O PÁGINA UM fez um breve balanço da mortalidade do Verão de 2022: foi péssimo. O Verão de 2020 foi quase igual; o do ano passado pouco melhor. Nesta época do ano, a culpa pouco se pode dar à covid-19, mas as autoridades de Saúde não parecem preocupadas em saber os motivos da hecatombe. No triénio de 2020-2022, morreram no Verão mais de 10 mil pessoas face ao triénio anterior. Crianças com mais de 5 anos, adolescentes e jovens adultos com menos de 25 anos são os mais afectados. E, claro, os maiores de 85 anos.
Apesar das doenças letais (incluindo covid-19) terem causado, como habitualmente, uma maior mortalidade nos meses de Inverno, os últimos três Verões (2020, 2021 e 2022) foram muito mais mortíferos. Explicações oficiais só para o ano, na melhor das hipóteses, a considerar as previsões do Ministério da Saúde.
O recente Verão, que terminou às primeiras horas de ontem, confirmou aquilo que já se perspectivava: foi mesmo o mais funesto desde, pelo menos, 1980, aproximando-se dos 30 mil óbitos – valores que apenas se costumavam encontrar nos meses de Inverno.
Antes da pandemia, a mortalidade total no Verão raramente ultrapassava os 25 mil óbitos.
De acordo com os dados disponíveis do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), analisados pelo PÁGINA UM, o Verão de 2022 terminou assim com 29.620 mortes (valores ainda provisórios), um recorde (garantido) desde 2009, ano em que se começaram a apresentar valores diários. Contudo, considerando os valores mensais a partir de 1980, este terá também sido, muito provavelmente, o período estival mais mortífero nas últimas quatro décadas.
A situação do Verão deste ano é particularmente preocupante, porque surge na sequência de um contínuo e atípico excesso de mortalidade na Primavera, da ordem dos 4.500 óbitos, um incremento de quase 17% face ao último quinquénio.
Desde Março não houve um só mês sem a mortalidade estar bem acima da média do último quinquénio. Setembro deste ano deverá apresentar valores próximos dos 9.000 óbitos, número também elevado para esta época do ano. O nono mês costuma ser o menos mortífero.
A evolução da mortalidade em Portugal, numa altura em que a covid-19 está claramente na fase endémica, vem confirmar o descontrolo absoluto da Saúde Pública desde a chegada do SARS-CoV-2. A “culpa” já nem pode ser atirada ao coronavírus.
E isso nota-se sobretudo nos períodos de menor actividade viral, no período estival. Embora o Verão de 2021 tenha registado valores pouco acima do “normal” (27.005 óbitos) – mas beneficiando muito por via do morticínio do Inverno anterior, que “eliminou” os mais vulneráveis –, o de 2020 também foi bastante letal (29.079 óbitos).
Mortalidade total no período estival (21 de Junho a 22 de Setembro) entre 2009 e 2022. Fonte: SICO
Dessa forma, os Verões de triénio 2020-2022 foram 13,8% mais mortíferos do que o triénio imediatamente anterior (2017-2019): o somatório mostra uma diferença superior a 10 mil mortes (85.704 vs. 75.286).
Porém, e talvez seja esse o aspecto mais preocupante, o acréscimo de mortalidade não atingiu por igual todas as faixas etárias.
Na verdade, até houve grupos etários que apresentaram uma forte redução, como foi o caso dos menores de 5 anos: no triénio de 2017-2019 tinham morrido 247 crianças desta faixa, enquanto no triénio de 2020-2022 se contabilizaram 184 mortes, ou seja, uma descida de 25,5%. A taxa de mortalidade infantil (menores de 1 ano) reduziu 27,6%.
Houve mais dois grupos etários com reduções, mas mais limitadas: adultos dos 35 aos 44 anos (-3,5%) e dos 45 aos 54 anos (-1,2%). Nos 25 aos 34 anos, o Verão do triénio da pandemia foi praticamente semelhante ao anterior (460 vs. 458).
Óbitos por grupo etário entre 2017 e 2022 no período estival entre 2017 e 2022, e comparação entre os triénios 2017-2019 e 2020-2022. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.
No extremo oposto observam-se aumentos completamente atípicos nos Verões da pandemia. Em termos absolutos, o aumento maior verificou-se nos maiores de 85 anos, com um acréscimo de 6.682 óbitos nos três últimos períodos estivais.
O crescimento relativo foi de 22,5%, mesmo assim inferior ao que se contabilizou para os grupos das crianças dos 5 aos 14 anos (+23,8%) e dos adolescentes e jovens adultos dos 15 aos 24 anos (29,3%). Em termos absolutos, os aumentos foram de 15 óbitos no primeiro grupo (63, no triénio de 2017-2019, contra 78, no triénio) e de 70 no segundo grupo (239 contra 309).
A vacina contra a covid-19 prometia milagres, incluindo a redução drástica de mortes mesmo com doença grave. A variante Ómicron, entretanto, surgiu como um game changer, com uma menor agressividade e letalidade. Porém, se efectivamente no primeiro semestre de 2022 se observou menos hospitalizações, porém aumentou o risco de morte dos internados com quadros graves de covid-19. Este paradoxo ainda se evidencia mais no período de Março a Junho, e nos adultos entre os 25 e os 64 anos. Qual o motivo? A Direcção-Geral da Saúde, como habitualmente, remete-se ao (seu comprometedor) silêncio.
A probabilidade de morte de internados no grupo etário dos 25 aos 64 anos por covid-19 apresentou uma evolução paradoxalmente desfavorável no primeiro semestre de 2022 face aos períodos anteriores da pandemia, a despeito do programa de vacinação contra a covid-19 e da menor letalidade da variante Ómicron, de acordo com uma análise detalhada à base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar.
Nos adultos entre os 25 e os 44 anos, segundo os cálculos do PÁGINA UM, o risco de morte durante uma hospitalização causada pelo SARS-COV-2 no período de Março a Junho de 2022 chega a ser o triplo face ao período homólogo de 2020 e 2021, e duplica naqueles com idades compreendidas entre os 45 e 64 anos. Comparando o primeiro semestre deste ano com o do ano anterior, o aumento é menor, mas mesmo assim bastante significativo entre os 25 e os 64 anos.
Apesar da Ómicron ser claramente uma variante de menor agressividade e letalidade do que as anteriores – e, portanto, o risco da infecção se agravar até necessitar de hospitalização ser agora bastante menor, conforme o PÁGINA UM já comprovou –, há um aparente paradoxo, ainda não explicado pelas autoridades de Saúde: as hospitalizações diminuíram, é certo; a taxa de letalidade também, mas para quem evolui agora para um caso grave (que resulte num internamento) viu as suas chances de sobrevivência diminuírem se tiver entre 25 e 64 anos. Ou seja, a taxa de mortalidade em meio hospitalar da covid-19 aumentou.
Com efeito, na faixa etária dos 25 aos 44 anos, no primeiro semestre deste ano foram apenas internadas 420 pessoas contra os 1.484 em 2021 – o que mostra uma redução da agressividade do vírus, tanto mais que o número de infecções (casos positivos) foi muito superior. Ora, mesmo se o número de óbitos para este grupo foi menor entre Janeiro e Junho deste ano (24) do que no período homólogo passado (42), a taxa de mortalidade hospitalar acabou por ser superior: 5,7% em 2022 e 2,8% em 2021. Comparando os dois semestres, duplicou.
Evolução mensal da taxa de mortalidade hospitalar total (%) global (todas as idades). A vermelho apresenta-se a linha de tendência. Fonte: ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
De igual modo, no grupo etário dos 45 aos 64 anos, a taxa de mortalidade hospitalar no primeiro semestre de 2022 foi bastante superior à do ano passado, mesmo se o número de internados também desceu significativamente. Nos primeiros seis meses de 2022 contabilizaram-se nos hospitais do SNS um total de 1.167 doentes por covid-19, uma redução de 82% face ao ano anterior, mas a diminuição nos óbitos foi menor, apenas de 67% (190 vs. 578). Significa assim que a taxa de mortalidade hospitalar por covid-19 subiu de 8.9% no primeiro semestre de 2021 para 11,4% no primeiro semestre do presente ano. Noutra perspectiva, no ano passado, em cada 1.000 internados, morreram 89; este ano, 114.
Apenas na faixa etária dos maiores de 65 anos, se observou uma redução global em todos os indicadores quando comparados o primeiro semestre de 2021 e 2022: o número de internados desceu de 17.240 para 9.599; o número total de óbitos reduziu-se de 5.836 para 2.531; e, em consequência destes valores, a taxa de mortalidade hospitalar diminuiu de 33.9% para 26,4%.
Evolução mensal da taxa de mortalidade hospitalar (%) no grupo etários dos 25 aos 44 anos. A vermelho apresenta-se a linha de tendência. Fonte: ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Saliente-se que a mortalidade hospitalar nos menores de 25 anos foi sempre irrelevante do ponto de vista da Saúde Pública: desde Março de 2020 até Junho deste ano (28 meses) foram internadas 1.917 pessoas (69 por mês) e morreram sete, das quais cinco com idades entre os 15 e os 24 anos. A taxa de mortalidade hospitalar foi assim inferior a 0,4%.
Se este exercício for feito por períodos homólogos nos três anos de pandemia – sendo possível comparar os meses entre Março e Junho de 2020, 2021 e 2022 –, excluindo assim o período de descontrolo do Serviço Nacional de Saúde em Janeiro e Fevereiro de 2021 –, constata-se de uma forma ainda mais marcante este paradoxal fenómeno. Ainda mais sabendo-se que, virtualmente, toda a população com mais de 25 anos está vacinada, sendo que uma parte significativa recebeu ainda reforço.
Evolução mensal da taxa de mortalidade hospitalar (%) no grupo etários dos 45 aos 64 anos. A vermelho apresenta-se a linha de tendência. Fonte: ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
De facto, se no período de Março e Junho de 2020 e 2021, a taxa de mortalidade hospitalar se manteve muito semelhante tanto no grupo dos 24 aos 44 anos (1,44% vs. 1,51%) e no dos 45 aos 64 anos (5,59% vs. 6,11%), em 2022 agravou-se. E muito. Para o primeiro grupo subiu para 5,23% e para o segundo grupo para 11,70%.
Observando a evolução mês a mês desde o início da pandemia, a tendência crescente no período mais recente mostra-se evidente em ambos os grupos, embora com uma maior variabilidade (também por os valores absolutos de internados e óbitos serem menores) entre os 25 e os 44 anos. Para este grupo, nunca até Dezembro de 2021 houvera um mês com taxa de mortalidade hospitalar acima dos 5%, mas em 2022 já se registaram três meses acima dessa fasquia: Fevereiro (8,9%), Março (6,5%) e Junho (8,8%).
Evolução mensal da taxa de mortalidade hospitalar (%) nos maiores de 65 anos. A vermelho apresenta-se a linha de tendência. Fonte: ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
No grupo dos 45 aos 64 anos, a taxa de mortalidade hospitalar – que sempre apresentou uma grande variabilidade, embora até Dezembro do ano passado apenas por uma vez ultrapassara os 10% –, tem estado agora em níveis sempre acima dos 10%. No primeiro semestre de 2022, este rácio situou-se entre os 10,3% em Janeiro e os 12,6% em Fevereiro, havendo já três meses acima de 12%.
Para os mais idosos, acima dos 65 anos, a evolução foi diferente, mas também paradoxal, sobretudo por se estar perante um grupo etário com reforços vacinais. Entre Março e Junho de 2020, quase um terço (31,6%) dos casos graves de covid-19 que levavam ao internamento acabaram em desfecho fatal. Nesta altura, não havia ainda vacina. Esse rácio diminuiu para cerca de um em cada cinco internados (20,96%) em 2021 – já com a vacinação aplicada e “beneficiando” da morte dos mais vulneráveis nos fatídicos meses de Janeiro e Fevereiro. Este ano de 2022, com vacina e Ómicron, subiu estranhamente para 24,80% (ou seja, uma morte em cada quatro internamentos).
A evolução mensal da mortalidade hospitalar no grupo dos mais idosos mostra, aliás, que os casos graves (que chegam, por isso, ao internamento) mantiveram um padrão relativamente estável. Se exceptuarmos o início da pandemia (Março e Abril de 2020) e Janeiro de 2021 – com taxa de mortalidade que atingiu os 40,6% – e um breve período de 2021 (meses de Abril e Maio com taxas abaixo de 20%), este rácio quase sempre esteve compreendido entre os 24% e os 32%. Ou seja, neste grupo vulnerável – e que contribui para a grande maioria dos óbitos por covid-19 –, apesar do menor risco de internamento, o risco de morte em caso de hospitalização continuou em níveis elevados.
Nessa medida, aparentemente, os avanços médicos no tratamento desta doença, a menor agressividade da variante Ómicron e as vacinas não trouxeram impactes positivos substanciais em termos de probabilidade de sobrevivência em estados grave da doença.
Relembre-se que esta taxa de mortalidade hospitalar da covid-19 – calculada em função do número de óbitos por cada 100 doentes (graves) que são hospitalizados – não deve ser confundida com a taxa de letalidade, que corresponde ao número de óbitos em função dos casos positivos (infecções). Nem tão-pouco ao risco de internamento, que constitui a probabilidade de um caso de infecção chegar a necessitar de internamento.
Taxa de mortalidade hospitalar (%) nos grupos etários dos 25-44, 45-64, maiores de 65 anos e para a população portuguesa nos períodos de Março a Junho de 2020, 2021 e 2022, e ainda para o período de Março de 2020 a Junho de 2022. Fonte: ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Na verdade, tanto a taxa de letalidade como o risco de internamento baixaram em 2022 com o surgimento da Ómicron, como, aliás, o PÁGINA UM já demonstrou. Porém, fica por explicar um paradoxo: com uma menor pressão hospitalar (mesmo em termos absolutos), com um vírus agora menos agressivo (e letal) e ainda com as vacinas – apresentadas como um medicamento que prometia diminuir o surgimento de doença grave e de morte (no decurso de doença grave sujeita a hospitalização, pressupõe-se) –, quais então as razões para se estar com taxas de mortalidade hospitalar superiores às registadas em 2020 e 2021?
O PÁGINA UM gostaria de, pelo menos, saber a opinião da Direcção-Geral da Saúde. E escreveu mesmo um longo e-mail no passado dia 9 à directora-geral Graça Freitas, incluindo gráficos e alguns dos cálculos que agora se apresentam, pedindo-se explicações. Não obteve resposta. Como habitualmente.
Desde o seu nascimento, o PÁGINA UM mostrou ao que vinha: queria rigor informativo, e, para tal, necessitava de informação. Queria informação.
Um dos pilares da Democracia é a Imprensa livre e interventiva – aquela que observa e sindica os poderes sem concepções, sem receios e sem outra estratégia que não seja conhecer a Verdade.
Tem sido essa a visão do PÁGINA UM.
E, por esse motivo, foi com naturalidade, que o PÁGINA UM foi solicitando o acesso a documentos administrativos de diversas entidades, ainda no ano passado.
Perante a recusa sistemática por parte das diversas entidades, recorreu à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos. Recebeu, com uma excepção, pareceres favoráveis. Nenhuma entidade visada quis saber disso. Os pareceres da CADA não são vinculativos.
Por isso, desde Abril, o PÁGINA UM tem intentado, com o apoio dos seus leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO, diversos processos de intimação junto do Tribunal Administrativo.
Uma dúzia, 12, até agora.
Não tenho memória de um outro qualquer órgão de comunicação social ter intentado tantos processos de intimação desta natureza, até porque poucas vezes há “coragem” ou “interesse” em confrontar entidades como Ministérios, institutos públicos ou direcções-gerais, o Banco de Portugal, universidades ou, last but not the least, até o Conselho Superior da Magistratura.
Infelizmente, mais haverá, por certo, se houver condições financeiras e logísticas, embora o PÁGINA UM tenha a noção dos seus limites.
O Obscurantismo está enraizado na Administração Pública e nas entidades com funções públicas.
Com efeito, aquilo que mais me tem surpreendido, na generalidade dos processos no Tribunal Administrativo de Lisboa em curso, é o profundo zelo e a compenetrada abnegação com que as entidades públicas visadas procuram recusar o acesso a documentos públicos. Usam todos os argumentos jurídicos, desde as mais picuinhas até às mais descaradas mentiras, chegam a “jogar sujo” (como já fez a Ordem dos Médicos “encenando” uma queixa-crime). Tudo lhes vale.
E o que está em causa, afinal? Documentos públicos.
Mas são também documentos que permitem analisar, avaliar e qualificar as acções de pessoas que conjunturalmente gerem a res publica, daquelas próprias que “lutam” para que uma imprensa livre não lhes ponha a vista em cima.
Não estamos a falar de documentos com dados da vida privada de ninguém.
São documentos sobre os quais não está em causa qualquer devassa. São “apenas” dados de inquestionável interesse público.
Perante tantos obstáculos, e para também existir uma melhor percepão do esforço (que se espera não ser inglório) do PÁGINA UM , decidiu-se criar uma nova secção no jornal: TRANSPARÊNCIA.
Na secção TRANSPARÊNCIA – e porque os processos administrativos mesmo em curso não estão sujeitos a qualquer segredo –, o PÁGINA UM passará a disponibilizar uma cronologia e os documentos mais relevantes, designadamente os requerimentos iniciais, os argumentos da outra parte e os despachos e sentenças do Tribunal.
Este será um processo lento – mais ou menos em função dos apoios que o PÁGINA UM venha a ter –, mas prometemos colocar informação de todos os processos, mesmo daqueles (ou sobretudo daqueles) em que não seja dada razão ao PÁGINA UM.
Começamos hoje esta tarefa de TRANSPARÊNCIA com o processo de intimação contra o Infarmed por recusa em permitir o acesso à base de dados do Portal RAM, que detém informações sobre as reacções adversas das vacinas contra a covid-19 e do antiviral remdesivir.
Mais de nove meses após termos pedido essa informação, o Infarmed luta para não ceder informação de interesse público.
Qual é, afinal, o preço da Transparência?
Nota: O PÁGINA UM decidiu “descontinuar” o P1 TV, uma vez que nos confrontámos com a impossibilidade de encontrar uma solução financeira que garantisse os princípios basilares do jornal, entre os quais a sua independência. O esforço financeiro que o P1 TV acarretou e acarretaria para o futuro do jornal – com a produção de documentários, reportagens, depoimentos, etc. – seria incomportável. O P1 Tv foi assim um embrião que não “vingou”, mas que ficará sempre como uma referência. Muito provavelmente, regressaremos com um novo modelo, apenas sonoro (podcasts), mais ágil mas também mais compatível com os nossos recursos. Gostaria pessoalmente de deixar os meus agradecimentos ao Nuno André e ao Júlio Barreiros pelo trabalho entretanto desenvolvido, com destaque para o documentário “O Pão Nosso“.
Em 23 de Dezembro do ano passado, o jornal Público, que tem como director o senhor Manuel Carlos Carvalho (como surge inscrito na Comissão da Carteira Profissional de Jornalista), decidiu publicar um artigo intitulado “Dados clínicos de crianças internadas em cuidados intensivos com covid expostos nas redes sociais”, que fazia eco de ataques soezes de certos sectores da comunidade médica – leia-se, Ordem dos Médicos e seus apaniguados – ao PÁGINA UM, que nascera dois dias antes.
Em causa estava um artigo da minha autoria que revelava dados oficiais anonimizados de internamentos de crianças, provando assim que, mesmo podendo ocorrer hospitalizações por covid-19 em idade pediátrica, estas sempre foram extremamente raras e atingindo aquelas que já possuíam graves comorbilidades.
Manuel Carlos Carvalho, director do Público
Ora, como se sabe, houve pedidos meus de direito de resposta para diversos órgãos de comunicação social – todos inicialmente recusados, mas que viriam, com grande atraso, a ser alvo de decisões favoráveis por parte da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC).
Assim, no passado 24 de Agosto, após um longo processo, a ERC viria a deliberar a procedência ao meu recurso por “denegação ilícita do direito de resposta por parte do Público”, exigindo que o jornal do senhor Manuel Carlos Carvalho publicasse o direito de resposta.
Com legitimidade para tal, o Público tomou a decisão de contestar a obrigatoriedade de publicação do direito de resposta através de uma providência cautelar com efeitos suspensivos.
Mas, se esta estratégia do Público se mostra legítima – sobre a moralidade, não me pronuncio por agora –, também possibilitou confirmar com que linhas se cose o jornal do senhor Manuel Carlos Carvalho.
Num dos pontos do articulado do Público pelo seu advogado, Francisco Teixeira da Mota – prezado jurista da liberdade de imprensa, que curiosamente até já prefaciou um livro da minha autoria, pese embora repetidamente escreva “Paulo Almeida Vieira” no processo –, consta a seguinte pérola onde se “justifica” os motivos para se ter chamado “página de negacionistas anti-vacinas no Facebook” ao PÁGINA UM sem o identificar justa e correctamente como um normal órgão de comunicação social (que o Público sabia que era):
“A omissão do nome da página do Facebook ou do jornal que a alimenta foi uma decisão deliberada da Direcção Editorial do jornal PÚBLICO e da editora da secção da Sociedade que, com sentido de responsabilidade, não quiseram dar publicidade à publicação que, manifestamente, tinha tomado posições claramente atentatórias contra a necessidade de se criar consenso social em favor da vacinação, algo que o jornal assumiu e defendeu desde a primeira hora”.
Eis aqui a confissão da mais abjecta postura doutrinária de um jornal. A confissão expressa da Direcção Editorial do jornal Público de ter tido a clara intenção de prejudicar a credibilidade do PÁGINA UM, de um jornal que nascera dias antes, e de permeio desacreditar um jornalista com décadas de experiência, que colaborara com órgãos de comunicação social como o Expresso e a Grande Reportagem – e que, hélas, até publicara artigos de opinião no Público.
Eis também aqui a abjecta confissão da Direcção Editorial do jornal Público de se ter demitido da sua função informativa e de promoção de debate, assumindo o papel de “colaboracionistas” na criação de um “consenso social em favor da vacinação” universal, incluindo de jovens e de crianças. A confissão de terem, despudoradamente, negado os princípios da imprensa isenta e rigorosa.
Notícia do PÁGINA UM que revelou dados anonimizados de crianças internadas com covid-19
E isto quando, na verdade – e soube-se mais tarde, através de uma notícia de Março deste ano do PÁGINA UM – nem consenso havia então na própria Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC), o órgão consultivo da DGS.
Recorde-se que num primeiro parecer sobre a vacinação de adolescentes, homologado por Graça Freitas em 28 de Julho do ano passado, de entre 12 votos da CTVC registaram-se três contra e duas abstenções. Menos de duas semanas mais tarde, em 8 de Agosto registaram-se quatro votos contra e “uma pessoa não votou”. Estes pareceres foram escondidos durante meses pela DGS, e apenas foram revelados após pressão do PÁGINA UM na Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos.
Bem sei: a Direcção Editorial do Público não se preocupava com as minudências de investigar e questionar; andava sim, “com sentido de responsabilidade” (sic), só preocupada em doutrinar o povo para o tal “consenso social em favor da vacinação” – e daí também, muito responsável e nojentamente tratava de denegrir um colega de profissão que desejava informar os leitores.
O Público, o doutrinário jornal do “consenso social” não poderia assim informar os seus leitores de que o consenso sempre foi uma quimera, mesmo na classe médica. E que a DGS escondeu dados e especulou.
Enfim, fica-se, com esta reles confissão da Direcção Editorial do Público, a saber que, para certos jornalistas, quando alguém não está a favor da criação de “consenso social”, seja ele qual for no futuro, não só se pode – como até se deve – tudo fazer para descredibilizar o “opositor”, classificando-o como alguém que toma “posições claramente atentatórias contra a necessidade de se criar consenso social”.
O tempo, esse julgador, mostrará como gente sem carácter para se manter como jornalista – como seja os membros da Direcção do Público e a sua editora da Sociedade, que se julgam “exemplares cidadãos” – deverá ficar recordado na História.
Espero, sinceramente, que os sinais que mostram ter sido um erro colossal vacinar contra a covid-19 crianças, adolescentes e jovens adultos saudáveis não se confirmem como uma triste herança de tempos distópicos. Porque se se confirmarem, gente como eles não se mostrará apenas como uma mera cáfila de doutrinadores; será também vista como uma corja criminosa.
Nota: Com esta providência cautelar, acompanhada da recusa de publicar o direito de resposta, a Direcção Editorial do Público também consegue outro propósito: como sou parte contra-interessada terei de constituir advogado e pagar uma taxa de justiça de 306 euros. Por isso, nestas lutas, o PÁGINA UM – que não tem, como o Público, uma “mãe” (leia-se, Sonae) que lhe suporta prejuízos consecutivos bem superiores a 2 milhões de euros por ano –, apenas conta com os seus leitores, através do FUNDO JURÍDICO, para uma luta que se sabe nunca será fácil. Nem para o PÁGINA UM, nem para aqueles que o querem dobrar.
Quase 20% das famílias portuguesas está a receber descontos na factura da electricidade por ter rendimentos muito baixos. Uma análise detalhada do PÁGINA UM identificou as regiões e concelhos com as maiores carências, quase todas no Norte e Centro do país, onde faz mais frio no Inverno. Será que as famílias mais carenciadas aguentarão a prevista escalada de preços por força da galopante inflação?
Uma em cada cinco famílias estará a beneficiar de tarifa social de electricidade (TSE) – um apoio automático do Estado que, na verdade, revela uma situação de grande debilidade financeira que coloca a população portuguesa numa das piores situações europeias em relação à denominada pobreza energética. Com a aproximação do Inverno e a galopante taxa de inflação, a probabilidade de um impacte na Saúde Pública pode ser brutal, tendo em conta que os internamentos e a mortalidade aumentam com o frio.
De acordo com cálculos do PÁGINA UM, 19,3% das famílias portuguesas encontram-se abaixo de um limiar de rendimentos que as levam a necessitar de apoio estatal.
A situação mostra-se mais grave nas regiões Norte e Centro do país, atingindo os 32,4% – quase uma em cada três famílias – no distrito de Vila Real, e estando acima dos 20% nos distritos de Bragança (27,9%), Viseu (25,0%), Guarda (24,5%), Viana do Castelo (23,0%), Braga (21,2%) e Porto (20.9%).
As regiões com menor percentagem de aglomerados familiares com direito a TSE são, curiosamente, o Alentejo (Évora, Beja e Portalegre), e os distritos de Lisboa e de Faro.
Face ao desconhecimento do número de contratos de consumo doméstico por concelho por parte da Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), o PÁGINA UM considerou, para o cálculo das estimativas, o número de contratos beneficiários de TSE – disponibilizados para o mês de Junho – e o total das famílias apuradas pelos Censos de 2021.
Por concelho, três integrados no distrito de Vila Real se destacam em termos de percentagem de famílias a necessitarem de apoio estatal para pagar as contas de electricidade: Boticas (60%, com 1.225 contratos de TSE num total de 2.057 famílias), Montalegre (52%, com 2.042 contratos de TSE num total de 3.943 famílias) e Valpaços (48%, com 3.079 contratos de TSE num total de 6.472 famílias).
Acima dos 33% encontram-se ainda 15 municípios: três do distrito de Viseu: Vila Nova de Paiva (44%), Sátão (39%) e Resende (38%); mais três de Vila Real: Mondim de Basto (38%), Chaves (35%) e Santa Marta de Penaguião (33%); quatro de Bragança: Vila Flor (36%), Alfândega da Fé, Vimioso e Macedo de Cavaleiros (todos com 34%); um de Braga: Celorico de Basto (35%); três da Guarda: Sabugal (35%), Aguiar da Beira (34%) e Vila Nova de Foz Côa (33%); e ainda um do Porto: Baião (34%).
De entre os concelhos com menores percentagens de família com TSE salientam-se Castanheira de Pêra (9%), Penela (10%), Odemira e Alcoutim (ambos com 11%) e Arronches, Figueiró dos Vinhos, Santiago do Cacém, Estremoz, Coruche e Alcácer do Sal (todos com 12%).
Dos concelhos de maior dimensão, Lisboa tem 14% das famílias com TSE (34.944 contratos em 242.618 famílias), Sintra conta 21% (32.174 contratos em 153.234 famílias), Vila Nova de Gaia 20% (24.305 contratos em 121.311 famílias), Porto tem 18% (18.316 contratos em 102.227 famílias) e Cascais 16% (13.783 contratos em 86.497 famílias).
Recorde-se que desde Julho de 2016, o acesso ao benefício da tarifa social da energia eléctrica e também de gás passou a ser concretizado por um mecanismo de reconhecimento automático, através da Autoridade Tributária e Aduaneira e da Segurança Social.
São beneficiários os titulares de contratos domésticos que recebam complemento solidário para idosos, rendimento social de inserção, prestações de desemprego, pensão social de velhice ou invalidez ou o agregado familiar com um rendimento anual igual ou inferior a 5.808 euros, acrescido de 50% por cada elemento que não tenha qualquer rendimento, até ao máximo de 10.
No caso da TSE, o benefício consiste, actualmente, num “desconto de 33,8 % sobre as tarifas transitórias de venda a clientes finais de eletricidade, excluído o IVA, demais impostos, contribuições, taxas e juros de mora que sejam aplicáveis”.
Apesar da perda generalizada de rendimentos durante a pandemia, até houve uma redução global de beneficiários do TSE. De acordo com os dados da DGEG, a TSE reduziu-se de 780.255 contratos no final do primeiro trimestre de 2020 para 766.930 em Junho deste ano, ou seja, uma diminuição de 1,7%.
Em 25 de Agosto passado, Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente e Acção Climática, anunciou, a pretexto do aumento do preço dos combustíveis e electricidade, um conjunto de medidas de mitigação da inflação, nomeadamente a possibilidade de transição para o mercado regulado, a colocação de um preço máximo do gás doméstico e do apoio da Bilha Solidária. Além disso, O Governo alterou o IVA da electricidade de 23% para 6%, mas apenas para os primeiros 100 KWh, o que, de acordo com a DECO, resultará “numa poupança média mensal de 1,08 euros”.
O impacte nos próximos meses da subida do preço da electricidade pode ser significativo se o Inverno for particularmente frio, agravando assim os efeitos da denominada “pobreza energética” de Portugal, com consequências tanto no conforto como mesmo da taxa de mortalidade.
Nos últimos anos, de acordo com uma análise de Luísa Schmidt e Ana Horta, investigadoras do Instituto de Ciências Sociais, os preços da eletricidade para os consumidores domésticos em Portugal têm sido dos mais elevados da União Europeia, muito por via dos impostos.
Em 2019, o Eurostat indicou que os impostos e taxas incluídos nas faturas da eletricidade dos portugueses constituíram 55% do preço final. “Assim, num contexto sociocultural em que se considera normal ter frio em casa no inverno, muitos portugueses optam por reduzir ao mínimo os custos com aquecimento”, salientam as duas investigadoras.
Alguns dos indicadores compilados pelo Instituto de Ciências Sociais mostram que Portugal se encontrava já numa situação complexa do ponto de vista do conforto energético, com 18,9% dos portugueses incapazes de manterem a casa adequadamente quente, valor que confronta com 7% na União Europeia. As investigadoras consideraram também que, além do problema de rendimento das famílias, também se coloca o óbice da “literacia” energética, ou seja, as pessoas ignoram, em muitas situações, quais os tarifários mais adequados e outras medidas de poupança e de eficiência energética.
Esta madrugada, eram cinco horas e eu ainda estava a escrever, mas não era nenhuma notícia. Deveria ser, mas não era.
Estava a escrever “argumentos jurídicos”, para “auxiliar” o advogado do PÁGINA UM, Rui Amores, a contra-alegar no Tribunal Administrativo em dois dos processos de intimação que interpusemos para acesso a documentos administrativos.
São já 12, como será do conhecimento público, todos devido à falta de transparência de entidades públicas. Talvez sejam mais em breve, incluindo contra a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), cujo Secretariado veio, na semana passado, recusar-me o acesso a informações, em alguns casos relacionados com notícias que escrevi, alegando que, além de “constitu[ír]em documentos nominativos, sujeitos à proteção de dados pessoais”, eu não tenho “um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante”.
Já estamos na fase em que jornalistas da CCPJ defendem e promovem a tese de que os jornalistas, pela sua condição, não têm interesse em matérias que investigam. E que, basicamente, não devem chatear.
Não nos surpreendamos: o próprio Conselho Superior da Magistratura (CSM) já defende essa linha (não por acaso, é vê-la agora em estreita colaboração com a CCPJ). E mesmo tendo o CSM perdido um processo de intimação em primeira instância no Tribunal Administrativo de Lisboa, recorreu, pelo que o acesso continua ainda impossível.
Mas vejam então como dediquei esta noite “jurídica”, que só há pouco terminou com a escrita deste Editorial.
O primeiro processo, no qual estive a “alegar”, é recente – começou no mês passado. Tem como ré a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) – que, aliás, tem estado a criar regulamentos internos ad hominem (voltarei ao tema!) – e deve-se à recusa no acesso aos pedidos de confidencialidade de empresas de media para que fiquem secretos determinados fluxos financeiros. A transparência é a regra, mas há uns “amigos” que podem ser excluídos dessa obrigação. A ERC quer decidir… secretamente.
O segundo processo é mais antigo (iniciou-se em finais de Maio), e refere-se à recusa das Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos em ceder documentos operacionais e contabilísticos da campanha Todos Por Quem Cuida, que envolveu 1,4 milhões de euros, e o apoio financeiro da indústria farmacêutica. Embora considerado urgente, esta intimação já caminha para o quarto mês, tendo já 46 registos (movimentos) processuais. Tem sido interessante ver como as duas Ordens, mais as respectivas sociedades de advogados, lutam abnegadamente para não cederem os documentos requeridos para se avaliar como ganharam e como gastaram o dinheiro dos donativos.
Pormenor dos movimentos processuais da intimação sobre o acesso aos documentos da campanha Todos por Quem Cuida
Enfim, nos últimos tempos, uma parte dos meus dias de trabalho no PÁGINA UM não se mostra visível, sob a forma de notícias; são estas “burocracias”, as pequenas “batalhas” em prol da transparência, do acesso a documentos, apresentando requerimentos, reiterando pedidos de informação, compondo queixas. É desgastante, mas necessário. Os leitores não vêem este trabalho de formiga – e, por vezes, sinto que o menor fluxo de notícias, patente nas últimas semanas, pode influenciar a avaliação que se faz ao PÁGINA UM.
Mas sempre assumi que o PÁGINA UM, além de um projecto de jornalismo independente, seria um projecto de cidadania. O leitmotiv do PÁGINA UM é a Democracia, a defesa dos princípios democráticos, assumindo que a Imprensa é um dos instrumentos.
Nesta linha, os processos em Tribunal Administrativo – perante o inculcado e bem enraizado obscurantismo da Administração Pública – estão a servir também de teste à Democracia; servem para perceber se ainda existe uma entidade externa ao Poder, e às decisões arbitrárias deste em recusar o acesso à informação por parte dos cidadãos, que defenda a Democracia.
Sinto, por isso, cada um dos processos de intimação no Tribunal Administrativo como um teste à vitalidade da Democracia portuguesa.
Uma vitória – e tivemos duas embora ainda sem efeitos práticos, porque o Conselho Superior da Magistratura e a Ordem dos Médicos (um outro processos, sobre pareceres técnicos) recorreram – é sempre uma esperança.
Mas mesmo quando também há uma derrota, paradoxalmente, nasce uma esperança – mas por outros motivos.
Por exemplo, esta madrugada, no meio da consulta da plataforma dos meus processos, constatei que tive uma derrota. Foi ontem concluída a sentença da intimação para o Ministério da Saúde abrir o seu arquivo – para conhecer a gestão durante os anos da pandemia.
Ora, tendo eu pedido acesso integral do arquivo do Ministério da Saúde desde 2020, identificando as entidades a quem se dirigiam e recebiam ofícios e relatórios, a juíza entendeu, mesmo assim, que “atendendo à forma como o pedido foi formulado, a Entidade Requerida [Ministério da Saúde] não consegue satisfazer a pretensão, por não ser possível identificar, em concreto, a que documentos e informações o Requerente [eu] pretende o acesso, nem mesmo para perceber se estão em causa dados pessoais ou nominativos.”
E acrescenta, dando na ferradura, que “importa salientar que não se trata de negar o acesso aos arquivos e registos administrativos, que conforme acima se expôs, constitui um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, todavia, impõe-se aos requerentes dessa informação que concretizem o que pretendem, caso contrário, a entidade administrativa não consegue satisfazer o pedido.”
Esta decisão é surpreendente, porque a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos diz taxativamente que “se o pedido não for suficientemente preciso, a entidade requerida deve, no prazo de cinco dias a partir da data da sua receção, indicar ao requerente a deficiência e convidá-lo a supri-la em prazo fixado para o efeito, devendo procurar assisti-lo na sua formulação, ao fornecer designadamente informações sobre a utilização dos seus arquivos e registos.” Algo que o Ministério da Saúde nunca fez nem propôs. Aliás, o Ministério classificou logo o pedido do PÁGINA UM de “manifestamente abusivo“.
Mas, mesmo assim, a juíza achou que como não consegui identificar em concreto os documentos – talvez o número dos ofícios ou o título de relatórios, que só poderia saber se fosse adivinho –, mesmo se identifiquei as entidades envolvidas e o intervalo de datas, “não se impõe à Entidade Requerida que entregue ao Requerente a informação e documentos requeridos.”
E, pronto, improcedente, e pague-se as custas… Ou recorra-se para o tribunal superior, com mais custas, que é aquilo que se fará enquanto houver dinheiro do FUNDO JURÍDICO. E esperança…
E, então, perguntam os leitores: onde está afinal a esperança nesta derrota?
Está em poder contribuir para muitos acordarem do torpor (quase) colectivo que deixou a nossa Democracia apodrecer.
Embora com meios incomensuravelmente menores do que as entidades públicas, o PÁGINA UM não vergará facilmente na sua luta em prol da transparência e do acesso à informação. No caso dos processos judiciais, que podem envolver custos acrescidos em caso de derrota, os apoios podem ser concedidos ao FUNDO JURÍDICO. Para o apoio ao trabalho jornalístico, podem apoiar através de várias modalidades.
O PÁGINA UM pegou nos dados possíveis, aqueles poucos que o obscurantismo do Ministério da Saúde deixa escapar a contragosto, e revela como evoluiu a pandemia em Portugal, desde Março de 2020 até Junho de 2022. E mostra como não faz sentido andar a contar ondas (seis, dizem), e que é mais importante olhar para a forma como evoluíram as taxas de internamento e o risco de morte. E identifica ainda o momento exacto em que tudo mudou, para melhor: Novembro de 2021. Foi por causa das vacinas? Foi por causa da Ómicron? Não decida. Deixe a Ciência ter a palavra, embora seja conveniente que essa seja diferente daquela que maioritariamente se viu, desde 2020, a lançar “certezas” e conjecturar previsões à moda dos búzios e de relatórios-fantasma.
A Direcção-Geral da Saúde (DGS) não responde nem comenta. O Ministério da Saúde luta, afincadamente, no Tribunal Administrativo de Lisboa para não ceder documentos e bases de dados, nomeadamente as do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE) e do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO). As autoridades de Saúde e de Estatística manipulam dados, de sorte que o cruzamento da pouca informação disponível se mostra complexa ou mesmo impossível.
Veja-se, por exemplo, o intencional desfasamento dos grupos etários em diversas bases de dados, para assim impedir o cálculos de indicadores epidemiológicos por entidades e pessoas independentes.
E neste cenário, last but not the least, ainda tivemos a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) a expurgar, durante meses, a base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar (BDMMH), por estar, a dita base de dados, a comprometer uma certa “narrativa oficial” sobre o desempenho oficial do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Entretanto, “regressou” a dita base de dados, há uns poucos dias, depois de muita pressão e denúncia do PÁGINA UM. Mas com dados estranhos, como a estranha diminuição abrupta dos internamentos e mortes hospitalares sobretudo nos últimos meses.
Porém, acreditando que estamos perante dados oficiais credíveis – até prova em contrário ou admissão de “martelanço” –, a ressuscitada BDMMH permite, em cruzamento com alguns dados básicos da DGS relativos à covid-19, estabelecer uma evolução da pandemia em Portugal, desde Março de 2020 até finais de Junho deste ano, em diversos indicadores relevantes: incidência, risco de internamento, risco de morte (taxa de letalidade) e também de mortalidade hospitalar.
Nesta análise deixaremos a mortalidade hospitalar associada à covid-19 para outra oportunidade.
Uma questão relevante em Epidemiologia, sobretudo quando se trata de doenças causadas por vírus, é a assumpção de que um agente ou uma doença não são imutáveis. No caso do SARS-CoV-2, e pese embora todo o alarmismo que o rodeou – em que esteve sempre omnipresente o receio de sempre surgir uma variante pior do que a anterior, mesmo se a História mostrava o contrário noutras situações –, seria, na verdade, mais do que expectável que a sua transmissibilidade e letalidade do vírus evoluísse nestes dois domínios.
E, nessa medida, a covid-19 de 2020 fosse diferente da covid-19 de 2021, e esta fosse diferente da covid-19 de 2022, até estabilizar numa fase endémica.
Será que foi?
Vejamos.
Observando em detalhe a evolução mensal dos casos positivos – e sem prejuízo das sempre criticáveis políticas de testagem, que se tornaram um negócio –, mostra-se evidente que, do ponto de vista da incidência, e numa perspectiva holística, nunca se poderá falar de seis ondas – o número que a generalidade dos “especialistas”, políticos e imprensa contaram desde Março de 2020. Na verdade, nem cinco tivemos, nem quatro; quando muito, houve duas ou, no máximo, três.
Evolução da incidência por mês (casos positivos) de covid-19 desde Março de 2020 até Junho de 2022. Fonte: DGS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Por exemplo, a dita “primeira onda” que começou em Março de 2020 e se estendeu até Maio daquele ano contou apenas um total de cerca de 33 mil casos, ou seja, pouco mais de 10 mil por mês. Ora, essa média mensal na, incorrectamente chamada, primeira onda é praticamente similar à média diária em Abril de 2022, o mês do primeiro semestre deste ano com menor incidência cumulativa.
Se considerarmos os casos positivos de Janeiro de 2022 (cerca de 1,3 milhões), praticamente todos da variante Ómicron, verificamos também que foram em maior número do que os casos contabilizados em todos os longos meses em que dominaram as outras variantes.
Nessa perspectiva, nem os surtos do Inverno de 2020-2021 – que se destacam dos períodos imediatamente anteriores e posteriores – se mostra comparável à verdadeira onda registada no primeiro semestre de 2022, onde cerca de 37% da população portuguesa foi “infectada”, o que dá uma média mensal de 6%. Só em Janeiro passado, chegou a mais de 12%.
Nos 22 meses anteriores (desde Março de 2020 até Dezembro de 2021) tinha sido “infectada” cerca de 14% da população, dando assim uma média mensal de 0,6%. Mesmo as “infecções” registadas em Janeiro de 2021, que se destacou de todos os outros meses anteriores a 2022, somente “atingiram” 3% da população.
Deste modo, mostra-se difícil defender agora a existência de mais do que duas ondas de “casos positivos” (Inverno de 2020-2021 e primeiro semestre de 2022), e quando muito três, se se admitir que no primeiro semestre de 2022 se conseguem identificar duas.
A evolução da pandemia veio, na verdade, demonstrar que olhar para “ondas de casos” – ou “pandemia de testes”, como se chegou a chamar, com propriedade – foi um absurdo, uma vez que nunca houve nem uma correlação entre casos e internamentos nem entre casos e óbitos (entre internamentos e óbitos, já lá iremos…)
De facto, observando a evolução do número de internamentos por mês atribuídos à covid-19, de acordo com a BDMMH, a mediana rondou os 1.800 – ou seja, em metade dos 28 primeiros meses da pandemia (Março de 2020 a Junho de 2022) nunca se ultrapassou aquele número. Por outro lado, a média mensal ficou um pouco aquém dos 2.500 internamentos.
Se considerarmos a fasquia dos 3.000 internados, somente no período de Novembro de 2020 até Fevereiro de 2021 se registou um fluxo muito mais significativo de internamentos: acima dos 6.000 nos dois últimos meses de 2020 e acima dos 10.000 nos dois primeiros meses de 2021.
Evolução do número de internamentos por mês por covid-19 desde Março de 2020 até Junho de 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Nessa medida, a definirem-se “ondas de internamentos” (que significam, além de um indicador da agressividade do vírus, picos de pressão hospitalar), então apenas houve uma em Portugal: iniciada em Outubro de 2020 (2.312 hospitalizações) e que findou em Março do ano seguinte (2.760), tendo causado hospitalizações acima dos 6.000 internamentos em Novembro e Dezembro e atingido o auge em Janeiro e Fevereiro de 2021 (com mais de 10.000 internamentos em cada mês).
A essa onda única sucedeu uma relativa estabilidade nos internamentos, quase indiferente aos casos positivos. No último ano com dados, entre Julho de 2021 e Junho de 2022, contabilizam-se seis meses com internamentos entre os 1.700 e os 2.000, havendo apenas dois meses (Janeiro e Fevereiro) excedendo aquela fasquia.
Convém, contudo, salientar que Janeiro e Fevereiro deste ano tiveram uma incidência de infecções por SARS-CoV-2 cinco vezes superior ao período invernal homólogo do ano anterior (1,97 milhões de casos positivos vs. 384 mil)
No caso da evolução da mortalidade, embora ainda seja necessário a DGS esclarecer muitos aspectos – por exemplo, a elevada fracção de óbitos registados fora das unidades hospitalares (8.549 mortes, no total) e o contributo de comorbilidades relevantes para a causa de morte –, a covid-19 foi efectivamente uma causa de morte muito relevante em determinados períodos, se comparada, por exemplo, com as doenças respiratórias “associadas” à gripe.
Evolução do número de óbitos por mês atribuídos à covid-19 desde Março de 2020 até Junho de 2022 nos hospitais do SNS e fora dos hospitais. Fonte: DGS e BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM. Nota: A DGS indica os óbitos totais e a ACSS os óbitos apenas ocorridos nos hospitais do SNS; pela subtracção obtém-se os óbitos fora dos hospitais. Em dois meses (Abril e Maio de 2021), o valor indicado pela ACSS (hospitais) foi ligeiramente superior ao indicado pela DGS (total), daí o valor negativo para os óbitos fora dos hospitais.
No início da pandemia (Abril de 2020), a mortalidade atribuída à covid-19 pode ser considerada bastante relevante por ser superior à expectável face à pneumonia, mas foi no período de Outubro de 2020 a Março de 2021 que a situação assumiu um cenário mais grave.
Neste último período, a mortalidade associada ao SARS-CoV-2 foi, sem dúvida, anormalmente elevada, em especial nos meses de Janeiro e Fevereiro de 2021, mesmo tendo em conta a estação do ano (Inverno). Em todo o caso, dever-se-ia encontrar uma explicação plausível para se contabilizarem, naqueles dois meses, respetivamente 2.557 e 1.066 óbitos fora de unidades hospitalares do SNS.
Após Março de 2021, a mortalidade atribuída à covid-19 não deve ser considerada anormal do ponto de vista da Saúde Pública, se atendermos que esta doença veio “substituir”, em grande medida, uma parte das doenças respiratórias – sendo disso prova a redução abrupta e persistente dos internamentos e óbitos associados a pneumonias e outras doenças similares.
Comparando o primeiro semestre dos três anos de pandemia (2020-2022) com o primeiro semestre dos três anos imediatamente antes (2017-2019), as mortes por doenças do aparelho respiratório diminuíram 24% (14.445 vs. 22.567 óbitos, ou seja, menos 8.131 mortes).
Os óbitos atribuídos à covid-19 no período invernal de 2021-2022 – um total de 3.554 mortes entre Novembro de 2021 e Março de 2022 – já não parecem assumir valores anormais, considerando o quase desaparecimento da época gripal (e das mortes a si associadas). A mortalidade nos meses seguintes pode classificar-se como elevada em função da época do ano, mas, como já referido, deveria ficar esclarecida se a elevada fracção de óbitos atribuídos à covid-19 que ocorreram fora dos hospitais do SNS não “inflacionou” os efeitos do SARS-CoV-2.
Em todo o caso, a evolução dos números da mortalidade atribuída à covid-19 (em meio hospitalar e fora dos hospitais) apresenta tendência para estabilizar, em termos absolutos, desde Dezembro do ano passado.
Contudo, nos quatros meses em que se mostra possível comparar três anos sucessivos (Março a Junho), verifica-se que 2022 (já com vacinação plena, incluindo reforços, em quase toda a população “vacinável”) foi aquele com maior número de óbitos por covid-19 (3.063), contrastando com os 750 óbitos em 2021 (contudo, após o morticínio de Janeiro e Fevereiro) e com os 1.579 óbitos de 2020 (no início da pandemia).
Esta análise da evolução dos casos positivos, das hospitalizações e dos óbitos serve, na verdade, sobretudo como base para a criação de indicadores epidemiológicos que, de forma simples, ajudam a demonstrar que a covid-19 não é hoje, em 2022, a mesma de “antanho”. E também permite aferir, à falta de transparência do Ministério da Saúde em disponibilizar dados discriminados do SINAVE e do SICO, os momentos-chaves da mudança.
Em suma, identificar os períodos em que a covid-19 deixou de ser um problema de Saúde Pública.
Um dos indicadores mais interessantes que deveriam ser disponibilizados pela DGS – e nunca o foram – é o do risco de internamento, para o qual basta uma análise fina aos dados do SINAVE, de modo a saber, em cada período, a probabilidade de um infectado ser hospitalizado.
Perante o lamentável obscurantismo da DGS – e a demora do Tribunal Administrativo em responder à intimação apresentada pelo PÁGINA UM –, pode-se, em todo o caso, “caçar com gato”, e estimar um valor próximo através do cálculo da razão entre internamentos e casos positivos (infelizmente, apenas para a população em geral, uma vez que os grupos etários para os casos são diferentes dos que se referem aos internamentos).
Referia-se que existe um enviesamento neste indicador calculado desta forma – fazendo com que não constitua um risco efectivo de internamento –, porque existe um deferimento entre a infecção e o internamento (e a eventual morte). Deste modo, os infectados de um período podem ser os internados do período seguinte. Ora, apenas com o SINAVE se poderá apurar esse indicador com rigor.
Colocadas estas premissas, mesmo assim o indicador que se calcular constitui uma aproximação bastante interessante da realidade, permitindo identificar cinco períodos distintos ao longo da pandemia.
Na primeira fase da pandemia, até Agosto de 2020, o risco de internamento dos “infectados” (medido pelo número de casos positivos) foi relativamente elevado, sobretudo em Abril e Maio, quando se atingiu um risco de 14,2% e 18,6%, respectivamente. Neste último mês atingiu-se o valor mais elevado de risco de internamento ao longo de toda a pandemia, embora se deva considerar que, neste período, se optava pela hospitalização, por prudência, mesmo em casos não demasiado graves.
Evolução do risco de internamento (internados por casos positivos, em percentagem) por mês por covid-19 desde Março de 2020 até Junho de 2022. Fonte: DGS e BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Depois deste período, o risco de internamento situou-se entre os 3% e os 6% no período de Setembro de 2020 a Janeiro de 2021, aumentando depois, num terceiro período, para 13,2% em Fevereiro de 2021 e para 15,9% no mês seguinte.
Um quarto período começou em Abril – ainda de transição, com o indicador a baixar para 6,1% –, estendendo-se até Outubro de 2021, com o risco de internamento a variar entre os 2% e os 5%. Tendo em consideração que, neste período de Maio até Outubro de 2021, a taxa de vacinação abrangia já praticamente toda a população mais vulnerável (acima dos 65 anos), parece evidente advir daí uma redução no risco de internamento: foi de 2,8%, que confronta com os 5,6% do período homólogo do ano anterior (ainda sem vacina). Porém, dir-se-á sempre que essa redução do risco entre estes períodos homólogos (com e sem vacina) é de 50%.
De facto, somente a partir de Novembro de 2021, e especialmente a partir do mês seguinte, o risco de internamento diminuiu fortemente. Em Dezembro do ano passado situou-se apenas nos 0,7% – ou seja, em cada 1.000 infectados, somente sete necessitaram de internamento –, estando assim pela primeira vez abaixo de 1%. Ao longo de 2022, este rácio esteve sempre inferior a 0,6%.
Pergunta-se: foi por causa da vacina ou foi a menor agressividade da variante Ómicron? – eis a questão dos milhões de euros que a pandemia ainda faz rodar em negócios.
Certo é que, se for a vacina, os seus benefícios custaram muito tempo a chegar; se não tiver sido a Ómicron a constituir o game changer, então foi uma coincidência extraordinária as vacinas se terem tornado eficazes (em evitar o risco de internamento) no exacto mês em que aquela nova variante surgiu e se tornou rapidamente dominante (e muito mais transmissível).
Em todo o caso, a evolução da pandemia, mesmo antes do surgimento da Ómicron, evidencia que as vacinas contra a covid-19 tiveram um efeito benéfico, embora temporário, na redução significativa da letalidade.
Com efeito, e com similares premissas às que se apresentaram para o risco de internamento – e face à impossibilidade, por causa da política de obscurantismo da DGS, de analisar a evolução por faixa etária –, pode-se estimar também a taxa de letalidade global (para toda a população), através do cálculo do rácio óbitos por infectados em cada mês.
Esse indicador permite confirmar, atendível a estratégia de testagem, que a taxa de letalidade – ou o risco de morte em caso de infecção – foi bastante elevada (acima de 1%) até Março de 2021, com alguns períodos com valores preocupantes: Março a Maio de 2020 e Dezembro de 2020 a Março de 2021.
A partir de Abril de 2021, a taxa de letalidade ficou sempre abaixo de 1%, o que apenas sucedera no primeiro ano da pandemia num curto período (Setembro e Outubro de 2020).
Contudo, a partir de Abril de 2021 – com o processo de vacinação em “velocidade de cruzeiro” –, assistiu-se, aparentemente, a uma progressiva redução do efeito protector das vacinas. Isto porque a taxa de letalidade aumentou sensivelmente a partir dos meses de Junho e Julho daquele ano (0,23% e 0,30%, respectivamente) a atingir os 0,86% em Outubro.
E eis que a seguir, repentinamente, baixou de novo, quedando-se nos 0,49% em Novembro, e depois ainda se reduziu nos meses seguintes. Ao longo de 2022, a taxa de letalidade da covid-19 variou entre os 0,08% em Janeiro e os 0,22% em Junho.
Evolução mensal da taxa de letalidade (óbitos por casos positivos, em percentagem) por covid-19 desde Março de 2020 até Junho de 2022. Fonte: DGS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Não havendo informação que permita, de forma expedita, calcular a taxa de letalidade por grupos etários, pode-se sempre dizer que para os mais idosos esse indicador será agora, certamente, inferior a 2%, quando nas primeiras fases da pandemia se situava nos 15%. Nos mais jovens continua irrelevante, porque sempre foi.
Também para o risco de morte, a mesma pergunta: qual a causa desta favorável evolução? As vacinas – que começaram a ser administradas no final de Dezembro de 2020 e tiveram já vários reforços – ou a variante Ómicron, que surgiu exactamente na altura que a taxa de letalidade parecia ir disparar com a chegada do Inverno?
Em tempos normais, a Ciência debateria essa questão de forma aberta, com base em hipóteses e com todos os dados (leia-se, informação oficial) em cima da mesa, sem truques, sem omissões sem necessidade de intervenção do Tribunal Administrativo para se aceder a informação oficial, sem tramoias de burocratas que “expurgam” bases de dados para satisfazer amigos governantes.
Mas, infelizmente, uma coisa esta pandemia nos demonstrou: a Ciência tornou-se maleável e submissa ao poder político, e, nessa medida, jamais desejará agora discutir abertamente alguns temas, que se tornaram tabu, porque comprometedores da sua independência e idoneidade.
Quando se diz Ciência, estamos a falar dos cientistas que, por acção ou omissão, mandaram os seus princípios às malvas.
O Ministério do Ambiente e da Acção Climática e o seu titular, Duarte Cordeiro, estão tão imbuídos da missão de facilitadores e fazedores do Bem que, enfim, até na fase de consulta pública do denominado Simplex Ambiental – ou, mais pomposamente, do diploma que visa a “simplificação de licenças e procedimentos para empresas na área ambiental” – dão dicas para quem quiser comentar ou tecer recomendações, até amanhã.
Escrevem eles – ou, enfim, o Governo – que se deve incluir “uma reflexão sobre impactos em termos de custos de contexto (i.e., aumento ou diminuição de encargos associados ao cumprimento das obrigações legais que decorram desta iniciativa legislativa)”, e que se considere “o custo de oportunidade associado ao tempo em que os procedimentos administrativos ficam parados (ou seja, a duração média dos processos de licenciamento) (…), bem como ao facto de, na prática, não ser possível, muitas vezes, beneficiar efetivamente da figura do deferimento tácito.”
Duarte Cordeiro, ministro socialista do Ambiente e Acção Climática
O diabo costuma estar nos pormenores; mas, neste caso, aparenta estar em toda a proposta, e em todo o seu esplendor. Todo o diploma cheira mal em cada um dos seus poros.
Sejamos claros: com este diploma – que também elimina a obrigatoriedade de muitos projectos de apresentarem avaliação prévia do impacte ambiental (em grande parte sob o “chapéu” da urgência de medidas de descarbonização, bondade que parece justificar tropelias e atropelamentos) –, o Governo não deseja desburocratizar.
Não o move, na verdade, encurtar prazos para o avanço daqueles projectos com impacte ambiental que, com a devida e ponderada “regulação” da Administração Pública, mereceriam sempre uma aprovação. Se assim fosse, bastaria ao Governo eliminar algumas redundâncias burocráticas, e apostar sobretudo num reforço dos meios humanos e técnicos, retocando a logística administrativa. Aumentava-se a eficiência da máquina administrativa, e eis que tínhamos prazos encurtados e tramitações simplificadas.
Ah, mas isso não! O Estado não quer instruir nem treinar os “jogadores” que lhe batem à porta, fazendo com que acertem as suas bolas numa baliza estreita. O bondoso Estado – ou melhor, o Governo que circunstancialmente detém o poder de gerir o território do país – está disposto a arranjar uma baliza gigantesca, onde tudo caberá: os projectos normais, que seriam aprovados mesmo com avaliação de impacte ambiental, e, enfim, os outros projectos “anormais” que, com as actuais regras do jogo, jamais seriam aprovados.
Portanto, assim se conseguirá, com o álibi de acelerar prazos – como se o ontem já fosse tarde para os amanhãs gloriosos – autorizar todas as tropelias.
Porém, aquilo que verdadeiramente me assusta neste diploma é a figura do “deferimento tácito”. Causa-me calafrios. Apetece logo puxar da pistola (leia-se, caneta) e disparar sem perguntas nem remorsos.
Sou jornalista desde os anos 90, e ademais comecei no jornalismo ambiental e de urbanismo, pelo que bem sei o significado de um “deferimento tácito”: caminho aberto para esquemas menos claros.
Para quem não conhece o termo, o deferimento tácito significa uma aprovação por ultrapassagem do prazo de análise pelo Estado. Ou seja, é um prémio concedido pelo Estado à incompetência involuntária ou intencional da Administração Pública. Ou ainda um prémio ao requerente que, por “artes mágicas”, consegue que, algum funcionário estatal ou membro do Governo, vá colocando outros projectos em análise sempre em cima do seu, de modo que, enfim, hélas, o prazo passa… e voilà, aprovação.
No diploma em causa, promovido pelo bondoso ministro Duarte Cordeiro, conta-se 25 vezes o termo “deferimento tácito”, e lá estão estabelecidos, em detalhe, os trâmites, céleres e desburocratizados, para a obtenção de um “licenciamento de secretaria”. Portanto, passa o prazo, e o promotor de um determinado projecto tem a garantia de que, fazendo um requerimento electrónico, a Agência para a Modernização Administrativa lhe passará uma “certidão no prazo de três dias úteis”, após os serviços tutelados pelo ministro do Ambiente confirmarem, no prazo de um dia, que houve deferimento tácito. Se os serviços do ministro do Ambiente nada disserem em um dia, segue a certidão à mesma.
Modelo de requerimento previsto no Simplex Ambiental para o pedido de deferimento tácito.
Só para mostrar que não se cumpriram prazos de análise, o Estado mostra rapidez e eficiência.
Tão competente se mostra Duarte Cordeiro em prever os momentos de incompetência da Administração Pública que, vejam lá, até já se preparou um “modelo de certidão de deferimento tácito” (vd. página 128 do Simplex Ambiental).
Reza assim: “A presente certidão atesta que (colocar a firma ou nome do interessado) obteve uma (colocar a designação legal do tipo de ato requerido e que foi obtido por deferimento tácito) para (identificar a atividade permitida através do ato de deferimento tácito). As autoridades públicas competentes devem, para todos os efeitos legais, assumir que a (colocar a firma ou nome do interessado) obteve todos os atos necessários para a realização da atividade em causa junto das entidades competentes, não podendo, designadamente, aplicar coimas por ausência da licença/autorização/permissão necessária para o desenvolvimento desta atividade.”
Eis como se produzirá um salvo-conduto para todo o tipo de arbitrariedades, sob a capa da bondade da transição energética, para salvar o Planeta do aquecimento global torpedeando todos os princípios de conservação da Natureza que demoraram décadas a consolidarem.
E vejam lá ainda, pormenor relevante: Duarte Cordeiro é tão amigo do deferimento tácito que até o concede mesmo se o requerente nunca tiver pagado quaisquer taxas enquanto aguardava que a Administração Pública se mantivesse incompetente.
Perante isto, tenho uma proposta para Duarte Cordeiro: em vez de ser a Agência para a Modernização Administrativa a gerir os deferimentos tácitos, crie o GRITE, acrónimo de Gabinete de Registos das Incompetências e Trapaças do Estado. Pelo menos, fica mais claro aquilo que sairá deste Simplex Ambiental.
A Administração Central do Serviço de Saúde (ACSS) repôs a base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar no Portal da Transparência do SNS, contendo já informação mensal até Junho deste ano, mas a análise do PÁGINA UM revela que os internamentos no primeiro semestre de 2022 desceram 30% face ao último quinquénio e os óbitos em meio hospitalar recuaram 27%. Enquanto isso, a mortalidade total este ano, dentro e fora dos hospitais, está bem acima do normal. Estará a base de dados do Ministério da Saúde a ser “manipulada” ou os portugueses moribundos estão agora a morrer longe dos hospitais? Uma incógnita. Até porque o Ministério da Saúde não comenta, como habitualmente.
Os números de internamentos e de óbitos ocorridos em meio hospitalar nas unidades do SNS entraram em inexplicável queda abrupta no primeiro semestre deste ano, de acordo com uma análise detalhada do PÁGINA UM à base de dados de Morbilidade e Mortalidade Hospitalar (BDMMH), sob gestão da Administração Central do Serviço de Saúde (ACSS).
Recorde-se que esta base de dados esteve inoperacional durante cerca de quatro meses, por iniciativa de Vítor Herdeiro, presidente da ACSS – e amigo de longa data da ex-ministra Marta Temido –, para impossibilitar assim a continuidade das análises que o PÁGINA UM estava a realizar ao desempenho do SNS durante a pandemia. Em 4 de Agosto passado, a ACSS colocaria, em substituição da BDMMH original, três bases de dados com informação completamente mutilada. As pressões do PÁGINA UM – que colocou, entretanto, um processo de intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa para consultar também uma base de dados com informação mais vasta – levaram a ACSS a recolocar a BDMMH original, com dados até Junho deste ano. Quando da retirada desta base de dados da Plataforma da Transparência do SNS, em Maio passado, apenas estava disponibilizada informação até Janeiro de 2022.
Assim, com a informação agora já disponível para o primeiro semestre de 2022 (Janeiro a Junho), um paradoxo ressalta de imediato, através, saliente-se, de fonte oficial: apesar da mortalidade total em Portugal no presente ano estar praticamente ao nível do ano passado (actualmente, observa-se uma redução de 1,5%) e 6,7% superior à média do último quinquénio (2017-2021), a actividade hospitalar, medida pelos internamentos e óbitos aí declarados, está aparentemente em contra-ciclo. Ou então a BDMMH, disponibilizada novamente ao público, foi falseada.
Com efeito, comparando o primeiro semestre de 2022 com os períodos homólogos entre 2017 e 2021, bem como com a média deste quinquénio, mostra-se espantosa a descida no número de internamentos. De acordo com a BDMMH, entre Janeiro e Junho deste ano foram contabilizados 274.385 hospitalizações, o que contrasta com os 360.837 internamentos em 2021. No último quinquénio, 2017 tinha sido o ano com mais internamentos no primeiro semestre, com mais de 430 mil. Em termos relativos, a redução dos internamentos no primeiro semestre deste ano foi praticamente de 30% face à média do último quinquénio.
Internamentos hospitalares no SNS no primeiro semestre (Janeiro-Junho) entre 2017 e 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Para o período em análise, em todos os grandes grupos de doenças responsáveis pelos internamentos se constatam fortes decréscimos entre 2022 e o último quinquénio, exceptuando a covid-19 que apenas contabiliza hospitalizações desde 2020. As doenças do aparelho respiratório são aquelas que mais desceram, tanto em termos absolutos (-23.909 internamentos, embora quase em linha com 2021) como em termos relativos (-50,2%).
Também muito relevante – até por ser o grupo de doenças que mais contribui para a entrada em hospitais – se mostra a redução dos internamentos por problemas de saúde relacionados com o aparelho circulatório. No primeiro semestre deste ano, a BDMMH contabilizou 35.002 internamentos, menos 20.893 do que a média do quinquénio. Face ao ano passado, o ano de 2022 contou entre Janeiro e Junho com menos 17.006 hospitalizações.
Mesmo nas neoplasias – que muitos especialistas receavam vir a ter um recrudescimento face à gestão seguida pelo Governo em suspender diagnósticos e exames durante a fase pandémica –, a serem verídicos os dados da BDMMH, então algo inexplicável se passa. Comparando com a média do último quinquénio (39.861 internamentos), em 2022 registaram-se menos 14.711 hospitalizações, uma queda de 37%.
Para os grupos de doenças com mais de 10 mil internamentos em média (no quinquénio 2017-2021) para o primeiro semestre, apenas as doenças do aparelho osteomuscular e do tecido conjuntivo registaram uma redução inferior a 20%.
Na mesma linha, segundo a BDMMH, a redução de óbitos declarados nos hospitais do SNS ao longo do primeiro semestre de 2022 são significativos, e pouco compagináveis com um ano de excesso de mortalidade. No período em análise, enquanto no último quinquénio se contaram 25.900 mortes nas unidades de saúde do sector público, este ano registaram-se, segundo a base de dados do Ministério da Saúde agora novamente disponível, “apenas” 18.898 óbitos. Ou seja, uma descida de 27%.
Confrontando 2022 com 2021 – e, sabendo-se que a mortalidade total em Portugal entre estes dois anos é quase similar –, observa-se, contudo, uma diferença de 10.324 óbitos a menos. Seguindo a mesma linha dos internamentos, em todos os grupos de doenças se observam descidas acentuadas entre 2022 e os anos transactos.
No caso das doenças do aparelho respiratório, a variação é de 47% face ao último quinquénio e de 25% face a 2021, que já fora um ano pouco mortífero, uma vez que as pneumonias virais e bacterianas se reduziram com o surgimento da covid-19.
Óbitos declarados nas unidades do SNS no primeiro semestre (Janeiro-Junho) entre 2017 e 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Também nas doenças do aparelho circulatório, a BDMMH indica uma queda surpreendente no primeiro semestre de 2022 face aos cinco anos anteriores (-35%, correspondentes a menos 1.785 óbitos), o mesmo sucedendo para as neoplasias (-43%, correspondentes a menos 2.058 óbitos). Em nenhum grupo de doenças – de entre aqueles que, em média no último quinquénio, registaram mais de mil óbitos no primeiro semestre – se observou uma queda nos primeiros seis meses deste ano inferior a 20%.
A estranheza suscitada pela comparação entre o primeiro semestre de 2022 e os períodos homólogos desde 2017 ainda aumenta mais quando se observa a evolução cronológica contínua tanto nos internamentos como nos óbitos.
Em termos globais, verifica-se que, desde Janeiro de 2017 – a partir do qual a BDMMH disponibiliza informação –, o mês de Junho de 2022 é o mês que regista o menor número de internamentos (34.487) e o menor número de óbitos (2.394), segundo uma tendência fortemente decrescente a partir de Dezembro do ano passado.
Total de internamentos (esq.) e óbitos (dir.) em meio hospitalar do SNS por mês desde Janeiro de 2017 até Junho de 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. ACálculos e análise: PÁGINA UM.
Em relação aos internamentos, confirma-se mais uma vez, a considerar verídica a BDMMH, que a pandemia terá causado, indirectamente, um “esvaziamento” dos internamentos hospitalares. Com efeito, se antes do surgimento da pandemia praticamente todos os meses registavam mais de 65 mil internamentos, a partir de Março de 2020 nunca mais nenhum mês ultrapassou essa fasquia, mesmo quando o SNS colapsou no Inverno de 2020-2021.
Contudo, mostra-se surpreendente que a queda do número de internamentos tenha sido em Maio e Junho deste ano mais baixo do que em Abril de 2020, quando, no início da pandemia, houve uma debandada dos hospitais públicos.
Na mesma linha, e no caso dos óbitos totais em meio hospitalar, também os últimos meses apresentaram uma evolução atípica. Se o Inverno de 2020-2021 foi particularmente mortífero nos hospitais (com um recorde inédito de 8.438 óbitos em Janeiro de 2021), já o mais recente Inverno foi anormalmente pouco letal com o máximo a ser atingindo em Dezembro do ano passado com “apenas” 4.227 mortes.
Antes da covid-19, na época gripal geralmente o número de óbitos em meio hospitalar situava-se entre os 5.000 e os 6.000. Porém, a partir de Janeiro deste ano, a mortalidade hospitalar foi descendo sempre, em todos os meses, com Junho a ser o valor mais baixo: 2.394. De acordo com a BDMMH, antes da pandemia, o mês com menor mortalidade hospitalar foi Setembro de 2018 com 3.684 óbitos.
Em concomitância com os dados globais, também a evolução mensal dos internamentos e mortes nos grupos de doenças mais letais em meio hospitalar apresenta um perfil atípico.
No caso das doenças do aparelho respiratório, a chegada da covid-19 resultou numa descida abrupta nos internamentos, sobretudo no período invernal de 2020-2021 e 2021-2022. Até neste último período, o pico de internamentos pouco suplantou o que era norma nos Verões pré-pandemia. Em todo o caso, a mortalidade no Inverno de 2020-2021 foi relativamente elevada (embora muito mais baixa do que o habitual antes da pandemia), porque a taxa de sobrevivência foi fortemente afectada pelo colapso do SNS em Janeiro de 2021. Mais estranha, porém, é a tendência contínua de descida dos óbitos a partir de Janeiro deste ano. No último mês de Junho, a BDMMH apenas registou 435 óbitos por doenças do aparelho respiratório.
Doenças do aparelho respiratório – internamentos (esq.) e óbitos (dir.) em meio hospitalar do SNS por mês desde Janeiro de 2017 até Junho de 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Em relação às doenças do aparelho circulatório, se a pandemia não teve grande impacte no número de internamentos até finais de Dezembro de 2021 – com excepção de Abril de 2020, por causa da fuga dos hospitais –, já a partir de Janeiro a descida se mostra surpreendente, sobretudo porque contraria um padrão epidemiológico. Com efeito, antes da pandemia, os internamentos por doenças do aparelho circulatório – que incluem os enfartes e os AVC’s – situavam-se, por norma, entre os 8.000 e os 11.000, enquanto os óbitos variavam em função da época do ano: em Janeiro (geralmente o mês mais frio) ultrapassavam os 1.000, descendo até um mínimo próximos dos 600 no auge do Verão.
Contudo, no último Inverno, as mortes hospitalares “só” atingiram, segundo a BDMMH, um máximo de 786 óbitos (Dezembro do ano passado), descendo sistematicamente a partir daí. Em Junho passado, a base de dados do Ministério da Saúde aponta as 378 mortes por este grupo de doenças, o que não só se mostra anormal do ponto de vista epidemiológico como não aparenta fazer sentido num ano com excesso de mortalidade total.
Doenças do aparelho circulatório – internamentos (esq.) e óbitos (dir.) em meio hospitalar do SNS por mês desde Janeiro de 2017 até Junho de 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
No caso das neoplasias, a situação também se mostra anormal, mas aqui desde o início da pandemia. É certo que em 2020 e 2021 já se verificara uma redução com alguma relevância (sobretudo em determinados períodos) no número de internamentos e de mortes pelos diversos cancros, mas essa descida tornou-se colossal a partir de Dezembro do ano passado.
Se antes da pandemia os internamentos por neoplasias rondavam, sem grandes flutuações, os 7.000 em cada mês, em Junho deste ano quedaram-se abaixo dos 3.000. No que diz respeito aos óbitos, antes da pandemia geralmente situavam-se, em cada mês, entre os 800 e os 1.000, durante os anos de 2020 e 2021 passaram a situar-se entre os 700 e os 800, para agora em Junho deste ano – depois de contínua retracção – se terem contabilizado apenas 326 óbitos por cancros em meio hospitalar.
Neoplasias – internamentos (esq.) e óbitos (dir.) em meio hospitalar do SNS por mês desde Janeiro de 2017 até Junho de 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Obviamente, deve-se salientar, mais uma vez que estas mortes se referem às contabilizadas nas unidades do SNS, podendo esta descida apenas significar que há muitos mais doentes terminais com neoplasias que morrem fora dos hospitais.
A evolução das doenças do aparelho digestivo ao longo da pandemia teve um padrão quase normal até final de 2021, se se exceptuar duas quedas abruptas nos internamentos, em Abril de 2020 (devido à fuga dos hospitais) e no Inverno de 2020-2021. No entanto, a mortalidade até se manteve estável, e dentro dos padrões normais pré-pandemia, até Dezembro do ano passado. A partir desse mês, a mortalidade por este tipo de doenças caiu significativamente, tendo a BDMMH contabilizado “apenas” 125 óbitos. Antes da pandemia, o valor mais baixo, desde 2017, ocorreu em Setembro de 2018 (263 mortes).
Doenças do aparelho digestivo – internamentos (esq.) e óbitos (dir.) em meio hospitalar do SNS por mês desde Janeiro de 2017 até Junho de 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Por fim, no caso das doenças infecciosas e parasitárias – agrupadas no grupo A e B da classificação de doenças da Organização Mundial de Saúde –, o número de internamentos também desceu com a chegada da pandemia, mas quase regressou a valores pré-pandémicos no Verão de 2021. Porém, também para este grupo vasto de doenças – cuja taxa global de mortalidade hospitalar se situa geralmente acima dos 20%, mas que quase atingiu os 40% em Janeiro de 2021 –, o número de internamentos e de óbitos registados nas unidades do SNS quebrou a partir do início do presente ano.
Segundo a BDMH, em Junho passado, apenas foram internadas 953 pessoas por causa deste grupo de doenças, registando-se 222 óbitos – os valores mais baixos desde 2017 para ambos os indicadores.
O PÁGINA UM tentou obter um comentário do Ministério da Saúde sobre estas matérias, enviando mesmo o gráfico da evolução dos internamentos e óbitos em meio hospitalar relativo às neoplasias, de modo a ficar mais claro aquilo que estava em causa. Não obteve resposta.
Doenças infecciosas e parasitárias (códigos A e B da CDI-OMS) – internamentos (esq.) e óbitos (dir.) em meio hospitalar do SNS por mês desde Janeiro de 2017 até Junho de 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
O processo de intimação que o PÁGINA UM apresentou no Tribunal Administrativo de Lisboa para obrigar a ACSS a divulgar documentos administrativos, incluindo a BDMMH, ainda decorre. A ACSS alegou, junto do juiz, ter já cumprido o solicitado pelo PÁGINA UM, mas tal não corresponde à verdade.
No pedido, que recorde-se foi formalmente feito em 21 de Julho, além da BDMMH, solicitava-se o “acesso presencial e/ou eventual cópia digital da Base de Dados central do GDH (Grupos de Diagnósticos Homogénos), vem como do denominado BI-MH (Bilhete de Identidade para a Mobilidade Hospitalar.” Estas duas bases de dados são, na verdade, as “mães” da BDMMH disponibilizada pelo Ministério da Saúde no Portal da Transparência do SNS, sendo assim consideradas documentos administrativos se os registos dos doentes forem anonimizados.
Contudo, ao contrário da BDMMH – que integra já um tratamento estatístico mais técnico (e eventualmente político) dos dados recolhidos por cada hospital –, a base de dados do GDH e do BI-MH não são tão facilmente manipuláveis, porque individualizados. Daí o interesse do PÁGINA UM em analisá-las para conferir o rigor e exactidão da BDMMH que se encontra no Portal da Transparência do SNS.
Apesar da elevada imunidade vacinal – por ser um dos países do Mundo com maior taxa de vacinação –, e também natural – por mais de metade da população ter tido contacto com o vírus –, Portugal apresentou nos últimos meses um número de óbitos muito mais elevado do que nos períodos homólogos de 2020 e 2021. Mas também ressalta uma percentagem absurda de óbitos atribuídas à covid-19 que se registaram fora das unidades hospitalares do SNS. A Direcção-Geral da Saúde não explica por que razão metade das vítimas da covid-19 dos últimos meses (que seriam, assume-se, casos graves desta doença) não mereceu tratamento hospitalar, morrendo aparentemente sem assistência médica adequada.
Entre Março e Junho deste ano, metade dos óbitos atribuídos à covid-19 registados pela Direcção-Geral da Saúde ocorreu fora dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS), de acordo com uma análise do PÁGINA UM, que cruzou dados oficiais da Direcção-Geral da Saúde (DGS) com a base de dados da Morbilidade e Mortalidade no Portal da Transparência, entretanto “ressuscitado” (ver N.D., em baixo).
Esta situação recoloca assim mais dúvidas sobre se os certificados de óbito para os casos fora das unidades hospitalares fazem directa referência ao SARS-CoV-2 como causa de morte, ou se optam por outras causas mais relevantes e a contabilização para as estatísticas da covid-19 se devem apenas ao facto de as pessoas falecidas estarem com teste positivo ao coronavírus.
Embora a percentagem de óbitos por covid-19 fora das unidades do SNS – por exemplo, em lares ou em residências – tenha sido sempre relevante desde o início da pandemia, e nunca explicado pela DGS, a informação retirada da mais recente versão da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, gerida pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), mostra uma subida ainda mais inexplicável nos últimos meses.
Esta situação pode indiciar um de dois problemas; ou ambos: os óbitos atribuídos à covid-19 estão exagerados, por incluírem mortes fora das unidades hospitalares sem mais qualquer diagnóstico para além de um teste positivo ao coronavírus; ou há doentes-covid em situação grave a morrerem fora dos hospitais sem tratamento devido.
Óbitos atribuídos à covid-19 em Portugal por mês, com certificado nos hospitais e fora dos hospitais. Fonte: DGS e ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
De facto, uma elevada fracção de mortes atribuídas à covid-19 fora dos hospitais não é aspecto despiciendo, uma vez que a esmagadora maioria dos casos graves desta doença, que resultam em morte apresenta previamente um quadro clínico de insuficiência respiratória ou outros sintomas que recomendariam um internamento hospitalar.
Por outro lado, recorde-se que esta doença foi considerada de elevadíssima infecciosidade.
Portanto, coloca-se aqui saber se estas mortes se deveram mesmo à acção directa e letal do SARS-CoV-2 – e, portanto, uma elevada percentagem de doentes graves não teve apoio médico especializado que pudesse evitar a sua morte – ou se as mortes em causa ocorreram devido a outras comorbilidades relevantes e os óbitos acabaram por ser atribuídos à covid-19 apenas porque a vítima estava positiva naquela altura.
Certo é que, estranhamente, a mortalidade atribuída à covid-19 pelas autoridades de Saúde tem estado bastante superior em 2022 face aos períodos homólogos de 2020 (quando não existiam vacinas e a população estava naive) e de 2021.
Entre Março e Junho deste ano, a DGS diz terem morrido 3.063 pessoas por covid-19, enquanto no período homólogo do ano passado foram 720 e em 2020 atingiram os 1.036.
Ora, mas se se descontar aos óbitos atribuídos à covid-19 pela DGS entre Março e Junho deste ano aqueles que foram observados nos hospitais – pela consulta da base de dados da ACSS –, constata-se que terão morrido 1.531 pessoas fora dos hospitais, ou seja, 50% do total. No ano passado, no período homólogo esse valor tinha rondado os 6,4% (48 óbitos) e em 2020 atingiu os 34,4% (543 óbitos)
Ao longo da pandemia, o rácio óbitos fora / dentro do SNS foi sempre bastante variável, mas apenas esporadicamente alto em Maio de 2020 e no Inverno de 2020-2021, quando então os hospitais do SNS colapsaram, mas não tão persistente e elevado como em 2022.
Aliás, em Maio passado, o PÁGINA UM já noticiara que até Dezembro de 2021 uma em cada três vítimas atribuídas à covid-19 tinha falecido fora dos hospitais do SNS, mas esse rácio ainda aumentou mais este ano.
Evolução mensal da percentagem de óbitos atribuídos à covid-19 e ocorridos fora das unidades do SNS. Fonte: DGS e ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
A partir de Janeiro, somente em Março se registou uma percentagem de óbitos atribuídos à covid-19 fora do SNS abaixo dos 40%, chegando-se aos 57% em Junho (dos 999 óbitos, 429 ocorreram em hospital público e 570 fora dos hospitais públicos).
Sobre estas matérias, o PÁGINA UM pediu comentários e esclarecimento à DGS, com conhecimento para o Ministério da Saúde, mas não obteve (ainda) qualquer resposta.
N.D. O PÁGINA UM apresentou uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa contra a Administração Central do Sistema de Saúde por ter eliminado, e depois reposto de forma mutilada, a base de dados da Mortalidade e Morbilidade Hospitalar que constava no Portal da Transparência do SNS. Esta base de dados, que então tinha informação até Janeiro de 2022, servira para o PÁGINA UM publicar um conjunto de trabalhos de investigação sobre o desempenho do SNS durante a pandemia.
Entretanto, sem sequer informar o PÁGINA UM, a AACS indicou ao Tribunal Administrativo de Lisboa que já repusera a base de dados da Mortalidade e Morbilidade Hospitalar no Portal da Transparência do SNS, indicando que o fizera no passado dia 12 de Agosto.
Esta data, cuja prova da veracidade não foi apresentada, é em todo o caso posterior à notícia do PÁGINA UM a denunciar as ligações de amizade entre o presidente da ACSS, Vítor Herdeiro, e a ex-ministra da Saúde Marta Temido (12 de Julho), e à notícia sobre a apresentação das bases de dados “mutiladas” (5 de Agosto). Aliás, a ACSS apenas comunicou ao PÁGINA UM, por ofício de dia 4 de Agosto, que disponibilizara três bases de dados (as mutiladas), e nunca mais nada comunicou, e devia.
O PÁGINA UM lamenta, aliás, a postura e a estratégia da ACSS, não apenas pela tentativa de persistir na mutilação (voltando agora atrás) como estar a convencer o Tribunal Administrativo de Lisboa de que toda a informação requerida foi disponibilizada (foi feito um pedido de inutilidade superveniente da lide). Não é verdade. O PÁGINA UM tinha também pedido à AACS “a consulta presencial e/ ou eventual cópia digital da Base de Dados Central do GDH (Grupos de Diagnósticos Homogéneos), bem como do denominado BI-MH (Bilhete de Identidade para a Morbilidade Hospitalar”, porque servirá para a aferir se os valores divulgados agora no Portal da Transparência são reais ou “martelados”.
Como o PÁGINA UM revelará a partir de amanhã, pelo menos “estranhos” são.
Saliente-se que os processos judiciais do PÁGINA UM, que têm constituído uma “frente de combate”em prol da transparência da Administração Pública, são financiados pelos leitores através do seu FUNDO JURÍDICO, que já envolveu 12 processos de intimação e uma providência cautelar.