Autor: Pedro Almeida Vieira

  • O regresso de Clara Pinto Correia à crónica semanal… hoje, no PÁGINA UM

    O regresso de Clara Pinto Correia à crónica semanal… hoje, no PÁGINA UM


    O PÁGINA UM começará hoje a publicar crónicas semanais de Clara Pinto Correia. Grande parte da população portuguesa conhece esta mulher nascida em 1960, que se notabilizou não apenas na Ciência – sobretudo na investigação no domínio da Embriologia no Instituto Gulbenkian de Ciências e em universidades norte-americanas (Buffalo e Harvard) – como na Literatura.

    Foi também, durante mais de uma década, presença assídua na comunicação social, passando pelo O Jornal, o Diário de Notícias e a revista Visão, que terminou, de forma abrupta e polémica, em 2003.

    Já passaram quase 20 anos, portanto.

    Duas décadas se passaram, muitas explicações se deram então (e a própria Clara as deu), e uma “coisa” (não aprecio muito este termo, mas enfim…) me parece evidente: Portugal não pode jamais ostracizar em definitivo os melhores de entre si como se todos aqueles que decretam o “édito de expulsão” na concha da ostra (ostracismo deriva daqui), como faziam os gregos, fossem perfeitos, puros, imaculados de pecado e defeitos.

    E sei também que a Clara Pinto Correia, com a sua colaboração no PÁGINA UM – inicialmente semanal; veremos o futuro –, contribuirá, com o seu olhar amadurecido mas simultaneamente jovial, para que (nos) observemos melhor, com outros ângulos, talvez com maior empatia.

    Empatia, antes da simpatia, é aquilo que como director do PÁGINA UM peço a todos os nossos leitores – aqueles que nos seguem e apoiam desde o início deste projecto editorial. E, sobretudo, desfrutem dos escritos da Clara Pinto Correia.

    A Deriva dos Continentes “renasce” hoje no PÁGINA UM. E isso só, só isso mesmo, deve ser motivo para o nosso contentamento. O resto é supérfluo.

    Pedro Almeida Vieira


    Razões de um regresso

    Já nem sei quando é que comecei a fazer crónicas, mas, pelo menos, em 1989 já mandava todas as semanas, de Buffalo para O JORNAL, por uma novidade muito fina que era o fax, uma série de dois anos chamada THE BIG EASY, sobre o quotidiano na América profunda.

    Depois escrevi outra série para a revista de O JORNAL, depois passei anos a escrever ao domingo para o DIÁRIO DE NOTÍCIAS, depois passei outros tantos anos a escrever para a VISÃO… até que, em 2003, enquanto eu estava nos Estados Unidos a concluir um projecto de investigação de prazo apertado, creio que é do conhecimento comum que a populaça me foi cortando os braços, as pernas, a cabeça, numa grande animação de linchamento na praça pública[1], ao mesmo tempo que fazia chorar muito os meus filhinhos que tinham ficado em casa sem mim.

    Agora os matulões vão nos trinta anos e já me encheram de netos, pelo que temos a certeza de que mais ninguém vai chorar por minha causa[2].

    Espera-se, portanto, que vos diga que é bom estar de volta?

    Então, mas e eu é que sei?

    Oiçam lá, como é que é? Já ninguém se lembra de que os caminhos do Senhor são insondáveis?

    Bem, eu lembro-me… mas se calhar é tudo uma questão de defeito. Ou mesmo de feitio. Qu’ importe, como diria o outro…

    Clara Pinto Correia


    [1]Às tantas, nessa altura, telefonou-me um dos meus melhores amigos, sem saber se havia de rir ou de chorar, a contar-me que nas notícias se debatia furiosamente o meu “plágio”, enquanto por baixo, em notas de rodapé muito pequeninas, passava um letreiro a dizer “explodiu o Space Shuttle”. Francamente, pessoal.

    [2]Agora a tendência deles é mais para suspirarem “Oh, Mãe…”

  • Brasil: um país nascido a quatro mãos

    Brasil: um país nascido a quatro mãos


    [Este texto foi publicado, como capítulo no livro Assim se pariu o Brasil, sob o título “Um reino a quatro mãos”, editado originalmente naquele país em 2015 pela editora brasileira Sextante. Manteve-se a grafia da edição original, em português do Brasil, num trabalho conjunto do autor com Bruno Anselmi Matangrano. Esta obra conheceu uma edição em Portugal pela Saída de Emergência, em 2016, e outra na Itália pela editora Mimesis, em 2020.]


    O Brasil, como hoje o conhecemos, não devia existir. Ou melhor dizendo, é um milagre possuir um território de mais de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, figurando como o quinto maior país mundial. Na verdade, os ventos separatistas que percorreram a América Latina no século XIX deveriam ter feito com os domínios portugueses aquilo que aconteceu com as antigas possessões espanholas: um desmembramento em várias nações. Se assim tivesse acontecido, talvez houvesse agora uma nação chamada Brasil, mas de menor dimensão, rodeada de outros países lusófonos. E, pelo meio, muitas cruzes marcando sepulturas, porque infelizmente quase todas as independências são pagas com sangue.

    Embora se trate sempre de um exercício especulativo, pois jamais será possível ter certeza do que se passaria se as circunstâncias e personagens de um determinado momento da História não tivessem se “encontrado”, o Brasil dificilmente seria uma nação unificada e federativa se não fossem dois homens que lá estiveram: o rei português D. João VI e seu filho, o primeiro imperador, D. Pedro I. E também indiretamente por causa de um terceiro homem que nunca lá pôs os pés: Napoleão Bonaparte.

    Texto publicado no livro Assim se pariu o Brasil, mantendo a grafia da edição original em português do Brasil.

    Com efeito, a retirada estratégica de D. João VI para o Brasil, no final de 1807, no momento da invasão das tropas napoleônicas em Portugal, permitiu não apenas evitar a perda da independência lusitana – porque assim seu soberano não pôde ser deposto – como involuntariamente uniu ainda mais o território brasileiro.

    Por outro lado, optando por manter a velha aliança com a Inglaterra, em vez de se subjugar aos caprichos de Napoleão, o rei português esquivou-se também da má sorte de seus pares da Espanha, com graves consequências para esta nação, quer na Europa quer em suas colônias americanas.

    De fato, Carlos IV da Espanha foi ingênuo quando assinou com a França o Tratado de Fontainebleau, em outubro de 1807. Pensava que, aliando-se a Napoleão, ficaria mesmo com parte do território português e com um bom quinhão de suas colônias[1]. Não menos surpreendente foi o fato de que o rei espanhol pretendia invadir o reino vizinho onde o regente, D. João VI, casara-se com sua filha, D. Carlota Joaquina.

    O feitiço virou contra o feiticeiro. Em março do ano seguinte, o rei castelhano foi obrigado a abdicar em favor de seu filho Fernando VII, em uma revolta conhecida como Motim de Aranjuez, que causaria também a queda de Manuel Godoy. Dois meses depois, foi a vez de Fernando VII ser preso por Napoleão em Bayona. A Espanha ficou assim sob domínio francês – sendo nomeado como rei-fantoche o irmão do próprio Napoleão, com o título de José I. Somente em 11 de dezembro de 1813, a Espanha se livraria na Europa do jugo francês, através de duras batalhas contra seu traiçoeiro aliado.

    Porém, o mal já estava feito na Espanha. Durante os seis anos de guerra interna estima-se que morreram entre 215 mil e 375 mil pessoas, às quais se somam mais algumas centenas de milhares em resultado da fome e de epidemias. Sem esquecer a destruição econômica e a redução da capacidade militar. Ou seja, a Espanha ficou na bancarrota, precipitando a perda do controle de seus domínios ancestrais na América do Sul. E não em um só bloco, mas se desmembrando em pedaços.

    Embora as primeiras insurreições na América espanhola tenham se iniciado, mas em pequenos focos, ainda em 1806 – no mesmo período em que a Inglaterra tentou invadir, sem sucesso, os territórios do Rio da Prata, na atual Argentina –, a ruína começou apenas durante o reinado espanhol do irmão de Napoleão. Primeiro, perdeu a Venezuela, pouco depois várias regiões na costa do Pacífico – que formariam, em um primeiro momento, a chamada Grã-Colômbia –, seguiram então as Províncias Unidas do Rio da Prata, o Paraguai, o Império Mexicano e muitas outras regiões.

    Esta desagregação evoluiu depois para novas divisões. Simón Bolívar, o chamado Libertador da América, ainda tentou concretizar seu sonho de criar, na América hispânica, uma solução federativa similar aos Estados Unidos na América do Norte. Mas nunca conseguiu. Atualmente, os territórios americanos que a Espanha dominou até o início do século XIX estão distribuídos em mais de duas dezenas de países. Ao contrário disso, os domínios portugueses originaram apenas o Brasil, com uma estrutura federativa e territorial quase similar ao período colonial.

    Não foi obra do acaso, este distinto desfecho. A razão é simples: quando as convulsões nas colônias espanholas iniciaram, o Brasil já não era uma colônia portuguesa; era Portugal, de fato, pois D. João VI e a família real nele viviam. E não estavam só de passagem. Tanto que, quando o principal motivo para sua saída de Portugal – as invasões napoleônicas – deixou de existir, nunca houve pressa para regressar à Europa. Aliás, embora nunca o manifestasse abertamente, D. João VI sentia-se melhor sendo rei no Brasil do que em Portugal, o que é compreensível; o território sul-americano era quase cem vezes maior do que o minúsculo retângulo europeu.

    A manutenção de D. João VI na América do Sul também se dava por um motivo de estratégia política, além das belezas do Rio de Janeiro, que obviamente o agradavam bastante. Sua presença no Brasil apaziguava, de forma decisiva, eventuais “contaminações” subversivas vindas do lado espanhol. Uma coisa eram os movimentos separatistas contra um soberano que vivia do outro lado do Atlântico, como se passava nas colônias espanholas – ainda mais diante de um rei-fantoche, como José Bonaparte, irmão de Napoleão –, outra bem diferente era uma revolta acontecer perante um inédito rei presente.

    Napoleão Bonaparte

    Além disso, olhando para os três séculos anteriores de colonização portuguesa na Terra de Vera Cruz, o Brasil transfigurou-se com a estadia da família real. Para bem melhor. E mais ainda o Rio de Janeiro.

    No momento da chegada dos monarcas portugueses, a cidade era, nas palavras do comerciante inglês John Luccock, “o mais imundo dos ajuntamentos de seres humanos debaixo do céu”. Com uma população de 60 mil habitantes, dos quais apenas 20 mil brancos e 15 mil escravos, a cidade era um aglomerado de apenas setenta ruas e algumas vielas, todas pestilentas devido às águas estagnadas e pântanos, e aos despejos generalizados de lixos nas vias públicas. Havia doenças para todo gosto.

    Nas palavras do médico Bernardino Gomes, as moléstias mais frequentes eram “sarnas, erisipelas, impingens, bolbos, morfeia [lepra], elefantíase, formigueiro, bico dos pés, edemas de pernas, hidrocele, sarcocele, lombrigas, hérnias, leucorreia, dismenorreia, hemorroidas, dispepsia, vários afectos compulsivos, hepatites e diferentes sortes de febres intermitentes e remitentes”.

    A falta de edifícios para acolher milhares de reinóis, muitos dos quais de famílias nobres, impulsionou um crescimento urbano nunca antes visto. Construíram escolas, hospitais e teatros; fundaram a Academia Real Militar e a Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica, estabelecendo uma provedoria da saúde, para controlar as epidemias, e um corpo especial de guardas, para melhorar a segurança pública. E, além de tudo isso, introduziram a tipografia no Brasil, até então proibida. A vida cultural, então inexistente, floresceu para entreter fidalgos e pessoas de posses. O comércio de todo tipo de produtos teve um crescimento ímpar. Em menos de uma década, para tanto serviço, foram trazidos mais de 200 mil escravos.

    D. João VI soube também agradar às elites cariocas. Fartou-se de distribuir cargos públicos e outras prebendas e também títulos nobiliárquicos. Até 1821, “criou” vinte e oito marqueses, oito condes, dezesseis viscondes e vinte e um barões – um número impressionante, jamais registrado em toda a História da Monarquia Portuguesa –, alguns destes títulos beneficiando pessoas havia muito radicadas em terras brasileiras e, pelo menos, duas nascidas na colônia: Ana Francisca Maciel da Costa, nomeada baronesa de São Salvador de Campos de Goitacases, e José Egídio Álvares de Almeida, nomeado barão de Santo Amaro. Também não foi por um acaso, nem por fanfarronice, que em dezembro de 1815, o Reino de Portugal e dos Algarves passou a incluir o Brasil com similar estatuto. E mais, com o privilégio de ter o rei em seu seio.

    As comunicações terrestres ao longo do Brasil melhoraram extraordinariamente. O Rio de Janeiro tornou-se uma capital nevrálgica, de onde partiam estradas para todas as principais cidades de outras capitanias, como Belém do Pará, numa extensão de mais de 120 léguas, Salvador da Bahia, São Paulo, Vila Rica, Sabará, Vila do Príncipe, Vila Boa de Goiás e tantas outras, tornando-se assim uma alternativa segura e confiável ao transporte marítimo.

    Por outro lado, longe de ser um rei autoritário, D. João VI sempre surpreendeu com sua atitude conciliadora e atenciosa. Mesmo quando aportou pela primeira vez no Brasil, em Salvador da Bahia, chegado de uma longa e acidentada travessia atlântica, recebeu em audiência toda a casta de gente, desde agricultores e negociantes até oficiais e padres, inclusive as pessoas mais humildes. Nem sempre era rápido em se decidir, o que por vezes parecia denotar pouca firmeza; mas, porventura, assim procedia por pensar menos naquilo que era melhor para si mesmo.

    Também nunca mostrou ser um rei atormentado ou traumatizado por ser o primeiro monarca português a se refugiar fora de seus domínios europeus. Pelo contrário, além da decisão imediata à sua chegada ao Rio de Janeiro de invadir a Guiana Francesa[2],

    Partida da Corte Portuguesa para o Brasil,em 1808.

    D. João VI soube aproveitar as fragilidades e dificuldades da Coroa espanhola na gestão das colônias americanas. Por via de seu casamento com uma infanta castelhana, D. Carlota Joaquina, filha do deposto Carlos IV, tentou no início da segunda década do século XIX, através de ações diplomáticas, mescladas de atitudes por vezes intimatórias, que as autoridades coloniais da região do Rio da Prata, na atual Argentina, aceitassem a proteção lusitana. Porém, alguns erros estratégicos, bem como certa rebeldia de D. Carlota Joaquina, gorariam a concretização desse plano.

    Em todo o caso, D. João VI queria mesmo seu quinhão na região meridional. E apostou assim na região onde Portugal até já tivera um pequeno enclave no meio do território espanhol: Sacramento. De fato, desde meados do século XVII, Portugal tentara ocupar a margem esquerda do Rio da Prata por ser uma área de acesso aos rios Uruguai e Paraná. Embora na margem direita já se localizasse a cidade de Buenos Aires, os espanhóis não tinham considerado a ocupação do outro lado prioritária. Mas como pelo Tratado de Tordesilhas aquele pedaço de terra lhe pertenceria, também não queriam portugueses por lá.

    No entanto, quase quatro décadas após a Restauração da Independência, no fim de 1679, o governador da capitania do Rio de Janeiro, Manuel Lobo, foi incumbido de fundar uma fortaleza na margem oposta a Buenos Aires. Na boca do lobo, se assim se pode dizer. Poucos meses após a instalação de um pequeno forte na ilhota de São Gabriel, que deveria constituir o primeiro baluarte para uma posterior ocupação terrestre, o governador de Buenos Aires, José de Garro, enviou um grande contingente naval. Eram centenas de soldados espanhóis auxiliados por três mil índios guaranis.

    Perante o fraco contingente português, assistiu-se a um massacre naquela passagem de 8 para 9 de agosto, tristemente conhecida como Noite Trágica. “Não se dava quartel aos que se rendiam as armas pelos índios […], a nenhum dos quais perdoou a fúria gentílica”, escreveu Manuel Lobo. Morreram 112 portugueses, a que se seguiu o habitual saque, executado, sobretudo, pelos indígenas. “E não foi pouco, pois todos perdemos tudo”, como se lamentou o malfadado governador português, que veio a morrer, poucos anos mais tarde, ainda prisioneiro em Buenos Aires.

    Retrato de D. João VI, pintado por Jean-Baptiste Debret (1817).

    Os desejos lusitanos não amainaram, apesar do vexame. Procuraram então a via diplomática. Em 1681, um tratado provisório entre os dois reinos ibéricos acabaria assim concedendo o direito a Portugal de construir naquela região uma cidadela de terra e madeira, com baluarte, fosso e tudo mais. E assim nasceria a colônia de Sacramento.

    Porém, os acordos de um dia, se desfaziam no outro. Sobretudo a partir de 1699 e até o final de 1716, os espanhóis arrependeram-se da concessão, atacando por diversas vezes o reduto lusitano.

    Com o tratado de Utrecht, Portugal garantiu o direito de permanência naquelas terras, iniciando-se então uma intensa migração de reinóis, sobretudo da província lusitana de Trás-os-Montes. Em 1730 já viviam ali mil famílias portuguesas, dedicando-se principalmente à exploração do gado e ao comércio de couros.

    Em todo o caso, embora tenha tentado, Portugal nunca conseguiu estender seus domínios na região cisplatina. Em 1723, ainda fundaram um povoado na atual cidade de Montevidéu, mas um ataque espanhol acabou com os sonhos expansionistas. Em suma, a colônia do Sacramento se manteria como um enclave, sempre sujeita ao mau humor dos castelhanos. Por exemplo, durante dois anos na década de 30, a cidade foi cercada por causa de um conflito diplomático entre as duas monarquias ibéricas.

    Porém, independentemente destas indisposições, a anarquia reinava mais do que os reis ibéricos na região cisplatina. O contrabando entre as margens do Rio da Prata era intenso, pois as colônias sul-americanas da Espanha estavam proibidas de importar certos produtos da Europa. A situação era aproveitada pelos portugueses para traficarem com comerciantes de Buenos Aires a troco de prata sem precisarem pagar impostos.

    Além disso, os roubos eram constantes. Os jesuítas, que desde o século XVII tinham instalado aldeias naquele trecho, exploravam extensas criações de gado, que, de quando em vez, eram dizimadas por aventureiros para roubar couro e outros produtos animais. Em poucos anos, de acordo com uma reclamação do Padre José de Aguirre, as manadas passaram de quatro milhões de animais para apenas trinta mil. Os padres da Companhia de Jesus ficaram fartos de tanta roubalheira e começaram a dar o troco. Armando os índios guaranis, fizeram diversas incursões e saques em estâncias de muitos aventureiros.

    Através da assinatura do Tratado de Madri, em 1750, a colônia de Sacramento deveria ter sido entregue aos espanhóis em troca das terras de Sete Povos das Missões, mas a subsequente Guerra Guaranítica, e o desinteresse do futuro marquês de Pombal em abrir mão do enclave, fez tudo voltar à estaca zero[3]. Ou, melhor dizendo, o jogo de pingue-pongue continuou. Durante os conflitos da Guerra dos Sete Anos, que extravasou para a Península Ibérica em 1762, a Espanha decidiu, e conseguiu, expulsar os portugueses da Cisplatina, tomando ainda uma parte do Rio Grande do Sul e da ilha de Santa Catarina. Um ano mais tarde, com o Tratado de Paris, a colônia do Sacramento regressou à posse dos portugueses. E, finalmente, em 1777, com novo acordo de paz, neste caso de Ildefonso, os espanhóis ganharam a colônia de Sacramento.

    Partida da Corte Portuguesa para o Brasil,em 1808.

    E era assim que estavam as coisas quando D. João VI chegou ao Brasil. Porém, três anos mais tarde, em 1811, as diversas insurreições na região transplatina obrigaram as autoridades coloniais espanholas a recuar para Montevidéu sob pressão de José Gervasio Artigas, um dos generais das recém-criadas Províncias Unidas do Rio da Prata. No Rio de Janeiro, D. João VI predispôs-se logo a ajudar os castelhanos. Por interesses próprios, diga-se de passagem.

    No trono da Espanha sentava-se então o irmão de Napoleão Bonaparte, e a intenção do regente português não era propriamente auxiliá-lo. Queria sim ganhar adeptos na região para o partido de sua mulher, Carlota Joaquina. Como era irmã do rei deposto espanhol, Fernando VII, pretendia Portugal que ela fosse aceita como tutora da Cisplatina, o que significaria sua integração a Portugal.

    Formalmente, D. João VI não entrou em guerra contra as tropas de Artigas, nem apoiou diretamente o lado castelhano. Sob orientação do recém-nomeado capitão-general da capitania do Rio Grande do Sul, Diogo de Sousa, o contingente português tinha uma denominação eufemística: Exército de Observação, ou também Exército de Pacificação da Banda Oriental. No entanto, desde cedo e desde sempre mostraram atitudes hostis. Constituídos por diversas legiões de militares e de voluntários paulistas e gaúchos – capitaneadas por Manuel Marques de Sousa, Fonseca e Sá, Joaquim Xavier Curado e Mena Barreto –, os portugueses investiram fortemente em colunas ou ataques esporádicos, logo conquistando muitos bastiões dos homens de Artigas.

    Aguarela de Jean-Baptiste Debret retratando as tropas brasileiras que invadiram a Cisplatina em 1816.

    Talvez os portugueses tivessem conseguido, com estas investidas, controlar de imediato toda a Cisplatina, se não surgisse, neste meio tempo, um armistício, assinado em outubro de 1811 entre as autoridades espanholas e as Províncias Unidas do Rio da Prata. De qualquer modo, as tropas lusitanas não mostraram interesse em sair da região. Ao contrário, reforçaram os batalhões, que chegaram a atingir mais de cinco mil homens munidos com quase duzentos canhões.

    Somente em maio de 1812, através do tratado conhecido como Rademaker-Herrera, intermediado pelos ingleses, a trégua seria selada com a nova república revolucionária cisplatina. No entanto, como consequência, D. João VI conseguira integrar para o território brasileiro os atuais municípios gaúchos de Uruguayana, Quaraí, Santana do Livramento, Alegrete e ainda parte de Rosário do Sul e Dom Pedrito.

    Mas a coisa não parou por aí. Quatro anos mais tarde, os tempos já eram outros. Napoleão tombara, os territórios da Península Ibérica tinham se libertado definitivamente do jugo francês, mas D. João VI continuava com ideias expansionistas, aproveitando o desmantelamento do império espanhol. Em 1816, a Espanha já deixara de controlar a Cisplatina, dominada então por Jose Gervasio Artigas, que neste meio tempo entrara em rota de colisão com os outros líderes das Províncias Unidas do Rio da Prata. Em suma, desejava a autonomia completa da margem esquerda do Rio da Prata. Ou seja, a independência.

    red flowers in bloom
    Antes de se tornar independente, o Uruguai esteve integrado no Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, por conquista de D. João VI.

    Sabendo das fraquezas de Artigas, D. João VI ordenou ao marechal Carlos Frederico Lecor, comandante da Divisão de Voluntários Reais, um ataque massivo à região cisplatina. Começou por Montevidéu, alargando depois as investidas para todo o território a leste do rio Uruguai. Sem grande dificuldade, as tropas lusitanas tomaram a estratégica fortaleza de Santa Teresa em agosto de 1816, avançando em seguida pela costa até Maldonado.

    As tropas de Artigas também se dirigiram aos tropeços para o interior, deixando os portugueses dominarem toda a região meridional do rio Negro, bem como a margem oriental do rio Uruguai. Em julho de 1821, a Cisplatina foi formalmente integrada no Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

    Enfim, tudo parecia estar correndo bem na vida de D. João VI. Para um rei supostamente medroso, em menos de uma década, ele conseguira transformar a geografia e o urbanismo do Brasil e até aumentar seus domínios ao norte e ao sul[4]. Nem parecia que ao seu redor as colônias espanholas entravam em colapso. Durante esse período, tivera de se preocupar apenas com uma insurreição em Pernambuco, no ano de 1817, mas logo abafada ao fim de três meses[5].

    Porém, não há mal que sempre dure, nem bem que não acabe. Durante este tempo, os portugueses europeus fartaram-se de ver seu rei no Rio de Janeiro. Ou melhor dizendo, em uma Europa em convulsão, os portugueses do Velho Mundo – que durante séculos se habituaram a explorar as colônias sul-americanas, africanas e asiáticas – ficaram perplexos ao se sentirem colonos em suas próprias terras. Na Europa, Portugal quase se transformara, depois das invasões napoleônicas, em um protetorado britânico.

    Com efeito, na ausência de D. João VI, o território lusitano passara a ser administrado por um conselho regente que, embora composto por portugueses, estava sujeito ao controle militar do marechal inglês William Carr Beresford. Também por via de acordos comerciais, a Inglaterra dominava os principais negócios, causando um mal-estar geral entre a população.

    Em 1817, a insatisfação teve um lampejo subversivo. Uma conspiração de caráter liberal e maçônica foi aniquilada em Lisboa, levando ao enforcamento de doze envolvidos, incluindo um renomado general. Se esta primeira tentativa de insurreição em Lisboa foi logo cortada, as raízes, no entanto, mantiveram-se fortes e despontariam cerca de três anos mais tarde na cidade do Porto.

    Aproveitando a ausência de Beresford – que se deslocara ao Rio de Janeiro para solicitar reforço de poder ao rei–, um movimento liderado pelos magistrados Manuel Fernandes Tomás e Ferreira Borges desencadeou, em 24 de agosto de 1820, uma revolução apoiada pelo exército, pela nobreza e pelo clero.

    Depondo as autoridades da cidade, criaram uma Junta Provisória do Governo Supremo. Através de um manifesto disseram o que queriam: o retorno imediato de D. João VI a Portugal e a reposição do Brasil ao estatuto de simples colônia. Em setembro daquele ano, Lisboa e todo o país adeririam ao movimento liberal. O marechal Beresford foi impedido de desembarcar, quando regressava do Brasil, e a situação política deixou de estar sob o controle do rei.

    Grito de Ipiranga de D. Pedro I do Brasil. Seria possível sem o papel de D. João VI?

    Apesar disso, esta revolução nunca teve características republicanas nem questionou a soberania de D. João VI; somente cerceava -lhe o poder absoluto – o que, diga-se de passagem, já era muito. Quando comunicaram o Rio de Janeiro sobre suas ações, os líderes do pronunciamento até pediram a bênção do rei “como bom, como benigno e como amante de um povo que o idolatra”.

    Embora as primeiras informações sobre a revolução no Porto tenham chegado ao Brasil em outubro, somente dois meses mais tarde, com a chegada do conde de Palmela ao Rio de Janeiro, a Corte tomou consciência da magnitude daqueles episódios. De fato, ao contrário do que talvez D. João VI poderia pensar, os revolucionários não exigiam apenas seu regresso a Portugal, mas, sobretudo, a realização de Cortes Gerais Extraordinárias para que uma carta constitucional de viés liberal fosse aprovada.

    Em suma, a figura do soberano português passaria a um papel secundário, quer no executivo ou legislativo. Obviamente, uma recusa de D. João VI poderia desencadear uma cisão de consequências imprevisíveis até mesmo no Brasil.

    D. João VI hesitou muito sobre qual direção tomar. Alguns de seus conselheiros, sobretudo Tomás Antônio Portugal, seu primeiro-ministro, advogaram que a família real deveria permanecer no Brasil, independentemente do rumo tomado em território europeu pelos revolucionários.

    yellow and blue dome post near trees

    Podia-se perder os anéis – o território europeu –, mas sempre restariam os dedos – ou seja, o Brasil –, repleto de recursos, ainda longe de estarem explorados. A hipótese de ser o infante D. Pedro a atravessar o Atlântico para presidir às Cortes Extraordinárias, e apaziguar os ânimos, começou a ser levantada no fim de janeiro, mas o rei hesitou também em tomar uma decisão.

    Os receios transmitidos pelo conde de Palmela sobre os riscos dos movimentos liberais lusitanos se alastrarem no Brasil foram confirmados com novos acontecimentos. Em 10 de Fevereiro de 1821, em Salvador da Bahia, um grupo liderado pelo médico Cipriano Barata, que contava com diversos militares, exigiu também a limitação dos poderes do rei, propondo uma constituição semelhante à desejada pelas Cortes em Lisboa. E criticavam também a centralização do Rio de Janeiro em relação às outras regiões brasileiras.

    Já com pouca margem de manobra, D. João VI tentou, por fim, convencer o infante D. Pedro a partir, em vez de ir ele mesmo. E não era apenas por apreciar a cidade carioca. Na verdade, com certeza sabia que sua presença no Rio de Janeiro e a de seu herdeiro em Lisboa garantiriam um melhor controle dos acontecimentos. Se já era certo que as Cortes Extraordinárias iriam retirar seu poder absoluto, sempre lhe seria mais fácil, estando no Rio de Janeiro, gerenciar a nova situação política e controlar focos subversivos no Brasil. No limite, caso em Lisboa a corda esticasse, teria ele refletido sobre uma cisão. Ou seja, perderia Portugal, mas permaneceria sendo rei do Brasil. Porém, o infante D. Pedro recusou esta pretensão.

    . D. Miguel, D.João VI e D. Pedro I do Brasil (e IV de Portugal), retratados por Enio Squeff.

    E após mais muitas indecisões, o rei acabou decidindo voltar a Lisboa com toda a família real, exceto o infante D. Pedro, que se manteve no Rio de Janeiro como regente. D. João VI rumou para Portugal em 26 de abril de 1821 em um contexto já explosivo, inclusive na cidade carioca. Quatro dias antes, um grupo de radicais, que participava numa assembleia na praça do comércio da bolsa fluminense, teve de ser repelido a tiros. Na hora da despedida, D. João VI já profetizava o futuro, quando disse ao filho: “Pedro, se o Brasil se separar [de Portugal], antes seja para ti, que me hás-de respeitar, do que para algum desses aventureiros”.

    O rei ancorou em Lisboa cerca de dois meses e meio depois, em 3 julho, juntamente com quatro mil pessoas. Não foi uma chegada triunfal. Embora as ruas da capital estivessem decoradas e três noites de festas com luminárias tivessem sido organizadas, incluindo o habitual beija-mão, o ambiente não se mostrou muito caloroso. Havia muito ressentimento no ar, não apenas pela longa ausência do rei, mas também pelas muitas benesses que concedera aos brasileiros, nos últimos anos, em detrimento dos lusitanos.

    Além disso, com a demora na partida, D. João VI se viu em um caldo político ainda mais desfavorável, porque as Cortes Extraordinárias não esperaram por ele e a Carta Constitucional já tinha sido aprovada. Além disso, as reuniões entre os deputados lusitanos e a centena de representantes brasileiros, que para Lisboa tinham rumado, abriram ainda mais as feridas.

    Pintura de Óscare Pereira da Silva retratando as Cortes Constituintes de 1820 em Portugal.

    Enquanto a facção lusitana exigia a reversão do Brasil à antiga condição de colônia, a ala brasileira reivindicava tratamento igualitário. Sem nenhum espaço para manobra, nem podendo sequer ser árbitro, o rei fora, por mais que estrebuchasse, reduzido à mera figura simbólica. Nada lhe restara além de assinar a Carta Constitucional. Ou assinava, ou era deposto. E assinou, em julho daquele ano.

    A completa subalternização do rei acentuou-se ainda mais nos meses seguintes, chegando ao ponto de a regência do infante D. Pedro no Brasil ter sido retirada pelas Cortes. Exigiram também seu regresso a Lisboa. Começou uma queda de braço nos dois lados do Atlântico. Dando seguimento à assinatura da Carta Constitucional, e para pressionar o infante, seriam reforçados os batalhões militares portugueses de Pernambuco e da Bahia.

    O governador desta última região, bem como o do Maranhão, majoritariamente dominadas por reinóis, passaram a recusar ordens diretas do infante. O descontentamento nas demais regiões do Brasil também aumentou. Por sua vez, D. Pedro, como herdeiro de Portugal, indisposto com a nova realidade em Lisboa, sentia-se cada vez mais humilhado e pouco disposto a acatar ordens.

    mountains near ocean under white clouds during daytime

    Contudo, apesar de seu espírito aventureiro, irrequieto, voluntarioso e resoluto – muito diferente do pai –, o infante não desejava dar o passo que uma boa parte dos brasileiros já ambicionava: a independência do Brasil. Em setembro de 1821, em uma carta endereçada ao pai, escreveu que os movimentos em prol da emancipação o pressionavam para que aceitasse a aclamação como imperador, mas que jamais aceitaria essa solução. Só “depois de eu e todos os portugueses estarem feitos em postas”, reiterava. Terminava essa missiva com uma garantia: “juro ser sempre fiel a Vossa Majestade e à Nação e à Constituição Portuguesa”.

    Nunca se deve dizer desta água não beberei, porque quando a sede aperta não há força que lhe resista. Porém, se D. Pedro parece ter depois negado o juramento feito à Nação portuguesa e à sua Constituição, ditada por uma Corte rancorosa em relação aos interesses brasileiros, não se pode dizer, por outro lado, que foi infiel ao pai. Pelo contrário. Talvez mais do que o abaixo-assinado de oito mil fluminenses que o levaram, em 10 de janeiro de 1822, a proclamar a célebre frase: “como é para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto; diga ao povo que fico”, talvez tenha pesado mais a troca de cartas mantida com D. João VI.

    Com efeito, mesmo tolhido pelos ventos revolucionários, o rei português mostrava uma grande lucidez. Se na hora de sua partida do Rio de Janeiro já pressagiara a independência do Brasil, os meses em Lisboa o convenceram ainda mais de que este seria o caminho, se levado obviamente a cabo por seu filho. No fim de 1821, instigou-o implicitamente a avançar. “Sê hábil e prudente”, escreveu D. João VI ao infante, “pois aqui, nas Cortes, conspiram contra ti, querendo os reacionários que abdiques em favor do teu mano Miguel[6]. Tua mãe é pelo Miguel e eu, que te quero, nada posso fazer contra os carbonários que não te querem”.

    white and blue paper on brown textile

    Depois do Dia do Fico, o rumo em direção à independência avançou de forma imparável. Ainda em janeiro de 1822, ignorando um ultimato das Cortes, D. Pedro nomeou novos ministros para a regência, dentre eles, José Bonifácio de Andrada e Silva, que se tornaria um de seus mais influentes conselheiros. No mês seguinte, responsabilizando as tropas portuguesas pela morte de seu filho João Carlos Pedro[7], liderou pessoalmente um cerco ao batalhão do general português Jorge Avilez, acampado na região de Niterói, conseguindo sua expulsão.

    A partir de então, ordenou que qualquer ordem vinda de Lisboa somente fosse distribuída no Rio de Janeiro após sua concordância. Exigiu também que todos os governos ou juntas das outras regiões brasileiras lhe obedecessem. Por fim, criou um Conselho de Procuradores, uma espécie de assembleia constituinte. Sobre todos os detalhes, D. Pedro informou D. João VI em carta particular, não como um regente para um rei, mas de filho para pai.

    A independência já estava, então, na fase embrionária, embora ainda não declarada. D. Pedro decidiu primeiro viajar para Minas Gerais e para São Paulo com o objetivo de reconfirmar apoios e sentir o que pensava o povo. Em setembro daquele ano, nas imediações de São Paulo, perto do riacho do Ipiranga, recebeu vasta correspondência das Cortes de Lisboa, em tons ainda mais ameaçadores. E também uma carta anexa de Andrada e Silva que lhe dizia: “Senhor, o dado está lançado e de Portugal não temos a esperar senão escravidão e horrores. Venha Vossa Alteza Real [até o Rio de Janeiro] e decida-se.” Não foi; decidiu logo ali, naquela tarde do dia 7 de setembro de 1822, proferindo o célebre Grito do Ipiranga: “Independência ou Morte”. O Brasil estava independente.

    Primeira bandeira do Brasil após a independência em 1822.

    A adesão das diversas regiões à aclamação de D. Pedro como primeiro imperador do Brasil não foi imediata; pelo contrário. Na Bahia, um forte contingente português, liderado por Madeira de Melo, já desde março de 1822 dominava a capitania. E bateu o pé diante do Grito de Ipiranga. Foi osso duro de roer. Com um número reduzido de tropas fiéis à nova nação, pois os batalhões militares estacionados no Brasil eram, sobretudo, provenientes de Portugal, D. Pedro viu-se obrigado a contratar mercenários. Grande parte veio da Inglaterra, como Thomas Cochrane, famoso por suas ousadas campanhas navais.

    Conhecido como “o Lobo dos Mares”, foi logo nomeado primeiro-almirante do Brasil, desempenhando um papel vital na organização dos combates que levariam, em 2 de julho de 1823, à difícil renúncia de Madeira de Melo. Pouco meses antes, a resistência à integração do Pará, Maranhão e Piauí também tinha sido aniquilada, por vezes de forma sangrenta. O mesmo se passou na Cisplatina. Depois de alguns confrontos, D. Pedro acabou sendo aclamado em Montevidéu no início de 1824.

    Mais problemática se mostrou a região pernambucana. Historicamente imbuídas de espírito autonomista, como se vira recentemente em 1817, as elites não se mostraram predispostas a aderir a qualquer um dos lados; nem a Portugal nem ao Brasil. Muitos idealizaram sua emancipação, dentro do contexto de certa anarquia, mas com um viés republicano. Assim, tendo como mentor o carmelita Joaquim da Silva Rabelo, popularmente conhecido como Frei Caneca, arquitetaram a criação da Confederação do Equador. Proclamada em 2 de julho de 1824, a nova nação foi subjugada poucos meses depois.

    Mapa do Brasil publicado em 1849.

    Consolidada a independência do Brasil, faltava o seu reconhecimento. Os Estados Unidos foram o primeiro país a fazê-lo, logo em maio de 1824. Porém, as diversas nações mundiais aguardaram por mais desenvolvimentos que clarificassem a estranha gênese desta emancipação. Afinal, apesar da Constituição do Brasil impedir seu imperador de governar outro país, para todos os efeitos D. João VI mantinha D. Pedro I como seu herdeiro em Portugal; e D. Pedro não renegara ainda esse estatuto.

    A Inglaterra, desejando estreitar relações comerciais com o Brasil, predispôs-se então a mediar uma solução diplomática, enviando o embaixador Charles Smith ao Rio de Janeiro. A proposta britânica inicial, articulada em segredo com Portugal, passava por um reconhecimento imediato desde que a independência fosse assumida como uma “doação” do rei D. João VI ao seu filho. Em uma primeira fase, D. Pedro negou essa solução de forma categórica. Contudo, a habilidade britânica acabou conseguindo um acordo que, na verdade, se mostrou extremamente desvantajoso para o Brasil, embora favorável ao seu imperador.

    De fato, nas negociações, além do reconhecimento simultâneo da independência brasileira por Portugal e Inglaterra, D. João VI aceitou que o herdeiro ao trono lusitano passasse a ser sua neta, a infanta Maria, filha do imperador D. Pedro I, que então tinha apenas seis anos[8]. Porém, em troca destas concessões, o Brasil obrigou-se a pagar uma indenização de dois milhões de libras esterlinas – obtidas por um empréstimo bancário inglês –, além de outorgar benefícios especiais ao comércio britânico. Para evitar qualquer integração de outras colônias portuguesas, nomeadamente africanas – a principal “fonte” de escravos –, o Brasil também se comprometeu a não ter uma política expansionista contra Portugal.

    Imperador Pedro II e família, segundo monarca do Brasil, desde 1840 até 1889.

    Depois disso, com um mau ou péssimo acordo, o Brasil iniciou finalmente sua viagem pelo tempo como país independente. Não sem sobressaltos, pois teve muitos, mas conseguindo manter quase imaculadas suas fronteiras do tempo colonial. De fato, com exceção da perda da Cisplatina, que originaria o Uruguai em 1828 – por via de uma negociação intermediada pelos ingleses –, da incorporação do Acre – “adquirido” da Bolívia no início do século XX – e de pequenos acertos diplomáticos com os países vizinhos, o Brasil permanece ainda hoje unido e federalista, como D. João VI e D. Pedro I o idealizaram[9].

    E, claro, somando, como todos os países, e já sem poder culpar os antigos colonizadores, infinitos conflitos e insurreições, carnificinas e selvagerias, despotismos e ditaduras, injustiças e perversões.

    Mas relatar com pormenor esses sempre trágicos episódios ficará para outros carnavais, e por conta de outros escribas. Um português se meter com a História do Brasil colonial, até que tudo bem; agora, na História do Brasil independente, já seria meter o bedelho onde não se foi chamado. Ou, como se diria em terras lusitanas, meter foice em seara alheia.


    [1] – Antes da invasão a Portugal, Napoleão e o rei Carlos IV da Espanha “decidiram” a divisão do território lusitano: a província de Entre Douro e Minho, incluindo a cidade do Porto, destinava-se a Carlos Luís, neto do rei espanhol (como compensação pela anexação do efêmero reino da Etrúria, que tinha Florença como capital), sob a denominação de Lusitânia Setentrional; o Alentejo e Algarve ficariam nas mãos de Manuel Godoy, duque de Alcudia e primeiro-ministro espanhol, sob a denominação de Principado dos Algarves; e a restante região seria depois distribuída entre a França e a Espanha. Ficou também estabelecido que estas duas nações decidiriam posteriormente a “igual divisão das ilhas, colônias e outras possessões ultramarinas de Portugal”.

    [2] – Ver o capítulo “A vingança servida quente” (pág. XXX).

    [3] – Ver o capítulo “Um acordo para um real pesadelo” (pág. XXX).

    [4] – A Guiana Francesa, conquistada logo em 1808, veio, contudo, a ser devolvida aos franceses, depois da queda de Napoleão. Ver o capítulo “A vingança servida quente” (pág. XXX).

    [5] – Ver o capítulo “A república tingida de sangue” (pág. XXX).

    [6] – D. Miguel, terceiro filho de D. João VI e D. Carlota Joaquina, viria a participar ativamente em dois movimentos contrarrevolucionários em Portugal para o estabelecimento do regime absolutista em 1823 (Vilafrancada) e no ano seguinte (Abrilada). Ele chegou a tentar obrigar o pai a abdicar. Foi exilado em Viena, regressando em 1828 para se casar com sua sobrinha, D. Maria II, filha de D. Pedro I do Brasil, e se impôs em seguida como rei absoluto de Portugal. Como resultado, uma guerra civil eclodiu, perdurando até 1834 com a recondução ao trono de D. Maria II. Para este desfecho a participação do imperador D. Pedro I, que voltou a Portugal após abdicar do trono brasileiro em 1831, foi essencial.

    [7] – Após o Dia do Fico, as hostilidades com as tropas fiéis a Portugal só aumentaram, obrigando o infante D. Pedro a enviar sua família para Santa Cruz. Durante a viagem, seu pequeno filho, ainda com menos de um ano de idade, adoeceu gravemente e acabou morrendo. O infante escreveria, mais tarde, ao rei D. João VI que foi “a divisão auxiliar [o batalhão português no Rio de Janeiro] que assassinou o príncipe, o neto de Vossa Majestade”.

    [8] – A infanta D. Maria, que se tornou a rainha D. Maria II, nascera e vivia então no Rio de Janeiro. Apenas partiu para Portugal após a morte do rei D. João VI em março de 1826. Por razões estranhas, D. Pedro I do Brasil concordou com o casamento da filha com seu irmão D. Miguel, que se encontrava exilado em Viena. Uma péssima decisão – como muitas outras que D. Pedro I haveria de tomar até abdicar do trono brasileiro –, porque D. Miguel, apesar de ser apenas um rei consorte, usurparia o trono português, desencadeando uma guerra civil.

    [10] – Além de conflitos armados com outras nações e insurreições políticas, o Brasil assistiu ao longo do século XIX a alguns movimentos separatistas, que resultaram em estados efêmeros, nomeadamente no Rio Grande do Sul (República Rio-Grandense, 1836-1846), Salvador (República Bahiana, 1837-1838), e Santa Catarina (República Juliana, durante menos de quatro meses em 1839).

  • Associação de médicos de Saúde Pública “lança-se nos braços” das farmacêuticas

    Associação de médicos de Saúde Pública “lança-se nos braços” das farmacêuticas

    Com a pandemia, a discreta Associação Nacional de Saúde Pública (ANMSP) foi ganhando projecção. Ricardo Mexia, presidente desde 2016, conseguiu com as suas aparições nos media alcançar um estatuto público que o ajudou a chegar a presidente da Junta de Freguesia do Lumiar. Já o seu substituto, Tato Borges, conseguiu algo que nunca tivera antes do cargo: já acumulou, desde Novembro, quatro apoios financeiros da Pfizer, incluindo uma viagem ao Canadá para um congresso. E a própria ANMSP está a atrair cada vez mais patrocínios do sector farmacêutico. A associação diz que está tudo dentro da lei e garante manter-se independente.


    Desde que assumiu a presidência da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública (ANMSP), Gustavo Tato Borges tem acumulado relações comerciais com a Pfizer, uma das farmacêuticas com maior facturação à conta da pandemia, através das vacinas Comirnaty e do antiviral Paxlovid.

    De acordo com a Plataforma da Transparência e Publicidade, este médico – que trabalha actualmente na Administração Regional de Saúde do Norte – não tinha qualquer registo de recebimento de financiamentos de farmacêuticas entre 2013 e finais do ano passado, mas tornou-se “apelativo” ao assumir a liderança desta associação há exactamente um ano, quando substituiu Ricardo Mexia, entretanto eleito líder presidente da Junta de Freguesia do Lumiar, em Lisboa.

    Ricardo Mexia, à esquerda, durante o último congresso da ANMSP em Novembro do ano passado, em Amarante.

    Tato Borges, que era então vice de Mexia, começou a capitalizar o interesse da Pfizer, que lhe pagou 1.000 euros por um dia de consultadoria. Este ano, entretanto, a farmacêutica norte-americana consolidou a parceria com o médico, por três ocasiões: primeira, no 15º Encontro Pfizer Vacinas, que se realizou em 7 e 8 de Maio em Tróia, no valor de 553 euros; segunda, por uma palestra no Encontro Pfizer 2022, no valor de 1.000 euros; e a terceira, mais substancial: um cheque de 5.757 para custear a participação num congresso internacional de doenças pneumocócicas entre 19 e 23 de Junho na cidade canadiana de Toronto.

    Mas não tem sido só pessoalmente Tato Borges a beneficiar deste interesse da Pfizer. Também a ANMSO – criada em 1987 e que mantém a sua sede na Ordem dos Médicos, na Avenida Gago Coutinho, em Lisboa – tem começado a ser olhada com maior interesse pela indústria farmacêutica, sobretudo as empresas com interesses comerciais em redor da pandemia.

    Exemplo paradigmático foi o último congresso desta associação, que se realizou em Novembro do ano passado em Amarante: contou com o apoio financeiro da Merck Sharp & Dohme (produtora do antiviral molnupiravir), Pfizer (vacina e antiviral Paxlovid), Gilead (antiviral remdesivir), Johnson & Johnson (vacina, através da subsidiária europeia Janssen) e Roche (esta a única sem interesses relevantes no combate ao SARS-CoV-2).

    Tato Borges começou a facturar da Pfizer logo a seguir a assumir a presidência da ANMSP. Uma “coincidência”, diz a associação.

    Entre este congresso e pagamento de outros eventos – como seja em concreto o pagamento de 7.800 euros para uma acção descrita como “Apoio realização de trabalhos no âmbito da vacinação” (sic) –, a ANMP recebeu no ano passado 17.800 euros. Já contabilizados este ano encontram-se apoios da AbbVie (11.070 euros), da Janssen Cilag (3.000 euros), Merck Sharp & Dohme (10.990 euros), Pfizer (8.000 euros), Gilead (3.690 euros) e Roche (5.000 euros).

    Em oito meses de 2022, a ANMSP já recebeu assim 41.750 euros, um valor que contrasta com montantes muito mais modestos no primeiro ano da pandemia (15.900 euros, em 2020) e sobretudo antes da pandemia: entre 2013 e 2019 somente conseguiu “atrair” da indústria farmacêutica um total de 11.530 euros, uma média de 1.650 euros por ano.

    Contactado por e-mail pelo PÁGINA UM, Tato Borges respondeu através da Direcção da ANMSP, em que esclarece que “os apoios recebidos da indústria farmacêuticas estão enquadrados em normativos legais definidos para promover a transparência”, vincando ser esta associação uma “sociedade científica privada e independente”.

    Agradecimento na página do Facebook da ANMSP aos parceiros que financiaram o seu congresso, entre as quais quatro farmacêuticas com fortes negócios em redor da pandemia.

    Quanto ao facto de os apoios financeiros da Pfizer a Tato Borges terem começado a fluir apenas após o início da liderança da associação, a ANMSP diz tratar-se de uma “coincidência e [que] qualquer leitura para além desta é falaciosa”.

    A ANMSP diz também que os apoios da Pfizer atribuídos a Tato Borges como médico, e não como dirigente associativo, “não condicionam a sua actividade profissional ou associativos, nem têm impacto nas actividades desta associação”.

    Em todo o caso, saliente-se que Tato Borges tem sido particularmente activo na defesa de medidas não-farmacológicas contra a covid-19, como o uso de máscaras na actual fase endémica do vírus, e tem contribuído para a manutenção de uma tensão de permanente alarme, nomeadamente na população estudantil, onde em Portugal a covid-19 jamais foi um problema de Saúde Pública. 

    Recorde-se que, no nosso país, morreram sete pessoas com menos de 25 anos (que representam cerca de 2,5 milhões de habitantes) por covid-19, a última das quais em Janeiro deste ano (uma jovem entre os 15 e os 24 anos).

    E saliente-se ainda que, na sua resposta ao PÁGINA UM, a ANMSP diz ainda que “não pode deixar de lamentar que o Sr. Jornalista [Pedro Almeida Vieira] tenha procurado esclarecimentos no próprio dia em que vai publicar uma determinada matéria, pois isso revela que não pretende esclarecer estes assuntos, mas sim poder afirmar que as entidades foram questionadas e não responderam, sem intenção de apurar a verdade”.


    N.D. Efectivamente, o PÁGINA UM enviou um e-mail às 01:14 de hoje para a ANMSP, e um segundo e-mail para o endereço profissional de Tato Borges pelas 09:42 horas, onde além das questões se referia o seguinte: “Alerto que, independentemente dos seus esclarecimentos, que desde já muito agradeço, e uma vez que estamos perante factos públicos, escreverei sobre esta matéria nesta terça-feira.” A resposta da ANMSP chegou às 10:52 horas, e obviamente foi incluída, por ter sido sempre esse o objectivo inicial.

  • Um editorial que existe porque a censura cega e absurda no Facebook ainda prevalece em 2022

    Um editorial que existe porque a censura cega e absurda no Facebook ainda prevalece em 2022


    Este editorial não deveria existir. Esta tarde, pelas 16:21 horas, recebi uma notificação do Facebook: “A tua publicação desrespeita os nossos padrões da Comunidade sobre informações incorrectas sobre vacinas”.

    Que tinha eu feito? Publiquei umas breves notas, com a correspondente ligação, sobre um interessante artigo científico – repito: artigo científico – publicado no dia 31 de Agosto na revista Vaccine da autoria de sete investigadores dos Estados Unidos (cinco), Austrália e Espanha. O artigo tem o sugestivo título: “Serious adverse events of special interest following mRNA COVID-19 vaccination in randomized trials in adults.”

    Alertava apenas para as principais conclusões, e as desconformidades com o que as farmacêuticas apontavam inicialmente e o próprio regulador norte-americano (FDA) em relação às vacinas contra a covid-19, salientando que o artigo surgia com base em dados (ainda não integrais) libertados pela Pfizer e Moderna, após uma carta aberta publicada no início do ano na revista científica BMJ.

    E relembrava também as dificuldades que o Infarmed tem colocado ao PÁGINA UM para aceder aos dados das reacções adversas às vacinas contra a covid-19 em Portugal.

    Este (mais um) caso de censura – que não afectou, por agora, a própria página do PÁGINA UM no Facebook, embora corra o risco de tal suceder, afectando a sua visibilidade – sucede à censura do vídeo da entrevista ao advogado Rui da Fonseca e Castro por parte do YouTube. A censura a um órgão de comunicação social, porventura porque esse órgão de comunicação social decidiu editorialmente entrevistar uma figura polémica (não seguiu a política do cancel) e o deixou falar livremente (mesmo se eu não concordasse com algumas das suas opiniões) sem censurar qualquer parte.

    grayscale photo of person running in panel paintings

    Nestes tempos que correm, a censura cega e absurda, que nem sequer admite o mínimo debate, torna o Mundo cada vez mais pobre e mais próximo de uma Ditadura. Em apenas dois anos e pouco perdemos décadas inteiras de tolerância, civilidade, Democracia e até Civilização.

    Deixo-vos o texto integral censurado pelo Facebook. Não há já muito a dizer, excepto reiterar que se mantivermos a postura obediente e não-reactiva às redes sociais e aos Governos que não os proíbem de instituir censura prévia, acordaremos um dia amordaçados e a praticar o mais castrante dos actos: a auto-censura.


    Texto censurado na página pessoal do Facebook

    (continha printscreens de diversos trechos dos artigos e cartas abertas)

    Em Janeiro, uma carta aberta na conceituada revista científica BMJ, onde pontificava Peter Doshi, clamava pela disponibilização de dados em bruto (raw data) dos testes das vacinas contra a covid-19 da Pfizer e Moderna. O PÁGINA UM abordou esse tema.

    Nem todos foram disponibilizados, mas alguns, o que permitiu uma análise independente agora publicada na revista Vaccine, tendo Peter Doshi como um dos autores.

    Os resultados são preocupantes, não apenas por mostrar que os efeitos adversos são mais frequentes do que os indicados pelas farmacêuticas, mas sobretudo por demonstrarem que a FDA subestimou (intencionalmente?) as suas análises, não exercendo com responsabilidade as suas funções de regulador.

    Tudo isto me faz relembrar que o PÁGINA UM anda, sozinho (com o apoio dos seus leitores, é certo) a exigir que o Infarmed liberte os dados nacionais das reacções adversas às vacinas. Os argumentos dos advogados do Infarmed no Tribunal Administrativo de Lisboa têm sido lastimáveis, e espero sinceramente, para bem da transparência, que não ganhem. Nota-se que têm receio de que se saiba a verdade.

    Entretanto, numa outra carta aberta na BMJ, um conjunto de sete cientistas, a pretexto do artigo da Vaccine, clamam para que a Pfizer e a Moderna libertem mesmo todos os dados, incluindo dados estratificados por idade. Não está aqui em causa a eficácia da vacina em algumas idades, mas sim a necessidade de uma correcta análise de benefícios-efeitos adversos.

    Aliás, ler a carta aberta destes cientistas mostra como a política e os interesses económicos das farmacêuticas sequestraram a Ciência.

  • Mortes de adolescentes e jovens adultos em forte tendência crescente desde Outubro

    Mortes de adolescentes e jovens adultos em forte tendência crescente desde Outubro

    Agregando em Portugal cerca de um milhão de pessoas (10% da população), os adolescentes e jovens adultos da faixa dos 15 aos 24 anos estão na “flor da vida” e são raras aqueles que se deixam levar pela morte, socialmente bastante sentidas. A pandemia da covid-19 não teve qualquer impacte directo neste grupo etário, mas algo está a suceder para que se esteja com um desvio de 22% da mortalidade face à média (2017-2021). Além disso, os números da mortalidade estão em tendência crescente desde o Outono passado. Agosto foi o mês mais letal desde que há registos diários (a partir de 2014). O Governo sobre nada disto fala.


    Agosto de 2022 foi o mês mais mortífero para os adolescentes e jovens adultos, da faixa etária dos 15 aos 24 anos, desde que o Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) começou a carrear informação detalhada, em 2014.

    De acordo com a análise do PÁGINA UM, no mês de Agosto, terminado na passada quarta-feira, contabilizaram-se 45 óbitos, tendo havido mesmo três dias (7, 10 e 22) em que se registaram quatro mortes neste grupo etário.

    A taxa de mortalidade nestas idades – abrange cerca de um milhão de pessoas – é extremamente baixa, mas certo é que, desde 2014, somente outros dois meses (Janeiro de 2017 e Julho de 2020, ambos com 43 óbitos) tinham ultrapassado a trágica fasquia dos 40 óbitos.

    silhouette of jumping people

    Porém, mais do que esse recorde, que poderia ser fruto da conjugação de diversos infortúnios, o passado mês de Agosto enquadra-se numa tendência crescente de mortalidade nesta faixa etária que se iniciou em Outubro do ano passado, sem mostrar sinais de inversão.

    Actualmente, considerando a evolução da média móvel da mortalidade anual – ou seja, o somatório dos óbitos nos últimos 12 meses anteriores –, Agosto de 2022 está num pico e sem dar sinais de abrandamento: 360 óbitos. Há um ano, em Agosto de 2021, encontrava-se nos 304.

    Em Outubro do ano passado chegou aos 297, mas a partir daí tem estado sempre a subir, mostrando uma evolução preocupante. A mortalidade acumulada nos oito meses de 2022 está cerca de 22% acima da média de 2017-2021, conforme divulgou ontem o PÁGINA UM.

    Evolução da mortalidade anual (12 meses) desde Dezembro de 2014 até Agosto de 2022 na faixa etária dos 15 aos 24 anos. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Embora não haja um padrão sazonal de mortalidade para esta faixa etária – como sucede com os mais idosos, onde as doenças de maior letalidade “atacam” mais no Inverno –, antes da pandemia a evolução da mortalidade anual manteve-se relativamente estável entre os 300 e os 355 óbitos.

    Com a chegada do SARS-CoV-2, observou-se de imediato um acréscimo na evolução da taxa de mortalidade anual, que passou de 301 óbitos em Fevereiro de 2020 para 345 em Outubro daquele ano.

    No entanto, jamais se pode argumentar que se deveu directamente à covid-19. Até Outubro de 2020 apenas tinha falecido uma pessoa com covid-19 na faixa etária dos 20 aos 29 anos. Na verdade, a hipótese mais provável será o efeito da fuga aos hospitais nos primeiros meses da pandemia ou o agravamento de determinadas doenças ou problemas que afectam mais esta faixa etária.

    Mortalidade acumulada até Agosto nos anos de 2014 a 2022 na faixa etária dos 15 aos 24 anos. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Causas concretas ignoram-se, porque as causas de morte discriminadas para 2020 nesta faixa etária não se encontram disponibilizadas de forma inteligível pelo Instituto Nacional de Estatística, e o Eurostat somente tem dados detalhados da mortalidade sobre Portugal até ao ano de 2019.

    Em todo o caso, a partir de Outubro de 2020, a mortalidade nos adolescente a partir dos 15 anos e jovens adultos até aos 24 anos teve uma evolução bastante favorável, a caminho de uma situação normal. Em Junho de 2021, a taxa de mortalidade anual encontrava-se num valor bastante baixo (294), mantendo-se num nível estável (e reduzido) até Outubro. A partir daí, não parou a mortalidade nesta faixa etária de subir.

    Causas de morte (por grupo segundo o CDI da OMS) na faixa etária dos 15 aos 24 anos em Portugal nos anos de 2014 a 2019. Fonte: Eurostat. Análise: PÁGINA UM.

    Todas as especulações sobre esta inusitada subida para níveis recorde são possíveis, porque, na verdade, o Ministério da Saúde mantém a recusa em disponibilizar os dados do SICO de 2020, 2021 e 2022 para conhecer quais foram as causas dos óbitos, o que permitiria, no caso do grupo etário dos 15 anos 24 anos, conhecer com rapidez quais os maiores desvios, através da comparação com anos anteriores.

    Saliente-se que, de acordo com os dados do Eurostat, entre 2014 e 2019, os acidentes de transporte foram a primeira causa de morte na faixa etária dos 15 aos 24 anos, mas apesar de se considerar que tem um peso muito relevante, representam porém apenas 24,8% do total (465 óbitos em 1.877). Bastante relevantes são as neoplasias que, apesar de raras nestas idades, são a causa de morte em 16,1% dos óbitos totais, seguindo-se os suicídios com 11,2%

    Acima dos 5%, estão as doenças do sistema nervoso (9,4% do total), do sistema circulatório (6,8%) e as quedas, afogamentos e outros acidentes (6,1%).


    N.D. O PÁGINA UM considera fundamental que o Ministério da Saúde revele os dados das causas de morte registadas no SICO, uma vez que permitem, de forma rápida, identificar os desvios que estão a ocorrer tanto no grupo etário dos 15 aos 24 anos como nos idosos, sobretudo a partir dos 85 anos. A manutenção de um injustificável obscurantismo, além de constituir uma inaceitável postura antidemocrática, possibilita todo o tipo de especulações. É a falta de informação fidedigna do Governo que, infelizmente, tem promovido a desinformação. O PÁGINA UM tem processos de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa no sentido de obrigar tanto o Ministério da Saúde como a ACSS a disponibilizar o SICO e a base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar.

  • Adolescentes e jovens adultos estão a morrer (muito) mais. Gerontocídio continuou em Agosto

    Adolescentes e jovens adultos estão a morrer (muito) mais. Gerontocídio continuou em Agosto

    Análise exclusiva do PÁGINA UM revela que o excesso de mortalidade continua imparável no grupo dos mais idosos (acima dos 85 anos) e está agravar-se entre a população em idade de reforma. Mas há ainda outro grupo etário onde se observa um inaudito agravamento da mortalidade: os adolescentes e jovens entre os 15 e os 24 anos, que apresenta um desvio de 22% face à média (2017-2021). A situação tem piorado inexplicavelmente desde Março em termos globais: em média, segundo os cálculos do PÁGINA UM, tem havido em Portugal 42 mortes a mais por dia.


    9.280 óbitos: este é o número, ainda provisório, do mês de Agosto que terminou esta quarta-feira. Definitivo já, porém, é este ter sido o Agosto mais letal desde 2003, mantendo uma série negra de excesso de mortalidade que parece interminável, e já se mostra estrutural, e nada é de conjuntural.

    Apesar de o mês passado ter sido o primeiro desde Novembro de 2021 abaixo dos 10 mil óbitos, os sinais estruturais de debilidade da população portuguesa em termos de Saúde Pública continuam evidentes – e pior ainda, consolidaram-se nos últimos seis meses. Em cada mês.

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    Conforme já destacado anteriormente pelo PÁGINA UM, o excesso de mortalidade observa-se sobretudo nos grupos etários mais elevados, mas detectam-se agora também, de forma indesmentível do ponto de vista estatístico, no grupo etário dos 15 aos 24 anos. O número de óbitos de adolescentes e jovens adultos é, particularmente este ano, e sobretudo desde Março, completamente inusitado, e nunca abordado ao longo deste ano pelo Governo e autoridades de Saúde.

    E, no entanto, tudo isto sucede no presente ano, 2022, que até aparentava vir a ser de alívio após dois anos de pandemia.

    De acordo com os dados preliminares do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), os meses de Janeiro e Fevereiro deste ano foram relativamente calmos: em comparação com a média (2017-2021) houve menos 2.374 óbitos. Mesmo excluindo da comparação o ano de 2021 (que registou mortalidade absolutamente anormal, no pico da pandemia), os dois primeiros meses de 2022 ficaram assim em níveis de letalidade dentro do expectável.

    Contudo, de repente, o excesso de mortalidade surgiu com a entrada do tempo primaveril, mantendo-se elevado pela época estival, e não dá sinais de parar. O Ministério da Saúde anunciou, no mês passado, um estudo a ser concluído em 2023, mas nem sequer é certo que inclua o período a partir de Março deste ano. Recorde-se que não são ainda conhecidas, em detalhe, todas as causas de morte discriminadas relativas ao ano de 2020 e de 2021.

    two men playing chess

    Mantendo-se o intencional mistério alimentado pelo Governo sobre a causa das mortes, porém os números totais não enganam: há um gravíssimo problema de Saúde Pública em Portugal, uma “herança” deixada pela pandemia e, muito provavelmente, pela gestão política do Serviço Nacional de Saúde (SNS), que secundarizou o diagnóstico e tratamento das outras doenças. De igual modo, o Governo e as autoridades de Saúde não colocam sequer a hipótese de se estudar a existência de qualquer relação causal entre os processos de vacinação contra a covid-19 e a prevalência de doenças letais sobretudo nos mais idosos.

    Certo é que as análises estatísticas do PÁGINA UM revelam um imparável aumento da mortalidade a partir do fim do Inverno: entre Março e Agosto, o excesso de mortalidade em 2022 foi de 7.769 óbitos face à média do período homólogo de 2017-2021.

    No período em análise, o ano de 2022 foi o primeiro em que se ultrapassou os 60 mil óbitos desde 1980 (ano com dados estatísticos acessíveis com facilidade). Para o presente ano, o SICO indica um total de 61.621 mortes entre Março e Agosto, ou seja, cerca de 335 mortes por dia.

    No ano passado não chegara, no período homólogo, aos 53 mil óbitos, e a média (2017-2021) ronda os 54 mil, isto é, uma média diária de 293, mesmo assim “puxada” pelos dois primeiros anos da pandemia (2020 e 2021). Assim, entre 1 de Março e 31 de Agosto, todos os dias tem, em média, ocorrido mais 42 mortes do que seria expectável. Todos os 184 dias.

    Mortalidade por grupo etário entre Janeiro e Agosto para os anos de 2017 a 2022. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM. Visualizar melhor, aqui.

    A dimensão dos números de 2022 é tão avassaladora que jamais se pode justificar com base na covid-19, em ondas de calor ou envelhecimento populacional. Aliás, devido à pandemia e ao quase contínuo excesso de mortalidade nos mais idosos, o grupo etário dos maiores de 85 anos até terá diminuído face ao período pré-pandemia.

    Embora em número total, 2022 ainda não tenha ultrapassado o morticínio de 2021 – marcado pelos meses de Janeiro e Fevereiro anormalmente letais, no pico da pandemia –, no caso dos maiores de 85 anos a situação deste ano tem sido absolutamente aterradora. Um autêntico gerontocídio, sobretudo por ser silenciado. Comparando com o período de 2017 a 2021 (que inclui, portanto o pico da pandemia), a mortalidade dos mais idosos (acima dos 85 anos) em 2022 já ultrapassa largamente a média: 37.538 vs. 33.273 óbitos, ou seja, mais 4.262. Mesmo face ao ano passado, os números de 2022 já o superam em 731 mortes.

    Se se considerarem apenas os últimos seis meses (Março a Agosto), a diferença entre 2022 e 2021 é avassaladora: mais 5.535 óbitos. Ou seja, entre 1 de Março e 31 de Agosto registaram-se este ano, em comparação ao ano passado, mais 30 cerimónias fúnebres por dia apenas de pessoas com mais de 85 anos. Todos os dias.

    Mortalidade por grupo etário entre Março e Agosto para os anos de 2017 a 2022. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM. Visualizar melhor, aqui.

    Este acréscimo de mortalidade na faixa dos maiores de 85 anos reforça-se pelo desvio relativo (face à média), em especial quando se restringe a uma análise aos últimos seis meses. Considerando o período de Janeiro a Agosto, a mortalidade neste grupo etário foi 12,8% superior à média (2017-2021), mas no período de Março a Agosto quase duplica, atingindo-se os 23,8%.

    Nos grupos etários imediatamente antecedentes, o acréscimo relativo é muito menor, embora também se observe uma intensificação nos últimos seis meses. No caso do grupo dos 75 aos 84 anos, contabiliza-se um acréscimo de 10,1% face à média no período de Março a Agosto, sendo de apenas de 2,3% se se incluírem os dois primeiros meses. No grupo dos 65 aos 74 anos o desvio é de 8,7% no período de Março a Agosto, e de 5,3% para todos os meses do ano. E no grupo dos 55 aos 64 anos o desvio é de 6,1% no período de Março a Agosto, embora somente de 2,9% se se incluir todos os oito meses.

    Note-se, contudo, que nestes grupos etários a mortalidade deste ano (Janeiro a Agosto) é ainda mais baixa do que a registada no ano passado, mas já é bastante superior se se analisar apenas o período a partir de Março, sobretudo nos maiores dos 65 anos, o que indicia que a tendência é 2022 vir a ser mais mortífero do que 2021.

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    Abaixo dos 55 anos, a situação deste ano – tal como ocorreu durante a pandemia – pode considerar-se normal. Ou seja, mortalidade dentro dos padrões normais quer comparando os anos de pandemia quer os anos de pré-pandemia. Mas com uma surpreendente e gravíssima excepção no grupo etário dos 15 aos 24 anos.

    Com efeito, se se comparar 2022 com o período 2017-2021 (tanto em termos médios como individualmente), os números de mortalidade geral abaixo dos 55 anos não surpreendem, se olhados em conjunto. Mesmo a mortalidade infantil deste ano, embora superior ao do ano passado (155 vs. 114), pode considerar-se “normal”, porque a subida se deveu a um número atípico (bastante baixo, mas difícil de manter) em 2021. De facto, o número de mortes de bebés em 2022 (até Agosto) é exactamente igual ao de 2020, e até bastante inferior aos anos de 2017 (163 óbitos), 2018 (200 óbitos) e 2019 (192 óbitos).  

    Mas se não existe um problema de Saúde Pública na mortalidade infantil – e até aos 14 anos –, nos adolescentes a partir daquela idade e nos jovens adultos (até aos 24 anos), já os números do SICO deveriam levar a tocar os sinos a rebate. Tanto mais que o padrão de mortalidade não se reflecte nos três grupos etários subsequentes (25-34 anos; 35-44 anos; e 45-54 anos) nem se mostra similar em dois dos três grupos precedentes (menos de 1 ano; e 5-14 anos) . No grupo dos 1 aos 4 anos, observa-se este ano um pequeno acréscimo absoluto face à média (4 óbitos), mas pouco relevante do ponto de vista estatístico, até porque se observam valores superiores em 2018.

    De facto, os alarmes devem ser dirigidos aos adolescentes e jovens adultos. Aqui há mesmo um problema incontornável. Segundo a análise do PÁGINA UM aos números do SICO, este ano (Janeiro a Agosto) registaram-se já 254 óbitos na faixa etária dos 14 aos 25 anos, o que contrasta com os 208 óbitos em média no período homólogo de 2017-2018. Estamos assim perante um desvio de 21,9%. Este ano morreram mais 46 jovens neste grupo etário do que em média. Face ao ano passado, essa diferença é de 48. Em relação a 2020 é de 21 óbitos, e comparando com 2018 é de 68.

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    Se se considerar o período a partir de Março, até Agosto, o desvio é ainda maior: 24,3% (mais 37 óbitos em seis meses) – e também contrasta com os valores dos grupos etários subsequentes (entre os 25 anos e os 54 anos) que registaram reduções da mortalidade face à média. Desde o início do Verão (21 de Junho) até finais de Agosto, o SICO regista a morte de 84 jovens (15-24 anos), o que contrasta com uma média de 69 para o mesmo período entre 2017 e 2021.

    Razões para esta dramática diferença – numa população na “flor da vida” – são desconhecidas. E continuarão se o Ministério da Saúde recusar divulgar os dados em bruto do SICO ao PÁGINA UM, para se conhecerem as causas de morte. E também se a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) mantiver online a “mutilada” base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar, impedindo assim de se perceber quais são as doenças que, de repente, estão a afectar (e a matar) mais na faixa dos 15 aos 24 anos.

    O PÁGINA UM tem processos de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa no sentido de obrigar tanto o Ministério da Saúde como a ACSS a disponibilizar essas bases de dados.

  • Um editorial que não deveria ter de existir

    Um editorial que não deveria ter de existir


    Hoje, pelas 19:30 horas, o PÁGINA UM publicará uma entrevista em exclusivo a Rui Fonseca e Castro, actual advogado e antigo juiz (expulso por decisão unânime do Conselho Superior da Magistratura), conduzida pelo jornalista Nuno André.

    Anunciar-se esta entrevista com antecipação não é acto que, num ambiente normal e num país de liberdade de expressão, devesse ocupar o espaço de um editorial, mesmo se estivesse em causa entrevistar quer o mais santo ser humano à face da Terra quer o mais facinoroso humanóide.

    Rui Fonseca e Castro

    Numa situação normal, um qualquer órgão de comunicação social publica as notícias dentro das suas capacidades e linha editorial, e sobretudo apresenta as entrevistas a pessoas que aceitam ser entrevistadas e que considera relevantes para os seus leitores.

    Até há algum tempo, existia um claro entendimento que uma entrevista ou um artigo de opinião de um colunista não emparelhava um órgão de comunicação social, embora até fosse aceitável, e por vezes assumido do ponto de vista editorial, uma influência ideológica.

    Isso mudou desde a pandemia. E prolongou-se com a guerra da Ucrânia.

    Hoje, o politicamente correcto, o wokismo, o jornalismo missionário – aquele tipo onde o pivot de um telejornal se vê no direito de dar raspanetes aos espectadores e de censurar hipotéticos comportamentos – inundaram a imprensa. Segue-se uma narrativa, cria-se um unanimismo, nada se faz que possa sequer abalar os alicerces das “convicções” jornalísticas. Não se arrisca, não se colocam geralmente ideias em confronto, e nas raras vezes que sucede é para meter uma das parte no pelourinho. Secam-se opiniões discordantes. Os resistentes são apelidados de extremistas, porque se eliminou pela ameaça e o medo as vozes moderadas e razoáveis. O resistentes moderados são ostracizados, perseguidos.

    three newspapers

    O PÁGINA UM sofreu – embora ripostando sempre – desde o seu nascimento com este novo estilo de “fazer informação”.

    Esse labéu que nos tentaram colar – e que advém, em grande medida, das minhas posições desde 2020 – não tem, neste “novo mundo” da informação qualquer antídoto. Os ataques sobre o PÁGINA UM da própria Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas são um exemplo paradigmático. A falta de solidariedade da classe contra os ataques da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, idem.

    Os rótulos são, aliás, confortáveis para quem os coloca, porque não precisam de ser justificados. Colam-se e já está. O PÁGINA UM sabe disso. E o PÁGINA UM também sabe que continuará a ser – apesar das acusações explícitas e implícitas, na praça pública ou nos bastidores; e apesar da sua (ainda) pequena dimensão – o único órgão de comunicação social a pressionar o Ministério da Saúde e as entidades por si tuteladas a divulgarem informação sobre a pandemia e o estado caótico do SNS, e as promiscuidades de certos médicos com as farmacêuticas.

    Rui Fonseca e Castro entrevistado pelo jornalista Nuno André

    Tem sido o PÁGINA UM o paladino da luta por uma maior transparência da Administração Pública, desde o Conselho Superior da Magistratura até ao Banco de Portugal, passando pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

    Mas, apesar de tudo, o labéu mantém-se e manter-se-á. O sectarismo enraizou-se na sociedade, ainda mais na comunicação social. E não tenho, como director do PÁGINA UM, quaisquer dúvidas de que a entrevista que hoje publicaremos de Rui Fonseca e Castro constituirá, para os detractores do jornalismo independente, mais uma “prova indelével” para justificar rótulos.

    Por isso, de pouco valerá dizer que, pessoalmente, há muitas mais coisas que me afastam de Rui Fonseca e Castro do que aquelas que me aproximam, mas isso não é relevante. Relevante sim é ler (ou ver) a entrevista.

    Na verdade, este editorial nem deveria existir.

  • Pedro na ERC, Anita no circo ou Portugal na ditadura

    Pedro na ERC, Anita no circo ou Portugal na ditadura


    No passado dia 9 de Agosto, nas instalações da Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC), com autorização superior para consultar processos administrativos por parte do senhor juiz conselheiro Sebastião Póvoas, circunstancial presidente daquele regulador – previsto na Constituição da República para defesa da liberdade de imprensa –, cometi um suposto “crime de lesa-majestade”: saquei do telemóvel e comecei a tirar fotografias às páginas.

    Desde que os smartphones se vulgarizaram, não conheço, como jornalista, meio mais corriqueiro de consulta, mais eficiente pela rapidez e mais ecológico pela poupança de recursos. Em meia dúzia de minutos, capta-se os elementos estritamente necessários, evitando-se ocupar tempo a todos, e cada um segue caminho. Que venha o primeiro jornalista dizer que nunca usou, de forma descontraída e sem pressão, um telemóvel para fotografar papéis.

    Porém, em 9 de Agosto, a ERC quis fabricar um “incidente”, e procurou proibir-me ilegalmente de usar um meio legítimo de reprodução de documentos, previsto na Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA). Um pedido para a PSP tomar conta desta ocorrência, transformou-se de repente num distúrbio (artificial), que culminou não apenas em um, mas logo em dois comunicados da ERC, o segundo da própria Comissão de Trabalhadores.

    Os dois comunicados difamantes – divulgados na imprensa, em que chegava a colocar em dúvida a minha actividade de jornalista e me atribuía supostos insultos aos membros do Conselho Regulador e uma alegada “atitude invulgar e abusiva”, pretendia criar uma “cortina de fumo” nas investigações do PÁGINA UM sobre a ERC.

    Fachada da ERC, na Avenida 24 de Julho, em Lisboa, fotografada hoje de manhã.

    Com efeito, o PÁGINA UM tem procurado saber como tem sido a intervenção do regulador na gestão dos pedidos de confidencialidade de grupos empresariais de media relacionado com a transparência de dados económicos, e também conhecer se haverá intervenção sobre estranhos contratos entre diversos grupos empresariais de media e entidades da Administração Pública que resultam em ingerências editoriais.

    Ora, mas o PÁGINA UM não se deixa amedrontar com estas “manobras de diversão”. Nas últimas semanas, além de instaurar um processo de intimação contra a ERC por negar a consulta de documentos sobre a transparência dos media, fui insistentemente solicitando a remarcação da consulta dos processos inopinadamente interrompida em 9 de Agosto. Por três vezes se fez o pedido. Apenas no passado dia 24 de Agosto houve uma reacção da ERC, marcando nova consulta para hoje, dia 30, mas com a imposição de regras, entre as quais a proibição de fotografias.

    Reacção: novo protesto, queixa na Comissão de Acessos aos Documentos Administrativos (CADA), indicação de que estaria presente na companhia de advogado e que não se aceitaria aquelas regras arbitrariamente impostas pelo Conselho Regulador da ERC, mesmo se ditadas por um juiz conselheiro que, na verdade, ali, assumia apenas o papel de presidente do regulador e não de qualquer tribunal.

    Intolerável coacção sobre a ERC por um cidadão inoportuno?

    Ou antes uma intransigente defesa de direitos por um jornalista incómodo?

    Os leitores que decidam. Os cidadãos que escolham a perspectiva e, como a sua decisão, queiram aceitar o tipo de democracia que mais apreciam.

    Ao fundo, advogado João Pedro César Machado, à entrada da ERC, que acompanhou o director do PÁGINA UM na consulta dos processos, aos quais se tiraram fotografias.

    Em função desse protesto, enfim veio nova reacção da ERC: “excepcionalmente”, o presidente do Conselho Regulador autorizou ontem que a consulta de hoje pudesse ser feita com reprodução de fotografias dos processos – algo que, aliás, já eu fizera em outras oportunidades antes do dia 9.

    E lá estive hoje, eu, Pedro na ERC, a consultar seis processos, na companhia do advogado João Pedro César Machado, na mesmíssima sala do dia 9 de Agosto, munido de telemóvel a fotografar páginas e a escrever seis requerimentos. Numa exacta hora e meia, despachei tudo: consulta, fotografias e requerimentos.

    E onde está a “Anita no circo”? Talvez no facto de ter, durante esta corriqueira consulta, a “escoltar-me” o chefe de gabinete do presidente da ERC, acompanhada por mais uma jurista.

    E, entretanto, lá em baixo, a guardar a porta, fiel, um agente da Polícia de Segurança Pública, convenientemente requisitado pela ERC, por certo.

    Nunca antes, nas minhas diversas visitas à ERC, tinha visto à porta um agente da PSP. E foram várias. Nunca antes de 9 de Agosto esteve ali um agente. E não há coincidência. Há coacção sobre os jornalistas, agora olhados como Inimigos Públicos se saírem da bitola da “cordialidade” e do “respeitinho”.

    Alguém da ERC achou que eu constituiria um perigo e requereu previamente presença policial; e alguém na hierarquia da PSP achou por bem destacar recursos públicos – um agente – para proteger não sei quem de um jornalista que, enfim, só ali entrou para exercer a sua actividade como jornalista, munido de telefone e caneta, e que dali saiu pacifica e livremente, mas a pensar se ainda se vive numa democracia.

    Ou se já se está num circo.

    Ou, mesmo já, numa ditadura.

  • Os meus (indesculpáveis?) erros, por um lado; e a aselhice do fact-checking, por outro

    Os meus (indesculpáveis?) erros, por um lado; e a aselhice do fact-checking, por outro


    Muitas vezes – ainda hoje, por sinal –, detecto pequenos erros ou imprecisões naquilo que escrevo. Por exemplo, constatei que há uma semana escrevi um artigo intitulado: “Previsão: mortalidade em Agosto ficará abaixo dos 10.000 óbitos, mas será o segundo pior de sempre”. Errado. E o artigo foi corrigido passando agora a intitular-se “Previsão: mortalidade em Agosto ficará abaixo dos 10.000 óbitos, mas será o segundo pior desde 1980”. Está 100% correcto – e, aliás, acertarei a minha previsão. E está um título escrito com prudência, porque, na verdade, talvez seja desde 1970 ou até desde um ano anterior, mas assim excluo o “sempre”, porque não era verdade.

    De facto, é sempre arriscado escrever “sempre” num artigo; por mais aliciante que seja, é um perigo.

    broken blue ceramic plate

    Embora os meus detractores não me desculpem – embora tenha sido eu a apanhar o erro –, confesso que este adveio de um excesso de confiança nos meus conhecimentos. Por vezes, dá maus resultados, mesmo se não estamos perante uma situação que altere a gravidade daquilo que se denunciou: um excesso de mortalidade desde Fevereiro de 2022, inexplicável e intolerável nos tempos modernos.

    Com efeito, para escrever “sempre”, baseei-me nos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) e do Pordata desde 1980 (o ano a partir do qual existe uma base de dados de fácil consulta). Ora, sabendo eu que, nos tempos modernos, os Verões são muito menos mortíferos do que os meses de Inverno, extrapolei abusivamente que, para uma população menor em décadas passadas, não encontraria tanta mortandade em meses estivais, como Agosto.

    Não é bem assim. Ou melhor, não era bem assim. Deu-me para procurar dados nos relatórios da Estatística do Movimento Fisiológico de Portugal do INE dos anos 20 e 30. Trabalho árduo e demorado, mas que acabou por ser a merecida penitência para os meus erros.

    De facto, embora sejamos agora uma população mais envelhecida e maior do que nas primeiras décadas do século passado, houve vários anos em que se morreu mais. Por exemplo, em 1918 – o ano da gripe espanhola – morreram cerca de 248 mil pessoas, o que dá uma média mensal de 20 mil pessoas. Diga-se, contudo, que “apenas” cerca de 9% foram por gripe espanhola – voltarei, aliás, a este tema muito em breve.

    Portanto, embora não tenha encontrado valores mensais disponíveis para aquele ano, de certeza absoluta que na Primavera e Verão de 1918 terão morrido muito mais do que 10 mil pessoas em cada mês.

    Mas mesmo depois da gripe espanhola – que atacou Portugal quase em exclusivo no ano de 1918 – houve anos de maior mortalidade. Verifico agora a raiz do meu erro: não considerei a dimensão da mortalidade infantil sobretudo até à primeira metade do século XX.

    De facto, a mortalidade total estava muitíssimo dependente da taxa de mortalidade infantil, que atingia proporções inauditas, completamente assombrosas, sobretudo por diarreias, enterites e outras doenças profundamente letais nos primeiros anos de vida. Além disso, a mortalidade por malformações era também elevadíssima. Natural, na verdade – ao contrário do que se diz agora – era ver-se pais a enterrar filhos.

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    Acresce que, nas décadas de 20 e 30, a fertilidade era elevada. Por ano, era habitual nascerem cerca de 200 mil crianças numa população de 6 milhões de habitantes. Agora, que somos 10 milhões de habitantes, nascem cerca de 80 mil crianças por ano.

    Porém, nas primeiras décadas do século XX, as doenças até aos cinco anos de idade dizimavam uma grande parte dessas esperanças de vida. Para se ter uma ideia, em 1918 morreram 77.550 crianças com menos de cinco anos. Destas, estão incluídas 11.370 falecidas antes de completarem dois anos por causa de diarreias e enterites, e mais 5.862 por “debilidade congénitas”.

    Meia década mais tarde, em 1923, num ano já sem resquícios da gripe espanhola – a gripe endémica causou então “apenas” 2.000 (exactos) óbitos –, a mortalidade infantil cifrou-se em 56.933 óbitos, sendo que 12.719 se deveram a diarreias e enterites, enquanto as “debilidades congénitas” causaram 5.764 mortes infantis.

    Se considerarmos, que em 1923, a mortalidade total foi de 141.775 óbitos, conclui-se então que a morte de crianças com menos de cinco anos representou 40% do total!

    grayscale photo of woman hugging baby

    Nos anos antecedentes e posteriores, durante algumas décadas, este foi o peso relativo das fatalidades infantis, que tinham um maior peso nos meses de Verão, período onde certas doenças infecciosas – muito por via da falta de saneamento – incidiam.

    Portanto, o meu erro foi subestimar a elevadíssima mortalidade infantil nos primórdios do século XX. O “sempre” estava ali a mais, porque bastaria, para aquilatar da gravidade do que se está a passar agora, dizer que a situação é a pior dos últimos 10 ou 20 anos, porque é esse o contexto histórico que nos deve guiar sempre.

    Ora, mas daqui quero passar – e não é por acaso que se faz referência ao ano de 1923 – para um outro tipo de erros, muitíssimo mais grave, cometido pela comunicação social mainstream, sobretudo aquela que se presta ao fact-checking.

    Neste aspecto, peguemos então no paradigmático exemplo de um fact-checking do Observador sobre se “estamos perante a maior mortalidade de sempre em Portugal”. A “análise” conclui, entre outros aspectos, que a “mortalidade geral não é maior de sempre em Portugal: houve mais óbitos em 1923, revelam dados do INE”.

    Fact-check do Observador sobre se 2022 apresenta a maior mortalidade de sempre e a falta de contextualização

    Ora, na linha do que disse anteriormente, um fact checking desta natureza não pode jamais olhar para os números de forma estática. Há um “dinamismo” social que deve entrar na equação. Temos de saber o que estamos a comparar e como devemos comparar. E sobretudo qual o objectivo dessa comparação.

    Um fact-checking não deve ser uma mera análise quantitativa. Na verdade, saber se a mortalidade de um Verão assume ou não o valor mais elevado de sempre – desde que Portugal é um país – mostra-se irrelevante. É uma curiosidade histórica.  

    Em Saúde Pública devemos olhar sim para uma série longa de indicadores apenas aferir as melhorias tecnológicas e dos cuidados médicos. Mas não serve para identificar, numa perspectiva de uma ou duas ou três décadas, anomalias graves num sistema de Saúde.

    Por isso, não faz sentido algum andar à procura de um ano como o de 1923, tão para trás, para mostrar que a situação de 2022 não está a ser assim tão má. Para concluir que, afinal, houve um ano pior do que o presente está a ser. É um disparate. É uma irresponsabilidade. Não é jornalismo. É um péssimo trabalho de fact-checking.

    Este é o caso do fact-checking do Observador no caso em apreço. Diz isso quem acabou de confessar um erro, que se penitenciou e que o explicou.

    E digo isto do fact-checking do Observador, e de tantos outros, porque, neste caso, desde logo é uma rotunda aselhice comparar um ano (1923) em que a mortalidade infantil representava 40% da mortalidade total com outro ano (2022) em que a mortalidade infantil representa apenas 0,23% (até 27 de Agosto houve 194 mortes de menores de cinco anos, entre os 82.868 óbitos registados)

    Não podemos comparar dois anos (1923 e 2022) – e os anos intermédios – sem enquadrar a evolução na esperança média de vida, no tratamento de doenças, em tudo e mais alguma coisa.

    Se um jornalista não souber sequer fazer uma contextualização, daqui a nada ficaremos satisfeitos por nos tirarem todos os direitos conquistados em 25 de Abril de 1974, porque afinal um fact-checking surge a concluir que, mesmo assim, estamos melhor com o regresso aos tempos da Outra Senhora do que estavam os nossos antepassados no tempo do Feudalismo.

  • Oito jornalistas “protegem” com silêncio advogada-estagiária em cargo que exigia mérito

    Oito jornalistas “protegem” com silêncio advogada-estagiária em cargo que exigia mérito

    O silêncio como resposta. Uma semana após o PÁGINA UM revelar que Licínia Girão, actual advogada-estagiária de 57 anos, foi eleita para liderar o órgão regulador e de disciplina dos jornalistas – onde sempre se exigiu “jurista de mérito” –, não há nenhum dos outros oito membros da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista que queira revelar como foi feita a sua cooptação. O currículo desta jornalista freelancer, sobretudo associada à imprensa regional, mostra-se paupérrimo para a exigência da lei: tem dois mestrados, mas o de Ciências Jurídicas terá demorado pelo menos 11 anos a concluir. E nas provas do concurso para a magistratura foi excluída logo na primeira fase com um comprometedor “chumbo”, tendo ficado quase na cauda da tabela.


    Oito mensagens electrónicas, cada uma com quatro perguntas, e nem uma resposta. Nenhum dos oito jornalistas eleitos para a Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas (CCPJ) – quatro por sufrágio da classe e os restantes indicados pelos operadores do sector – se disponibilizou durante uma semana inteira para dizer ao PÁGINA UM quem indicou a advogada-estagiária Licínia Girão para presidir àquela entidade.

    Também nenhum destes oito jornalistas quis dizer se previamente houve análise curricular desta jornalista freelancer que, como jurista, está longe de ter pergaminhos relevantes, além de ter desenvolvido a sua actividade profissional quase em exclusivo na imprensa regional, mas sem grande regularidade nos últimos anos. Neste momento, o seu nome apenas se encontra na ficha técnica do Sinal Aberto, um projecto editorial que se apresenta como “um coletivo de Jornalismo de interesse público que recusa a informação apressada e procura a verdade, sabendo que nunca será neutro.”

    A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista funciona no Palácio Foz, em Lisboa.

    De acordo com a lei que regula o funcionamento da CCPJ, a sua presidência somente pode ser ocupada por “um jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social”, cooptado pelos outros oito membros. E é aqui que se colocam os aspectos centrais: quem, de entre os oito jornalistas (eleitos para a CCPJ), sugeriu para cooptação o nome de Licínia Girão, e como foi esta apresentada para ser reconhecida como “jurista de mérito”? E uma outra, também fulcral: podem os jornalistas, como profissionais que por inerência estão incumbidos de “fiscalizar” a sociedade ao serviço dois leitores, aceitar que se mantenham situações dúbias no seu próprio seio?

    Estes aspectos são ainda mais pertinentes porque, ao contrário dos outros oito elementos da CCPJ, Licínia Girão não chegou ao cargo por qualquer eleição ou sufrágio, foi por cooptação, e por supostas razões de mérito.

    Ora, a cooptação é um regime de escolha colegial – seguida em muitos casos, como sucede com alguns juízes do Tribunal Constitucional – em que são os membros já eleitos que seleccionam uma pessoa externa. Recentemente, a cooptação do juiz Almeida Costa esteve envolta em polémica, e ele acabou mesmo por não ser escolhido. Também em muitas universidades, a escolha de membros para o Conselho de Escola é realizada por esta via, existindo em todos os casos regras específicas que obrigam a uma análise prévia dos atributos dos candidatos.

    Licínia Girão é advogada-estagiária em lugar que,por lei,exige “jurista de mérito”, ignorando-se quem a “recomendou”.

    No caso da indicação de Licínia Girão para ser cooptada para a presidência da CCPJ, nenhum dos oito jornalistas da CCPJ quer agora assumir a “paternidade” pela colocação do seu nome para votação (e subsequente comprometedora eleição) como presidente.

    No fim-de-semana passada, o PÁGINA UM endereçou a cada um dos oito jornalistas eleitos pelos pares e operadores do sector um conjunto de quatro perguntas.

    Na primeira questionava-se se tinham “conhecimento de quem propôs /indicou o nome da Dra. Licínia Girão para a presidência da CCPJ”. Na segunda se tinham existido “outros nomes em análise (e votação) aquando da escolha”; e se sim, “qual ou quais os candidatos propostos”. Na terceira questão pretendia-se saber se antes da eleição, tiveram todos acesso ao currículo e actividades profissionais de Licínia Girão. E na última se consideravam que o currículo e actividades da actual presidente da CCPJ se enquadravam no perfil exigido por lei: “jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social”.

    Apesar de ter sido confirmada a recepção dos oito e-mails na segunda-feira passada, nem Jacinto Godinho (CP 772), nem Anabela Natário (CP 326) nem Miguel Alexandre Ganhão (CP 1552) nem Isabel Magalhães (CP 1024) nem Cláudia Maia (CP 2578) nem Paulo Ribeiro (CP 1027) nem Luís Mendonça (CP 1407) nem Pedro Pinheiro (CP1440) responderam a qualquer daquelas questões. Saliente-se que, apesar das insistências, o PÁGINA UM não conseguiu que Licínia Girão esclarecesse aspectos fundamentais da sua vida profissional e da sua cooptação para a presidência da CCPJ.

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    Adensa-se assim um inexplicável mistério entre a classe jornalística, apesar de estarmos perante um organismo formado por jornalistas que supostamente lutam pelo acesso à informação e à transparência.

    Recorde-se que, como divulgou o PÁGINA UM com provas documentais, Licínia Girão encontra-se a realizar, aos 57 anos, um estágio de advocacia não-presencial num escritório de Santo Tirso (vivendo em Coimbra).

    O seu nome continua sem constar no site da Rodrigues Braga & Associdos, e um contacto prévio do PÁGINA UM revelou que será uma estagiária-fantasma.

    Além disso, o seu percurso académico tem pouco de distinto, mesmo se esforçado: terá demorado pelo menos 11 anos a concluir um mestrado em Ciências Jurídicas pela Universidade de Coimbra, uma vez que já aí era aluna em 2011 e apresentou a tese no ano passado. Possui também, desde 2019, um mestrado em Comunicação e Jornalismo com 16 valores.

    No entanto, não detém qualquer currículo relevante do ponto de vista académico ou na escrita, se se exceptuar o 2º Prémio Prosa na 1ª Edição do Concurso Literário de Prosa e Poesia 2021 do Centro Comunitário de Inserção da Cáritas Diocesana de Coimbra, ou ainda a Menção Honrosa na categoria Ensaio/Prosa no âmbito dos 13º Jogos Florais da Junta de Freguesia de São Domingos de Rana.

    De acordo com a investigação do PÁGINA UM, Licínia Girão candidatou-se este ano ao 39º curso de ingresso de formação de magistrados no Centro de Estudos Judiciários, mas os resultados foram desastrosos, chumbando na primeira fase a duas das três provas, tendo sido logo assim excluída. Num total de 269 candidatos, ficou apenas na posição 230, destacando-se os 5,05 valores (em 20) em Direito Penal e mesmo os 8,50 valores (em 20) numa prova de cultura geral em que se solicitava uma breve dissertação em redor de notícias do jornal Público e da revista Gerador.

    Licínia Girão também se candidatou a mediadora de conflitos dos julgados da paz do agrupamento de concelhos da Batalha, Leiria, Marinha Grande, Pombal e Porto de Mós, e do agrupamento de concelhos de Alvaiázere, Ansião, Figueiró dos Vinhos, Pedrógão Grande e Porto de Mós, não se conhecem os resultados.

    Licínia Girão, presidente da CCPJ, ostentando em Junho do ano passado o diploma da Menção Honrosa na categoria Ensaio/Prosa no âmbito dos 13º Jogos Florais da Junta de Freguesia de São Domingos de Rana.

    Além disso, a actual presidente da CCPJ assume-se ainda como “coordenadora da comunicação interna do Instituto de Certificação e Formação de Mediadores Lusófonos (ICFML)”, uma tarefa que poderá ser considerada incompatível face ao estabelecido no Estatuto do Jornalista. De acordo com a alínea b) do nº 1 deste diploma legal são incompatíveis com a actividade jornalística as “funções de marketing, relações públicas, assessoria de imprensa e consultoria em comunicação ou imagem, bem como de planificação, orientação e execução de estratégias comerciais”.

    No entanto, apesar do PÁGINA UM ter conhecimento que a CCPJ se tem mostrado particularmente activa na análise do cumprimento de requisitos profissionais, esta questão sensível não deverá ser, certamente, alvo de análise por aquela entidade reguladora e de desciplina. Até porque Licínia Girão acumula, com Jacinto Godinho, o Secretariado da CCPJ, que constitui o primeiro “crivo” para a instauração de processos disciplinares ou contra-ordenacionais, que depois são decididos em Plenário.


    N.D. O PÁGINA UM criticou recentemente, com veemência, uma inaudita recomendação da CCPJ, sem enquadramento legal, que visou “censurar” um trabalho de investigação sobre a Sociedade Portuguesa de Pneumologia. Tem também o PÁGINA UM colocado diversas questões à CCPJ, algumas ainda no tempo de Leonete Botelho como presidente. E vai colocar mais, até porque se justificam. Os artigos do PÁGINA UM sobre Licínia Girão, a actual presidente da CCPJ, são de indiscutível relevância e interesse público, e sustentam-se exclusivamente em factos, tendo-se sempre dado primazia ao contraditório. Na nossa opinião, a existência de discórdias, e mesmo de processos que a CCPJ ou outras entidades venham a colocar ao director ou a jornalistas e colaboradores do PÁGINA UM, jamais serão redutoras da nossa liberdade editorial. Será assim absurdo considerar-se que existem motivações extra-editoriais na base destes artigos. Aliás, mal seria se se usasse a regra de “não noticiar” sobre entidades com quem existam conflitos, porquanto abriria porta para uma solução simples: qualquer entidade incomodada por um jornal independente apresentaria uma queixa-crime e, desse modo, accionaria uma espécie de “protecção”. Ora, o PÁGINA UM não acolhe essa lógica. Pelo contrário: quem ataca a imprensa livre merece ser ainda mais escrutinado.