência. E isto, no futuro, não será bom nem para o Jornalismo nem para as empresas.

    Se todos, na imprensa mainstream, continuarem a assobiar para o ar e a bater no peito clamando serem muito independentes, a confiança dos cidadãos continuará a ser minada. E atingirá um nível tão elevado que, um dia, pouco valerá à mulher de César gritar e esbracejar que é séria e que parece séria. Ninguém já nela acreditará, porque, no passado, não pareceu séria, e talvez não tivesse mesmo sido.

  • Advogada-estagiária ‘fantasma’ com cargo que por lei exige “jurista de reconhecido mérito”

    Advogada-estagiária ‘fantasma’ com cargo que por lei exige “jurista de reconhecido mérito”

    Criado em 1995, o órgão de regulação e de disciplina dos jornalistas foi, durante duas décadas, presidido por magistrados. Os últimos dois presidentes, incluindo a primeira mulher (a jornalista Leonete Botelho), eram advogados registados na respectiva Ordem há mais de 25 anos. A razão era simples: exigia-se no topo “um jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação”. A recém eleita presidente é, porém, uma jornalista freelancer com currículo na imprensa regional, e está agora a realizar um estágio “fantasma” num escritório de advogados em Santo Tirso, apesar de viver em Coimbra. E também faz comunicação interna de um instituto de mediação de conflitos. Ninguém esclareceu ao PÁGINA UM a razão da escolha de Licínia Girão para a CCPJ. Nem a própria.


    A lei que regula o funcionamento do órgão regulador e disciplinador dos jornalistas – a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) – é taxativa: a sua presidência somente pode ser ocupada por “um jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social”, cooptado pelos outros oito membros.

    Mas na recente eleição, em Maio passado, o ambíguo conceito de “jurista de reconhecido mérito” acabou por ser encaixado no perfil de Licínia Girão, uma jornalista freelancer (desde início do século) com percurso profissional consolidado sobretudo em trabalhos avulso na imprensa regional, e que se encontra a realizar actualmente um estágio de advocacia num escritório de Santo Tirso, Rodrigues Braga & Associados, apesar de viver em Coimbra.

    Licínia Girão preside à CCPJ por ser considerada “jurista de mérito reconhecido”, apesar de ser advogada-estagiária num escritório em Santo Tirso, e apesar de viver em Coimbra.

    Nascida em 1965, Licínia Girão apenas recentemente se dedicou aos estudos universitários, após ter concluído uma licenciatura em Direito já este século. No Registo Nacional de Teses e Dissertações constam agora dois mestrados concluídos em Outubro de 2019 e em Março de 2021: o primeiro em Jornalismo e Comunicação; e o segundo em Ciências Jurídico-Forenses.

    Além destas duas recentes provas académicas de nível intermédio, não consta outro qualquer registo consultável de obra académica ou de natureza relevante do ponto de vista profissional que possa atribuir a Licínia Girão um estatuto de “jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social”.

    Criada em 1995, a CCPJ foi sempre presidida por magistrados durante duas décadas: Eduardo Lobo (entre 1995 e 2001; juiz de direito à data); Eurico dos Reis (entre 2001 e 2005; juiz desembargador à data); Pedro Mourão (entre 2005 e 2014; juiz desembargador à data).

    Em 2015 foi escolhido o advogado Henrique Pires Teixeira, que exercia aquela profissão desde 1982 e ocupara também o cargo de director de um jornal regional (A Comarca). Este advogado é, actualmente, presidente da Assembleia Geral da Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação (APCT).

    Em 2018 seria eleita a primeira mulher para este cargo, Leonete Botelho. Advogada desde 1992, de acordo com os registos da Ordem dos Advogados, Leonete Botelho é jornalista do Público desde a sua fundação, naquele mesmo ano, sendo actualmente grande repórter, depois de já ter sido editora das secções Política (2009-2016) e de Sociedade (2003-2006).

    Quanto a Licínia Girão, além do parco currículo jurídico e jornalístico, subsistem dúvidas sobre a sua efectiva actividade profissional, a começar pela forma como está a desenvolver o seu estágio obrigatório de dois anos.

    O PÁGINA UM contactou esta tarde, por telefone, a sociedade Rodrigues Braga & Associados – cujos contactos correspondem ao local de estágio de Licínia Girão no registo da Ordem dos Advogados –, perguntando como poderia contactar com a advogada-estagiária, tendo sido informado por uma secretária que não era do seu conhecimento estar lá a trabalhar alguém com o nome da actual presidente da CCPJ.

    Registo de Licínia Girão na Ordem dos Advogados como estagiária, indicando um endereço que corresponde ao da sociedade Rodrigues Braga & Associados, onde não é conhecida pela secretária que atendeu o jornalista do PÁGINA UM.

    [Este contacto telefónico foi gravado, sem autorização, e, apesar de o jornalista se ter identificado pelo nome verdadeiro, não se identificou como jornalista. O ponto 4 do Código Deontológico dos Jornalistas salienta que “o jornalista deve utilizar meios leais para obter informações, imagens ou documentos e proibir-se de abusar da boa-fé de quem quer que seja. A identificação como jornalista é a regra e outros processos só podem justificar-se por razões de incontestável interesse público e depois de verificada a impossibilidade de obtenção de informação relevante pelos processos normais.” O PÁGINA UM defende o método usado por se estar perante um incontestável interesse público, estando convicto de que a sua identificação prévia como jornalista resultaria num eventual enviesamento da verdade.]

    No site da Rodrigues Braga & Associados, consultado no dia 14 de Agosto e hoje, também não surge Licínia Girão como integrando a equipa, quer de advogados seniores, quer de advogados-estagiários. Na base de dados da Ordem dos Advogados, a presidente da CCPJ tem registo de estágio naquela sociedade desde 22 de Fevereiro do ano passado.

    Além do seu estágio aparentemente “fantasma”, Licínia Girão acumula as suas tarefas de presidente da CCPJ – que não obriga a qualquer exclusividade – com uma intensa actividade de busca de novos horizontes profissionais.

    No site da Rodrigues, Braga & Associados constam três advogadas-estagiárias (Inês Curval, Ana Sofia Ferreira e Diana Silveira). Não consta o de Licínia Girão nem o seu nome é conhecido pela secretária deste escritório de advogados de Santo Tirso.

    De acordo com a investigação do PÁGINA UM, Licínia Girão candidatou-se este ano ao 39º curso de ingresso de formação de magistrados no Centro de Estudos Judiciários, desconhecendo-se se foi aprovada. E também se candidatou a mediadora de conflitos dos julgados da paz do agrupamento de concelhos da Batalha, Leiria, Marinha Grande, Pombal e Porto de Mós, e do agrupamento de concelhos de Alvaiázere, Ansião, Figueiró dos Vinhos, Pedrógão Grande e Porto de Mós, não se conhecendo também os resultados.

    Licínia Girão assume-se também como “coordenadora da comunicação interna do Instituto de Certificação e Formação de Mediadores Lusófonos (ICFML)”, uma tarefa que poderá ser considerada incompatível face ao estabelecido no Estatuto do Jornalista. De acordo com a alínea b) do nº 1 deste diploma legal são incompatíveis com a actividade jornalística as “funções de marketing, relações públicas, assessoria de imprensa e consultoria em comunicação ou imagem, bem como de planificação, orientação e execução de estratégias comerciais”.

    Aliás, muitos aspectos do percurso formativo e profissional (incluindo jurídico) de Licínia Girão mantêm-se sombrios – a começar por quem lhe dirigiu em concreto o convite para a presidência da CCPJ –, porque esta não os quis esclarecer quando questionada pelo PÁGINA UM (ver troca de mensagens em anexo).

    Além de referências generalistas às funções da CCPJ, na resposta ao PÁGINA UM, Licínia Girão preferiu destacar, na terceira pessoa, que “pela segunda vez na história da Comissão uma jornalista / jurista com formação superior pós-graduada em Direito da Comunicação, se comprometeu honrar na defesa do jornalismo e acompanhamento dos jornalistas”. E faz ainda referência ao “decretado no nº 2 do já citado artigo 20º do Decreto-Lei nº 70/2008, de 15 de Abril”, ou seja, à independência do cargo consagrada na lei.

    A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista funciona no Palácio Foz, em Lisboa.

    O PÁGINA UM ainda reiterou anteontem o pedido de comentário e informações a Licínia Girão, salientando que a sua missiva “não respondeu nem esclareceu qualquer dos pontos referidos [nas questões colocadas], designadamente ano de início e conclusão do curso de Direito, em que moldes se encontra a realizar o estágio num escritório de Santo Tirso (vivendo em Coimbra), e não existindo referência no site da referida Sociedade, de quem recebeu o convite para a presidência da CCPJ (não tendo, pelo que sei, integrado a lista nem dos jornalistas nem dos operadores do sector) e se se considera uma ‘jurista de mérito reconhecido’, de acordo com o referido na lei.”

    O PÁGINA UM também explicitou, nessa missiva, não ser a “questão do género que aqui está em causa, como parece a todos óbvio, mas sim se a legislação foi aplicada com rigor na escolha em concreto” da nova presidente da CCPJ.

    Esta missiva não obteve resposta. Um conjunto de questões colocadas pelo PÁGINA UM a Jacinto Godinho, membro da CCPJ desde 2015, jornalista da RTP e professor da Universidade Nova de Lisboa, também não obteve qualquer reacção.


    Troca de mensagens (integral) entre o PÁGINA UM e a Presidente da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista

    Exma. Senhora Dra. Licínia Girão,

    O regime de organização e funcionamento da CCPJ, no nº 1 do artigo 20º do Decreto-Lei n.º 70/2008 de 15 de Abril, refere que esta “é composta por oito elementos com um mínimo de 10 anos de exercício da profissão de jornalista e detentores de carteira profissional ou título equiparado válido, designados igualitariamente pelos jornalistas profissionais e pelos operadores do sector, e por um jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social, cooptado por aqueles, que preside.”

    De acordo com a investigação que tomei a cargo, constato que, efectivamente, é licenciada em Direito pela Universidade de Coimbra (agradecia que me esclarecesse em que ano foi a primeira inscrição e o ano de conclusão), tendo ainda dois recentes mestrados ambos na Universidade de Coimbra: Jornalismo e Comunicação (2019) e Ciências Jurídico-Forenses (2021).

    Também tenho conhecimento que se encontra a realizar o estágio de advocacia desde 2020 num escritório de advocacia em Santo Tirso, apesar de ter conhecimento de viver em Coimbra (agradecia confirmação), embora o seu nome não conste na equipa do referido escritório (https://archive.ph/too8Q). Aliás, agradecia que me informasse em que moldes se encontra a realizar esse estágio.

    Tenho também conhecimento de que estará em provas para admissão no CEJ.

    Não tenho conhecimento de quaisquer estudos, análises e actividades profissionais no meio juridico (além da tese de mestrado) em que se possa destacar o seu papel de “jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social”, pelo menos atendendo ao histórico de todos os seus antecessores.

    Considerando, repito, que a legislação destaca a necessidade de o/a presidente da CCPJ ser “um jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social” – e, para todos os efeitos, sem demérito, estamos perante uma mestre em Direito e em Jornalismo e uma advogada-estagiária, gostaria de ter a sua opinião, para efeitos de elaboração de notícia, se se considera enquadrada nessa exigência da lei. Ou seja, se pessoalmente se considera uma “jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social” e porquê.

    Por outro lado, e tendo em consideração que se reveste de relevância pública, e uma vez que não foi eleita nas listas dos jornalistas nem aparentemente na lista indicada pelos operadores do sector, gostaria de saber quem (pessoa ou pessoas) ou que entidade em concreto a convidou para a presidência da CCPJ.

    Aguardando as suas respostas e esclarecimentos, e manifestando, desde já, a minha garantia de rigor, que me advém de funções jornalísticas desde 1995 (com passagens, entre outros, pelo Expresso e Grande Reportagem), e de uso de princípios deontológicos (recordo a minha passagem pelo Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas e a ausência de qualquer “condenação” por infringir tais regras), fico à sua disposição, aguardando por uma resposta até terça-feira.

    Cumprimentos.

    Pedro Almeida Vieira

    14 de Agosto de 2022


    Exmo. Senhor Pedro Almeida Vieira

    Na sequência do seu contacto, cumpre responder-lhe o seguinte:

    Tal como referido no artigo 20.º, 1 do Decreto-Lei nº 70/2008 de 15 de Abril “a CCPJ é composta por oito elementos com um mínimo de 10 anos de exercício da profissão de jornalista e detentores de carteira profissional ou título equiparado válido, designados igualitariamente pelos jornalistas profissionais e pelos operadores do sector, e por um jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social, cooptado por aqueles, que preside”.

    A atual composição da direção da CCPJ submeteu-se ao escrutínio dos seus pares, nos termos estatuídos por lei, e a sua presidente, tal como prevê o já mencionado instituto, foi cooptada, unanimemente, pelos jornalistas que elegeram os membros para integrarem a CCPJ e, ainda, pelos que foram nomeados pelos operadores do setor.

    É criterioso propósito da CCPJ, desde a sua criação em 1996, cumprir com os deveres que lhe têm vindo, sucessivamente, a ser consignados. Obrigações, que a sua atual presidente, que à semelhança da anterior é pela segunda vez na história da Comissão uma jornalista / jurista com formação superior pós-graduada em Direito da Comunicação, se comprometeu honrar na defesa do jornalismo e acompanhamento dos jornalistas. Não perdendo de vista o decretado no nº 2 do já citado artigo 20.º do Decreto-Lei nº 70/2008, de 15 de Abril.

    De referir, por último, que a lei não exige que o exercício das funções de presidente da CCPJ seja exercido em regime de exclusividade.

    Atentamente

    Licínia Girão

    16 de Agosto de 2022


    Exma. Senhora Dra. Licínia Girão:

    Na posse da sua resposta, que muito agradeço, quero em todo o caso salientar que não respondeu nem esclareceu qualquer dos pontos referidos na minha carta, designadamente ano de início e conclusão do curso de Direito, em que moldes se encontra a realizar o estágio num escritório de Santo Tirso (vivendo em Coimbra), e não existindo referência no site da referida Sociedade, de quem recebeu o convite para a presidência da CCPJ (não tendo, pelo que sei, integrado a lista nem dos jornalistas nem do operadores do sector) e se se considera Uma “jurista de mérito reconhecido”, de acordo com o referido na lei.

    Desnecessário seria dizer, mas convém, que me congratulo com a ocupação, quer na CCPJ quer em qualquer outra entidade, de mulheres em cargos de prestígio e de responsabilidades (para os quais têm tanto ou até mais créditos). Não é, obviamente, a questão do género que aqui está em causa, como parece a todos óbvio, mas sim se a legislação foi aplicada com rigor na escolha em concreto.

    Como vou escrever apenas amanhã este texto, deixo à sua consideração responder às questões. Em todo o caso, garantido está que, mesmo que à parte, transcreverei na íntegra as suas declarações.

    Pedro Almeida Vieira

    16 de Agosto de 2022

  • Jogo sujo: uma queixa-crime da Ordem dos Médicos, um joguete de Guimarães, Froes & Ca. Lda.

    Jogo sujo: uma queixa-crime da Ordem dos Médicos, um joguete de Guimarães, Froes & Ca. Lda.


    A Ordem dos Médicos é uma associação profissional com um activo de mais de 58 milhões de euros, receitas anuais que rondam os 12 milhões de euros e acabou 2021 com um lucro de 2,4 milhões. É um Golias, presidida, conjuntural e efemeramente, pelo urologista Miguel Guimarães.

    Ora, esta associação profissional, está neste momento em litígio no Tribunal Administrativo de Lisboa com o director do PÁGINA UM – jornal digital com um capital social de 10 mil euros e um orçamento mensal de poucos milhares de euros –, por causa do acesso a pareceres técnicos que o bastonário Miguel Guimarães insiste em esconder (já ganho em primeira instância), e à contabilidade de uma campanha de angariação de fundos mal-escrutinada em redor da pandemia.

    O PÁGINA UM é, assim, um David – que tem como “funda” os seus leitores.

    Ana Paula Martins, antiga bastonária da Ordem dos Farmacêuticos (que trabalha agora para a Gilead), e Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos (na entrega dos Prémios Almofariz 2020), recusaram acesso a documentos administrativos de campanha milionária

    Apesar dessa diferença de escala financeira, o PÁGINA UM – e particularmente eu – tem incomodado alguns senhores doutores que, desde 2020, foram cirandando pelos corredores do poder, dos hospitais e da imprensa, vendendo alegadas “opiniões independentes”, enquanto também se “vendiam” (ou vendiam os seus conhecimentos) às farmacêuticas e ao Governo.

    O PÁGINA UM nasceu para ser um jornal independente e fazer jornalismo de âmbito nacional e genérico. Mas não esquece parte da sua motivação inicial. Durante dois anos, muitos calaram-se ou foram calados. Agora, com a acutilância de um jornalismo isento e sem cedências, queremos respostas, saber o que os mobilizou, saber como foram “alimentando” uma narrativa, conhecer os motivos para terem sido tão lestos a criar pânico e tão lentos a reivindicarem soluções para os verdadeiros problemas de Saúde Pública do país.

    O PÁGINA UM não quer que se repita 2020 e 2021. Não quer que 2022 seja um sucedâneo, nem que o futuro confirme a perda de direitos e o crescimento do obscurantismo e falta de transparência. Por isso, fazemos este tipo de jornalismo, que vai até às últimas consequências legais.

    Até ao Tribunal Administrativo.

    Mas jogamos de forma limpa e com ética. Para fomentar a transparência não é necessário criar inimigos; mas não nos importamos de os ter se para tal for necessário. E consideramos que os tribunais são o palco para dirimir as questões, mas usando “armas” limpas.

    Surge este editorial porque, enfim, no meio da sua defesa num dos processos administrativos envolvendo a Ordem dos Médicos (e também a Ordem dos Farmacêuticos) – o acesso aos documentos da campanha Todos por Quem Cuida –, ficámos ontem a saber que foram “depositadas”, como argumento (chamemos assim) da dita Ordem dos Médicos, 42 páginas de uma suposta queixa-crime por difamação contra mim.

    Esta alegada queixa-crime terá sido apresentada no DIAP em 16 de Fevereiro passado, tendo como queixosos a própria Ordem dos Médicos, o bastonário Miguel Guimarães, o pediatra Luís Varandas e o pneumologista Filipe Froes.

    [Filipe Froes ser um queixoso é piada que se faz sozinha]

    Note-se: até ontem, esta queixa era completamente desconhecida tanto por mim como pelo meu advogado.

    Nunca fui notificado para prestar declarações.

    Não sou arguido.

    António Guterres depôs em campanha que a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos insistem em esconder de escrutínio.

    Pela leitura do arrazoado, aquela queixa tem, num país democrático que (espero) preza a liberdade de expressão, tem tantas pernas para andar como as de um caracol.

    Mas, perguntem-me: que faz uma queixa-crime num processo administrativo?

    Nada. Juridicamente, não serve para nada. Deve ser desentranhado. Nunca sequer deveria apresentado.

    Porém, o senhor urologista Miguel Guimarães decidiu que aquilo era uma boa “arma” para tentar convencer uma juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa a não conceder-me o direito de escrutinar as contas e as operações de uma campanha de angariação de fundos de 1,4 milhões de euros, rodeada de muitos secretismos.

    Foi jogo sujo, simples e lamentável.

    Não vou aqui sequer explanar sobre esta queixa-crime em concreto que, aparentemente, sobre mim pende – patrocinada pelas quotas da mais de meia centena de milhar de médicos do país.

    Até porque ainda acho que, num país decente e que preza a liberdade de expressão (ainda mais quando se questionam aspectos éticos e de promiscuidade com farmacêuticas, suportados em dados da Plataforma da Transparência e Publicidade do Infarmed), esta queixa-crime tem menos pernas para andar do que as de um caracol.

    Mas devo lamentar, e de forma veemente, este jogo sujo do bastonário, porque esta queixa quis servir um único propósito: influenciar uma juíza através de uma “manobra de diversão”, colocando a Ordem dos Médicos (e médicos) como “vítimas” de um alegado difamador.

    Mas isto também mostra um sinal de aflição da Ordem dos Médicos.

    Para Miguel Guimarães já vale tudo para influenciar a decisão num processo administrativo, onde apenas está em causa a aplicação da lei e de direitos de cidadãos.

    woman holding pistol

    Qual é afinal o temor de Miguel Guimarães?

    Teme a transparência?

    Teme que esta juíza lhe conceda uma segunda derrota na primeira instância do Tribunal Administrativo, obrigando-o a divulgar como foi feita a gestão de 1,4 milhões de euros de uma campanha de angariação de fundos?

    Teme que não consiga silenciar um jornalista como conseguiu silenciar muitos médicos com processos disciplinares?

    Quem é este senhor, afinal, que assume a Ordem dos Médicos como seu feudo, para seu uso e dos apaniguados?

    Em que página da História querem os médicos que fique os mandatos do senhor Miguel Guimarães? E a democracia, em que sítio o que colocar?


    N.D. Sejamos, porém, pragmáticos, o PÁGINA UM está consciente do risco de vir a sofrer de SLAPP – acrónimo, que faz lembrar estalo (slap), para Strategic Lawsuit Against Public Participation. A denúncia destes casos, ainda mais quando está em causa um projecto de jornalismo completamente independente, mostra-se fundamental. Embora com meios incomensuravelmente menores, o PÁGINA UM não vergará na sua luta em prol da transparência e do acesso à informação. No caso dos processos judiciais, os apoios podem ser concedidos ao FUNDO JURÍDICO. Para o apoio ao trabalho jornalístico, podem apoiar através de várias modalidades.

  • A traficância de elogios: os ‘spin doctors’ e o caso exemplar da demógrafa Maria João Valente Rosa

    A traficância de elogios: os ‘spin doctors’ e o caso exemplar da demógrafa Maria João Valente Rosa


    Existem guiões, e os spin doctors sabem bem da poda. Durante meses, o Ministério da Saúde andou a esconder vergonhosamente o caos do Serviço Nacional de Saúde, não se importando em manipular informação, mutilar bases de dados e recusar documentos administrativos. O PÁGINA UM tem já vastíssima experiência nesta matéria. Tem lutado praticamente sozinho. Tem apresentado processos de intimação no Tribunal Administrativo para contrariar este estado de coisas.

    Nesta linha, o PÁGINA UM esteve na linha da frente para denunciar o absurdo excesso de mortalidade deste ano. Com base em análises rigorosas, foi o primeiro órgão de comunicação social a apontar para a inédita sequência mensal de óbitos sempre acima dos 10.000 desde Novembro, com recordes absolutos em Maio, Junho e Julho. Mas também a denunciar que esse morticínio atingia proporções inconcebíveis no grupo etário mais idoso – um autêntico e criminoso gerontocídio – e que apresentava uma “consistência” não compatível com eventos climáticos ou circunstanciais.

    leafless tree on green grass field

    Durante demasiado tempo, assobiou-se para o ar.

    E só de mansinho, quando o silêncio se mostrava ensurdecedor, veio a comunicação social dita mainstream abordar a temática, mas numa primeira fase sem citar o PÁGINA UM. Dedo dos spin doctors. A razão não se deveu apenas à falta de ética jornalística – existe uma regra de “convivência” na imprensa que “obriga” a citar o primeiro que destaca um tema fruto de investigação. De facto, ignorar a investigação do PÁGINA UM – que, desde o início, apelou para a realização de uma investigação que não ouvisse a “raposa sobre como morreu a galinha” –, serviu também para formar e consolidar uma “narrativa oficial”.

    Por “narrativa oficial”, leia-se dissertações e especulações da Direcção-Geral da Saúde e de “peritos de serviço” – estes últimos predispondo-se a usarem as suas universidades como “cátedra” e o seu estatuto de cientistas como “bengala” para distribuírem bitaites convenientes ao Governo (porque nunca sustentados em dados mas apenas em meras opiniões, por vezes absurdas).

    Lamentavelmente, os dois últimos anos vieram politizar e mercantilizar a Ciência – e um bom (no sentido de mau) exemplo encontramos no presidente do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge. Perante tantas evidências da existência de um mastodôntico elefante – excesso grotesco de mortalidade – veio Fernando Almeida em auxílio do obscurantismo do Governo defender que esse excesso de mortalidade não se pode fazer “comparado apenas números” e avisando que “é impossível fazer uma análise séria e cientificamente consistente em dois ou três meses”.

    man in gold wedding band

    Claro que pode. E não só pode, como deve. Basta começar olhar, com transparência e rigor, para as causas de morte no Sistema de Informação dos Certificados (SICO). Está lá tudo, diariamente, semanalmente, anualmente. Pode-se fazer comparações, analisar com detalhe os desvios mais relevantes das causas das mortes, detectar em que faixas etárias tal sucede, que regiões ou mesmo concelhos se observam os casos anómalos. Pode-se fazer tudo isto, com tecnologia informática e especialistas independentes (e que querem mesmo saber e não esconder), em muito pouco tempo.

    Mas o tempo – esse escultor e esse julgador – é o grande problema para os políticos. Num país que ainda nem sequer disponibilizou estatísticas decentes e rigorosas sobre as causas de morte em 2020 (aquilo que está disponível no INE é uma vergonha, e a Doutora Graça Freitas tratou há cerca de um ano de eliminar uma base de dados criada em 2019, a Plataforma da Mortalidade, cujo “cadáver” jaz aqui), tem-se horror à informação hoje, porque pode sempre ser comprometedora.

    Deixe-se morrer hoje pessoas, que amanhã lamentaremos estatísticas – parece ser esse o lema do Governo. Mas não deveria ser auxiliado por cientistas.

    Mas há quem se disponibilize sempre para tais tarefas. Por isso, haverá sempre quem, nas universidades, apoie o Governo a furtar-se ao escrutínio da sociedade, conseguir duas coisas: garantir o controlo absoluto sobre uma suposta investigação e definindo a priori o seu timing.

    Marta Temido, ministra da Saúde, ao centro.

    Nos tempos que correm, o Governo consegue sistematicamente atingir esse objecto com recursos a dois “instrumentos”: uma imprensa mainstream fofinha (que não questiona demasiado) e o suporte de peritos supostamente independentes, mas que estão, na verdade, comprometidos até ao tutano.

    Nos últimos dias, tivemos mais um destes “pratos” servido: o Ministério da Saúde anunciou na sexta-feira passada, pela noitinha, ao sempre disponível Público (que, entretanto, teve a “amabilidade” de corrigir o seu texto original, passando agora a citar o PÁGINA UM) a realização de um “estudo aprofundado” sobre “os excessos de mortalidade mais recentes”, nomeadamente “os que coincidem com a maior intensidade epidémica da covid-19 e do calor”.

    Spin doctors a trabalhar: dois dias depois, novo anúncio, no mesmo Público, dizia-se que o relatório só ficaria concluído em 2023. Para as calendas, portanto.

    Não tugiu nem mugiu a imprensa. Nem investigadores contra esta descarada estratégia do Ministério da Saúde: o anúncio de um estudo que serve exactamente para não se estudar nada de forma independente e rápida. Morra-se hoje para se lamentar nos livros de História.

    woman covering her face with white book

    Os spin doctors ainda fizeram mais: em artigo à parte, sempre no Público, arranjaram uma especialista de confiança para consolidar esta estratégia. E assim assistimos à conceituada demógrafa, Maria João Valente Rosa – professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e ex-directora do Pordata – a congratular-se com este “estudo” (chamemos-lhe assim).

    Cito o Público: “O estudo ‘aprofundado’ sobre ‘os factores determinantes da mortalidade’ e sobre os ‘excessos de mortalidade’ observados desde o início da pandemia – que sexta-feira foi anunciado pelo Ministério da Saúde – merece os aplausos da demógrafa Maria João Valente Rosa. ‘Finalmente‘ vai ser dada ‘maior atenção às causas de morte’, reage a professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.” Mais adiante, refere a especialista que “há aqui [no excesso de mortalidade] uma responsabilidade social que não importa descartar”.

    Nem mais: um elogio, para começar, seguida de uma dica para descartar responsabilidades – e logo por uma conceituadíssima especialista, créditos firmados… e independente.

    Claro que sim.

    Somos todos independentes, e uns mais (in)dependentes do que outros.

    Na verdade, começa a encanitar-me observar especialistas travestidos de independentes que, na verdade, deveriam pensar duas vezes antes de prestar declarações, ou avisar os jornalistas dos seus conflitos de interesses.

    Maria João Valente Rosa, demógrafa, professora da Universidade Nova de Lisboa e sócia da Koali e VR&DC Consulting, com relações comerciais com a Direcção-Geral da Saúde.

    Com efeito, não está aqui – como em muitos outros casos que se passaram durante a pandemia – questões legais, mas éticas e de transparência.

    Ao elogiar o anúncio de um estudo político sobre um excesso de mortalidade que poderá ter (ou terá mesmo) causas relacionadas com política governamental – acabando também por anuir no prazo da sua conclusão e indicando até hipóteses para dar a culpa a todos e a ninguém em particular –, Maria João Valente Rosa sabe que não é uma demógrafa, embora lhe interesse que a sua mensagem soe como uma demógrafa independente.

    Mas ela não é só, perante o Ministério da Saúde, apenas uma demógrafa; é também uma empresária, sócia com familiares (inclusive com uma filha, que se apresenta ainda como consultora da DGS) da Koaki (que tem como marca a Social Data Lab) e da VR&DC Consulting.

    Ora, no caso da Koaki, desde 2020, estabeleceu já três contratos com a DGS no valor total de 91.280 euros, a que acrescente um contrato já este ano com o INEM no valor de 39.450 euros, e mais um com a Lusa, no valor de 12.000 euros.

    No caso da VR&DC Consulting há ainda um contrato com a DGS no valor de 15.00 euros (em 2019), mas mantém fortes relações comerciais com a Lusa (três contratos no valor total de 36.000 euros desde 2019) e com o AICEP (quatro contratos no valor de 193.127 euros).

    person holding brown eyeglasses with green trees background

    Todos os contratos foram por ajuste directo ou por mera consulta prévia.

    Sendo legítimo que especialistas possam explorar e manter relações comerciais com entidades da Administração Pública, talvez comece a ser hora de reflectirmos se podem eles “vestir” a pele de professores universitários independentes para dissertarem sobre temas delicados, sem que se saiba se os comentários são isentos ou afinal comprometidos. Se estão a fazer Ciência ou afinal acções de marketing, piscando o olho a futuros contratos.


    N.D. Sobre esta matéria, coloquei questões à Professora Maria João Valente Rosa, que me respondeu. Porque se considera relevante para a reflexão que aqui se propõe, tomo a liberdade de colocar, na íntegra, tanto as perguntas como a resposta.

    Exma. Senhora Professora Maria João Valente Rosa:

    Sou jornalista e director do jornal digital PÁGINA UM.

    Tendo lido as suas declarações de elogio à Direcção-Geral da Saúde pela realização de um estudo sobre a causa do excesso de mortes, mas que, ao contrário daquilo que seria expectável (até pela informação que existentes nos dados discriminados do SICO), só deverá ser conhecido em 2023, gostaria de ter a sua opinião sobre se considera que esse prazo é razoável ou se poderiam ser conhecidos resultados mais rapidamente.

    Por outro lado, gostaria de saber se alguma das duas empresas de que é sócia foram contactadas pela DGS ou outra qualquer entidade no sentido de integrarem o estudo anunciado, tanto assim que em outras oportunidades tanto a Koaki como a VR&DC Consulting já tiveram contratos com a DGS.

    Por outro lado, gostaria que me dissesse se, quando contactada pelos jornalistas, referiu (ou eles tinham conhecimento) das suas relações comerciais com a DGS.

    Ficando a aguardar uma resposta, e estando disponível para receber outros quaisquer esclarecimentos, queira aceitar os melhores cumprimentos.

    Pedro Almeida Vieira

    15 de Agosto de 2022


    Muito boa tarde.

    Em resposta ao seu email, informo que, enquanto cientista e investigadora na área da população/demografia, respondi a uma jornalista do jornal Público a respeito de uma notícia que dizia que o Ministério da Saúde tinha decidido avançar com “um estudo aprofundado” sobre “os excessos de mortalidade mais recentes”, nomeadamente “os que coincidem com a maior intensidade epidémica da covid-19 e do calor”. Na qualidade de demógrafa, considero muito importante a produção de conhecimento acerca do que se está a passar sobre as mortes em Portugal. Como tal, todas as análises ou estudos que contribuam para o efeito são de saudar, neste contexto.

    Quanto às relações comerciais das empresas, não faço comentários sobre os clientes Koaki ou VR&DC Consulting.

    Cumprimentos,

    Maria João Valente Rosa

    Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/Universidade Nova de Lisboa

    16 de Agosto de 2022

  • Serra da Estrela transformou-se numa cordilheira do fogo: desde o início do século já ardeu quase toda

    Serra da Estrela transformou-se numa cordilheira do fogo: desde o início do século já ardeu quase toda

    O maior incêndio deste ano, reactivado ontem, dois dias após ser considerado controlado, vem mostrar sobretudo as crónicas falhas no combate e na gestão florestal, sobretudo em zonas sob gestão do Estado. As áreas protegidas continuam a ser as zonas mais fustigadas ano após ano. Na Serra da Estrela, metade da área foi atingida pelas chamas desde 2017. No presente século, pouco ou quase nada não foi passada pelo fogo. Mas não é um exclusivo. O PÁGINA UM apresenta um retrato de uma triste realidade que atinge as nossas áreas (des)protegidas.


    O Parque Natural da Serra da Estrela não é apenas a maior área protegida do país. Com o violento incêndio da última semana – acrescido de reacendimentos que vieram reavivar as crónicas deficiências do sistema de gestão florestal e de combate aos fogos –, também já é aquela com maior superfície ardida desde o início do século em função da área total.

    Embora ainda seja prematuro estabelecer a dimensão final, por ainda estar em curso o incêndio que começou no dia 6 – e que ontem se reactivou –, estima-se que já tenham sido destruídos 22.343 hectares este ano na Serra da Estrela, de acordo com valores avançados pelo Público.

    green and brown mountains under blue sky during daytime

    Considerando este valor, os incêndios nesta área protegida – que ocupa 89.132 hectares no centro do país, quase nove vezes a cidade de Lisboa – já lavraram cerca de 85 mil hectares desde 2001, segundo os registos do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) consultados pelo PÁGINA UM.

    Embora algumas partes da Serra da Estrela – como sucede noutras regiões – tenham sofrido mais do que um fogo ao longo das últimas duas décadas, a área ardida acumulada nesta área protegida é agora de quase 96%. Ou seja, são poucas as zonas desta região que não “sentiram” o fogo no presente século.

    Os incêndios deste mês fizeram assim que o Parque Natural da Serra da Estrela ultrapassasse aquele que era então a área protegida mais vulnerável ao fogo: o Parque Natural do Alvão, com 84,2% da área ardida acumulada desde 2001.

    Contudo, esta área protegida de reduzidas dimensões – com apenas 7.238 hectares, localizada nos municípios de Mondim de Basto e Vila Real, e que tem as Fisgas de Ermelo como principal atracção – tem sido poupada aos fogos nos últimos anos.

    Desde o início do século, quase toda a área ardida no Parque Natural do Alvão se concentrou em 2001 (6.094 hectares) e em 2013 (3.154 hectares).

    Ao invés, o Parque Natural da Serra da Estrela regista sistematicamente fogos com dimensão relevante. Desde 2001 contabiliza nove anos sempre com mais de 2.000 hectares ardidos, sendo que em três se superaram os 10 mil hectares: 2003 (11.593 hectares); 2017 (20.202) e este ano, onde já se terá superado os 22 mil hectares.

    A situação dramática da Serra da Estrela é apenas o reflexo supremo do estado calamitoso das áreas protegidas do país que, embora naturalmente de maior risco de incêndios pela abundância vegetal, se mostram, na prática, completamente desprotegidas. Na verdade, ardem mais do que as áreas não-protegidas, apesar de ocuparem apenas 742 mil hectares, ou seja, cerca de 8% do território português.

    De acordo com uma análise do PÁGINA UM, os incêndios dentro das 48 áreas classificadas em Portugal Continental – sendo 32 geridas pelo ICNF, 15 por municípios e uma por privados – afectaram, desde 2001, um total de 229.559 hectares, ou seja, 31% do total. Convém referir, contudo, a existência de recorrências em determinadas áreas.

    Zonas protegidas classificadas com área total e área queimada (em hectares) e área afectada (em percentagem) entre 2001 e 2022 (dados provisórios). Fonte: ICNF.

    Embora a destruição em 2022 em áreas classificadas esteja já próxima dos 30 mil hectares, o pior ano continua ainda a ser 2003. Nesse ano, os incêndios afectaram 40.717 hectares, dos quais 20.139 hectares no Parque Natural de São Mamede e 11.5593 hectares na Serra da Estrela.

    Há cinco anos, em 2017, os fogos dizimaram mais 34.608 hectares de áreas protegidas, com destaque para os 20.202 hectares também na Serra da Estrela e os 9.986 hectares no Parque Natural do Douro Internacional.

    Destaque-se, de igual modo, os anos de 2010 e 2016 com vastas zonas de áreas protegidas fustigadas por incêndios. No primeiro ano ardem 16.225 hectares e no segundo 16.695 hectares.

    Porém, o fenómeno dos incêndios não é homogéneo por todas as zonas classificadas, tanto mais que uma quantidade substancial é de pequena dimensão, de carácter menos rural e/ ou integrando sobretudo ecossistemas menos propensos ao fogo (zonas húmidas, por exemplo).

    brown wooden house near trees during daytime

    Assim, de acordo com os registos do ICNF, 98% de toda a área ardida desde 2021 concentra-se em apenas 14 zonas protegidas.

    Além da Serra da Estrela e do Alvão, as áreas protegidas mais fustigadas são a Área de Paisagem Protegida do Corno do Bico (70% da área afectada), o Parque Nacional da Peneda-Gerês (46%), os Parques Naturais da Serra de São Mamede (39%), do Douro Internacional (38%), da Serra de Aire e Candeeiros (31%), do Montesinho (24%), da Ria Formosa (16%) e de Sintra-Cascais (11%).