Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Documentário sobre comércio de sexo em tarde de domingo vale processo contra SIC Radical

    Documentário sobre comércio de sexo em tarde de domingo vale processo contra SIC Radical

    Não foi pelo buraco da fechadura, mas sim através de um inocente zapping de uma criança de 9 anos, que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) ficou a saber que a SIC Radical transmitiu num domingo à tarde de Novembro um curioso documentário sobre pornografia com linguagem explícita. Resultado: um processo de contra-ordenação para a Impresa por não acompanhar para adultos antes das 22 horas e sem sinal de aviso (‘bolinha vermelho’), arriscando uma coima de até 150 mil euros.

    Em causa esteve a transmissão do programa ‘Podre de Rica’ (Getting Filthy Rich, no original) pelas 18:00 do dia 17 de Novembro do ano passado, um documentário de 46 minutos conduzido pela apresentadora e modelo britânica Olivia Attwood, que explora o universo do chamado “entretenimento para adultos”. O programa acompanhou o dia-a-dia de produtores e actores , revelando o impacto da nova economia digital na monetização da pornografia. Ao longo da emissão, são apresentados testemunhos sobre a vida e os rendimentos de profissionais do sector, bem como imagens e diálogos de índole sexualmente explícita, embora sem exibição directa de genitália.

    A primeira temporada desta série de documentários teve, para além daquele então transmitido pela SIC Radical, programas dedicados aos lucros associados ao OnlyFans, às Camgirls e às Sugar Babies.
    A participação na ERC foi apresentada por um espectador que denunciou o conteúdo como “desadequado ao horário de exibição”, argumentando que qualquer criança poderia ser exposta “a algo que não entende ainda”. O participante referiu expressamente o caso da filha, de 9 anos, que ao fazer zapping terá encontrado o programa sem qualquer sinalização de aviso – “a bolinha vermelha no canto” –, tornando difícil, segundo o queixoso, proteger a menor de conteúdos que considerou sensíveis.

    A defesa apresentada pela SIC Radical centrou-se na classificação etária atribuída à emissão – 12AP –, que permite a exibição de temas como a sexualidade desde que acompanhados de aconselhamento parental para menores de 12 anos. Embora admitindo que a temática do documentário era “um pouco arrojada”, o canal televisivo do universo da SIC alegou que visava mostrar se a ‘venda’ de sexo online, era “uma atividade tão fácil e lucrativa como parece.” A SIC Radical diz que o documentário baseia-se cenas de nudez que “são muito rápidas, não explícitas, pouco frequentes e contextualizadas.”

    Apesar destes argumentos, a ERC considerou que a natureza e o teor da emissão exigiriam outro tipo de enquadramento. No seu relatório, o regulador aponta que o programa abordava de forma detalhada a produção de pornografia, com descrições e imagens que, embora sem pornografia explícita, continham elementos susceptíveis de influir negativamente na formação de crianças e adolescentes.
    E escalpeliza todas as expressões usadas, traduzidas, de “linguagem forte, expondo-as na sua deliberação.

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    A linguagem, ao longo de todo o programa, é de natureza sexualmente explícita, a título de exemplos; “consegues esguichar de propósito?”; “fazemos muito sexo mas sei que é um tarado. Adora sexo”; “ainda estás duro?”; “vocês os dois vão fazer sexo oral lá atrás”; “vais comê-la por trás”; “podes vir para aqui para eu ver a penetração”; “sentem uma grande pressão porque têm de manter a ereção e depois ter um orgasmo, durante horas”; “a primeira cena anal”; “só tive de masturbá-lo”; “vou deixar os meus mamilos bem duros como uma boa galdéria”; “consegues esguichar se não estiveres excitada?”; “faço muitos trios homem-mulher-mulher”; “foi um pouco estranho estar perto de alguém com as mamas de fora”.

    Por outro lado, o documentário é também ‘didáctico’ no sentido de haver entrevistados que explicam os mecanismos de monetização da pornografia digital, com destaque para um actor que “já foi nomeado para vários prémios do mundo de entretenimento para adultos, incluindo o de melhor pénis”, e que assinou contratos para a venda de réplicas do seu órgão genital.

    Visualmente, o documentário inclui imagens de mulheres a lamber objectos fálicos, cenas de masturbação, simulações de actos sexuais entre dois homens com as nádegas expostas, e representações explícitas de nudez. As genitálias são ocultadas por distorção de imagem, mas, segundo a ERC, “as posições dos corpos, interacções sexuais, gemidos, expressões faciais, permitem depreender que se trata de sexo, mais particularmente da venda de pornografia”.

    ERC

    Face a estes elementos, o regulador entendeu que a SIC Radical violou da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido, ao não garantir a difusão permanente de um identificativo visual apropriado e ao emitir o programa fora do período legalmente permitido para este tipo de conteúdos, ou seja, entre as 22h30 e as 6h00.

    A deliberação, embora reconheça a ausência de pornografia explícita nos termos legais, sustenta que o teor do programa justificava uma classificação mais restritiva e cuidados adicionais na exibição.

  • Barcelona 1.3

    Barcelona 1.3


    Em Barcelona estou — e me confesso. Disseram-me, certo dia, que a cidade é uma festa contínua de Cultura e Futebol, e não duvidei. Tirei uns dias, como quem suspende o tempo entre trabalho e férias, com o fito de fazer Cultura — da verdadeira, a que se procura sem patrocínios nem favores — e, claro está, de ver futebol, esse último teatro das multidões.

    Agora mesmo, escrevo-vos sentado no Estadi Olímpic Lluís Companys, em Montjuïc, onde joga provisoriamente o Barça, que ficou sem Camp Nou enquanto o velho colosso se refaz, como se em Espanha até os estádios precisassem de renascimentos cíclicos. Aviso já que foi tudo pago pelo meu bolso, avião e estadia – que isso de viagens pagas para ver a bola, já sem falar em avenças, são coisas para o Montenegro.

    E foi justamente nesta bancada da imprensa, depois de ter visto a correr a ala gótica, medieval e barroca do Museu de Arte da Catalunha, entre turistas que não percebem a diferença entre um fora-de-jogo e um Lucas Cranach el Viejo, que me ocorreu uma ideia que se me afigura menos absurda do que parece à primeira vista: Portugal deve muito à Catalunha. Mais concretamente, devemos aos catalães a nossa Restauração de 1640. Se não fosse a revolta catalã que rebentou em Maio de 1640 — a dita Guerra dels Segadors, que os historiadores portugueses tão pouco lembram —, Portugal teria tido enormes dificuldades em sacudir o jugo da monarquia dual dos Filipes.

    (E começa o jogo; tive de contornar o cordão de adeptos benfiquistas, ladeados por duras colunas de guardas pretorianos da polícia de choque, e lá me enfiei estádio adentro, não sem dificuldade de encontrar o meu lugar; em todo o caso, encontrei o Lucas, o brasileiro que, no Barcelona, se dedica a escrever sobre as façanhas do Raphinha.)

    Continuemos com a História. Enquanto os exércitos castelhanos tentavam domar os rebeldes catalães, a conspiração em Lisboa aproveitou esta janela aberta. E lá se mandou um sicário às ordens dos Filipes, o Miguel de Vasconcelos, janela abaixo, e como um exército castelhano andava ocupado em manter Barcelona sob controlo, nas lusitanas terras pôde João IV ser proclamado rei e organizar a defesa.

    (Pronto! E por falar em defesa: a do Benfica já levou o primeiro, logo aos 11 minutos, pelo inevitável Raphinha, o desgraçado ex-sportinguista que, de repente, começou a meter bolas umas atrás das outras ao Trubin.)

    Enfim, sem aquela revolta catalã, os catalães estariam agora a falar catalão, uma língua que ninguém entende, a não ser eles — e eu estaria a escrever esta crónica em castelhano, que desconfio que, ao longo dos séculos, ficando o território de Portugal integrado em Espanha, o português acabaria reduzido a uma espécie de mirandês. E os brasileiros, como o Raphinha ali em baixo, em vez de ‘oi’ andariam a dizer “hola”.

    Mas a História é uma grande mestra de ironias, e não dá sem depois cobrar. A Catalunha ficou presa à Espanha, renegociou autonomias, foi castigada, renasceu, tornou-se a mais rica das regiões espanholas, depois tentou a independência e falhou, mas sempre com a altivez de quem se crê melhor do que o vizinho. Já Portugal, que fez do Atlântico o seu caminho, arrisca-se agora a não ser mais do que uma Galiza com nome próprio, ou uma Estremadura com praias. Digo-o sem despeito, mas com inquietação: há algo na comparação entre a Catalunha e Portugal que me obriga a reflectir.

    (GOLOOOOOOO! Otamendi, na marcação de um canto: renasce a esperança…)

    Este golo — e mesmo uma improvável, nesta altura, reviravolta na eliminatória — não nega uma evidência: a Catalunha, sendo uma região, perdeu a esperança de ser um país; e Portugal, sendo um país quase milenar, arrisca sempre a ser uma mera região, quase ultraperiférica numa Europa de burocratas.

    Vejam-se Lisboa e Barcelona: as infra-estruturas, os projectos económicos, a ambição industrial, a cultura, os majestosos espaços públicos, a dinâmica social — aliás, logo que cheguei, no domingo passado, o dinamismo das manifestações fez-se sentir, pela noite adentro. Mesmo sabendo-se que Barcelona é um ponto turístico de excelência e de abusos — que se há-de fazer se se tem Cultura, monumentos, gastronomia, praias, variedade de espaços, rede de transportes eficiente? —, a capital da Catalunha projecta-se como uma cidade global.

    Já Lisboa cinge-se a disputar com o Porto o título de melhor cenário para selfies e pacotes turísticos. E se os catalães olham para Madrid com desconfiança, os portugueses parecem olhar para Bruxelas com submissão, como se fosse ela a nova corte filipina, de onde se esperam verbas em vez de se afirmar soberania.

    (Olha-me esta! Golo do Barcelona, com a defesa do Benfica a deixar que o miúdo Lamine Yamal apanhe uma bola de um livre mal marcado, flicta para a esquerda e atire a contar para o cantinho do Trubin…)

    Resta-me, portanto, conformar-me com este resultado. Ou resultados: o do futebol e o de Barcelona se impor a Lisboa — que o fair play não deve existir somente na ludopédia.

    Mas vamos lá equilibrar isto, embora tenham sido os nossos antepassados a legarem-nos essa vantagem. Os catalães, coitados, têm um idioma próprio que ninguém entende, enquanto a língua portuguesa é um império cultural de 265 milhões de viventes, se bem que quase sempre alheios à origem da fala. Mas, confesso: falta-nos agora aquela pulsão de querer ser maiores do que parecemos ser, sem pedir licença a ninguém. Até no futebol sinto isso, quanto mais na vida social e política de Portugal. Aqui, por exemplo, em Montjuïc, sinto um estádio velho, como o Estádio Nacional no Jamor, remendado para servir de casa temporária ao Barcelona, mas cheio de orgulho catalão. Em Portugal, quantas vezes parece que nem casa há?

    (Mais um do Raphinha! Mas que é isto? 3-1 e nem sequer chegámos ao intervalo. Agora, nem com um milagre…)

    E todavia, não quero esquecer 1640, porque aí vencemos: eles tentaram largar Madrid, e falharam; nós largámos e ganhámos em definitivo esse direito depois da estrondosa vitória na Batalha dos Montes Claros em 1665. Foram precisos 25 anos, mas vencemos!

    (Intervalo… descansemos.)

    Portanto, a Catalunha falhou, e Portugal conseguiu, embora ache que estejamos a perder a soberania aos poucos com uma Europa de políticos oligarcas que se perpetuam em torres de marfim em Bruxelas. Mas o relógio não pára…

    E assim aqui estou com esta Da Varanda de Barcelona, especialíssima, não como quem disseca e profetiza desgraças, mas como quem regista o que vê: no relvado, os jogadores do Benfica mostram-se sobretudo resignados, como quem já só cumpre um protocolo diplomático antes da rendição. Há um corpo presente em campo, é verdade, mas falta a alma.

    Esta talvez seja a mais dolorosa metáfora para Portugal, enquanto, lendo as notícias de Lisboa, o Governo de Montenegro definha no Parlamento. Estamos, existimos, marcamos presença no concerto das nações — e na Liga dos Campeões —, fazemos discursos e chutamos umas bolas, mas, no fim, parecemos ter perdido a capacidade de ganhar ou, pelo menos, de lutar por algo mais além do aceitável ou do confortável.

    Bem se pode dizer que a Catalunha e Barcelona estão sempre a falhar, mas não desistem; e isso é, talvez, o que os faz serem vencedores no futebol. Não desistiram em 1714, quando a cidade caiu às mãos dos Bourbons; não desistiram em 1939, quando o franquismo sufocou os seus gritos de autonomia; não desistiram em 2017, quando os tribunais e a polícia impediram o seu referendo de independência. Há, aqui, uma persistência que impressiona, e que só se explica por uma auto-estima colectiva que, mesmo na derrota, os mantém de cabeça erguida.

    E nós, portugueses? A nossa auto-estima arrumou-se na gaveta dos Descobrimentos, e nem sequer se encontra num museu, porque nos envergonhamos de um passado colonialista, como se não tivéssemos nascido de povos colonizados e colonizadores. Nem o nosso passado nos vale no presente.

    (Lá em baixo, o Barça desacelerou, e o Benfica porfia, mas sem grande garra; a eliminatória está decidida.)

    Mas não se pense que esta crónica é um manifesto catalanista. É, antes, um manifesto português, escrito a partir de Montjuïc, numa bancada fria, a olhar para um jogo já perdido. Mas se há coisa que aprendemos em 1640 é que há momentos em que, mesmo sem recursos, sem apoios externos e com probabilidades mínimas, é possível mudar o rumo. Mas não será hoje… Ou melhor, não foi hoje, porque o árbitro acaba de dar a partida por terminada após dois minutos de descontos. Valeu pela visita…

    Barcelona continuará a fazer o seu caminho, com ambição e orgulho. Lisboa — e o Benfica — precisam de acordar, de uma vez por todas, para o facto de que não basta viver da memória, dos discursos ou das verbas europeias. Um país e um clube não se sustentam apenas com boas intenções e cartões-postais. E se quisermos, como em 1640, ser donos do nosso destino, talvez seja tempo de voltarmos a acreditar que o impossível não é uma sentença, mas um desafio. E trabalhar um bocadinho com mais afinco e determinação.

  • Gouveia e Melo ‘despachado’ das fileiras da Nova School of Law após protocolo com a Marinha

    Gouveia e Melo ‘despachado’ das fileiras da Nova School of Law após protocolo com a Marinha

    Sem honra nem glória, e num recato institucional pouco habitual para quem tanto celebrara em tempos a sua “contratação”, a NOVA School of Law – nome pomposo e anglicizado da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa – apagou silenciosamente o antigo Chefe do Estado-Maior da Armada, Henrique Gouveia e Melo, das suas fileiras docentes.

    Esta saída discreta – o nome do putativo candidato a Belém deixou de constar no site da instituição universitária – surge após dois anos em que o agora Almirante na reserva ocupou, de forma irregular e à margem da legalidade, a regência da cadeira de Segurança Marítima no mestrado em Direito e Economia do Mar. O nome de Gouveia e Melo chegou a constar como regente e professor ainda num documento interno da Nova School of Law ainda no final de Dezembro passado.

    Nobre de Sousa na aula inaugural da unidade curricular de Segurança Marítima na Faculdade de Direito da Universidade Nova de LIsboa. A Marinha, com um protocolo, tenta ‘apagar’ um acordo informal que transformara o anterior Chefe do Estado-Maior da Armada, Gouveia e Melo, um distinto professor universitário sem sequer dar uma aula durante dois anos lectivos. Foto: NSL

    A situação insólita de uma “contratação” sem base legal, sobretudo por ser cometida por uma instituição universitária de Direito, foi revelada em primeira mão pelo PÁGINA UM em Dezembro do ano passado. No auge da sua popularidade na liderança do Estado-Maior da Armada, em Fevereiro de 2023 anunciou, com pompa, que “uma das novidades deste ano [lectivo, de 2023/2024]” seria “a leccionação da cadeira Maritime Security a cargo da Marinha Portuguesa, sob a regência do Almirante Gouveia e Melo”. E acrescentava ser “com enorme satisfação que recebemos o ex-coordenador da Task Force do Plano de Vacinação contra a covid-19 em Portugal, que se juntou à NOVA School of Law no seguimento do nosso empenho em robustecer o nosso corpo docente com os/as melhores e mais talentosos/as profissionais, contribuindo para a excelência deste mestrado”.

    O “nosso empenho”, o da Faculdade de Direito da UNL, devia ler-se como empenho da ala do CDS nesta instituição universitária pública. Com efeito, todo o processo de convite foi conduzido pela então directora da Faculdade, Mariana França Gouveia – que actualmente preside ao Conselho Científico – e pela coordenadora do mestrado, Assunção Cristas, que também lidera a Comissão Científica do mestrado. Além das suas ligações umbilicais ao CDS, estas duas advogadas, amigas de longa data, gravitam numa das mais importantes sociedades de advogados com milionários contratos públicos: a Vieira de Almeida.

    Apesar de o mais recente processo de acreditação pela A3ES ser completamente omisso sobre a entrada de militares de carreira sem currículo académico na regência de uma cadeira e a prestar aulas, não foi cumprida qualquer das regras previstas no rigoroso Estatuto da Carreira Docente Universitária, que não permite, por razões óbvias, a contratação de qualquer pessoa mesmo sob convite e mesmo se tivesse um currículo académico invejável, o que não é o caso de Gouveia e Melo.

    Assunção Cristas (segunda a contar da direita),antiga ministra do Ambiente, do Mar e da Agricultura tratou de ‘convidar’ Gouveia e Melo em 2022 para ser professor convidado mas sem cumprir formalismos legais. A ala do CDS na Nova School of Law permitiu que o antigo líder da Armada fosse regente sem sequer colocar os pés nas aulas. Foto: NSL

    As revelações do PÁGINA UM geraram visível desconforto quer na NOVA School of Law, quer no seio da Marinha, que, nos últimos meses, trabalharam discretamente para “corrigir” um evidente atropelo às normas legais e académicas vigentes. Em todo o caso, nos horários revelados pela instituição universitária pública no dia 30 de Dezembro para as unidades curriculares do segundo semestre, Gouveia e Melo ainda continuava a ser indicado como regente, mesmo tendo abandonado a liderança da Marinha dias antes.

    A solução encontrada para mitigar um cada vez maior embaraço institucional foi a celebração de um protocolo de cooperação – que nunca antes se formalizara – e que se concretizou ontem numa “cerimónia pública” da primeira aula de Segurança Marítima, carregada de solenidade e cuidadosamente encenada, com a presença do novo Chefe do Estado-Maior da Armada, Jorge Manuel Nobre de Sousa, bem como do novo regente, Armando Valente Tinoco, que tem o posto de Comodoro, hierarquicamente abaixo de Contra-Almirante, sendo já um oficial general.

    Ao contrário de Gouveia e Melo, o regente agora indicado pela Marinha – que já surge na lista de professores da Nova School of Law, ‘destronando’ o agora desaparecido Gouveia e Melo – tem larga experiência em Segurança Marítima. Com uma carreira de quase duas décadas, foi recentemente comandante dos Fuzileiros (2023-2024) e desempenhou as funções de Force Commander da European Union Naval Force Atalanta (Comandante da Task Force 465) entre Outubro e Dezembro do ano passado. A Task Force 465 é uma operação militar da União Europeia que visa proteger os navios mercantes, em especial os do Programa Alimentar Mundial, das ameaças de pirataria ao largo da costa da Somália e no Oceano Índico, tendo também funções de vigilância das actividades marítimas naquela região.

    Margarida Lima Rego, directora da Nova School of Law, ontem na aula inaugural do presente semestre da unidade curricular de Segurança Marítima, com o novo regente, Comodoro Valente Tinoco. Do anterior regente, Gouveia e Melo, nunca foram reveladas provas de que tenha entrado numa sala de aula para ensinar Segurança Marítima. Foto: NSL

    Apesar deste formalismo – com a presença de Nobre de Sousa na aula inaugural, na presença das várias responsáveis pela anterior “contratação” de Gouveia e Melo (Assunção Cristas e Margarida Lima Rego), ‘eternizadas’ em várias das 12 fotografias do evento –, o protocolo agora firmado acaba por se converter numa confissão pública das irregularidades cometidas.

    Com efeito, sendo este protocolo inédito, significa então que, durante dois anos, a Marinha colocou os seus meios e efectivos – nomeadamente militares que, de facto, asseguraram as aulas da cadeira de Segurança Marítima nos anos lectivos de 2022/2023 e 2023/2024 – ao serviço de uma instituição de ensino superior, sem que houvesse qualquer instrumento jurídico que enquadrasse e legitimasse essa colaboração. Além disso, nunca foram revelados publicamente os documentos que deveriam ter formalizado a aceitação de Gouveia e Melo como docente convidado, acto que deveria ter sido aprovado no Conselho Científico da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

    Por outro lado, houve militares da Armada que deram aulas em nome e sob a regência formal de Gouveia e Melo, que, sem ter aparecido numa única sessão, beneficiou do estatuto de professor convidado da NOVA School of Law, numa situação que fere a legalidade e a ética académica. A Marinha, aliás, mantém-se em silêncio quanto à identidade dos militares que leccionaram estas aulas, apesar de ter sido novamente instada ontem, pelo PÁGINA UM, a esclarecer publicamente quem foram os oficiais destacados para estas funções e ao abrigo de que fundamentos legais.

    O Chefe de Estado-Maior da Armada esteve presenta na aula inaugural de Segurança Marítima acompanhado pelo novo regente, Valente Tinoco, e mais três oficiais da Marinha. Da anterior equipa da Marinha que, sob regência oficial de Gouveia e Melo, esteve a dar aulas, através de um ‘acordo de café’, não se conhece qualquer cara nem nome.

    A celebração deste protocolo procura agora dar um lustro de legalidade a um passado recente repleto de opacidade. O documento, segundo foi anunciado, assegura a continuidade da regência da cadeira de Maritime Security, no âmbito do mestrado em Direito e Economia do Mar. Segundo nota da NOVA School of Law, a nova parceria – que só existe quando formalizada, porque estas questões não são passíveis de informalidade de uma “mesa de café” ou de uma sede partidária – não se limita à componente lectiva, prevendo-se também iniciativas complementares, como visitas dos estudantes às instalações da Marinha, acesso a bibliotecas e recursos para investigação, estágios curriculares e a atribuição de prémios de excelência académica.

    Porém, a Marinha não respondeu ao pedido do PÁGINA UM para lhe enviar uma cópia do protocolo, desconhecendo-se assim se existem “matérias secretas” e pagamentos envolvidos. O acesso a um protocolo que deveria ser público, ademais depois de dois anos de irregularidades, só deverá, eventualmente, ser acedido pelo PÁGINA UM através de uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa – uma situação que começa a fazer “escola” numa Administração Pública cada vez mais opaca.

  • O pedantismo cientifista de David Marçal, sacerdote da Verdade Absoluta

    O pedantismo cientifista de David Marçal, sacerdote da Verdade Absoluta


    Sempre que leio no Público as crónicas de David Marçal, vejo ali um cruzado da Ciência, um paladino da racionalidade contra as hordas de bárbaros negacionistas. No entanto, ao contrário do que prega, Frei Marçal não combate o obscurantismo com argumentos rigorosos nem com método científico, mas com enviesamento ideológico e um irritante pedantismo que roça a arrogância e a boçalidade, temperado com um desdém dogmático que faz lembrar os inquisidores do Santo Ofício.

    No seu texto de hoje, glosa sobre um surto de sarampo nos Estados Unidos, parafraseando, de forma acérrima, o lema trumpista. “Tornar o sarampo grande outra vez” – o título do artigo de opinião – serve de mote para David Marçal culpabilizar R.F.K. Jr. por tudo e um par de botas. De facto, encontra-se em curso um surto de sarampo em 12 jurisdições norte-americanas: Alasca, Califórnia, Flórida, Geórgia, Kentucky, Nova Jérsia, Novo México, Nova Iorque, Pensilvânia, Rhode Island, Texas e Washington. Houve já uma morte confirmada e outra em investigação. As mortes não são normais, independentemente de estatisticamente serem irrelevantes, mas estaremos perante algo incontrolável? Uma crise de saúde pública causada pelo simples facto de Trump e R.F.K. Jr. terem assumido o poder nos Estados Unidos há menos de dois meses?

    Vejamos. O Centers for Disease Control and Prevention (CDC) – que mantém a mesmíssima abordagem e acompanhamento sobre os perigos do sarampo e sobre a vacinação – aponta este ano para 222 casos desde 1 de Janeiro até ontem, dos quais 38 resultaram em hospitalizações. Podemos ver isto em duas perspectivas. Em termos relativos, estes 222 casos nos Estados Unidos corresponderiam a 7 casos em Portugal, considerando a diferença populacional. A nossa Direcção-Geral da Saúde não costuma revelar informação detalhada da monitorização de sarampo em Portugal, mas posso adiantar que, há um ano, entre 1 de Janeiro e 5 de Maio, tinham sido contabilizados 27 casos. Ajustando para a população das terras do Tio Sam, estes 27 casos nacionais equivalem a 860 casos nos Estados Unidos. Não me recordo de ter lido David Marçal a escrever sobre os surtos de sarampo em Portugal em 2024.

    Além disso, convém referir que o sarampo é, cada vez mais – e em virtude também da vacinação –, uma doença benigna em países mais modernizadas, embora ainda longe de estar erradicada. E nos Estados Unidos, onde os diversos Governos estaduais têm um papel determinante, a ocorrência de surtos depende de muitos factores, sendo evidente que os mais vulneráveis são as pessoas não vacinadas. Se olharmos para o site do CDC, essa evidência é ali exposta para o ano de 2025, com R.F.K. Jr., tal como nos tempos de Biden e no primeiro mandato de Trump.

    Aliás, é curioso reparar que o número de casos de sarampo este ano ainda é inferior aos de 2024 – e não é certo que seja ultrapassado – e muitíssimo inferior aos valores de 2014 (667 casos, no segundo mandato de Barack Obama) e de 2019 (1274 casos, no primeiro mandato de Trump). Convém referir que, tanto num período como no outro, o responsável máximo do National Institutes of Health (NIH) era Anthony Fauci. Parece-me que apenas estes simples dados desmontam, e estragam, o tão jeitoso título de David Marçal.

    Casos de sarampo por ano nos Estados Unidos desde 2000. Fonte: CDC.

    Porém, onde Marçal melhor regurgita o seu ‘ódio’ quase irracional a R.F.K. Jr. – que há duas dezenas de anos era considerado um ídolo das correntes ambientalistas pela sua tenaz luta como advogado – é na tese de ser ele “um teórico da conspiração antivacinas”. E para tal, conta Marçal um episódio de um surto de sarampo em Samoa após erros na administração de vacinas terem causado mortes. Esquecendo, ou querendo esquecer, Marçal, que a Farmacopeia não é uma história imaculada, o paladino da Ciência chega a culpar R.F.K. Jr. de ser co-responsável por 83 mortes naquele país da Polinésia, por uma doença que a OMS diz ser fatal, por ano, para mais de 100 mil pessoas. Em 2023, foram 107.550 pessoas, praticamente todas em países subdesenvolvidos.

    Mas é na forma como David Marçal resume uma carta de R.F.K. Jr., em Novembro de 2019, ao primeiro-ministro de Samoa que se mostra o tipo de cientista que é – ou, melhor, que não é. Diz David Marçal que o actual secretário de Estado da Saúde norte-americano “culpa as vacinas pelas mortes por sarampo” e que a “carta de quatro páginas é um absoluto delírio” – contudo, o delírio está do seu lado.

    Lendo a carta de R.F.K. Jr., haveria espaço para rebater factualmente alguns dos seus argumentos – algo que um verdadeiro defensor da Ciência deveria fazer. Mas isso não é coisa para David Marçal – e outros que, durante a pandemia, ‘arrotaram’ certezas insofismáveis –, que enveredou pelo caminho da deturpação e do achincalhamento, reduzindo tudo a um “absoluto delírio” e a um “chorrilho de argumentos pseudocientíficos”.

    A táctica de David Marçal é sempre a mesma: simplifica-se ao extremo a posição do ‘adversário’, amputando-lhe qualquer nuance ou legitimidade, para depois a ridicularizar como se fosse produto de uma mente lunática. “Dois dias depois, R.F.K. Jr. escreveu ao primeiro-ministro de Samoa, na sua qualidade de presidente da Children’s Health Defense, culpando as vacinas pelas mortes por sarampo no país”, escreveu Marçal. A afirmação é uma mentira objectiva. Na sua carta, Kennedy nunca culpa as vacinas pelas mortes.

    A carta não é um panfleto antivacinação, não incita ao medo irracional das vacinas, nem exorta os samoanos a rejeitarem a imunização. Aquilo que R.F.K. Jr. faz é levantar questões sobre a relação entre a vacina MMR da Merck e a crise sanitária em Samoa, propondo hipóteses que deveriam ser cientificamente avaliadas. Ele sugeriu que se investigasse a imunidade materna conferida pela vacina, que se determinasse se a vacina estava a cobrir todas as estirpes do sarampo circulantes e que se examinasse se a vacinação em massa poderia ter desencadeado infecções por estirpes vacinais.

    Estes são argumentos que podem ou não ter mérito científico – e é assim que se deve tratar a Ciência, como um debate aberto, e não como um dogma imutável –, mas em nenhum ponto R.F.K. Jr. se opõe à vacinação per se. Aquilo que ele sugere é precisamente uma abordagem científica: estudar os dados, sequenciar geneticamente os vírus, identificar as variantes em circulação, analisar a eficácia das vacinas num contexto complexo, não assumindo que sejam consideradas sacrossantas.

    David Marçal

    Se David Marçal fosse um cientista a sério – e não um propagandista travestido de divulgador –, responderia a todos os argumentos de R.F.K. Jr. com números, estudos e dados. Mas nada disso faz – às tantas, dirá que tem mais que fazer. E assim, em vez disso, opta pelo caminho mais fácil: a caricatura.

    Este modus operandi de ataque ao ‘inimigo’ é recorrente – e viu-se bem na pandemia da covid-19. David Marçal nunca debate – destrói. Nunca argumenta – desqualifica. Nunca analisa – ridiculariza. Para ele, não há espaço para dúvidas ou para a revisão de conceitos. O palco é-lhe oferecido sem contestação – e ele ergue-se convencido da vitória e da razão.

    Para Frei Marçal, a Ciência é um santuário de verdades absolutas – como eram, por exemplo, os verhonhosos relatórios epidemiológicos do Instituto Superior Técnico –, e ele, um Sumo Sacerdote que pode decretar quem é herege e quem é iluminado. O problema é que esta postura não tem nada de científica. A Ciência verdadeira não se faz com certezas dogmáticas, mas com questionamento constante, com hipóteses que devem ser testadas, refutadas ou confirmadas pela experiência e pelos dados.

    A ironia disto tudo: se há alguém realmente a praticar a pseudociência, é David Marçal. A pseudociência não é apenas acreditar em teorias da conspiração e negar evidências – é também a recusa do debate, o uso de argumentos de autoridade em vez de evidências, a manipulação retórica para eliminar opositores sem os confrontar directamente. R.F.K. até poderia estar a fazer pseudociência, mas Marçal quer impor-nos a anti-Ciência, quer transformar a Ciência em dogma. Aquilo que ele pratica não é divulgação científica – é uma propaganda científica enviesada, onde o nome da Ciência é usada, e abusada, não para esclarecer, mas para justificar dogmas e atacar dissidências.

    E o efeito deste cientificismo autoritário é exactamente o contrário daquilo que ele quer fazer passar. David Marçal acredita que, ao ridicularizar os críticos, está a proteger a Ciência do obscurantismo. Mas, na verdade, está a afastar as pessoas da Ciência.

    Quando a Ciência se apresenta como um dogma inquestionável, as pessoas começam a desconfiar dela. Quando os defensores da ciência se comportam como inquisidores, as pessoas começam a procurar alternativas. Quando o debate é substituído pela arrogância, a credibilidade científica é corroída.

    Sejamos claros: a vacinação é uma das maiores conquistas da Medicina moderna, mas a confiança na vacinação não se impõe como se o hábito fizesse o monge; não se impõe com escárnio e insultos – conquista-se com transparência, com comunicação clara e honesta, com abertura ao debate. O problema de Marçal, e de tantos outros cruzados do cientificismo, é que não percebem que a confiança na Ciência não pode ser imposta à força; deve convencer, e não vencer; as pessoas devem ser conquistadas através do rigor, da humildade e da disponibilidade dos cientistas para responderem a todas as dúvidas – mesmo as que parecem incómodas ou possam ser obtusas.

    Se R.F.K. está errado, então prove-se que está errado. Mas prová-lo exige mais do que epítetos e ridicularizações – exige Ciência a sério. E mal seria se, estando ele errado, não existissem (como acho que existem) mecanismos numa democracia para evitar que ele imponha a sua opinião errada a toda a sociedade. Marçal pensa que isso se faz com marketeers da Ciência com tiques de inquisidores. Na verdade, a Ciência não precisa de tipos como David Marçal com tiques de inquisidor; precisa apenas de cientistas, que errem por lapso e acertem por sabedoria, e que, na prudência, tenham a humildade de reconhecer que até os seus acertos podem, afinal, ser erros.

  • Universidade Lusíada vai investigar directo na CNN Portugal durante uma aula

    Universidade Lusíada vai investigar directo na CNN Portugal durante uma aula

    A Reitoria da Universidade Lusíada vai investigar a adequação do uso do tempo de uma aula por um professor para entrar ontem à tarde em directo na emissão da CNN Portugal. O caso inédito foi revelado num curto trecho gravado por um aluno do pólo do Porto daquela universidade privada, onde se vê, durante 20 segundos, Tiago André Lopes em simultâneo na emissão do canal televisivo da Media Capital e a falar ao monitor de um computador na sua mesa.

    A gravação mostra diversos alunos sentados e, numa parede da sala, um aviso: Silêncio. ESTAMOS EM DIRETO. O pequeno vídeo, com a legenda “Pov [point of view]: Estás em aula e o professor está em direto na CNN”, contava já com mais de 237 mil visualizações pelas 15h00 desta sexta-feira.

    De facto, Tiago André Lopes, um habitual comentador de política internacional na CNN Portugal, esteve ontem à tarde a comentar o Conselho Europeu Extraordinário numa emissão com alguns percalços devido a dificuldades de comunicação, que se iniciou às 14h23. O comentário em concreto, cujo trecho foi gravado por um aluno, decorreu entre as 14h25 e as 14h33, ou seja, durante nove minutos.

    Tiago André Lopes, licenciado em Comunicação Social com um doutoramento em Ciências Sociais, confirmou ao PÁGINA UM que fez ontem o comentário na CNN numa sala da Universidade Lusíada com alunos a assistir, mas que era “uma aula suplementar para realizar uma dinâmica pedagógica […] da unidade curricular de Organizações Políticas Internacionais”, acrescentando que o seu comentário “sobre uma reunião em curso no Conselho Europeu, que é um órgão político de uma Organização Internacional”, acabava por ser “matéria de aula”.

    O comentador da CNN Portugal diz também que não costuma “comentar durante as aulas”, por ser esse o acordo com o canal televisivo, defendendo que a sua entrada em directo ocorreu “antes do começo da aula”, propriamente dita, e teve “o consentimento de todos os alunos presentes”. E acrescenta que “se algum aluno tivesse objectado, o comentário não teria tido lugar”.

    Tiago André Lopes apareceu ontem por três vezes nas emissões da CNN Portugal, mas o canal televisivo ‘esqueceu-se’ de divulgar o comentário a partir de uma sala de aulas da Universidade Lusíada.

    O professor da Universidade Lusíada diz perceber que “a legenda que o aluno colocou, aluno esse que já pediu desculpas pela publicação do vídeo, dá a entender que a aula estaria em curso”, mas que “isso é apenas imputável a quem legendou mal aquele momento”, garantindo que “a aula começou mal terminou o directo” na CNN Portugal, ou seja, às 14h33.

    Esta aula de ontem da unidade curricular de Organizações Políticas Internacionais, leccionada por Tiago André Lopes, aparenta ter sido mesmo suplementar, uma vez que no horário semanal decorre às terças-feiras entre as 14h00 e as 16h00.

    Ainda em sua defesa, Tiago André Lopes diz que nem sequer costuma “levar portátil para as aulas” e que é “dos professores que gostam de livros em papel, pelo que fazer directos nas aulas não seria de todo possível”, sendo que o caso de ontem foi “excepcional”.

    Certo é que esta inaudita incursão de um comentador televisivo em plena sala de aula surpreendeu o próprio reitor da Universidade Lusíada, Afonso d’Oliveira Martins. Em declarações ao PÁGINA UM, diz que não houve “conhecimento prévio por parte dos órgãos competentes da Universidade” do uso do tempo de aula e de uma sala para a participação do docente num comentário televisivo em directo.

    Afonso d’Oliveira Martins diz ainda que, “em termos gerais, situações que se considerem extraordinárias devem ser sujeitas a autorização para que se possa averiguar a sua adequação”. E acrescenta que “a propósito do caso concreto, foi entretanto iniciado um procedimento de indagação, aguardando os respectivos resultados”.

  • Barcelona 0.1

    Barcelona 0.1


    Cheguei atrasado à Varanda da Luz – só se justifica ficar aqui escrito por ser uma crónica, e não uma notícia, porque só o raro é notícia. Nem vi a águia a voar e perdi todo o ritual que marca o início das grandes noites europeias. Que seja: promete chuva, mas nada como aquele dilúvio do inglório 4-5 de há um mês e meio. Interessa, sim, dizer que estou confiante. Hoje, há qualquer coisa no ar. Talvez seja por causa do Bruno Lage estar de volta, e o futebol ter sempre um fraco por histórias de redenção.

    (estranhamente, o estádio não está cheio, não sei se pelo preço dos bilhetes ou pela semana do Carnaval ter esvaziado Lisboa)

    Ou talvez seja, para criar hipóteses absurdas para justificar o meu optimismo, por ter avistado há pouco um adepto, atrasado como eu, com uma camisola do Poborsky, o que só pode ser um sinal de que esta noite terá algo de mágico. Ou ainda por ter ouvido um senhor hoje no café dizer que, em vésperas de jogos grandes, quando sonha com um golo de calcanhar do Benfica, a vitória está garantida. Ou, vá-se a ver, por ter esta tarde visto um tipo engasgar-se a beber um fino quando assistia à antevisão do jogo na CMTV, e dito, quando recuperou: “Isso foi um presságio. Mas não sei é se bom ou mau”.

    Enfim, sinais não faltam. Se resultam em golos, logo se verá.

    Em todo o caso, temos aqui um problema: é que o meu atraso custou-me caro. Esgotou-se o farnel. Nem a pão e água estou. Pensando bem, nem é de todo mau – há semanas que ando a adiar uma dieta, e talvez esta seja a deixa que precisava.

    No relvado, tudo calmo por agora. O Barcelona pode não ser o colosso de outros tempos, mas continua a ser adversário de muito respeito. Troca a bola com aquela paciência estudada, como quem acredita que mais cedo ou mais tarde vai encontrar um buraco para ferir. Mas hoje não quero sofrer. Basta o que eu vou sofrer na próxima semana – e mais não digo por agora…

    (boaaaaaa… cartão vermelho para o Pau Cubarsí, que rasteirou um afoito e isolado Pavlidis; e quase que dava o bónus de penálti)

    Mais confiança. Está no ar, digo eu, uma oportunidade de ouro. Vão ser quase 70 minutos em superioridade numérica. Sei que ainda há muito jogo pela frente, mas a minha intuição não me engana: hoje pode ser uma daquelas noites em que a Luz se transforma num inferno para quem vem de fora.

    Agora é não facilitar – daqui é fácil de dizer. O Benfica tem de fazer valer o homem a mais, e nada melhor do que marcar já, ou daqui a cinco minutos, ou a dez, ou quando calhar: tem é de marcar, que isto não acontece todos os dias.

    Porém, estranhamente, enquanto denoto a incapacidade de o Benfica sufocar o Barcelona – as equipas portuguesas jogam contra o Barcelona ou o Real Madrid sempre com mais medo do que o Leganés ou o Osasuna –, começo a fraquejar no entusiasmo. Conheço este filme: tantas vezes já vi equipas reduzidas a dez crescerem dentro do jogo, das tripas fazerem coração, enquanto a equipa em vantagem numérica hesita, falha passes, exibe demasiadas cortesias no momento do remate, e contenta-se em trocar bolas como se houvesse um prémio para posse de bola estéril. E os adeptos querem é golo, nem que seja aos baldões.

    (para estragar a festa, e o Benfica apanhar uma valente e justificada multa da UEFA, os tontos dos No Name Boys, ou quem sejam eles, lançam tochas e outros artefactos; nunca compreendo a razão de as direcções dos clubes permitirem estas diatribes)

    Lá em baixo, não estou a ver grandes melhorias – e, na verdade, o jogo está equilibrado, com o Barcelona a ganhar até cantos e a fazer alguns remates. Vou ter de me concentrar uns minutos a assistir ao jogo para ‘meter’ energias nesta malta para que cheguem ao intervalo em dupla vantagem numérica: jogadores e golos.

    (pois bem, ou mal, termina o primeiro tempo, e só há vantagem em jogadores, e não em golos…)

    E recomeça o jogo. Entretanto, a fome aperta. Já parece que me cheira a bifanas. E começo a convencer-me de que, se o Benfica não marcar nos próximos cinco minutos, terei de reavaliar a minha relação com a dieta. Tento distrair-me com o jogo, mas a combinação de estômago vazio e nervos em alta não está a ajudar. O Barcelona, mesmo com dez, começa a ter mais bola, e eu começo a ver fantasmas. Isto de ser benfiquista é viver, em constância, entre o aconchego do sonho e o medo do trauma.

    Não sei se os jogadores são muito dados a palestras, nem se o Bruno Lage tem queda para prelecções entusiásticas. Mas, às tantas, devia ter pedido ao ChatGPT para lhe compor um discurso onde se clamasse que a História pode ser escrita também com os pés. E que esta noite o Benfica não joga somente para ultrapassar o Barcelona, mas para dar a um país cansado um vislumbre de grandeza, um motivo para acreditar que ainda há feitos que engrandecem, para além daqueles que envergonham.

    Portanto, quando tudo à volta parece um pântano, onde se afundam valores e esperanças, eles e o futebol são a tábua de salvação. Eu sei que é filosofia barata, mas com falinhas e bolinhos se enganam os tolinhos.

    (mas que lindo serviço nos fez o António Silva: falha um passe e o ex-sportinguista Raphinha marca; isto só visto)

    Lá se vai o ‘meu discurso’ para emplogar jogadores. Aquele paleio de que devem consciencializar-se para jogarem não pelo salário ou pelo prémio de jogo, ou pela progressão na carreira ou por estatísticas pessoais – que devem jogam, sim, para resgatar um orgulho que se tem esbatido entre manchetes de escândalos e o cansaço de um país que já nem se surpreende com nada. Jogam porque, entre o golfe do Montenegro, as avenças e o teatro habitual dos poderosos, o povo precisa de alguma coisa que seja só emoção e verdade – e o futebol, no seu estado puro, ainda pode ser isso.

    Agora, está a ir esfumar-se uma noite glorisa..

    Vamos lá! A História exige coragem. E a questão, como sempre, é se há coragem suficiente para não se deixar adormecer pelo medo, para não se contentar com a mediocridade, para não hesitar quando for preciso arriscar. Porque o medo de falhar muitas vezes pesa mais do que a vontade de vencer – e já vimos demasiadas equipas portuguesas a jogar contra colossos com um respeito que roça a subserviência. A História não se faz com medo.

    E eu a encher já chouriços…

    Agora, o pior não é perder. Perder, todos perdem alguma vez na vida. O pior é perder sem ter dado tudo, sem ter lutado, sem perceber a grandeza da ocasião. E temo que seja isso que me arrisco a assistir esta noite, aqui na Luz: contra um Barcelona reduzido a dez durante 70 minutos e sem o Benfica capaz de assumir o jogo, sem a ambição crua e visceral que transforma uma equipa boa numa equipa histórica. E o futebol não perdoa àqueles que hesitam, e a História muito menos.

    (lá em baixo, ninguém com um rasgo de talento; e o guarda-redes polaco, cujo nome não sei escrever e muito menos pronunciar vai dando conta do recado)

    Caminha o jogo para o fim – e, pela segunda vez, o raio do Raphinha fez das suas. Mais um murro no estômago, mais um lembrete cruel de que quem não quer ganhar acaba sempre por perder.

    E pronto: apito final. Saio daqui da Varanda da Luz com fome e com azia. Tudo mau. E esta crónica tornou-se simplesmente um repositório de filosofia barata e de frustração. Para a semana, lá estarei em Barcelona – mas acho que só lá vou para fazer turismo…

  • Frequência e conteúdo dos relatórios da pandemia mostram que Instituto Superior Técnico quis manipular políticos

    Frequência e conteúdo dos relatórios da pandemia mostram que Instituto Superior Técnico quis manipular políticos

    Afinal, os 51 relatórios do Instituto Superior Técnico (IST) sobre a evolução da pandemia da covid-19 existiam. Ou, pelo menos, passaram a existir – e foram, finalmente, enviados, em papel, para o advogado do PÁGINA UM, depois de um kafkiano processo no Tribunal Administrativo. O envio apenas ocorreu após um pedido de execução da sentença, com solicitação de aplicação de uma sanção pecuniária compulsória ao presidente do IST, Rogério Colaço, uma vez que a instituição universitária pública não cumpriu os prazos estabelecidos pelo acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, emitido em Dezembro passado.

    Dura lex sed lex. E pese embora o caso ainda não estar encerrado, porque o IST expurgou indevidamente dados dos relatórios – há já questões pertinentes a revelar. Uma análise, ainda que superficial, aos 52 relatórios – que a própria instituição chegou a designar como “esboços embrionários que consubstanciam meros ensaios para eventuais relatórios” – revela, de forma inequívoca, que alguns não foram produzidos com o propósito de fazer ciência, mas sim de fazer política e gerar alarme público, sem sequer apresentar a metodologia ou os dados utilizados.

    Essa instrumentalização nota-se particularmente na frequência com que o IST produziu os relatórios, que, a partir de Julho de 2021, passaram a contar com o dedo da Ordem dos Médicos – e, em particular, do então bastonário e actual vice-presidente da bancada parlamentar do PSD, Miguel Guimarães, e do pneumologista Filipe Froes, um dos médicos com maiores ligações comerciais à indústria farmacêutica.

    Com efeito, numa primeira fase, os chamados Relatórios Rápidos tiveram uma frequência quase diária. O primeiro foi produzido a 19 de Março de 2021 – embora, estranhamente, a capa indique 19 de Maio de 2021 – e, até ao final desse mês, foram elaborados nove documentos. Em dois meses, até finais de Abril de 2021, o IST tinha já feito 23 relatórios rápidos. Em Maio, foram apenas elaborados quatro, e em Junho, cinco.

    Nessa altura, os relatórios tinham apenas uma circulação restrita, entre académicos – até porque a intenção inicial era modelar um índice pandémico usando diversos indicadores epidemiológicos. Isso fica evidente logo no primeiro relatório, no qual os autores do IST escreveram, em Março de 2021: “Estamos disponíveis para responder a qualquer solicitação possível na análise dos dados disponíveis da pandemia”. Uma frase irónica à luz do processo que se seguiu: o PÁGINA UM teve de percorrer um calvário de 31 meses, através de uma intimação no Tribunal Administrativo, para obter aquilo que, afinal, os investigadores diziam estar disponíveis a dar, se solicitado.

    Certo é que se torna evidente que foi a partir de Julho de 2021 que os relatórios se politizaram, com a entrada em jogo da Ordem dos Médicos. Através de uma parceria nunca oficializada documentalmente – mas apresentada numa conferência de imprensa –, a Ordem começou a divulgar esparsamente os relatórios, conforme as conveniências.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes na sede do Ordem dos Médicos, em Julho de 2021, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. A partir daí, os relatórios do Instituto Superior Técnico ganharam um cunho mais político e com uma frequência para influenciarem medidas políticas.

    O primeiro Relatório Rápido também com a chancela da Ordem dos Médicos foi publicado a 19 de Julho de 2021 e recebeu o número 35. Nesse mês, de baixa incidência da covid-19, foi apenas publicado outro, o número 36. Seguiu-se então um hiato de quase dois meses: somente a 17 de Setembro foi publicado o relatório 37. E quase dois meses mais tarde, a 15 de Novembro, surgiu um novo relatório – coincidindo com o aparecimento da variante Ómicron e com a desejada (pela Ordem dos Médicos) vacinação de adolescentes e crianças. A partir desse momento, os relatórios rápidos voltaram a aumentar de frequência, quase sempre com um tom alarmista e com fraca base estatística a sustentá-los.

    Assim, entre 15 de Novembro e as vésperas do Natal de 2021, a equipa do IST / Ordem dos Médicos produziu cinco relatórios. Com a entrada em 2022, os relatórios foram cirurgicamente publicados, surgindo acompanhados de notícias que tinham o claro objectivo de influenciar as diversas medidas restritivas ainda em vigor.

    Por exemplo, o Relatório Rápido número 46 foi produzido a 15 de Fevereiro de 2022 para coincidir com reuniões informais no Infarmed. O IST deixou escapar o relatório para a agência Lusa, onde, sem qualquer sustentabilidade científica e estatística, se afirmava que “ainda existe a possibilidade da introdução de novas mutações” do coronavírus SARS-CoV-2, sendo muito recomendável uma vigilância por amostragem dos viajantes vindos de zonas de maior risco epidemiológico.

    O relatório seguinte, número 47, serviu novamente para fazer política, pois, mais uma vez, foi deixado escapar para a Lusa – mas nunca divulgado publicamente –, avançando a tese de que se estaria a ver o desenho de uma sexta vaga de forma muito clara. Acrescentava-se ainda que “o risco pandémico ainda não é muito elevado, mas é necessário perceber como vai continuar a evolução dos números”.

    Relatórios em 2022 serviram sobretudo para alimentar, na comunicação social, um clima de alarme para prolongamento das medidas restritivas e da testagem em massa.

    E, mais uma vez sem a prudência que a ciência exige – pois não existiam dados estatísticos para corroborar essas recomendações –, os investigadores do IST escreveram que “deve ser mantida a monitorização, todas as medidas em vigor devem ser mantidas sem relaxamento e deve ser indicado à população que é necessário tomar cuidados individuais”. Argumentaram, ainda, que o seu indicador de gravidade estava “em nível de alerta, com forte tendência de subida, e que a protecção imunitária estava, segundo a evidência recolhida, a descer”.

    O grau de ingerência política por parte dos investigadores do IST, em colaboração com a Ordem dos Médicos, atingiu o seu apogeu a 28 de Julho de 2022, quando os relatórios 51 e 52 chegaram ao cúmulo de quantificar, sem qualquer base científica, o número de infecções (350 mil casos) que as festividades populares causariam. Para além disso, atribuíam mesmo um número concreto de mortes (790, das quais 330 associadas às festas populares de Junho), recorrendo a uma lógica contrafactual sem base científica, sustentada apenas no facto de não se ter mantido a testagem e o uso de máscaras.

    Foi por sentir que a ciência estava a ultrapassar os limites da seriedade mínima – com atitudes indignas de uma instituição científica com o estatuto do IST – que o PÁGINA UM decidiu solicitar a totalidade dos relatórios. E perante a recusa, lutou nos tribunais até que um catedrático, Rogério Colaço, descesse do seu pedestal e se convencesse que Portugal não é a sua ‘sala de aula’ onde pode ser um tiranete sem consequências.

    A Lusa noticiou, em 28 de Julho de 2022, as conclusões de um estudo do Instituto Superior Técnico sobre o suposto impacte das festividades em Junho desse ano na transmissão e mortes por covid-19. A instituição universitária, que faz Ciência, quis convencer o Tribunal Administrativo de que aquilo que fez não foi um estudo, mas apenas “um esboço embrionário”. Ou uma “mera abordagem embrionária”.

    O processo demorou 32 meses, mas conseguiu-se. E conseguiu-se também que o IST deixasse de fazer mais “relatórios rápidos” deste quilate – o que também foi outra vitória do PÁGINA UM.

    Nos próximos dias, dado ser necessário digitalizar quase quatro centenas de páginas dos 52 relatórios – o IST não quis enviar os documentos digitalizados -, o PÁGINA UM irá divulgar integralmente os documentos. E assim se poderá livremente expor e avaliar-se a qualidade da ciência portuguesa nos tempos em que investigadores da academia decidiram também fazer política. O relatório rápido 1 – com o curioso engano logo na data – pode já ser consultado AQUI.


    N.D. Este longo caso, com uma sentença e um acórdão, levou 33 longos, com muito trabalho de um dos advogados do PÁGINA UM, Rui Amores, que foi inexcedível. Mas também se deveu muito aos leitores que, desde 2022, têm suportado os elevados custos dos processos administrativos, através do FUNDO JURÍDICO. O PÁGINA UM está a retomar mais processos de intimação, dois dos quais serão revelados ainda esta semana.

    N.D. 2 – Desde já se declara que este artigo noticioso se baseia em factos, em análise preliminar dos relatórios e da interpretação dos factos e do contexto no espírito da liberdade de imprensa e de expressão defendida pela imprensa. Não existe, nem se justifica, o alegado direito ao contraditório sobretudo para uma entidade que nunca mostrou disponibilidade para disponibilizar os relatórios, contrariando os princípios da Ciência e mesmo aquilo que escreveu no relatório rápido. Em todo o caso, quem desejar, pode ler a interpretação de Rogério Colaço num texto de direito de resposta publicado AQUI.

  • A nova corrupção: nem malas nem envelopes; apenas avenças

    A nova corrupção: nem malas nem envelopes; apenas avenças


    A corrupção política, tal como a conhecíamos, tornou-se anacrónica. Já não se faz através de malas recheadas de notas, como nos tempos do antigo deputado António Preto – acusado de corrupção por causa de 40 mil euros em notas mas que acabou ilibado, quase quinze anos depois. Também não é mais uma questão de gabinetes ministeriais convertidos em cofres privados, pois nenhum espaço é seguro, nem mesmo o do próprio chefe de gabinete do primeiro-ministro, como bem aprendeu Vítor Escária.

    Os novos tempos exigiram novas formas de assegurar o tráfico de influências, a retribuição de favores e a manutenção de uma rede de lealdades. E estas formas são agora mais sofisticadas, legalmente blindadas e de difícil rastreio. Há três métodos principais para esta nova corrupção, que não precisam da tradicional troca de envelopes ou de contas bancárias na Suíça.

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    O primeiro método é o pagamento diferido, ou seja, o político exerce o seu cargo e, depois, é premiado com um lugar de gestão bem remunerado. Esta é uma prática antiga, mas altamente volátil, pois depende da continuidade da administração que corrompeu. Além disso, não há garantia de que a empresa que beneficiou se lembrará da “dívida” quando chegar o momento de pagar, excepto se o visado mantiver influência política.

    O segundo método é mais directo e eficaz: a criação de empresas por políticos ou testas-de-ferro, para as quais são canalizados pagamentos disfarçados sob a forma de contratos de consultoria, assessoria ou prestação de serviços. Esta estratégia tem várias vantagens. Primeira, o político não precisa de declarar os rendimentos da empresa como sendo seus, desde que não haja distribuição de lucros. Segunda, pode usar essa empresa para cobrir despesas do quotidiano sem levantar suspeitas. Terceira, os clientes que pagam pelos supostos serviços podem ser facilmente ocultados, tornando praticamente impossível provar que um determinado pagamento se trata, na realidade, de um suborno. Por fim, quarta, o corruptor ainda consegue uma factura para abater nos lucros, pelo que, de forma indirecta, o Estado contribui, sem saber, para esse acto de corrupção porque recebe menos impostos por causa dessa ‘despesa’.

    O terceiro método, muito apreciado por advogados, é o uso do sigilo profissional para ocultar clientes e transacções suspeitas. Em Portugal, a confidencialidade das relações entre advogados e clientes impede que se saiba quem paga a quem e porquê. Se um político se envolve na advocacia, qualquer pagamento pode ser justificado como honorários, sem que ninguém possa escrutinar a natureza do serviço prestado – ou sequer se esse serviço existiu. Aliás, aquilo que mais se destaca nas declarações de rendimentos dos políticos na Entidade para a Transparência é essa justificação. Basta ver a do presidente do Parlamento, José Pedro Aguiar-Branco.

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    Seja qual for a via escolhida, a verdade é que a nova corrupção tornou-se tecnicamente quase indetectável, mas não menos óbvia. E os sinais que emanam da Spinumvira são mais do que um mero problema político – são um problema judicial. A forma como a empresa de Luís Montenegro aceitou uma avença da Solverde, ainda mais a um valor quatro vezes superior ao praticado no mercado (avenças do género custam pouco mais de mil euros por mês), sem que se perceba quais os trabalhos efectivamente realizados, não pode ser vista como um detalhe irrelevante.

    Pior ainda, isto acontece num momento em que se aproxima um concurso público para a concessão de casinos. Mesmo que já nada tivesse a ver com a sua empresa familiar, há clientes que não podem ser aceites, porque, em certas situações, são sempre ‘tóxicos’. E se uma empresa for boa, pode dar-se ao luxo de prescindir de algumas propostas, aceitando outras.

    Ora, se António Costa se demitiu (e bem) pelas suspeitas que recaíam sobre o seu governo, o que justifica que Montenegro continue a brincar com moções de censura e de confiança, como se fosse apenas uma questão de gestão política?

    Entre o medo do PS de ir a eleições e os jogos estratégicos dos partidos e do Presidente da República, o problema essencial permanecerá: Montenegro não tem apenas uma questão política para resolver – tem uma questão judicial.

    Se há algo a discutir nas próximas semanas, não é se o primeiro-ministro tem condições políticas para continuar, mas sim se o país aceita reescrever a semântica da palavra “corrupção” para acomodar esta nova realidade. Se sim, então passemos a chamar-lhe outra coisa – avenças, consultorias, parcerias.

  • Será Montenegro o carrasco do PSD?

    Será Montenegro o carrasco do PSD?


    Luís Montenegro chegou ao poder como promessa de mudança, mas em poucos meses já colecciona episódios que colocam em causa a sua credibilidade e a confiança dos cidadãos. Depois das últimas semanas, em que uma alteração da Lei dos Solos descambou em revelações pouco éticas (ou mesmo ilegais) sobre o seu passado, envolvendo a empresa Spinumviva, a questão não é apenas se haverá uma crise política que leve a novas eleições legislativas. A verdadeira questão é a integridade política de quem governa o país.

    Pode-se confiar num primeiro-ministro que, até há bem pouco tempo, recebia avenças mensais de empresas ligadas ao jogo e de outras entidades com as quais manteve relações comerciais antes de assumir funções governativas? E, num plano mais abrangente, podem os políticos continuar a proclamar um regime de transparência quando, na prática, este mais não é do que um exercício de opacidade institucionalizada?

    Os contornos deste caso – e das relações pouco saudáveis de um primeiro-ministro – deveriam inquietar qualquer cidadão atento. O histórico de Montenegro não é um exemplo de sólida integridade, sobretudo quando se considera os sucessivos contratos públicos da sua sociedade de advogados. Enquanto líder da oposição, auferia remunerações regulares de entidades cujo sector depende, directa ou indirectamente, da regulação e acção do Estado. O conflito de interesses é evidente e a justificação, frouxa. O primeiro-ministro apressou-se a garantir que tudo foi feito dentro da legalidade, como se isso, por si só, bastasse para ilibá-lo do problema ético maior: a percepção de que, antes de se sentar à mesa do Conselho de Ministros, estava comprometido com interesses privados.

    E os problemas não ficam por aqui. Hoje mesmo, veio a público mais um caso. Segundo o Correio da Manhã, há discrepâncias nas declarações de rendimentos enviadas pelo primeiro-ministro à Entidade para a Transparência (EpT), nomeadamente na compra de dois apartamentos em Lisboa. Os imóveis, avaliados em mais de 715 mil euros, foram pagos a pronto, sem recurso a crédito bancário. Porém, na aquisição de um deles, há um montante de 226 mil euros cuja origem não foi possível apurar. Confrontado com estas dúvidas, Montenegro saiu-se com a habitual evasiva: “A origem do meu património foi o trabalho. Não existem dados ou meios ocultos.”

    E há mais. Muito antes do caso Spinumviva, Montenegro já acumulava episódios que lançam sombras sobre a sua conduta. O primeiro-ministro beneficiou de isenções fiscais na construção da sua vivenda em Espinho. O pedido foi submetido à Câmara Municipal quando esta era liderada pelo seu amigo Pinto Moreira – que, por coincidência, está a ser julgado por corrupção. O parecer favorável foi posteriormente emitido pelo sucessor, o socialista Miguel Reis. Oficialmente, a obra foi licenciada como uma reabilitação, mas o que aconteceu foi uma construção nova: uma moradia de seis pisos perto da Praia Azul, que resultou da demolição de uma minúscula casa. O Ministério Público arquivou o caso, mas deixou muitas perguntas sem resposta.

    E quem se lembra do Galpgate? Em 2016, Montenegro, então líder parlamentar do PSD, foi um dos políticos apanhados na polémica das viagens pagas pela Galp para assistir ao Euro 2016. Apresentou mais tarde comprovativos de pagamento, mas há suspeitas de que os cheques foram emitidos apenas depois de o caso ter sido denunciado, com datas duvidosas e, nalguns casos, fora de validade. O inquérito foi arquivado em 2021, mas o rasto de desconfiança permanece.

    O problema, agora, é que Montenegro está politicamente ferido. Em vez de assumir responsabilidade, parece preferir colocar-se no papel de vítima, aguardando uma moção de censura – desta vez aprovada (com apoio do PS) – ou sendo empurrado para uma moção de confiança que não conseguirá vencer.

    Seja qual for o desfecho, o primeiro-ministro, que quis vender-se como um líder credível e confiável, está profundamente fragilizado. O PSD, num Governo minoritário sem rumo claro, encontra-se numa encruzilhada, talvez rezando para que não surja mais um “elemento” que destrua o pouco que ainda resta da credibilidade de Montenegro.

    A partir de hoje, se um novo escândalo rebentar e o Governo de Montenegro cair com estrondo, o PSD não terá apenas um problema de liderança – poderá estar perante o início do seu próprio colapso. Entre a Iniciativa Liberal e o Chega, que se aproveitarão da ‘desgraça alheia’, e a habitual transição de votos para o Partido Socialista, a sobrevivência do PSD pode ficar seriamente comprometida.

    Montenegro entrou já na História como líder do PSD e primeiro-ministro. Resta saber se o seu nome não acabará também gravado na lápide do seu próprio partido.

  • Patrícia Reis

    Patrícia Reis

    Na vigésima quinta sessão da BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com a escritora e jornalista Patrícia Reis.



    Jornalista e escritora com uma carreira multifacetada, Patrícia Reis entrou em 1988 no semanário O Independente, tendo posteriormente trabalhado na revista Sábado e realizado um estágio na Time em Nova Iorque. De regresso a Portugal, integrou a equipa do Expresso, produziu o programa de televisão ‘Sexualidades’ e colaborou ainda com as revistas Marie Claire e Elle e com o jornal Público.

    Paralelamente ao jornalismo, dedicou-se à escrita literária, publicando romances como ‘Cruz das Almas’ (2004), ‘Amor em Segunda Mão’ (2006), ‘Morder-te o Coração’ (2007) – este último finalista do Prémio Portugal Telecom de Literatura –, ‘No Silêncio de Deus’ (2008) e ‘Antes de Ser Feliz’ (2009), ‘Morder-te o Coração’ (2015), ‘A Gramática do Mundo’ (2016, com Maria Manuel Viana), ’A Construção do Vazio’ (2017), ‘Da Meia-Noite às Seis’ (2019). Escreveu também biografias, incluindo as de Vasco Santana, Maria Antónia Palla, Simone de Oliveira e, recentemente, de Maria Teresa Horta. E também uma longa série de livros infantojuvenis. Tem também uma longa experiência editorial, sobretudo na revista Egoísta.

    Patrícia Reis fotografada no PÁGINA UM.

    Nesta longa conversa com Pedro Almeida Vieira – no dia seguinte à morte de Maria Teresa Horta –, Patrícia Reis fala do seu percurso profissional, da sua escrita e da escrita dos escritores (e sobretudo das escritoras) que ama e sobre a força da Literatura.

    Entre os romances patentes na Biblioteca do PÁGINA UM, Patrícia Reis recomenda os romances ‘A Voz dos Deuses’, de João Aguiar, publicado em 1984, e ‘A Corte do Norte’, de Agustina Bessa-Luís, publicado em 1987.

    Pormenor da biblioteca ‘caseira’ de Patrícia Reis.