Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Os merckalistas: os novos jornalistas

    Os merckalistas: os novos jornalistas


    Um florescente negócio se tem vindo a desenvolver na imprensa mainstream. É já um novo paradigma onde já não há necessidade de apresentar uma distinção clara entre notícias e anúncios, entre publicidade e informação. Na verdade, os praticantes deste novi-jornalismo  – não confundir com o Novo Jornalismo, onde o jornalista emerge dentro da notícia, dando um cunho literário – são pessoas pragmáticas: afinal, sendo os leitores simultaneamente consumidores, por que não lhes transmitir, em dose única, notícias e publicidade, informação e anúncios?

    Muitos são os exemplos que se poderiam usar, mas para efeitos pedagógicos escolhemos as relações entre o Público e a Merck – uma farmacêutica alemã. Não se deve confundir esta empresa com a norte-americana Merck Sharp & Dohme, que, aliás, também teve recentes relações comerciais com o Público. Aliás, tal como a GlaxoSmithKline, a AstraZeneca, a Boehring Inglheim, Takeda… Nos últimos dois anos, as farmacêuticas têm sido um “ventilador financeiro” da imprensa mainstream.

    Mas peguemos na Merck – até porque, enfim, justifica o título, que não é gralha.

    Merck 1…

    Ora, por valores que estarão sempre no “segredo dos deuses”, porque comerciais, o Público e a Merck selaram um acordo para a produção de conteúdos comerciais. Variados. Sobre saúde, e apenas este ano, já vão quatro, que deram origem a outros tantos textos, a saber:

    Infertilidade: a ciência ao serviço da esperança (30 de Junho de 2022)

    Detecção precoce do cancro da bexiga melhora o prognóstico (31 de Maio de 2022)

    Esclerose Múltipla: como travar a doença e melhorar a qualidade de vida? (30 de Maio de 2022)

    Hipotiroidismo: relação médico-doente é crucial no diagnóstico e tratamento (25 de Maio de 2022)

    Dirão, em sua defesa, que são mesmo conteúdos comerciais. E assim é: encimando e finalizando a página onde surgem os textos, lá consta o nome do “patrocinador”. Sucede, porém, que nem aparece o autor do texto – há muitos ghost writers nas redacções – nem o Público tem a preocupação de fazer a distinção entre esses textos comerciais no Google News.

    … Merck 2…

    Para os internautas, se procurar no Google por “cancro da bexiga” e “Público” na secção das Notícias, lá lhe surgirá escarrapachado conteúdo comercial travestido de notícia. Um equívoco que convém tanto ao Público como ao seu cliente.

    Porém, quem “vende” indirectamente medicamentos – “vendendo” mensagens das farmacêuticas que os vendem directamente –, também vende a imagem da empresa. Ora, o Público, nesta senda do novi-jornalismo, trata também do branding dos seus clientes perante os seus leitores. Por exemplo, acoplando-se, sob a forma de prestação de serviços, à Merck para promoção da sua suposta – que pode ser mesmo efectiva – preocupação em matérias de igualdade de género.

    Porém, uma coisa seria elaborar um artigo independente sobre igualdade de género onde até, concede-se, se poderia destacar o papel inovador da Merck – talvez com uma declaração de interesses por ser um parceiro comercial na área da saúde –; outra coisa, completamente diferente, é o Público promover um debate no dia 19 de Abril passado, que na verdade foi uma prestação de serviços – com a participação da sua editora-executiva Helena Pereira (estava inicialmente prevista a presença do director Manuel Carvalho) e moderação de uma jornalista da RTP – em que há três – repito: três – representantes da Merck a lançar loas e cantar panegíricos à própria empresa.

    Vejamos: Rita Reis, apresentada como head of communications para o Mid Europe e Portugal; Marieta Jiménez, apresentada como senior vice-president Europe; e Pedro Moura, apresentado como managing director, que é o homem que paga as contas.

    … Merck 3…

    Para dar um lado sério, o Público conseguiu, como órgão de comunicação social, “sacar” para o debate, entre outros, a presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, Sandra Ribeiro. E, à boleia, a responsável para a Inclusão da Sonae MC, dona do Público.

    Porém, tudo isto serviu basicamente para apresentar um suposto estudo nada independente, realizado para a Merck por uma empresa de market research ad hoc, a Spirituc, que conta com 22 farmacêuticas na vasta carteira de clientes, servindo assim o Público de veículo de (suposta) credibilidade na transmissão da mensagem para o seu (incauto) público.

    Antes, a ingrata tarefa de “vender” este tipo de mensagens era das agências de comunicação – que se esforçavam, nem sempre com sucesso, em convencer os jornalistas da bondade dessa mensagem –, mas agora é feito directamente por novi-jornalistas. Isto paga ordenados, matando o jornalismo sério.

    Aliás, na verdade, a seriedade de tudo isto é tão pouca que o Público, que recebeu dinheiro para promover o debate, acabou por antecipar as conclusões do estudo encomendado pela Merck, publicando uma notícia (no seu site), mesmo uma notícia (supostamente sem conteúdo comercial) no próprio dia do debate – porém, não escrita por um jornalista da casa, antes recorrendo a um take da Lusa. Perfeito na manipulação.

    … e no próprio dia do debate, por si organizado e pago pela Merck, o Público antecipa os resultados do estudo. Porém, usando um take da Lusa.

    Por fim, a cereja em cima do bolo da promiscuidade: desde o final do mês passado, o Público oferece uma assinatura semestral aos profissionais de saúde, uma campanha denominada P Profissional.

    Na verdade, não é uma oferta: é “uma iniciativa com o apoio da Merck”.

    Leia-se: paga a Merck.

    Esta Merck está agora em todas. Mas poderia ser outra qualquer empresa.

    Mas, aviso já, a conta da farmacêutica arrisca-se a ser choruda no caso de o contrato tiver sido estabelecido em função do número de assinantes cativados pelo Público.

    Campanha de oferta de assinaturas para profissionais de saúde permitem uso generalizado. Paga a Merck.

    De facto, apesar de a campanha se destinar apenas a enfermeiros, farmacêuticos, médicos, médicos dentistas, psicólogos, nutricionistas, técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica e técnicos de emergência pré-hospitalar – o que já daria potencialmente para umas valentes dezenas de milhares de novos assinantes –, não é preciso qualquer comprovativo para se fazer o registo.

    Basta escolher uma qualquer profissão e dar o e-mail: nem é preciso enganar, inventando; pode ser um e-mail profissional. Como aquele que usei esta tarde, o do PÁGINA UM.

    Não faz mal. O mercado manda, porque o mercado paga. A Merck paga aos jornalistas, como outras aos jornalistas pagarão. E se é agora directa, quando antes era indirectamente, por via de uma clara publicidade que não se imiscuía na linha editorial nem usava jornalistas, já pouco lhes importa. A muitos jornalistas, que já desistiram dos seus leitores, preocupa-os somente o rendimento mensal.

    Por isso, os merckalistas não se importarão com este meu pequeno pecadilho com o leitor. Eles não são gente de se preocupar com minudências. Ganham sempre: neste caso, a Merck pagará a minha conta por seis meses, e tudo fica bem. E outras empresas haverá que lhes pagarão outras. E assim sucessivamente… até à morte da Imprensa. Amen.

  • Governos europeus estão a indicar números ao Eurostat completamente diferentes dos divulgados ao público

    Governos europeus estão a indicar números ao Eurostat completamente diferentes dos divulgados ao público

    Ainda não estão disponíveis dados de Portugal, mas os registos de alguns países europeus sobre as mortes por covid-19 em 2020 reportados ao Eurostat mostram desvios colossais. Terá a pandemia sido pior do que o reportado ao público? Ou houve um empolamento da covid-19 como causa porque os médicos legistas foram pressionados a atribuir ao SARS-CoV-2 a morte sempre que houvesse teste positivo?


    Quase todos os países que já reportaram ao Eurostat dados sobre as causas de morte ocorridas em 2020 indicaram valores substancialmente superiores àqueles que foram divulgando oficialmente durante o primeiro ano da pandemia.

    De acordo com a consulta do PÁGINA UM à base de dados internacional daquele gabinete de estatística da União Europeia – que, agrega, além dos 27 Estados-membros, os países candidatos e da EFTA –, já houve nove países que, para a totalidade das doenças, indicaram as causas registadas nos certificados de óbitos em 2020, seguindo a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde da Organização Mundial da Saúde (CDI). Ou seja, passa-se a saber, formalmente, qual foi causa principal da morte atribuída pelos médicos legistas aos distintos óbitos, incluindo por covid-19, durante o primeiro ano da pandemia que atingiu a Europa naquele ano.

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    De entre os nove países já com informação no Eurostat para o ano de 2020 – Alemanha, Espanha, Lituânia, Holanda, Polónia, Islândia, Liechtenstein, Sérvia e República Checa –, apenas neste último o número de mortes por covid-19 (código U07.1 da CDI, com vírus identificado) ou por suspeita (código U07.2, com vírus não identificado) é inferior ao que foi indicado pelas autoridades sanitários no final daquele ano.

    Com efeito, a 31 de Dezembro de 2020, a República Checa reportou a ocorrência de 12.017 óbitos atribuídos à covid-19, mas agora na base de dados do Eurostat encontram-se contabilizados 10.397 óbitos com o código U07.1 e mais 173 com o código U07.2. Saliente-se que este país do Leste da Europa encontra-se actualmente no top 10 dos mais atingidos pela covid-19, com 3.751 óbitos por milhão de habitantes, embora a esmagadora maioria das mortes atribuídas ao SARS-CoV-2 tenham, oficialmente, ocorrido em 2021.

    Esta é, porém, de facto, a única excepção, por agora, porque todos os outros oito países reportaram em “tempo real”, no decurso dos relatórios diários divulgados ao longo de 2020, muito menos óbitos do que aqueles que agora os Governos enviaram ao Eurostat.

    Se houve óbitos inicialmente escondidos (para inicialmente subestimar a pandemia) ou se houve exageros e pressões para que os médicos legistas atribuíssem mortes ao SARS-CoV-2 com base apenas num teste positivo, uma coisa parece, desde já, evidente: as estatísticas oficiais da primeira doença com um desmesurado acompanhamento informático informativo, mostra afinal um rigor das estatísticas oficiais muito sofrível. No mínimo.

    Óbitos reportados ao público (compilados pelo Worldometers) e reportados ao Eurostat para 2020. Fonte: Worldometers e Eurostat.

    O caso mais flagrante sucede na Espanha, onde o desvio entre os dados do Eurostat e os inicialmente apontados no final de 2020 é colossal. No Worldometers surgem, para o país-vizinho, 50.955 óbitos a 31 de Dezembro de 2020, mas no Eurostat as autoridades espanholas indicaram agora, apenas para aquele ano, 60.358 mortes por covid-19 (U07.1) e mais 14.481 com suspeitas (U07.2). Ou seja, somando os dois códigos há um desvio de 23.884 óbitos a mais, representando uma diferença de 47%.

    Em termos relativos, o desvio maior – e extremamente suspeito – surge na Sérvia. Neste país, que tal como a República Checa oficialmente não teria sofrido a primeira vaga da pandemia na Primavera de 2020, as autoridades de saúde indicaram, segundo o Worldometers, 3.250 óbitos até final daquele ano. Afinal, para o Eurostat, durante 2020 os médicos legistas sérvios registaram 8.866 óbitos por covid-19 (U07.1) e mais 1.490 mortes suspeitas por esta doença (U07.2). Portanto, no Eurostat aparece mais do triplo (218%) das mortes por covid-19 do que as indicadas inicialmente pelas autoridades sérvias.

    O desvio da Holanda também foi significativo: 75%. Para este país, no Worldometers contabilizam-se, no final do primeiro ano da pandemia na Europa, 11.565 óbitos por covid-19, enquanto no Eurostat estão agora 17.527 mortes confirmadas (U07.1) e mais 2.685 suspeitas (U07.2). Portanto, há uma diferença de 8.647 mortes por esta causa directa.

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    Na Polónia, por sua vez, o desvio também é relevante: 12.530 óbitos (entre confirmados e suspeitos) na base de dados do Eurostat face aos números que constam em 2020 no Worldometers, o que representa, em termos relativo, uma diferença de 43%. Já na Alemanha, conhecida por ser um país de grande rigor, as estatísticas também não batem certo: o Governo apontou inicialmente que tinham morrido, até 31 de Dezembro de 2020, um total de 34.639 pessoas por covid-19; agora, entre casos confirmados e suspeitos, informou o Eurostat que foram 39.886.

    Apenas os números da Islândia batem certo, mas porventura devido à sua dimensão demográfica (cerca de 370 mil habitantes). No Worldometers surgem 29 óbitos até 31 de Dezembro de 2020, tantos quantos os que surgem agora no Eurostat. No entanto, acresce ainda um óbito suspeito (U07.2).

    Nas próximas semanas será previsível que mais países surjam na base de dados do Eurostat, incluindo Portugal. Até agora, a Direcção-Geral da Saúde mantém segredo sobre toda a informação estatística existente no Sistema de Informação dos Certificados de Óbitos – razão pela qual o PÁGINA UM intentou um processo de intimação contra o Ministério da Saúde no Tribunal Administrativo de Lisboa – e o Instituto Nacional de Estatística não divulga informação detalhada sobre a covid-19 nas estatísticas da mortalidade de 2020 que tem vindo a revelar nas últimas semanas.

  • Uma colecção de cromos para recordar e vangloriar-se

    Uma colecção de cromos para recordar e vangloriar-se

    Título

    Eu estive lá

    Autor

    HENRIQUE AMARO (coordenador)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Junho de 2022)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Eu estive lá é um livro despretensioso – e essa característica poderá ser uma virtude, do ponto de vista comercial, mas também um defeito, como documento histórico, que bem poderia ser, porquanto fica muito aquém desse propósito.

    Retratando sobretudo os concertos musicais realizados em Portugal nas últimas quatro décadas do século XX – os primeiros 20 anos do século XXI estão escassamente retratados –, esta é uma espécie de “colecção de cromos”, de provas de orgulho pela presença em espectáculos sobretudo em épocas em que a vinda de artistas e grupos internacionais a Portugal era um acontecimento único porque raro. Até aos anos 90, a periferia do país na Europa, o seu atraso económico e a complexidade logística para a realização de grandes concertos, deixava os portugueses a carpir por concertos de grupos mainstream.

    Provar que “eu estive lá” – e sobretudo provar que se esteve lá – apenas através dos bilhetes (muitos com esmero gráfico), estropiados pelos porteiros, faz todo o sentido, uma vez que, além da memória, mais nada servia então. Antes dos anos 90 nem sequer existiam telemóveis nem se imaginariam câmaras fotográficas e de vídeo em smartphones. Aliás, convém referir que, por norma, pelo menos até aos anos 90, eram expressamente proibidas as fotografias em espectáculos musicais.

    Embora com textos de apresentação, em cada década, de Luís Pinheiro de Almeida, Ana Cristina Ferrão, Pedro Fradique e Isilda Sanches, esta obra quase se esgota na simples exposição dos bilhetes dos concertos dos diversos espectáculos, identificando a data e artista(s), alguns dos quais históricos e marcantes numa determinada época. Nesse aspecto, é uma pena.

    Talvez tivesse sido interessante um enquadramento de alguns desses espectáculos; ou uma explicação iconográfica; por exemplo, sobre alguns dos conteúdos de verso de alguns bilhetes dos anos 80, por exemplo, com piadas a gozar alentejanos ou com referências pouco politicamente correctas sobre homossexualidade.

    Também porventura pedagógica teria sido uma explicação em redor da variação dos preços dos bilhetes, cujo aumento mais se sentiu na primeira metade dos anos 80 – por causa da inflação que então chegou a ultrapassar os 30% num só ano – e agora mais recentemente.

    Em todo o caso, a inflação não explica tudo. Por exemplo, o célebre concerto de Genesis, com Peter Gabriel, em 6 e 7 de Março de 1975, custou 80 e 120 escudos, consoante o local, mas, mesmo aos dias de hoje corresponderia a 11,59 e 23,19 euros, respectivamente – uma pechincha.

    Bom, mas, na verdade, estes são detalhes, que devem ser irrelevantes para a maioria dos leitores, até porque esta é uma obra não propriamente para ser lida mas para ser (re)visitada por pais e avós juntamente com filhos e netos para, a partir daí, sim, serem contadas memórias sobre, lá está, o que significou o “eu estive lá”. O livro é, assim, um pretexto para conversas intermináveis. E aí serve um bom propósito.

    Pode o livro também ter outra utilidade, sobretudo para quem tem mais de 40 anos: rever o exacto momento, na década respectiva, em que se chegou à maioridade ou a uma situação económica mais folgada, e em que começam a aparecer no livro, de forma mais frequentes, os bilhetes dos concertos onde “eu estive lá”. No limite pode guardar os “seus” bilhetes entre as páginas deste livro,

    Essa alegria e as memórias, que surgem quando deparamos com concertos onde “eu estive lá”, não eliminam, porém, a “raiva” por não se ter estado numa mão-cheia de outros fantásticos concertos, em grande parte porque a idade, então, não o permitiu. Fica a consolação, para esses casos, de não se estar tão velho agora.

  • Directora artística do Teatro Nacional de São Carlos auto-selecciona-se para óperas e recebe por contratos à margem da lei

    Directora artística do Teatro Nacional de São Carlos auto-selecciona-se para óperas e recebe por contratos à margem da lei

    A conhecida soprano Elisabete Matos, eleita deputada do Partido Socialista (embora com mandato suspenso) aceitou em 2019 dirigir em exclusividade o único teatro de ópera em Portugal, mas um despacho da então ministra da Cultura abriu-lhe a porta para compor melhor o ordenado e se auto-escolher para óperas a serem pagas à parte. Porém, os estatutos da OPART, a empresa pública que gere o Teatro Nacional de São Carlos, só prevê que haja recebimentos extra se for por direitos de autor, o que não é o caso de uma soprano que “só” canta a obra de outrem; esse sim, o verdadeiro autor, com direitos.


    A soprano Elisabete Matos – que tem o mandado suspenso de deputada socialista na Assembleia da República até final de Setembro – já se auto-seleccionou para três óperas desde que assumiu o cargo de directora artística do Teatro de São Carlos em Outubro de 2019, tendo mesmo assinado três contratos de prestação de serviços com a OPART (a empresa pública que também gere o Teatro Camões), que acumulou com o salário.

    A mais recente prestação – e consequente contrato – de uma das mais conhecidas e premiadas sopranos portuguesas no seu próprio teatro foi na passada segunda-feira, interpretando Maddalena di Coigny, na ópera Andrea Chénier, de Umberto Giordano com libreto de Luigi Illica. Elisabete Matos fez apenas duas das três récitas previstas, por motivos de saúde, desconhecendo-se o montante recebido, uma vez que a OPART recusou, por duas vezes, divulgar o contrato ao PÁGINA UM, que pode ou não já ter sido assinado.

    Elisabete Matos, em 2017, na ópera Das Rheingold, de Wagner.

    De facto, pela sua participação na ópera Il Tabarro, de Puccini, a soprano recebeu 18.000 euros por três récitas, mas entre o espectáculo e o conhecimento público do contrato mediaram oito longos meses. A ópera foi levada à cena entre 18 e 25 de Maio de 2021, mas o contrato entre a OPART e a empresa espanhola La Luna Lirica – da qual Elisabete Matos surge como representante – somente se assinou em 14 de Outubro do ano passado. No Portal Base, onde as entidades públicas inserem os contratos, apenas apareceu em 21 de Janeiro deste ano.

    Mesmo sem ter sido divulgado o montante a pagar pela OPART à Elisabete Matos pela sua prestação nas récitas do passado mês, é presumível que atinja também os 18.000 euros.

    Além destes dois contratos, para três récitas cada, Elisabete Matos realizou ainda outro contrato, em Setembro de 2020, apenas por uma récita da ópera As mulheres de Puccini. Incluindo ensaios, ganhou nessa noite tanto quanto em um mês de salário como directora artística: 5.000 euros.

    Além de óbvias questões éticas por estas auto-seleccções – até porque uma parte dos trabalhadores daquele teatro sofreram cortes salariais no decurso da pandemia devido à suspensão de espectáculos –, estes contratos têm um muito duvidoso enquadramento legal.

    Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa.

    Ao PÁGINA UM, a OPART garantiu que “a possibilidade de a diretora artística programar produções que contem com a sua participação encontra-se prevista no despacho de nomeação e é uma prática comum em teatros nacionais e no estrangeiro, de modo que os artistas/encenadores que se encontram no activo não tenham de suspender a sua actividade nos teatros onde se apresentavam com regularidade”.

    Mas, se é verdade que o despacho governamental de 2019 – que também fixa a remuneração com exclusividade (5.000 euros em 14 prestações por ano, a que acrescem 300 euros mensais de despesas de representação) – prevê que possam ser contratualizadas, entre Elisabete Matos e a OPART, duas produções anuais com a “participação artística”, desta soprano – ou seja, uma prestação de serviços –, na verdade os Estatutos da empresa pública que gere o TNSC não abre essa possibilidade.

    Contrato de prestação de serviços para a participação de Elisabete Matos na ópera Il Tabarro demorou oito meses a ser conhecido, desde a realização das récitas até à publicação no Portal Base.

    Com efeito, de acordo com um dos pontos do artigo 16º dos Estatutos da OPART, apenas poderiam ser “programadas anualmente” até “duas produções pelas quais sejam devidos direitos de autor ao director artístico”.

    Porém, o recebimento por direitos de autor somente se aplicariam se Elisabete Matos fosse autora de uma ópera ou de um libreto – e uma soprano, tal como outro qualquer executante, com voz ou instrumento, detém somente os denominados “direitos conexos”.

    De acordo com a lei, podendo ser confirmado por consulta à Inspecção-Geral das Actividades Culturais (IGAC), os direitos conexos são “os direitos que a lei atribui aos artistas (intérpretes e executantes) aos produtores (de um filme ou de uma música) e aos organismos de radiodifusão”.

    Aí se esclarecesse ainda que, “no que respeita à música, para além dos autores (da respetiva letra e música), há outros criadores que intervêm nas gravações musicais: os artistas, músicos e cantores, que cantam e interpretam as obras.” Portanto, por cada prestação, como soprano, Elisabete Matos tem “direitos conexos” e não “direitos de autor”.

    Aliás, se dúvidas houvesse de que cada “participação artística” de Elisabete Matos não se encaixa em direitos de autor – o que legalmente nem poderia ser, uma vez que participou apenas como cantora –, bastaria ler o contrato feito para a ópera Il Tabarro, uma vez que consta explicitamente que se trata de um “contrato de prestação de serviços”.

    O PÁGINA UM tentou obter comentários da própria Elisabete Matos, por duas vezes, mas o gabinete de comunicação do TNSC salientou não existirem mais esclarecimentos a prestar do que os entretanto enviados. Sem comentários ficou assim a pergunta do PÁGINA UM à soprano (e directora artística do TNSC) e à presidente do conselho de administração da OPART, Conceição Amaral, sobre se se sentiam “confortáveis” com a realização deste tipo de contratos.

  • Mais de 10.000 mortes no mês de Junho: um trágico recorde ignorado pelo Governo

    Mais de 10.000 mortes no mês de Junho: um trágico recorde ignorado pelo Governo

    “Vai ficar tudo bem”, clamou-se nos primórdios da pandemia. Mas afinal está a “ficar tudo mal”, com a mortalidade por todas as causas a atingir valores absurdos para esta época do ano. Com base nos dados históricos, o PÁGINA UM estima que este mês, a poucas horas de terminar, houve um excesso de 60 óbitos todos os dias. Incluindo dias santos.


    Um excesso de mortalidade de quase 1.800 óbitos – este será, para já, o saldo negro de um insólito mês de Junho em Portugal, de acordo com cálculos do PÁGINA UM baseados no histórico desde 1980 e dos valores expectáveis para esta época do ano.

    Algumas horas antes de Junho encerrar, aquele que em situações normais deveria ser o segundo mês menos mortífero de um qualquer ano – apenas atrás de Setembro –, apresenta este ano valores de mortalidade total típicos de Inverno, quando o frio e os surtos de doenças do aparelho respiratório e circulatório fazem mais vítimas.

    angel statue

    Segundo os dados disponibilizados em tempo real pelo Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), até às 21 horas de hoje estavam já contabilizados 10.104 óbitos no mês de Junho. O valor deverá, contudo, chegar próximo das 10.200 mortes com as actualizações finais.

    Este número contrasta com uma média de 8.323 óbitos no mês de Junho ao longo do último quinquénio (2017-2021), que englobam dois dos anos de pandemia. Nunca antes houve um registo estatístico de Junho acima sequer dos 9.000 óbitos. Por norma, apenas os meses de Janeiro, Fevereiro e Dezembro ultrapassam a fasquia dos 10.000 óbitos.

    Antes do presente ano, o triste recorde em Junho pertencia a 1981. Há cerca de quatro décadas, uma extrema onda de calor entre os dias 9 e 21 de Junho – com termómetros a ultrapassarem os 43 graus em Beja, quase 42 em Lisboa e 39 no Porto – contribuiu fortemente para se atingir, no final desse mês, 8.867 óbitos. Só no dia 15 de Junho daquele ano foram registadas 676 mortes.

    Mas nessa altura, na década de 1980, a população idosa não era tão numerosa como agora – e os óbitos rondavam geralmente, no sexto mês de cada ano, os cerca de sete mil.

    Mais recentemente, mesmo com um tempo mais quente em Junho nos anos de 2013 e 2020, as mortes nunca ultrapassaram a fasquia dos 8.600 óbitos totais.

    Porém, mesmo contabilizando o expectável incremento da mortalidade – devido ao incremento da população mais idosa –, a situação actual é deveras impressionante, ainda mais sabendo-se que, do ponto de vista de saúde pública, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) andou parte do tempo mais preocupada com a varíola dos macacos, que não causou qualquer vítima mortal.

    Óbitos totais no mês de Junho entre 1980 e 2022. Linha de tendência a azul. Fonte: INE e SICO. Análise: PÁGINA UM.

    De facto, como em 2020 e 2021, os efeitos da pandemia não se fizeram sentir na transição da Primavera para o Verão, seria de esperar que a mortalidade total de 2021 rondasse os 8.300 óbitos, de acordo com a linha de tendência traçada pelo PÁGINA UM. Significa assim que os números de Junho deste ano são absurdamente elevados, sem que haja uma explicação oficial coerente.

    No passado dia 17 de Junho, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) alegou que a mortalidade mais elevada deste mês se devia à conjugação da covid-19 – num país com uma das mais elevadas taxas de vacinação do Mundo e com a maior prevalência de covid-19 desde o início da pandemia – com o ‘aumento da temperatura média do ar’. A entidade liderada por Graça Freitas dizia mesmo que “este indicador tem estado ‘acima do normal para esta época do ano’”, o que é desmentido pelos dados do Índice Ícaro constantes do Portal da Transparência.

    sun rays through white cumulus clouds

    Com efeito, ao longo de Junho, dos 30 dias destes mês, houve 22 com valor de zero neste índice – ou seja, sem qualquer impacte na mortalidade. E o valor máximo foi de apenas 0,11 no dia 13, o que não é excessivamente relevante. No dia 14, por exemplo, foi apenas de 0,06, mas isso não impediu que se tenham atingido os 421 óbitos, quando a média diária no último quinquénio é inferior a 280 mortes.

    Recorde-se que a DGS, apesar de poder saber quais são as doenças que estiveram a matar mais do que seria suposto ao longo de Junho – recorrendo aos dados em bruto do SICO –, nada tem investigado sobre este excesso. Por sua vez, o Ministério da Saúde tem-se também oposto a que o PÁGINA UM aceda a essa base de dados para realizar uma análise independente, razão pela qual está em curso um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa.

  • A luta do Polígrafo “contra a desinformação” vale 860 mil euros oferecidos pelo Facebook em dois anos

    A luta do Polígrafo “contra a desinformação” vale 860 mil euros oferecidos pelo Facebook em dois anos

    O fact-checking deixou de ser uma mera ferramenta da contínua e justa batalha em prol da verdade. Na verdade, transformou-se, sobretudo nos últimos dois anos, num negócio de milhões dominado por empresas como o Facebook, que impõe assim a sua narrativa sem qualquer regulação isenta, e “amaciando”, neste processo, a imprensa mainstream com fortes apoios financeiros. Quase um milhão de euros foi o que recebeu o Polígrafo só desde o ano 2020. Será este o modelo que uma democracia deve adoptar no combate à mentira?


    O Polígrafo – o único órgão de comunicação social em Portugal dedicado em exclusivo ao fact-checking – recebeu mais de 860 mil euros do Facebook nos últimos dois anos para controlar sobretudo a desinformação relacionada com a pandemia. O montante em causa, que representa cerca de 36 mil euros em média por mês, terá sido recebido no âmbito do programa Third Party.

    A informação sobre a forte dependência financeira do Polígrafo – que se assumiu, no seu nascimento em 2018, pretender ser um “Google da verdade” – obtém-se por cruzamento de informação existente no Portal da Transparência da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), cujo regulamento estipula, com algumas excepções, que os proprietários de empresas de media revelem “a relação das pessoas individuais ou coletivas que tenham, por qualquer meio, individualmente contribuído em, pelo menos, mais de 10 % para os rendimentos apurados (…) ou que sejam titulares de créditos susceptíveis de lhes atribuir uma influência relevante”.

    Ora, a empresa detentora do Polígrafo – a Inevitável e Fundamental, Lda., que tem como sócio maioritário o seu director, o jornalista Fernando Esteves (60%) – registou no ano de 2020 uma dependência do Facebook da ordem dos 87%. Como os seus rendimentos naquele ano foram de 528.818,49 euros, significa que a rede social de Mark Zuckerberg entregou cerca de 460 mil euros ao Polígrafo durante o primeiro ano da pandemia, tendo sido este um tema recorrente nas análises quer na edição online quer no programa em parceria com a SIC.

    Já no ano passado, o jornal digital dirigido por Fernando Esteves – ex-editor da revista Sábado – recebeu um pouco menos do Facebook (cerca de 404 mil euros), mas a sua dependência ainda aumentou mais; foi praticamente total: 96% dos rendimentos.

    Em virtude deste “sustento” do Facebook, o Polígrafo disparou os seus lucros. Se em 2018 – ano da sua criação – acabou o exercício com resultados líquidos de apenas 4.710 euros, e em 2019 com um lucro de 17.742 euros, os últimos dois anos foram de maior saúde financeira e económica.

    Fernando Esteves, fundador, director e sócio maioritário do Polígrafo, criado em 2018.

    Em 2020, os lucros atingiram os 173 mil euros, tendo ficado próximos dos 60 mil euros no ano passado, permitindo assim baixar substancialmente o passivo – que era já de quase 200 mil euros no final de 2019 – e distribuir dividendos entre os sócios Fernando Esteves e N’Gunu Olívio Noronha Tiny, também proprietário da Forbes Portugal, através da Emerald Group. A folha salarial dos principais funcionários da empresa também subiram substancialmente.

    O peso da mais importante rede social nas contas do Polígrafo – 91% das receitas nos últimos dois anos – colocam sobretudo em causa a exigida autonomia editorial de um órgão de comunicação social. Na prática, o jornal de Fernando Esteves – que exige que os seus colaboradores não possam ser militantes partidários por uma questão de transparência – trabalha para receber dinheiro do Facebook, não precisando sequer de leitores nem de audiências nem de publicidade diversificada.

    Com efeito, de acordo com o Centro de Ajuda para Negócios da Meta – a holding de Zuckerberg – a monetização no âmbito do programa Third Party, e em articulação com o International Fact-Checking Network – que, além do Polígrafo, integra também o Público e o Observador –, existe uma forte relação entre o Facebook e os verificadores de factos, que acaba por ser também comercial.

    SIC e Polígrafo têm uma parceria para a emissão de um programa apresentado por Bernardo Ferrão.

    Inicialmente, o Facebook identifica posts com “potencial desinformação através de indicadores”, e admite que depois “apresentamos os conteúdos a verificadores de factos”, embora estes também possam ter a iniciativa. Posteriormente, a análise é feita pelos fact-checkers, seguindo normas mas supostamente de forma independente. Essa avaliação é, em seguida, conhecida pelo Facebook que pode, em seguida, aplicar medidas que passam pela exclusão da informação considerada falsa. Por este serviço, os fact-checkers recebem verbas do Facebook.

    Embora em teoria a eliminação da desinformação surja como algo positivo e necessário, na verdade tem vindo a condicionar o debate de ideias e sobretudo algumas abordagens mesmo científicas que colidem com as posições da Organização Mundial da Saúde e dos Governos. Muitos verificadores de factos, com o Polígrafo, foram mesmo responsáveis pela polarização do debate ao longo da pandemia, seleccionando por vezes posts absurdos – e sem grande expressão nas redes sociais – para cunhar como “negacionista” qualquer posição que contestasse a estratégia política dominante.

    Por exemplo, foram feitos pelo Polígrafo, desde o início da pandemia, cerca de sete dezenas de verificações de factos em que a palavra “negacionista” foi usada. Na maior parte dos casos, os redactores do Polígrafos usaram sistematicamente, não fontes documentais ou artigos científicos, mas simples opiniões de peritos, muitos dos quais com ligações a farmacêuticas. Ou mesmo a Direcção-Geral da Saúde, com quem o Polígrafo assinou uma parceria logo em Março de 2020.

    Também na invasão da Ucrânia, o Polígrafo tem estado na linha da frente para fomento de polarizações, com enviesamentos de análises, que condicionam um debate livre, como se observou recentemente num fact-checking que acusava supostos “grupos negacionistas da pandemia viraram para a partilha de desinformação pró-Rússia”.

    Em alguns casos, o próprio Polígrafo atribui culpas pela disseminação de fake news às redes sociais quando, na verdade, estas se iniciam através de notícias da imprensa não validadas, como sucedeu com um falso anúncio do massacre de 13 soldados ucranianos numa pequena ilha. Aliás, o Polígrafo assume que não faz verificação de factos, ou de qualidade e rigor, em peças produzidas por jornalistas.

    A postura do Facebook e dos seus fact-checkers, como o Polígrafo, não tem sido bem-vista por muitos sectores, mesmo do meio científico. Por exemplo, a conceituada revista científica BMJ viu uma sua investigação sobre a falta de integridade dos ensaios das vacinas da Pfizer ser tachada de falsa.

    Em carta aberta a Zuckerberg, em Novembro do ano passado, a revista viria a tecer duras críticas à rede social porque uma verificação de factos “imprecisa, incompetente e irresponsável” levou a que internautas ficassem impossibilitados de divulgar o artigo da BMJ.

    O PÁGINA UM colocou ontem, ao início da tarde, um conjunto de perguntas e pedido de esclarecimentos ao director do Polígrafo, Fernando Esteves.

    Questionou-o sobre se os apoios do Facebook, através do Third Party, eram verbas fixas (por mês) ou se dependiam do número ou qualidade das revisões feitas sobre conteúdos naquela rede social, bem como se existiram orientações expressas do Facebook, de forma directa ou indirecta em matérias específicas.

    E pediu-lhe também uma opinião sobre se considerava que a relação financeira tão revelante não constituía uma ingerência na autonomia de um órgão de comunicação social, e se o Polígrafo teria capacidade de sobreviver nos moldes actuais sem este tipo de receitas.

    Não houve resposta.

  • Cascais gasta mais de um milhão de euros no apoio a refugiados ucranianos, mas sempre por ajuste directo e em contratos nebulosos

    Cascais gasta mais de um milhão de euros no apoio a refugiados ucranianos, mas sempre por ajuste directo e em contratos nebulosos

    Não houve político que não tivesse querido ficar bem na fotografia da solidariedade internacional com o povo ucraniano. Mas no município de Cascais, a edilidade afanou-se e não tem deixado “secar a caneta”, despachando contratos atrás de contratos, tudo por ajuste directo, em prol dos refugiados. Mais de um milhão de euros já foram gastos, mas grande parte em contratos pouco claros, que a autarquia liderada por Carlos Carreiras não está muito disposta a divulgar na sua plenitude. Para a Câmara de Cascais parece que basta dizer que o dinheiro público serve “uma boa causa” para se colocar uma pedra sobre o assunto .


    Desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, nenhum outro município se equipara ao de Cascais, que tem gasto sem parança para alegadamente apoiar os refugiados daquele país de Leste. Numa consulta detalhada ao Portal Base sobre contratos públicos relacionados com a Ucrânia, confirma-se que a autarquia liderada pelo social-democrata Carlos Carreiras já investiu, sempre em contratos por ajuste directo, e na esmagadora maioria dos casos sem se conhecerem grandes detalhes, quase 930 mil euros, excluindo IVA. Incluindo este imposto – variável em função do contrato – já se ultrapassou um milhão de euros.

    Este montante representa cerca de 85% do total dos gastos em contratação pública pelos municípios portugueses no apoio à Ucrânia – ou seja, para prestações de serviços externos com vista a suprir necessidades sem resposta imediata pelos serviços da Administração Pública.

    Cascais destaca-se dos municípios portugueses no apoio aos refugiados ucranianos, mas na hora de analisar as contas há contratos pouco claros.

    À cabeça dos gastos do município de Cascais surgem duas empreitadas extraordinárias para a execução de obras de alojamento – algo que mais nenhuma outra autarquia portuguesa que acolheu ucranianos fez.

    O primeiro contrato foi celebrado em 11 de Abril passado com a Ediperfil, para adaptação da antiga creche de São José, entretanto alocada à Santa Casa da Misericórdia de Cascais, tendo um valor de 157.274,84 euros (IVA incluído).

    Uma dezena de dias mais tarde foi assinado outro contrato, desta vez, com a empresa Valente & Carreira para remodelação urgente de habitações num antigo bairro operário perto da creche, na Avenida de Sintra. O custo deste contrato: 321.052,80 euros, com o fito de criar 40 quartos, segundo informações do gabinete de imprensa da autarquia.

    Porém, informações detalhadas sobre as obras destes dois contratos são escassas. O PÁGINA UM procurou, desde 6 de Maio, obter junto da autarquia cascalense os dois cadernos de encargos relativos a estas empreitadas, que deveriam constar do Portal Base. No entanto, a autarquia nunca os disponibilizou, optando apenas por elencar referências meramente descritivas das obras realizadas sem qualquer custo associado. Uma situação que se repetiu em relação a similares pedidos de outros contratos.

    Sobre o facto de ambas as empresas terem sido contratadas por ajuste directo e também ambas serem do concelho da Batalha, o gabinete de imprensa de Carlos Carreiras foi lacónico; “Não havendo motivo, não há nada a acrescentar”.

    Fachada da antiga creche de São José, na Avenida de Sintra, em Cascais, entretanto reabilitada para receber refugiados ucranianos. Foto: Google Street.

    Certo é que as duas empresas da Batalha têm estado particularmente activas nos últimos anos no concelho de Cascais, somando contratos atrás de contratos. Desde 2018, a Ediperfil conta cinco, no valor total de cerca de 800 mil euros. Já a Valente & Carreira acumula quatro contratos desde 2020 e com valores substancialmente superiores: um pouco mais de 4,6 milhões de euros, dos quais se destacam duas empreitadas em edifícios da Cruz Vermelha, no âmbito da pandemia, também por ajuste directo, no valor de quase três milhões de euros.  

    Entretanto, e apesar de todos estes elevadíssimos encargos supostamente para acomodar refugiados ucranianos, a Câmara Municipal de Cascais ter-se-á visto ainda na necessidade de fazer mais dois contratos com uma empresa de alojamento local, a Juicycategory. Custo total, para já: 108.120 euros. Nos contratos com esta empresa – sobre os quais a autarquia nada quis relevar ao PÁGINA UM –, presentes no Portal Base, ignora-se até o objecto em concreto.

    Com efeito, no primeiro contrato, assinado em 11 de Maio e no valor de 36.040 euros, surge referência a “uma proposta apresentada em 29 de março de 2022, que aqui se dá como reproduzida e que fica a fazer parte integrante deste contrato”, mas depois nada é incluído no Portal Base. Apenas se sabe, pela descrição nesta plataforma de suposta transparência relativa à contratação pública, que este contrato tem um prazo de execução de 61 dias.

    Carlos Carreiras é presidente da autarquia de Cascais desde 2011.

    Similar situação ocorre no segundo contrato com a Juicycategory, assinado no dia 17 deste mês e por um prazo de 122 dias. Com um valor de 72.080 euros, o contrato faz também menção à existência de “uma proposta apresentada”, esta em 8 de Junho, mas depois não surge absolutamente nada mais no Portal Base. Não se sabe assim quantos ucranianos estarão a ser alojados no âmbito deste contrato, onde pernoitam, se dormem no chão ou em lençóis de cetim. A primeira vez que o PÁGINA UM questionou a autarquia de Cascais sobre estes contratos foi em 30 de Maio e reiterou o pedido no passado dia 22 de Junho.

    Embora estes sejam os montantes mais elevados dos gastos da autarquia de Cascais no apoio ao povo ucraniano, esta edilidade também se salientou por ter alugado 10 camiões TIR, com um custo de cerca de 50 mil euros, para transportar 223 toneladas de “vestuário, alimentação (incluindo comida e leite para bebé), produtos farmacêuticos, produtos de higiene e alimentação para animais”, de acordo com o gabinete de imprensa de Carlos Carreiras.

    O PÁGINA UM pediu, contudo, as guias de transporte ao município, mas obteve apenas como resposta que “a esmagadora parte dos produtos recolhidos (…) foram doados por cascalenses e empresas sedeadas em Cascais e noutros pontos do país”. O gabinete de imprensa do município preferiu destacar que o movimento inusitado de solidariedade se deveu ao facto de este município possuir “um grande centro de recolha que é uma referência para vários pontos do país e que possibilita o armazenamento de várias toneladas em simultâneo, para além de uma equipa muito competente no envio de ajuda humanitária à Ucrânia.”

    A edilidade de Cascais acrescentou ainda, a este respeito, que “quatro TIR destinaram-se especificamente a Bucha [onde alegadamente terão sido cometidos crimes de guerra pelas tropas russas], cujo presidente da Câmara pediu ajuda directamente ao presidente da Câmara de Cascais em vídeo conferência no dia 25 de Abril.”

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    Além destas despesas, a autarquia de Cascais também pagou cerca de 28 mil euros para fretar um voo da TAP que transportou 226 ucranianos para Portugal. Este contrato não consta no Portal Base.

    Saliente-se que, também no transporte de mercadorias e refugiados, a autarquia de Cascais se destacou dos demais municípios. De acordo com o Portal Base, apenas os municípios de Portimão (5.800 euros), de Gouveia (5.919 euros), de Gondomar (29.250 euro) e de Olhão (20.283 euros), para além da Comunidade Intermunicipal do Médio Tejo (29.425 euros), registaram gastos no transporte de mantimentos e/ ou de refugiados ucranianos.

    Por fim, nos contratos assinados pela autarquia de Cascais ainda se incluem fornecimentos de alimentação para os refugiados, incluindo um de 250 mil euros com a empresa ICA – Indústria e Comércio Alimentar, mas a autarquia diz que aquele montante constitui o valor máximo. Até 30 de Maio, segundo o gabinete de Carlos Carreiras, tinham sido gastos 37 mil euros.

    Num outro contrato, com a Panisol, destinado ao fornecimento diário de pão aos refugiados, foi assinado um contrato de até 10 mil euros. Contudo, a autarquia diz que, até ao final de Maio, tinham sido gastos apenas 350 euros, o que significa menos de 2.500 carcaças, se for essa a referência, indicando assim que a procura alimentar por parte dos refugiados tem ficado muito aquém das expectativas iniciais.

    De acordo com a autarquia de Cascais, pelos centros de acolhimento daquele município tinham passado, até finais de Maio, 1.714 ucranianos, integrando 658 famílias, na sua maioria mulheres e crianças. Nessa altura estariam então a ser apoiadas, segundos os números da autarquia, 253 famílias e a taxa de ocupação média das unidades de alojamento situava-se nos 75%. O PÁGINA UM não obteve resposta na passada semana para uma actualização destes números.

  • Dois processos num mês: a ocultação de dados pelo Ministério da Saúde “joga-se” agora nos tribunais. E pode haver terceiro…

    Dois processos num mês: a ocultação de dados pelo Ministério da Saúde “joga-se” agora nos tribunais. E pode haver terceiro…


    Em Portugal, apesar de vivermos em democracia há quase 50 anos – e de o Absolutismo há muito ser um período enterrado nos anais da História –, está enraizada em muitos dos nossos governantes a ideia de que o País, um Estado é propriedade de um Governo; sendo o Governo, formado por políticos que se comportam, acima dos demais, como senhores feudais, mandatados, com cheque em branco, pelos servis cidadãos através de uns papéis enfiados por uma ranhura de tempos em tempos, e sobre os quais exercem o poder em vez de lhes prestarem um serviço público.

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    Num país democrático decente, um Governo – como circunstancial mandatário do povo – deveria prestar continua e activamente contas à sociedade. Jamais ocultaria conscientemente qualquer informação – ou mesmo dados em bruto para que qualquer pessoa pudesse confirmar a validade dessa informação oficial. E, se por distração, e por não previsão de interesse, um qualquer cidadão se lembrasse de solicitar alguma informação que não fora activamente divulgada, logo esta, dentro de uma razoabilidade definida prévia e claramente por lei, lhe seria entregue dentro de um determinado prazo.

    Mais ainda, no caso desse pedido ser feito por um jornalista, não por este ser um cidadão acima dos outros, mas por a sua função, consagrada pela Constituição e pelas leis, lhe conceder especiais tarefas de watchdog ao serviço da sociedade.

    Ora, sobretudo nos últimos dois anos – e constituiu um agravamento do passado –, o país assistiu à mais nefasta estratégia de controlo da informação e de manipulação da opinião pública, sobretudo pela máquina mediática usada pelo Governo, que se soube aproveitar das fragilidades económicas dos media mainstream e de um conjunto de responsáveis editoriais que passaram a ser mais gestores de interesses políticos e financeiros do que jornalistas.

    Marta Temido, ministra da Saúde. Durante dois anos, ninguém insistiu para disponibilizar informação.

    Habituados que ficaram com o laxismo e a mansidão da imprensa, o Governo de António Costa pôde alimentar uma narrativa onde nada lhes era questionado; nada era pedido para se confirmar; nada lhe era solicitado para ser analisado de forma independente.

    O PÁGINA UM nasceu num período em que o jornalismo em Portugal nem ladrava, e muito menos mordia canelas. Nem latia. Lambia.

    Durante meses, o PÁGINA UM fez insistentes pedidos à Direcção-Geral da Saúde para obtenção de documentos administrativos. Foi necessário intentar-se um processo de intimação no passado dia 27 de Maio (1438/22.8BELSB) contra o Ministério da Saúde junto do Tribunal Administrativo de Lisboa para haver uma reacção em processo que corre ainda os seus trâmites.

    E qual foi a reacção? Para já, a senhora directora-geral da Saúde, Graça Freitas, enviou ao PÁGINA UM competente ofício, após meses de silêncio, a recusar o acesso a diversos documentos administrativos, incluindo base de dados, porque, por exemplo, “se torna impossível até à data de hoje, prever a sua finalização (…), porquanto os referidos dados estão em permanente alteração no decurso diário dos trabalhos”.

    E foi este documento enviado ao Tribunal Administrativo, com outra argumentação ainda mais absurda – recomenda-se mesmo uma leitura, com o desafio difícil para se manter sempre a boca fechada –, numa tentativa (que se espera vã) de convencer um juiz de que não pode ser disponibilizada mais qualquer informação para além daquele que a outra imprensa tem (com gosto) deglutido.

    A vingar esta tese da DGS, sob os auspícios do Ministério da Saúde e do próprio Governo, no limite nunca um cidadão português poderia obter documentos administrativos do Estado português, a menos que o Estado português fosse finalmente extinto, porquanto só assim ficaria patente a todos que os trabalhos do Estado português, antes perpetuamente em curso, estavam finalmente finalizados.

    Extracto do ofício da DGS com as estapafúrdias justificações para recusar acesso a documentos administrativos, mesmo em casos já analisados pela Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos.

    Esta luta do PÁGINA UM por uma maior transparência, que na verdade é uma tarefa que deveria ser normal e corriqueira no jornalismo, não acabará por aqui. Os tempos têm de mudar. Para o Governo e para a imprensa.

    Por esse motivo – e porque ao longo de seis meses de existência foram escassíssimas as respostas do Ministério da Saúde e de entidades por si tuteladas –, o PÁGINA UM solicitou no passado dia 2 de Junho que fosse disponibilizado o acesso a todo o seu arquivo – com documentos todos eles administrativos, logo de acesso público –, desde 2020, tendo elencado um vasto leque de entidades remetentes e destinatárias de ofícios, pareceres e relatórios.

    Numa primeira fase, em 7 de Junho, a Secretaria-Geral do Ministério da Saúde consideraria este pedido do PÁGINA UM como “manifestamente excessivo [e] abusivo”, mas depois reconsiderou, após se ter replicado ser temerário que o gabinete da ministra Marta Temido considerasse abusivos os pedidos de um órgão de comunicação social, e pediu esclarecimentos à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos.

    Lista de processos já intentados pelo PÁGINA UM no Tribunal Administrativo de Lisboa por recusa de acesso a documentos administrativos.

    Não há, porém, motivos para dúvidas nem para procrastinações. E assim, no final da passada semana, o PÁGINA UM intentou um novo processo de intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa contra o Ministério da Saúde. Este novo processo (1779/22.4BELSB) foi já distribuído na sexta-feira passada à juíza Dinamene de Freitas, que terá, ao analisar este processo, a indirecta oportunidade de responder se Portugal é uma verdadeira democracia. Ou seja, será que os cidadãos podem saber o que, nas estreitas competências que lhe foram atribuídas por eleições, os governantes fazem e escrevem?

    Mas, como não há duas sem três – e haverá certamente mais, se necessário for –, o PÁGINA UM tomou mais medidas após o escandaloso “apagão” da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar que constava no Portal da Transparência do SNS, sobre a qual a generalidade da imprensa mainstream nada disse.

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    Também na passada semana, o PÁGINA UM solicitou a quatro entidades que, ao abrigo da lei, fosse(m) disponibilizado(s) o(s) eventual(is) documento(s) administrativo(s) que estivessem nos seus arquivos com a ordem para que fosse excluída a dita base de dados – que, como se sabe, permitiu ao PÁGINA UM, com dados até Janeiro de 2022, desenvolver um dossier de jornalismo de investigação bastante comprometedor.

    Essas entidades são as seguintes, e divulgamos as cartas: Ministério da Saúde, DGS, Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) e Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). Caso estas entidades não tenham esses documentos, porque não existem, a lei determina que informem da sua não existência.

    Ou seja, o PÁGINA UM quer saber se a ordem foi escrita – e se foi, por quem, e ficando assim a saber-se a fundamentação – ou se estamos perante uma ordem política feita “por boca”. E então aí teremos de questionar se isso é legal. Se um governante ou alguém por si mandatado pode “eclipsar” uma base de dados pública apenas porque contém potencial informação comprometedora.

    Como é óbvio, se não houver respostas, ou estas não forem aceitáveis em democracia, o caminho será o Tribunal Administrativo.

    Enquanto o PÁGINA UM existir, e houver o apoio dos leitores, esta será sempre a postura, a estratégia e o modus operandi deste (vosso) jornal. Pelo menos enquanto Portugal for uma democracia…


    Os processos judiciais do PÁGINA UM são financiados pelo FUNDO JURÍDICO, proveniente dos apoios dos leitores através da plataforma MIGHTYCAUSE, tendo já sido recolhidos 6.810 euros. Além de outros custos, a taxa de justiça inicial é de 306 euros por cada um dos 7 processos já apresentados. Estão em preparação outros processos em áreas distintas.

  • A “ciência contrafactual” é uma treta ou como se salvam cientistas patetas

    A “ciência contrafactual” é uma treta ou como se salvam cientistas patetas


    Se a minha avó tivesse rodas era um camião – este dichote, bem conhecido, tem sido usado amiúde por treinadores da bola perante perguntas parvas de jornalistas.

    Nesta senda, surge agora em força uma modalidade de fazer-se Ciência: a aplicação de modelos matemáticos para simular uma contrafactualidade. É a Ciencia do Se… É a Ciência do “imaginemos que era assim como queríamos”…

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    Por oposição dos modelos preditivos, em que se estabelecem premissas e assumpções, partindo daí para uma previsão que poderá depois ser verificada – e permitindo-se assim, à posteriori uma avaliação da precisão do dito modelo –, nos modelos matemáticos contrafactuais pode-se logo “gabar cestos” sem perigo de desmentido.

    Por exemplo, basta pegar numa medida ou acção previamente tomada e avaliar a sua eficácia à posterior, sem ter em consideração qualquer outra variável. E depois atribuir à medida toda a responsabilidade (boa) do diferencial obtido.

    Imagine-se, por absurdo, que se atribuía ao assobiar nas ruas uma hipotética redução dos atropelamentos em 90%, e se avaliava depois, passado um ano, a eficácia dessa medida sem, por exemplo, incorporar as campanhas de sensibilização dos condutores, a maior concentração de passadeiras ou semáforos e uma diminuição da velocidade máxima dos automóveis. Ora, alguém sensato poderia acreditar que havendo mesmo uma redução em 90% nos atropelamentos tal se devia exclusivamente aos assobios?

    Dos seis autores do artigo da The Lancet Infectious Diseases, três estiveram na equipa de Neil Ferguson que apresentou previsões catastrofistas em Março de 2020, que estiveram longe de ocorrerem.

    Ora, nos últimos dois dias muito se tem falado de um estudo, publicado na revista científica The Lancet Infectious Diseases por investigadores do Imperial College de Londres sobre a eficácia das vacinas contra a covid-19, atribuindo-lhe a “responsabilidade” de terem salvado cerca de 20 milhões de vidas em todo o Mundo. Em Portugal, segundo as declarações de um dos autores dessa análise (Oliver Watson) ao jornal Público, estimaram que se tenham evitado 135.900 mortes até 8 de Dezembro de 2021, com “uma incerteza entre 126.700 e 179.300 mortes”.

    Esse estudo tem quatro problemas básicos e graves.

    Primeiro problema, estamos perante um estudo contrafactual: pressupõe que tenha sido apenas a vacina o único contribuinte para a evidente descida da mortalidade absoluta e da taxa de letalidade, ignorando, ou pretendendo ignorar, que a covid-19 de hoje, sobretudo com a variante Ómicron agora dominante, é menos letal independentemente da vacinação, e que a população já não é naïve – ou seja, a imunidade natural tem uma relevância significativa não desprezável.

    Segundo problema: o estudo apresenta pressupostos que enviesam à partida os resultados, permitindo que o “cesto se gabe”. Com efeito, em vez de confrontar a letalidade (e mortalidade) dos vacinados com a dos não-vacinados e com a dos infectados recuperados, o estudo aproveitou apenas as referências de uns poucos estudos, alguns ainda não revisados, e até mesmo um comunicado de imprensa de uma das farmacêuticas. Por outro lado, a análise matemática usa tantas estimativas e pressupostos que, enfim, por mais que o modelo matemático seja extraordinário e os cientistas uns estupendos génios da Matemática, não conseguem fazer mais do que uma porcaria embelezada.

    Terceiro problema: uma parte dos cientistas autores deste panegírico às vacinas tem um grave conflito de interesses. Não tanto por este estudo ter sido financiado pela Bill & Melinda Gates Foundation, pela Organização Mundial da Saúde, pela GAVI e pelo The Vaccine Alliance.

    O grande conflito de interesses advém, sim, de três dos seis autores – Oliver J. Watson, Peter Winskill e Azra C. Ghani – terem sido co-autores da célebre estimativa do Imperial College feita em Março de 2020 que espoletou todo o alarme mundial em redor da pandemia.

    Estudo catastrofista do Imperial College previa um morticínio sem medidas não-farmacológicas, e justificou lockdowns e máscaras, cuja eficácia nunca se comprovou. Três dos autores dizem agora que as vacinas é que salvaram milhões.

    Recorde-se que esse estudo – publicado no inicio da pandemia à Europa, em 26 de Março de 2020, e tendo Neil Ferguson como cabeça de cartaz – estimava que, sem medidas, a covid-19 poderia fazer 7 mil milhões de infectados e 40 milhões de mortes.

    Ora, para apagar este colossal e vergonhoso erro de previsão – um exemplo paradigmático da má Ciência ao serviço do alarmismo –, nada melhor do que um outro pseudo-estudo onde as vacinas surgem – como sucedeu com muitas das absurdas medidas não farmacológicas – como o ente salvador. Mas salvador sobretudo da lamentável credibilidade de certos investigadores.

    Em suma, com este suposto estudo glorificador das salvíficas vacinas, a par das tais medidas não farmacológicas, a absurda estimativa de Março de 2020 estará sempre certificada. Pelo próprios que a fizeram.

    Quarto problema: não vale a pena olhar para a razoabilidade das estimativas mundiais quando os autores nem sequer acertam com a realidade de um país. O caso de Portugal, por exemplo.

    Com efeito, atribuir às vacinas contra a covid-19 o condão de salvar entre finais de Dezembro de 2020 (quando se iniciou o programa de vacinação) e 8 de Dezembro de 2021 um total de 135.900 pessoas é um absurdo.

    Não por representar mais mortes do que as que são causadas por todas as outras doenças (a covid-19 não é a gripe espanhola), mas sim por ser uma impossibilidade.

    De facto, se analisarmos a taxa de letalidade da covid-19 antes da introdução das vacinas, observamos que, em 27 de Dezembro de 2020 (dia da inoculação da primeira), a taxa de letalidade desta doença era de 1,77% (6.693 mortes em 378.395 casos positivos).

    Ora, entre 27 de Dezembro de 2020 e 8 de Dezembro de 2021, registaram-se em Portugal 802.923 casos positivos, que resultaram em mais 11.917 óbitos, o que significa que, no primeiro ano com vacinação, a taxa de letalidade foi de 1,48%.

    Ou seja, com a introdução da vacina, a taxa de letalidade apenas baixou de 1,77% para 1,48%, algo que jamais poderia implicar um tão grande contributo das vacinas na redução da mortalidade.

    Mesmo que, por absurdo, toda a população tivesse sido infectada (cerca de 10,2 milhões de pessoas), a redução da taxa de letalidade global em apenas 0,29 pontos percentuais significava que teriam sido poupadas apenas 29.580 pessoas. Mas notem: tinha de ser infectada TODA a população no espaço de UM ano. Até agora, em dois anos e quase quatro meses foi infectada, segundo dados oficiais, cerca de metade da população (5,120,970 casos positivos, até hoje).

    Na verdade, o game changer da covid-19 não foram as vacinas, mas sim o surgimento da Ómicron, por muito que Governos, farmacêuticas e certos investigadores inescrupulosos queiram convencer-nos do contrário.

    photo of red and blue bird person on brown tree branch

    Com efeito, veja-se como mudou a taxa de letalidade em 2022 em Portugal com a dominância da Ómicron, de muito menor agressividade: desde Janeiro até 22 de Junho registaram-se 3.693.100 casos positivos que resultaram em 5.022 óbitos atribuídos à covid-19. Isto significa que a taxa de letalidade – que, recorde-se, era de 1,48% no primeiro ano de vacinação – se cifrou em apenas 0,14%, o que está ao nível das pneumonias.

    Querer atribuir às vacinas – e não à menor agressividade da Ómicron, que foi, para nossa fortuna, o que fez cessar a pandemia – a maior fatia desta enorme redução da letalidade do SARS-CoV-2 é, no mínimo, desonesto. E nenhum cientista o pode ser, porque a desonestidade é inimiga da Ciência, e é um defeito  moral independente das capacidade cognitivas.    

    Em suma, tal como o estudo preditivo do Imperial College de Março de 2020, também este estudo contrafactual de Junho de 2022 do mesmo Imperial College deveria ficar nos anais da má Ciência. Tanto um como o outro nem para limpar o rabo servem.

  • Pandemia foi período perigoso para as crianças? Não; pelo contrário: houve menos 51 mil hospitalizações e menos 233 mortes

    Pandemia foi período perigoso para as crianças? Não; pelo contrário: houve menos 51 mil hospitalizações e menos 233 mortes

    A base de dados da Morbilidade da Mortalidade Hospitalar foi “apagada” do Portal da Transparência, mas o ficheiro descarregado pelo PÁGINA UM antes deste acto anti-democrático permite revelar mais episódios sobre a real dimensão da pandemia até Janeiro deste ano. Hoje, demonstramos que o pânico lançado em redor da saúde dos mais novos não correspondia à realidade: globalmente, as crianças com menos de 15 anos necessitaram de menos internamentos e os desfechos trágicos em meio hospitalar foram largamente inferiores. Nos tempos em que só havia gripes e pneumonias, as crianças estavam sujeitas a muitos e maiores perigos, mesmo até baixos. E não havia quem se “alimentasse” do pânico à custa do crescimento saudável das crianças.


    Avós, pais e filhos andaram em pânico por causa do SARS-CoV-2, encheram-se as crianças de máscaras e muitas famílias correram a vacinar os mais novos. Contudo, na verdade, a época da pandemia da covid-19 foi, paradoxalmente, um período muito benigno para as crianças com menos de 15 anos.

    De acordo com a análise do PÁGINA UM à base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar, a covid-19 foi responsável por 758 internamentos neste grupo etário, com um registo de dois óbitos, mas todos os outros grupos de doenças registaram uma fortíssima redução tanto ao nível das hospitalizações como das mortes.

    two toddler pillow fighting

    Globalmente, em todas as 62 unidades hospitalares do SNS e por todas as causas contabilizaram-se, entre Março de 2020 e Janeiro de 2022, um total de 181.428 internamentos de crianças, havendo a lamentar 413 óbitos. Porém, no período homólogo imediatamente anterior à pandemia – entre Março de 2018 e Janeiro de 2020 –, tinham sido contabilizados 646 óbitos de crianças até aos 15 anos, resultantes de 232.287 internamentos.

    Recorde-se que a base de dados oficial usada pelo PÁGINA UM foi entretanto “apagada” do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS), pelo que apenas se mostra possível aceder a um ficheiro descarregado em Maio passado, que continha elementos entre Janeiro de 2017 e Janeiro de 2022. Se não tivesse ocorrido o “apagão” já deveriam estar disponibilizados os dados de Fevereiro e eventualmente de Março deste ano.

    A redução global de 22% nas hospitalizações e de 36% no número de mortes observado no período pandémico face ao período pré-pandémico fez-se sentir mais em certos grupos de doenças, sobretudo nas doenças respiratórias e nas doenças infecciosas e parasitárias. Na verdade, se se excluir o grupo de causas de internamento classificado como “factores que influenciam o estado de saúde e o contacto com os serviços de saúde” – o código que classifica sobretudo, mas não apenas, os internamentos para exames sem um diagnóstico prévio –, a descida nas hospitalizações foi de 39%.

    Internamentos e óbitos de menores de 15 anos em unidades do SNS em pré-pandemia (Março de 2018-Janeiro de 2020) e pandemia (Março de 2020-Janeiro de 2022). Fonte: SNS (base de dados “apagada” da morbilidade e mortalidade hospitalar. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Com efeito, não apenas pela menor agressividade do SARS-CoV-2 nos menores como, em parte, às medidas que afastaram fisicamente as crianças uma das outras, os hospitais portugueses receberam apenas 11.981 crianças com doenças respiratórias entre Março de 2020 e Janeiro de 2022, quando no período homólogo imediatamente anterior à pandemia contabilizaram-se 25.273 internamentos neste grupo etário. Uma queda de 53%, ou seja, menos 13.282 internamentos.

    No caso das doenças infecciosas e parasitárias, a redução relativa nos internamentos ainda foi maior: 62%. Entre Março de 2018 e Janeiro de 2020 – ou seja, antes da pandemia – tinham sido hospitalizadas 6.629 crianças; ao longo dos primeiros 23 meses da pandemia (Março de 2020 a Janeiro de 2022), por este grupo de doenças tinham sido hospitalizadas apenas 2.540.

    Em relação a outras doenças destacam-se as reduções nos internamentos por doenças da pele e do tecido subcutâneo (menos 51%), doenças do ouvido e aparelho mastóide (menos 43%), doenças do aparelho circulatório (menos 40%) e mesmo por cancros (menos 30%).

    child lying on bed while doctor checking his mouth

    Mesmo se a mortalidade por qualquer doença é, felizmente, bastante baixa nos menores de 15 anos, a base de dados agora “desaparecida” do Portal da Transparência permite concluir que o período da pandemia foi muito menos mortífera para esta faixa etária. Se é certo que se registaram em hospitais duas mortes atribuídas à covid-19 no certificado de óbito – no Algarve em Agosto de 2020 e em Lisboa em Agosto do ano passado –, do ponto de vista da Saúde Pública, e mesmo de receio dos pais, a pandemia foi muito mais “saudável”.

    De facto, confrontando os óbitos declarados nos hospitais, a redução da prevalência da gripe e de outras doenças respiratórias, entre as quais as pneumonias, levaram a uma fortíssima redução da mortalidade. Sem a presença da covid-19, seria expectável que as habituais doenças respiratórias levassem, entre Março de 2020 e Janeiro de 2021, um número de vidas próximo daquele que se observou no período homólogo anterior à pandemia (Março de 2018 a Janeiro de 2020): 646.

    Contudo, o saldo foi assim francamente mais favorável: nos primeiros 23 meses da pandemia morreram 413 menores de 15 anos nos hospitais, menos 233 do que no período homólogo pré-pandemia.

    Base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar foi “apagada” do Portal da Transparência. Ministério da Saúde não explica os motivos.

    O destaque, mais uma vez, vai para as doenças respiratórias: nos 23 primeiros meses de pandemia morreram, por estas causas, 20 crianças com menos de 15 anos, enquanto entre Março de 2018 e Janeiro de 2020 tinham falecido 50. Confrontando os dois períodos, nas doenças infecciosas e parasitárias, os óbitos passaram de 19 para 7, nas neoplasias de 54 para 41, nas doenças do sistema nervoso de 21 para 9 e nas doenças do aparelho circulatório de 22 para 12.

    Até mesmo em problemas relacionados com recém-nascidos, a situação melhorou durante a pandemia. No grupo das “condições originadas no período perinatal”, os óbitos no período pré-pandemia (Março de 2018 a Janeiro de 2020) foram 71, mas durante os 23 primeiros meses da pandemia apenas chegaram aos 39.