Autor: Pedro Almeida Vieira

  • “Negacionista”: Directora do Diário de Notícias diz que Fernando Nobre devia vacinar-se para dar “o exemplo”

    “Negacionista”: Directora do Diário de Notícias diz que Fernando Nobre devia vacinar-se para dar “o exemplo”

    O Diário de Notícias foi o paradigma da rotulagem à contestação da gestão da pandemia com os epítetos de “negacionismo” e “negacionistas”. Em resposta a uma queixa junto da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), a directora do periódico da Global Media, Rosália Amorim, defendeu que “os portugueses” esperavam que Fernando desse “o exemplo na vacinação”, e que, por não o ter dado, colocou “em causa a segurança de outros cidadãos”, constituindo “especial motivo de indignação”. O fundador da AMI diz que estas declarações são “estapafúrdias”. Por sua vez, a ERC defende agora que, “doravante”, o Diário de Notícias deve “diligenciar no sentido de um mais amplo e rigoroso enquadramento dos factos noticiados”.


    São 834 resultados disparados numa pesquisa interna do site do Diário de Notícias quando se colocam as palavras “pandemia” e “negacionistas”. No topo dos mais relevantes, destaca-se uma notícia de 31 de Março de 2021 intitulada “Extrema-direita e negacionistas da pandemia aproximaram-se”. Estava lançado o mote.

    Seguem-se também, na longa lista, duas polémicas notícias de Novembro do ano passado, em que explicitamente se chama “negacionistas” a agentes da Polícia Judiciária, da GNR e da PSP e a militares das Forças Armadas que tomaram a decisão voluntária e legal de não se vacinarem. E também diversas sobre “ameaças à saúde pública” supostamente causadas pelos “negacionistas”.

    Rui Castro, sempre chamado “juiz negacionista”, foi uma presença constante nesta pesquisa, sobretudo durante o processo que levou à sua expulsão pelo Conselho Superior da Magistratura. Há, no site do Diário de Notícias, por agora, 148 notícias com esta expressão no título ou no conteúdo.

    Fernando Nobre, fundador e presidente da AMI, em Março de 2020, apresentando recomendações sobre a covid-19.

    A polarização social, política e mesmo partidária foi uma constante desde o início da pandemia nas páginas deste secular diário. Num artigo de opinião de Bernardo Pires de Lima, actual conselheiro político do presidente da República, publicado em 4 de Abril de 2020, no início da pandemia, e sugestivamente intitulado “A insustentável leveza dos negacionistas”, começou a ser óbvia a colagem ideológica que se preparava então para pôr políticos polémicos (Trump, Bolsonaro, Salvini, Órban) em linha com qualquer pessoa que contestasse minimamente a narrativa imposta. E vice-versa.

    Com efeito, nas centenas e centenas de notícias e artigos de opinião do Diário de Notícias onde o tema central é a pandemia, “negacionista” é o rótulo invariavelmente escolhido quer para quem jurava que o SARS-CoV-2 nunca existiu, quer para quem dizia que se está perante uma cabala, quer para quem contestava que a gestão da pandemia violava direitos fundamentais – que, aliás, agora têm estado a ser confirmadas pelo Tribunal Constitucional –, quer para quem alertava para os riscos de se menorizar as outras doenças, quer para quem denunciava a existência de manipulação e sonegação de informação por parte das autoridades; quer para quem questionava a vacinação universal em todos os grupos etários…

    Nunca interessou ao Diário de Notícias, e a bem dizer à imprensa mainstream, fazer distinções nem promover o debate: tudo foi metido no mesmo saco, numa explícita e depreciativa alusão aos movimentos negacionistas do Holocausto.

    Rosália Amorim, directora do Diário de Notícias.

    Por isso, não surpreende que aquando do anúncio de a Ordem dos Médicos ter aberto um processo disciplinar a Fernando Nobre, fundador da AMI e antigo candidato à Presidência da República, o Diário de Notícias tenha escrito, em 21 de Setembro do ano passado, que essa decisão advinha das declarações que prestara “numa manifestação de negacionistas da pandemia de covid-19 realizada junto à Assembleia da República”.

    Ora, tal como já sucedera com a notícia sobre os “agentes negacionistas” (assim rotulados só por não se terem vacinado), também este artigo do Diário de Notícias, desta vez sobre Fernando Nobre, caiu na alçada da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), em resultado de uma queixa não-identificada. E em deliberação de Setembro passado (mas apenas divulgada na passada semana), o regulador concluiu que “a abordagem jornalística dada pelo Diário de Notícias deveria ter providenciado um enquadramento mais amplo e fundamentado da problemática”. A ERC acrescentou ainda que o jornal da Global Media deverá, “doravante, diligenciar no sentido de um mais amplo e rigoroso enquadramento dos factos noticiados”.

    Sem relevância significativa, por não ter efeitos sancionatórios, quer o processo quer esta deliberação contra o Diário de Notícias têm, contudo, dois aspectos peculiares muito relevantes.

    Por um lado, o Conselho Regulador da ERC foi muito mais crítico com o Diário de Notícias do que fora, numa análise similar, com o Observador que, também em 21 de Setembro do ano passado, noticiara, nos mesmos moldes, o processo aberto contra Fernando Nobre.

    O Diário de Notícias usou e abusou de expressões que, antes da pandemia, estavam “reservadas” apenas para quem negasse o Holocausto.

    Essa notícia do Observador, tal como a do Diário de Notícias, também destacou que a causa do processo da Ordem dos Médicos tinha sido as declarações “numa manifestação de negacionistas em frente à Assembleia da República”, salientando, igualmente, as posições do fundador da AMI sobre o uso da máscara, os testes e os medicamentos que, alegadamente, “não têm eficácia comprovada no tratamento da covid-19”.     

    A deliberação da ERC sobre o Observador, logo aprovada em Dezembro do ano passado, foi porém muitíssimo mais branda. Na verdade, o regulador arquivou a queixa, “por não se verificarem indícios de desrespeito pelos limites à liberdade de imprensa”.

    Note-se, contudo, como o PÁGINA UM já revelou noutros casos, a ERC tem vindo, ao longo deste ano, a mudar a sua posição sobre o uso indiscriminado do termo “negacionista”, muito em voga pela imprensa durante a pandemia. Até finais de 2021, aceitava o uso desta terminologia; a partir deste ano começou a “torcer o nariz”.

    Por esse motivo, a defesa da directora do Diário de Notícias, Rosália Amorim, não foi particularmente bem acolhida pelo regulador. E compreende-se. Nas nove páginas da sua argumentação, a que o PÁGINA UM teve acesso – e que divulga na íntegra por o considerar um testemunho relevante sobre a imprensa nacional –, a directora daquele periódico tece considerações surpreendentes.

    O uso do termo “negacionista” foi mediatizado como sinónimo de anti-ciência e de ideologias extremistas.

    Rosália Amorim começa logo por evocar, através do seu advogado, o adágio popular: “Quem não quer ser lobo, não lhe vista a pele”, aludindo assim ao suposto direito de se chamar “negacionista” a Fernando Nobre e a quem estivesse presente na manifestação em frente à Assembleia da República.

    Alegando que o termo “negacionista” sempre foi usado por vários órgãos de comunicação social e opinion-makers – remetendo mesmo para artigos de Pacheco Pereira e do ex-secretário de Estado Manuel Delgado, demitido por causa do escândalo da associação Raríssimas em 2017 –, Rosália Amorim defendeu que “é, cremos, medianamente evidente, [que] escrever sobre o tema [pandemia e vacinação], censurando a palavra em causa [negacionismo], será pretender ‘enfiar a cabeça na areia’ e fazer o serviço que tais movimentos pretendem”.

    Apesar de rejeitar a existência de “qualquer incentivo ao ódio e à discriminação contra pessoas que não se querem vacinar”, e também considerar que as queixas junto da ERC por jornalistas usarem indistintamente a palavra “negacionista” configuram “uma pressão ao jornalismo”, a directora do Diário de Notícias acaba por se insurgir sobretudo com as posições de Fernando Nobre.

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    Não apenas foram catalogados de “negacionistas” quem negava claramente a existência do vírus SARS-CoV-2; o termo passou a ser aplicado para qualquer pessoa que fugisse da “narrativa oficial”.

    Na carta à ERC, Rosália Amorim assegura que “os portugueses [presume-se que todos] esperam que cidadãos com as especiais obrigações de Fernando Nobre (como responsável médico e anterior candidato à Presidência da República) dêem o exemplo na vacinação e, se o não fazem, além de poderem pôr em causa a segurança de outros cidadãos e de instigarem outros a fazê-lo, causam especial motivo de indignação”.

    E acrescenta que “foi este o objecto noticioso, cumprindo o DN [Diário de Notícias]– a quem compete sempre noticiar (e não esconder) –, o dever de informação aos leitores acerca do que se passa no seu país, observando os princípios fundamentais que regem a liberdade de imprensa”.

    Contactado pelo PÁGINA UM, Fernando Nobre considera serem “estapafúrdias” as declarações da directora do Diário de Notícias. “Foi precisamente por eu ter a responsabilidade que tenho perante o povo português que fiz questão de deixar a minha posição como testemunho futuro”, diz o presidente da AMI.

    “Não podia ficar calado”, acrescenta o médico, para se insurgir sobre a questão do exemplo que deveria supostamente dar: “Só faltava essa”. E afirma que voltaria a defender o que afirmou diante da Assembleia da República há um ano.

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    Destacando os efeitos secundários que, na sua opinião, estas vacinas têm, Fernando Nobre garante que nunca se vacinará para dar o exemplo, porque “seria violar a minha consciência enquanto pessoa, enquanto médico, cientista e também político, que fui.”

    Sobre o andamento do processo disciplinar instaurado em Setembro de 2021 pela Ordem do urologista Miguel Guimarães, o fundador da AMI adianta nada saber. “Há um ano que aguardo para ser ouvido na Ordem dos Médicos; há um ano que as minhas testemunhas, incluindo figuras de relevo, aguardam para serem ouvidas na Ordem dos Médicos”, salienta.

    Fernando Nobre acusa ainda a comunicação social, em geral, de ter sido parcial ao longo da pandemia. “Nunca deu direito ao contraditório. Houve dois posicionamentos e devia ter havido contraditório para o esclarecimento da população”, argumenta. E conclui: “O unanimismo [que se criou] só existe em regimes ditatoriais, não é compatível com a argumentação científica”.

  • Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19: para se salvar vidas, não houve tempo para actas, diz DGS

    Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19: para se salvar vidas, não houve tempo para actas, diz DGS

    A Direcção-Geral da Saúde (DGS) escreveu ao PÁGINA UM para informar “sobre os motivos para a inexistência de actas formais das reuniões da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19”. Graça Freitas diz, desta vez, que havia “urgência para salvar vidas”, pelo que não houve tempo para actas mas apenas para pareceres, que, diga-se, não identificam sequer quem votou contra. A DGS não quantifica quantas vidas se perderiam se as actas – obrigatórias por lei e que revelariam o debate científico entre os membros – fossem escritas e divulgadas. O PÁGINA UM vai pedir ao Ministério Público que apure se Graça Freitas está a dizer a verdade ou se procura sonegar informação comprometedora, depois de uma sentença do Tribunal Administrativo a ter intimado a mostrar as actas ao PÁGINA UM


    A Direcção-Geral da Saúde justifica que foi por causa das “circunstâncias de elevada pressão sobre os serviços de saúde e urgência para salvar vidas” que não se mostrou possível “elaborar as actas formais das reuniões” da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC).

    Esta comissão consultiva, criada em Novembro de 2020, conta com 13 membros efectivos, peritos supostamente independentes, a que acrescem 16 membros consultivos. Aparentemente, nenhum terá tido tempo ou disponibilidade – à conta de salvar vidas – para escrever e aprovar actas onde, por exemplo, ficasse expresso quem foram os membros que, por exemplo, votaram contra o processo de vacinação dos adolescentes e das crianças aquando da discussão destas questões em Agosto e Dezembro de 2020, respectivamente.

    Graça Freitas diz agora que não há actas da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19: um acto ilegal, se for verdade; um crime, se for mentira.

    Recorde-se que a CTVC tem como funções a elaboração de pareceres técnicos sobre as vacinas contra a covid-19 e as estratégias de vacinação, de recomendações sobre os grupos-alvo da vacinação COVID-19 e a sua priorização, bem como apresentar propostas e acompanhar o desenvolvimento de estudos sobre os programas vacinais e ainda pronunciar-se sobre necessidade de formação.

    Na carta hoje recebida pelo PÁGINA UM, Graça Freitas diz que “face à urgência na tomada de decisões fundamentadas e fundamentais que permitissem a célere implementação do processo de vacinação da população residente em Portugal, e a redução do consequente impacte da infecção na saúde dos cidadãos, todos os esforços foram alocados para assegurar a atempada fundamentação técnico-científica e ética das decisões e a sua rápida implementação, através da elaboração e atualização de Normas da DGS”.

    Mas agora, acrescenta, parece que haverá tempo ao fim de dois anos de existência da CTVC. Graça Freitas assegura que “com a não prorrogação do estado de alerta a 30 de setembro de 2020, bem como com a cessação da vigência de diversos decretos-leis e resoluções aprovadas no âmbito da pandemia, será assegurada a elaboração das atrás das reuniões ocorridas após aquela data”.

    Dossier dos pareceres da CTVC consultados pelo PÁGINA UM em Março. A DGS sempre recusou revelar as actas. Agora, intimada pelo Tribunal Administrativo, diz que afinal nunca houve actas, mas que a CTVC vai agora começar a fazê-las.

    Destaque-se, contudo, que nenhum decreto-lei nem nenhuma resolução aprovada no âmbito da pandemia permitia que uma comissão consultiva como a CTVC não tivesse de elaborar actas, até por não ser algo que exigisse um dispêndio de tempo e de recursos relevante.

    Apesar da obrigatoriedade legal, e de não existir qualquer regime de excepção – e ser crucial conhecer a fundamentação técnica e científica de cada um dos membros, no pressuposto de que todos pugnavam apenas por princípios éticos e científicos, e não de outra natureza, mormente comerciais –, em mais de duas dezenas de pareceres não terão sido assim, alegadamente, elaboradas actas. Ou então está-se perante falsas declarações agora que o Ministério da Saúde foi intimado pelo PÁGINA UM a disponibilizar as actas.

    Esta situação mostra-se ainda mais anormal por terem sido indicados, dentro do grupo, um coordenador – Válter Fonseca, então director do Departamento de Qualidade da Saúde da DGS – e um coordenador-adjunto, Luís Graça. Este médico imunologista – que não andou a salvar vidas nos hospitais –, porquanto é investigador do Instituto de Medicina Molecular na área da regulação de linfócitos, acumula ainda a presidência da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa.

    Esta entidade é sobretudo conhecida por promover os Prémio Pfizer, que distingue anualmente investigação médica com uma recompensa monetária de 60 mil euros por ano. Além disso, Luís Graça tem tido, a título pessoal, ao longo dos últimos anos, diversas ligações a outras farmacêuticas com interesses nas vacinas, como a AstraZeneca. Da farmacêutica anglo-sueca recebeu oficialmente 3.050 euros nos últimos dois anos. Aparentemente, Luís Graça – que não respondeu às questões do PÁGINA UM – não teve assim tempo disponível para escrever uma acta sequer relativa a uma comissão consultiva para a qual não foi compelido a aceitar.

    Também nenhum outro membro da CTVC terá tido tempo para escrever actas nem a responder às questões do PÁGINA UM.

    Luís Graça (à esquerda), coordenador-adjunto da CTVC, não teve tempo para elaborar actas, mas teve tempo para conversas amigáveis com Paulo Couto Ferreira, relações públicas da Pfizer, em Novembro de 2021. E também para colaborar com a AstraZeneca por diversas vezes em 2021 e 2022.

    Recorde-se que a justificação da directora-geral da Saúde sobre a inexistência de actas desta importante comissão científica – que a confirmar-se significa que a sua “ciência” da CTVC se sustenta em coisa nenhuma – surge depois de largos meses sem que esta responsável manifestasse essa situação. Pelo contrário.

    Em Março passado, o gabinete jurídico da DGS informou o PÁGINA UM que “por despacho da Senhora Diretora-Geral da Saúde, datado de 18 de Março de 2022, foi solicitada apreciação jurídica sobre as duas questões requeridas” pelo PÁGINA UM, a saber: a identificação dos membros que votaram contra e se abstiveram face ao parecer (homologado em 28/07/2021) relativo à vacinação contra a covid-19 em adolescentes, e o mesmo em relação ao parecer sobre a mesma matéria, homologado em 8 de Agosto de 2021. Ora, apesar desse parecer nunca ter sido enviado ao PÁGINA UM, pressupunha que existia um documento oficial onde constavam as orientações de voto e a sua justificação. Ou seja, uma acta.

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    Também num processo levantado pela Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, Graça Freitas nunca alegou que as actas não existiam. E nem mesmo nas diversas intervenções no processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa, do qual o Ministério da Saúde era réu, foi suscitada a inexistência de actas. Só agora que uma juíza sentenciou a obrigatoriedade de entrega, sob risco de multa, vem a DGS dizer que não há actas… porque se esteve sempre a salvar vidas.

    O PÁGINA UM vai solicitar ao Ministério Público diligências para apurar se as actas não existem mesmo ou se estão a ser sonegadas ou mesmo eliminadas.


    N.D. Todas as diligência do PÁGINA UM nos processos entrados no Tribunal Administrativo, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Até ao momento, o PÁGINA UM está envolvido em 13 processos de intimação, quatro dos quais em segunda instância, e ainda em duas providências cautelares. Até ao momento foram angariados 11.131 euros, um montante que começa a ser escasso face à dimensão e custos envolvidos nos processos. Na secção TRANSPARÊNCIA começamos a divulgar todas as peças processuais dos processos. em curso no Tribunal Administrativo. Este processo específico pode ser consultado aqui.

  • ESCÂNDALO: Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 funcionou à margem da lei

    ESCÂNDALO: Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 funcionou à margem da lei

    Durante meses, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) recusou ao PÁGINA UM facultar as actas das reuniões da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19, formada por peritos independentes, que determinaram as normas para a inoculação, incluindo em crianças e adolescentes, onde não terá existido unanimidade. O Tribunal Administrativo de Lisboa intimou agora a DGS a entregar ao PÁGINA UM essa actas, mas a entidade dirigida por Graça Freitas, vem agora dizer que nunca foram feitas. Mas adianta que as vai fazer a partir de agora. Sonegação ou apenas ilegalidade, eis a questão que se coloca. Nenhum membro da CTVC quis esclarecer o PÁGINA UM sobre se houve actas ou como eram, afinal, elaborados e aprovados os polémicos pareceres.


    O Tribunal Administrativo de Lisboa intimou o Ministério da Saúde a entregar ao PÁGINA UM as actas das reuniões da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC), mas a Direcção-Geral da Saúde diz agora que “não existem actas das reuniões”.

    Ao longo dos meses em que o PÁGINA UM solicitou a consulta a essa documentação, o gabinete de Graça Freitas nunca confessou que a CTVC – a comissão consultiva criada por despacho de 4 Novembro de 2020, e posteriormente alterado em Julho e em Dezembro do ano passado – não se reunia nem funcionava de acordo com a lei. Nem a DGS admitiu tal situação no decurso de uma queixa junto da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) nem durante o processo judicial que correu no Tribunal Administrativo de Lisboa, cuja sentença foi concluída em 30 de Setembro passado.

    Ilegalidade ou crime? CTVC nunca teve actas ou a DGS está a sonegar as actas?

    Na verdade, Graça Freitas até admitia mais do que implicitamente a existência dessas actas quando em meados de Março passado o PÁGINA UM consultara os pareceres da CTVC nas instalações da DGS, após um parecer da CADA.

    Na missiva enviada pela jurista Isabel Alves Pires salientava-se que “por despacho da Senhora Diretora-Geral da Saúde, datado de 18 de Março de 2022, foi solicitada apreciação jurídica sobre as duas questões requeridas” pelo PÁGINA UM, a saber: a identificação dos membros que votaram contra e se abstiveram face ao parecer (homologado em 28/07/2021) relativo à vacinação contra a covid-19 em adolescentes, e o mesmo em relação ao parecer sobre a mesma matéria, homologado em 8 de Agosto de 2021.

    Esse parecer nunca foi comunicado ao PÁGINA UM, razão pela qual o PÁGINA UM apresentou o caso ao Tribunal Administrativo de Lisboa. Mesmo no âmbito do processo judicial no Tribunal Administrativo, que se iniciou em 27 de Maio, a DGS alegou que não havia actas.

    Admitindo agora que afinal nunca foram exaradas quaisquer actas da CTVC, fica em causa a própria legalidade daqueles pareceres que apenas contêm a assinatura de Valter Fonseca, então director do Departamento de Qualidade da Saúde na DGS, e a homologação de Graça Freitas. E nem sequer se consegue conhecer a identidade dos membros da CTVC que, em alguns pareceres, votaram contra nem quais as justificações para esse sentido de voto.

    Graça Freitas homologou pareceres de uma comissão consultiva que funcionou à margem da lei?

    Recorde-se que, no âmbito da estratégia do combate à pandemia, a DGS justificou a implementação do programa de vacinação em adolescentes, no Verão de 2021, com base em dois pareceres polémicos que mereceram mesmo a não concordância de cinco dos membros da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC). Esta situação foi inédita em todos os outros 21 pareceres.

    Na totalidade dos 23 pareceres feitos até ao primeiro trimestre deste ano, apenas outros dois não mereceram unanimidade, mas apenas por um dos membros, cada: o primeiro, referente à vacinação de maiores de 80 anos; o segundo, sobre a co-administração das vacinas contra a covid-19 e a gripe.

    Destaque-se que as discordâncias nos dois pareceres sobre vacinação de adolescentes, datados em 28 de Julho e em 8 de Agosto do ano passado, foram sempre omitidas pela DGS. Relembre-se que todos os membros, com funções consultivas e publicamente pró-vacinas, foram escolhidos a dedo pela directora-geral da Saúde, Graça Freitas. O conteúdo destes pareceres nunca constaram da informação então dada aos pais em 2021 com vista ao consentimento informado. Ou seja, os pareceres foram “vendidos” à opinião pública como se houvesse consenso entre peritos. Nunca houve.

    Dossier dos pareceres da CTVC consultados pelo PÁGINA UM em Março. A DGS sempre recusou revelar as actas. Agora, intimada pelo Tribunal Administrativo, diz que afinal nunca houve actas, mas que a CTVC vai agora começar a fazê-las.

    Além da questão da transparência em matéria de grande sensibilidade pública, a ilegalidade cometida pela DGS com a inexistência de actas da CTVC fica patente pela simples leitura do Código do Procedimento Administrativo, que determina que os organismos da Administração Pública, incluindo comissões consultivas ad hoc, devem lavrar em cada reunião uma acta que “contém um resumo de tudo o que nela tenha ocorrido e seja relevante para o conhecimento e a apreciação da legalidade das deliberações tomadas, designadamente a data e o local da reunião, a ordem do dia, os membros presentes, os assuntos apreciados, as deliberações tomadas, a forma e o resultado das respetivas votações e as decisões do presidente.“

    O diploma prevê que essas actas sejam “ submetidas à aprovação dos membros no final da respetiva reunião ou no início da reunião seguinte, sendo assinadas, após a aprovação, pelo presidente e pelo secretário”, acrescentando ainda que “o conjunto das atas é autuado e paginado de modo a facilitar a sucessiva inclusão das novas atas e a impedir o seu extravio.” E conclui, por fim, que “as deliberações dos órgãos colegiais só se tornam eficazes depois de aprovadas as respetivas atas ou depois de assinadas as minutas e a eficácia das deliberações constantes da minuta cessa se a ata da mesma reunião não as reproduzir.”

    Por esses motivos, Paulo Morais, presidente da Frente Cívica, diz que “a CTVC não pode deixar de apresentar as actas das reuniões que fez”, acrescentando ter a obrigação de “dar conhecimento ao público das deliberações que tomou.” Para este professor universitário e antigo candidato à Presidência da República, estamos perante uma de duas situações. “ou a DGS está a sonegar informação, o que é inaceitável; ou então é porque nunca houve reuniões.”. “Ora, num estado democrático é inaceitável que se esteja a sonegar informação”, conclui.

    A eventualidade de se estar perante a sonegação de actas com matérias sensíveis – por revelarem detalhes sobre algumas polémicas decisões, que poderiam até ter consequências legais e penais futuras para os seus membros – é, na verdade, uma das hipóteses.

    Ainda hoje, a DGS comunicou ao Tribunal Administrativo de Lisboa que afinal não existem actas, e por isso não as disponibiliza ao PÁGINA UM, mas sabendo da ilegalidade deste procedimento, acaba de informar a juíza do processo “que, com a não prorrogação do estado de alerta em 30-09-2022, será assegurada e garantida a produção das atas das reuniões ocorridas após esta data.”

    Extracto do requerimento (completo aqui) entregue hoje pela DGS ao Tribunal Administrativo alegando que não existem actas, mas que “será assegurada e garantida a produção de atas das reunião ocorridas” a partir de 30 de Setembro deste ano.

    Saliente-se que os diplomas do estado de emergência e do estado de alerta nunca estabeleceram que organismos públicos ou comissões consultivas estivessem isentos de elaborar actas para ficarem expressas as suas decisões. Ou seja, se nunca houve actas – e vai passar a haver a partir deste mês, como afirma agora a DGS –, então o organismo liderado por Graça Freitas assume que, pelo menos, teve uma comissão com a relevância política, pública e mediática (a CTVC) a funcionar completamente à margem da lei.

    O PÁGINA UM enviou questões à quase totalidade dos membros da CTVC, questionando-se se confirmavam a inexistência de actas e se tinham mesmo votados os pareceres em reuniões. Contudo, Manuel Carmo-Gomes, Ana Correia, António Sarmento, Fernando Rodrigues, João Pedro Rocha, Luís Graça, Luísa Rocha Vaz, Raquel Guiomar Moreira e Válter Fonseca – este presidente da CTVC – não responderam. Ou seja, oito membros da CTVC não estabeleceram se a DGS diz a verdade ou mente.

    O Ministério da Saúde também não deu esclarecimentos sobre esta matéria.


    N.D. O PÁGINA UM considera lamentável e intolerável esta postura da Direcção-Geral da Saúde em matéria de tamanha sensibilidade e gravidade. Tomaremos as diligências no sentido de as autoridades judiciais apurarem se houve uma ilegalidade – ausência de actas – ou um acto criminal – sonegação de informação.

  • Raclac: com luvas (de nitrilo) lucrou em 2020 tanto como em 42 anos

    Raclac: com luvas (de nitrilo) lucrou em 2020 tanto como em 42 anos

    Uma empresa de Vila Nova de Famalicão prometeu, patrioticamente, no início da pandemia, não exportar luvas de nitrilo, para assim satisfazer as necessidades do mercado nacional. Poucos meses depois, tanto esta como outras empresas deixavam concursos públicos vazios, mas estavam sempre dispostas a vender por ajuste directo, inflacionando os preços em mais de 400%, mesmo com a procura a subir apenas pouco mais de 10%. O Estado nada interferiu nesta negociata que fez com que a Raclac lucrasse 14 milhões de euros em 2020, um montante 42 vezes superior ao alcançado no ano anterior. Esta é a primeira parte da investigação do PÁGINA UM sobre o LUVASGATE.


    “Nesta altura temos obrigação de proteger os nossos. O negócio é secundário e há um mês e meio que parámos a exportação”. Estas foram, curiosamente, no dia 1 de Abril de 2020, as palavras empenhadas em prol de um desígnio nacional do CEO da Raclac, Pedro Miguel Costa.

    No início da pandemia, a empresa de Vila Nova de Famalicão, produtora de descartáveis hospitalares, tinha acabado de concluir uma unidade de produção de luvas de nitrilo, com um apoio comunitário do FEDER da ordem dos 5,5 milhões de euros, contando também com a participação dos investimentos de uma private equity, a Vallis Capital Partners, que em 2017 comprou metade da Raclac. Esta empresa de gestão de activos é presidida por Eduardo Rocha, ex-administrador financeiro da Mota-Engil.

    Para suprir as necessidades nacionais em luvas de nitrilo – de uso único em actos médicos e de enfermagem –, a empresa famalicense ter-se-á se comprometido, através de um contrato com a central de compras do Sistema Nacional de Saúde, a fornecer exclusivamente para o mercado nacional. Não exportaria, prometeu o CEO da empresa. E Portugal não teria necessidade de importar tantas luvas de nitrilo da China.

    Foi um acto patriótico? Não tanto assim.

    Vejamos…

    Antes da pandemia, a Raclac, tal como outras empresas, já vendia luvas de nitrilo aos hospitais portugueses. Engalfinhavam-se em concursos públicos para apresentar a melhor oferta. Por exemplo, em Maio de 2017, a empresa de Famalicão venceu oito concorrentes para um contrato de quase 10 milhões de luvas de nitrilo com o Centro Hospitalar de Lisboa Norte. Aqui a Raclac ganhou um contrato de 206.468 euros, pedindo 2,094 cêntimos por luva.

    Mesmo nas primeiras semanas da pandemia, a Raclac (tal como outras empresas do género) continuou a praticar preços em linha com o habitual, mesmo quando havia urgência. Por exemplo, num contrato já por ajuste directo com a Direcção-Geral da Saúde em 18 de Março de 2020, no valor global de 1.957.896 euros, a Raclac não especulou. Entre máscaras, fatos de protecção integral e toucas, vendeu um milhão de luvas de vinilo por apenas 1,9 cêntimos cada. Recebeu assim, pelas luvas, apenas 19.000 euros.

    Raclac, criada em 2007, operacionalizou uma fábrica automatizada de luvas de nitrilo em Julho de 2020, obtendo financiamento comunitário de 5,5 milhões de euros.

    Mas tudo viria a mudar com o decurso dos meses do primeiro ano da pandemia. Por um lado, a Raclac começou a “coleccionar” contratos por ajuste directo, justificados pela emergência da covid-19.

    Não havendo na maior parte dos casos a redução a escrito, conforme consulta no Portal Base, o preço unitário e a quantidade ficou “à discrição”. Houve contratos de mais de 850 mil euros em luvas de nitrilo que nem sequer foram reduzidos a escrito, como sucedeu num ajuste directo em Maio de 2021 feito pela Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo.

    Porém, em alguns casos – vá-se lá saber o motivo –, o preço unitário surge em contratos por ajuste directo. E aí fica-se com a verdadeira noção da brutal dimensão da especulação e, eventualmente, de outros fenómenos menos transparentes.

    Por exemplo, em 3 de Julho de 2020, a Raclac conseguiu vender 185.350 euros de luvas de nitrilo por ajuste directo ao Centro Hospitalar de Lisboa Norte (que integra o Hospital de Santa Maria). No início da pandemia, esse montante daria para adquirir quase 9,8 milhões de luvas, considerando o preço unitário anterior de 1,9 cêntimos.

    Porém, os “tempos” já eram outros: o da ganância. E a Raclac, que em Abril desse ano garantia que “o negócio era secundário”, quase sextuplicou o preço, aplicando um preço unitário de 11 cêntimos. Deste modo, a empresa famalicense entregou apenas um pouco menos de 1,7 milhões de luvas.

    Nos restantes contratos detectados pelo PÁGINA UM nos anos de 2020 e 2021, e não apenas os referentes à Raclac, os preços estiveram quase sempre entre os 11 e os 12 cêntimos por luva.

    Pedro Miguel Costa, CEO da Raclac, prometeu “proteger os nossos”. E depois aumentou em mais de 400% o preço das luvas de nitrilo.

    Poder-se-ia pensar que a procura, decorrente da pandemia, justificasse esta escalada de preços nas luvas, mas analisando as compras e consumos do Centro Hospitalar de São João, tal não se verifica. Com efeito, empregando mais de 6.500 funcionários, dos quais cerca de mil médicos e 2.500 enfermeiros, este centro hospitalar do Porto – que foi um dos principais clientes da Raclac – tinha consumido 18.073.322 luvas de nitrilo em 2019, aumentando para 19.110.645 de unidades em 2020 e para 19.448.235 de unidades em 2021.

    Se considerarmos o biénio 2018-2019, o crescimento de consumo de luvas foi de 11% nos dois primeiros anos da pandemia, mas o preço unitário aumentou mais de 400%! Não há lei da Economia que explique tamanho desfasamento. Excepto se se acrescentar que não houve qualquer controlo de custos, nem regulação de preços nem transparência nos contratos. Pediu-se muita coisa aos portugueses, muitas empresas foram obrigadas a encerrar actividade para o bem comum, mas enquanto isso houve quem lucrasse, e muito, sem controlo.

    Fonte oficial do CHSJ disse ao PÁGINA UM que foi a “instabilidade sistemática no fornecimento de bens” que justificou a opção pelos ajustes directos na compra de luvas de nitrilo, embora garanta que, “de forma permanente e sistemática”, houve sempre “consulta ao mercado tendo sempre procedido à adjudicação com base no menor preço e/ou na capacidade de entrega imediata, dada a urgência imperiosa deste bem para proteção dos profissionais de saúde e dos doentes com covid 19.” Uma situação incompreensível, tendo em consideração que a unidade fabril da Raclac garantia uma produção de 765 milhões de luvas por ano, segundo dados da própria empresa, divulgados em 2018.

    Hospital de São João aumentou consumo de luvas de nitrilo em 11%, mas preços mais que quintuplicaram.

    No entanto, apesar de assegurar que “este trabalho” de consulta prévia se encontra “profundamente documentado no Serviço de Aprovisionamento, de forma transparente – quem foi contactado, que preços apresentava, qual a quantidade que possuía para entrega” –, o CHSJ não satisfez ainda um pedido do PÁGINA UM para facultar essa documentação. De igual modo, o CHSJ não indicou os montantes globais gastos em luvas de nitrilo entre 2017 e 2022, conforme pedido pelo PÁGINA UM, para se calcular os preços unitários em cada ano.

    O CHSJ referiu ainda que a aquisição de luvas de nitrilo ficou bastante condicionada ao longo da pandemia, porque sempre que se tentou lançar concursos públicos, estes acabavam vazios, como sucedeu em Dezembro de 2020. Actualmente, os preços baixaram com o fim, mais ou menos oficial, da pandemia, para valores próximos dos 2 cêntimos por unidade.

    Não sendo o único caso de enriquecimento repentino e absurdo à conta da pandemia, os benefícios da Raclac com os negócios de descartáveis hospitalares é um paradigma do descontrolo na gestão dos dinheiros públicos na área da Saúde desde 2020.

    Antes da pandemia, a empresa nortenha tinha uma situação razoável para pequena e média empresa (PME) em fase de crescimento sustentado. Em 2017 facturou, segundo a imprensa local, cerca de 10,5 milhões de euros. Dois anos mais tarde, em vésperas da pandemia, a empresa terminou o ano (2019) com receitas da ordem dos 12,5 milhões de euros e um lucro de 330.668 euros. Não era mau, embora sem deslumbrar em demasia.

    Pandemia, mais ajustes directos, mais muitas luvas entregues a torto e a direito, e a preços exorbitantes, e 2020 transformou-se num jackpot para a Raclac. A facturação subiu para os 51,8 milhões de euros e os lucros… bem, os lucros tornaram-se elásticos e foram catapultados para os 14.047.527 euros.

    Contas feitas, os lucros do ano de 2020 da Raclac valeram mais de 42 vezes os lucros do ano anterior, muito por conta das luvas de nitrilo e dos preços especulativos do material descartável de uso hospitalar.

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    Perante tão lucrativa avalanche destes resultados, parecerá quase irrelevante referir que, por força do desempenho industrial e comercial, os quatro administradores da Raclac fizeram subir os seus salários: em 2019 tinha recebido um total de 178 mil euros, passando para os 268 mil euros em 2020. No ano passado aumentaram os seus salários para 351 mil euros.

    Em todo o caso, e como o mercado se foi tornando ainda mais concorrencial – apesar dos ajustes directos terem feito “escola” ao longo da pandemia –, com a entrada de mais empresas a comercializarem estes produtos, a Raclac não repetiu em 2021 o “euromilhões” de 2020. O relatório e contas do ano passado desta empresa, consultado pelo PÁGINA UM, revela uma facturação já só de 17 milhões de euros.

    E 2021 até poderia ter ficado no vermelho para a Raclac, porque os custos operacionais, as depreciações e os juros “sugaram” todas as receitas e muito mais. Mas uma (criativa mas legal) operação contabilística e fiscal permitiu transformar um prejuízo de quase 140 mil euros num resultado positivo de 692 mil euros, por força do recebimento de impostos diferidos no valor de 830 mil euros.

    A Raclac refuta qualquer acusação de ter praticado preços especulativos, relembrando que, em Abril de 2020, após acusações no programa Sexta à 9 (RTP), solicitaram uma auditoria à ASAE, “não resultando desse processo a identificação de qualquer política especulativa ou não conformidade com o ordenamento em vigor durante a pandemia em termos de pricing e margens”, segundo a empresa. E informam ainda que, por causa desta reportagem, apresentaram “queixa contra terceiros junto do Ministério Público”.

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    A empresa justifica o aumento do preço das luvas por não ter sido possível automatizar a produção pela urgência em dar resposta à procura, e daí ter sido necessário contratar “mais de 200 trabalhadores temporários”, além da “escalada dos preços das matérias-primas e dos produtos” para o fabrico. Pedro Brandão, administrador financeiro desta empresa, diz que “vimos crescer [os preços] em alguns casos” das matérias-primas e produtos “quatro ou cinco vezes o seu valor habitual”.

    Convém, no entanto, referir que essas justificações não encontram sustentação nas contas da empresa ao nível das receitas e dos custos. Com efeito, sendo certo que entre 2019 e 2020, a Raclac quase duplicou os custos com pessoal (passando de 797 mil para 1,5 milhões de euros) e os custos de matérias-primas e produtos subiram de 10,5 milhões para 24,4 milhões de euros, a variação das receitas mais do que encaixaram tudo isto. Em vendas, o ano de 2019 tinha facturado 12,5 milhões de euros; e um ano depois atingiu 51,8 milhões de euros, ou seja, uma variação de 39,3 milhões de euros. A margem operacional da empresa melhorou extraordinariamente, de cerca de 6% em 2019 para 37% em 2020. Isto é, sextuplicou. E por uma razão simples: vendeu mais mas vendeu muitíssimo mais caro.

    Entretanto, o Ministério da Saúde não manifestou disponibilidade para comentar o modus operandi da aquisição de material descartável pelas unidades do Serviço Nacional de Saúde durante a pandemia.

  • Um cartão de visita à leitura

    Um cartão de visita à leitura

    Título

    Guia para 5o personagens da ficção portuguesa

    Autor

    BRUNO VIEIRA AMARAL

    Editora (Edição) 

    Guerra & Paz (Setembro de 2022) 

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Entre 2013, ano da edição original deste Guia para as 50 personagens da ficção portuguesa, e o presente ano, o da sua reedição, Bruno Vieira Amaral transformou-se num dos mais respeitados escritores portugueses, com uma estreia auspiciosa que não tem esmorecido.

    O seu romance de estreia, As pequenas coisas, publicado então nesse ano de 2013, lançou-o logo para o estatuto de escritor “amadurecido”, arrebatando logo o Prémio Fernando Namora e o Prémio PEN Clube Narrativa, e dois anos mais tarde, o Prémio José Saramago, então para autores com menos de 35 anos – Bruno Vieira Amaral nasceu em 1978.

    Quatro anos mais tarde, o seu segundo romance Hoje estarás comigo no paraíso, recolheu o segundo lugar no Prémio Oceanos (Brasil) e foi finalista do Prémio Correntes d’Escritas, seguindo-se dois livros de contos e a biografia do escritor José Cardoso Pires (1926-1998), Integrado marginal, publicado no ano passado.

    Mas Bruno Vieira Amaral não nasceu literariamente em 2013. Nesse ano, trabalhava como assessor de comunicação da editora Quetzal e como crítico literário, sobretudo da revista Ler. E leria, leria muito, por certo.

    Na verdade, só quem for um leitor compulsivo se mostra capaz da ousadia de seleccionar meia centena de personagem de romances (e um conto, Léah, de José Rodrigues Miguéis), percorrendo todo o espectro literário português desde o século XIX até à actualidade, incluindo todos os movimentos artísticos, géneros e sensibilidades.

    Seguindo, como modelo assumido, o Livro dos seres imaginários, de Jorge Luis Borges e Margarida Guerrero, e o Dicionário dos lugares imaginários, de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi, esta obra de Bruno Vieira Amaral é despretensiosa.

    E é despretensiosa no sentido de não ambicionar ser um ensaio nem sequer uma crítica literária, antes sim é uma “mostra”, um convite, através de personagens, à leituras de obras de ficção que, se não já lidas pelos leitores de maior “consumo literário”, pelo menos estarão com quase todos eles familiarizados, pelos títulos e autores.

    Assim, não surpreende que Bruno Vieira Amaral não apresente grandes surpresas na escolha de personagens (e romances e autores), sobretudo quando abrange o século XIX e a primeira metade do século XX. Revela apenas os “clássicos”, que constituem o cânone, e nada mais.

    O século XIX surge representado por nove obras / personagens, mas apenas de cinco escritores: Eça de Queirós (O primo Basílio; O crime do Padre Amaro; Os Maias; A relíquia), Camilo Castelo Branco (Amor de perdição; A queda dum anjo), Júlio Dinis (A morgadinha dos canaviais; Uma família inglesa); Alexandre Herculano (Eurico, o presbítero) e Almeida Garrett (Viagens na minha terra).

    A primeira metade do século XX – que, apesar da crescente alfabetização da população, e concomitantemente da oferta de livros, foi de certa pobreza literária – encontra-se ainda menos representada. No primeiro quartel, Bruno Vieira Amaral escolheu somente Lúcio Vaz, de As confissões de Lúcio, de Mário Sá Carneiro, publicado em 1914, e António Malhadinhas, de O Malhadinhas, de Aquilino Ribeiro, de 1922. Depois, só duas obras do neorrealismo, quase óbvias: Gaibéus (1939), de Alves Redol; e Esteiros (1941), de Soeiro Pereira Gomes.

    Mau tempo no canal (1949), de Vitorino Nemésio, é a antecâmara de um período literário que aparentemente agradou bastante a Bruno Vieira do Amaral, porquanto na década de 50 encontramos as personagens principais de Uma abelha na chuva (1953), de Carlos Oliveira; A sibila (1954), de Agustina Bessa Luís; de Seara de vento (1958), de Manuel da Fonseca; de Léah, (1958), de José Rodrigues Miguéis; de Bastardos do sol (1959), de Urbano Tavares Rodrigues, e de Aparição (1959), de Virgílio Ferreira.

    Mais romances, portanto, do que aqueles que surgem desde a década de 60 até ao fim do Estado Novo. Neste período, Bruno Vieira Amaral apenas nos mostra quatro personagens de obras de Marcello Mathias, Fernando Namora, Natália Correia e José Cardoso Pires.

    No período democrático, e pela proximidade geracional, não faltam, até ao final do século XX, personagens de obras dos escritores mais emblemáticos deste período, como José Saramago (com Baltasar e Blimunda, em Memorial do convento; e um dos heterónimos de Fernando Pessoa, em O ano da morte de Ricardo Reis), Jorge de Sena, Fernando Assis Pacheco, Dinis Machado, David Mourão Ferreira, Fernando Dacosta, António Alçada Baptista, José Cardoso Pires (que repete a sua presença, desta vez com Alexandra Alpha, de 1987), João Aguiar, Baptista Bastos, Lídia Jorge, João de Melo, Mário Zambujal e Clara Pinto Correia, apenas surgindo aqui dois (então) jovens escritores: José Riço Direitinho (com Breviário das más inclinações, publicado em 1994, aos 29 anos) e Manuel Jorge Marmelo (com Portugués, guapo y matador, em 1997, ao 26 anos).

    Embora a obra de Bruno Vieira Amaral distribua os personagens e as obras que eles enchem de forma aparentemente ao correr da pena – ou seja, sem ter uma linha cronológica nem alfabética –, as obras de autores do presente século são justificadamente escassas. Estão aqui assim personagens de romances de Miguel Sousa Tavares (Equador), Mário de Carvalho (A sala magenta), Hélia Correia (Lillias Fraser), J. Rentes de Carvalho (A amante holandesa), Miguel Real (A ministra) e Francisco José Viegas (Um crime capital).

    Haverá, por certo quem possa identificar falhas ou injustiças, ou aqui e ali julgar ser exagerado a inclusão de uma ou outra personagem nesta colectânea ou antologia, mas, como se disse, esta obra de Bruno Vieira Amaral é despretensiosa – e, acrescentar-se-ia, de grande honestidade e até generosidade, constituindo-se sobretudo como um cartão de visita à leitura.

  • Covid-19: Portugal gasta 500 milhões de euros em vacinas, mas contratos deixaram de ser públicos

    Covid-19: Portugal gasta 500 milhões de euros em vacinas, mas contratos deixaram de ser públicos

    A Direcção Geral da Saúde já comprou cerca de 33 milhões de doses de vacinas contra a covid-19, se se incluírem as doações para países terceiros. Mas a transparência destas massivas compras é inexistente: no Portal Base somente constam os primeiros quatro contratos (dois da Pfizer e dois da Moderna), mas com pouca ou nenhuma informação relevante, porque se remete para os obscuros Acordos de Aquisição (APA) da Comissão Europeia, que agora estão em investigação pela Procuradoria Europeia. O PÁGINA UM também revela os contornos das compras da Direcção-Geral da Saúde financiadas a 100% pela União Europeia, que mostram que a Pfizer tem ficado com a “fatia de leão”. Também os detalhes destas compras são desconhecidos.


    O Estado português já terá gastado 500 milhões de euros na compra de mais de 33 milhões de doses de vacinas contra a covid-19, mas somente se encontram disponíveis no Portal Base quatro contratos (dois da Pfizer e dois da Moderna), todos anteriores a Fevereiro de 2021, no valor de cerca de 135 milhões de euros.

    O secretismo da aquisição nacional de vacinas segue a linha dos designados Acordos de Aquisição (APA), estabelecidos pela Comissão Europeia e as farmacêuticas, e que agora atinge um ponto alto de desconfiança com o anúncio ontem da abertura de uma investigação pela Procuradoria Europeia.

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    De acordo com a análise dos dados da Direcção-Geral da Saúde sobre a evolução do programa de vacinação ao longo das várias fases da vacinação – por idade e tipologia – até 10 de Outubro terão sido já administradas pelo menos 26 milhões de doses, das quais quase 19 milhões na primeira fase de vacinação. O reforço vacinal com pelo menos uma dose, sobretudo ao longo deste ano, totalizou cerca de 6,9 milhões de doses. No reforço sazonal, actualmente em curso, terão sido já injectadas quase 817 mil pessoas, sobretudo com mais de 65 anos.

    Esta quantidade de vacinas, estimada pelo PÁGINA UM – uma vez que a DGS apenas divulga a percentagem de vacinação por grupo etário – é ligeiramente superior ao número de doses indicada pelo Infarmed no último relatório da farmacovigilância, que tem dados apenas até finais de Setembro. O regulador aponta para a administração, até 30 de Setembro passado, de um total de 25.600.892 doses.

    Estes valores têm de ter incluídas as compras para as doações a países terceiros. Até Fevereiro deste ano, o Governo anunciou ter já doado sete milhões de doses de vacinas a países terceiros, sobretudo dos PALOP.

    Número de doses administradas em Portugal até 10 de Outubro de 2020. Fonte: DGS (% de população vacinada) e INE (estimativa da população em 2020). Cálculos: PÁGINA UM. Nota: Considerou-se duas doses por pessoa na vacinação primária e apenas uma dose no reforço, uma vez que se ignora quantas pessoas tomaram mais do que um reforço.

    Apesar do Portal Base obrigar a incluir todos os contratos públicos, nunca mais foram colocadas as compras de vacinas contra a covid-19 a partir de início de Fevereiro do ano passado. Os dois (curtos) contratos entre a Pfizer e a DGS, decorrentes dos APA, assinados em 9 de Dezembro de 2020 e em 18 de Janeiro do ano passado visaram a aquisição de 4.440.804 e 2.220.596 doses, respectivamente.

    O primeiro lote ficou ao preço unitário de 12 euros, mas o segundo já subiu para 15,5 euros. Assim, por estas duas compras à Pfizer, a DGS pagou 54.489.660 euros pelo primeiro contrato e 34.419.238 euros pelo segundo.

    Os outros dois contratos que constam no Portal Base foram com a Moderna, não constando sequer o número de doses nem o preço unitário, apenas mencionando o valor total da aquisição. Ambos os contratos foram assinados pela directora-geral da Saúde, Graça Freitas, em 29 de Dezembro de 2020, a um preço de 27.247.155 euros e de 18.780.000 euros. É uma completa anormalidade a existência de contratos públicos desta natureza e dimensão sem qualquer informação nem detalhe.

    A farmacêutica norte-americana Pfizer tem sido a preferida nas compras de vacinas contra a covid-19 pelo Estado português. Os contratos não são conhecidos desde Janeiro de 2021.

    Deste modo, somente são conhecidos os contratos relativos a compras de vacinas no valor de cerca de 135 milhões de euros, embora sem grandes detalhes.

    Com efeito, estes quatro contratos estão enquadrados no chamado Acordo Global de Compra (Advanced Purchase Agreement) assinado entre a Comissão Europeia e as diversas farmacêuticas. A partir desse acordo, cada país ficou apenas incumbido de indicar as doses e os prazos de entregas, mas sem a inclusão de quaisquer cláusulas de responsabilidade civil para as empresas produtoras das vacinas. Ou seja, em caso de problemas, as farmacêuticas descartam-se do pagamento de indemnizações.

    A mesma desresponsabilização sucederá com os diversos Estados da União Europeia, como Portugal. Independentemente das pressões sociais e políticas, sendo a vacinação voluntária e havendo um consentimento informado oral, assume-se que as pessoas vacinadas e os pais dos menores assumiram os riscos, pelo que quaisquer danos físicos ou não-patrimoniais nunca serão, em princípio, garantidos pelo Estado nem pelas farmacêuticas.

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    Nos dois contratos com Pfizer/BioNTech expostos no Portal Base, ficou assumido que “as circunstâncias de emergência” implicavam que o Estado português “reconhecia que a vacina, e os materiais relacionados com as vacinas, e seus compostos e materiais constituintes, estão a ser desenvolvidos rapidamente”. E, por esse motivo, “o Estado Membro Participante [o Estado português, neste caso] reconhece ainda que os efeitos a longo-prazo e a eficácia da vacina não são actualmente conhecidos.”

    Esta autêntica cláusula de exclusão de responsabilidades também se reforça na cláusula que refere que “o Estado Membro Participante reconhece que a vacina não deve ser serializada.”

    Por lei, todos os contrato já deveriam constar do Portal BASE, mas o Ministério da Saúde não explica a razão pela qual não foram ainda enviados mais contratos para registo ao Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção (IMPIC), a entidade gestora daquela base de dados da contratação pública.

    O PÁGINA UM apenas encontrou, através da consulta a documentação solicitada ao Compete 2020, duas referências sobre compras de vacinas pelo Governo, por via de candidatura a programas da União Europeia para financiamento a 100%. A Autoridade Central do Sistema de Saúde (ACSS) obteve um financiamento de 11.209.000 euros em Outubro do ano passado para a compra de vacinas, mas que estranhamente acabou por ser destinado, na verdade, a financiar a DGS a comprar vacinas contra a covid-19.

    Graça Freitas, directora-geral da Saúde, não coloca contratos da compra de vacinas contra a covid-19 no Portal Base.

    Por sua vez, a DGS obteve um apoio comunitário, também através do Compete 2020, da ordem dos 191 milhões de euros para compra de 12.975.027 doses. Estas compras específicas foram sendo realizadas sobretudo a partir de Junho de 2021, em vários lotes. E percebe-se que a Pfizer passou a ser a farmacêutica preferida.

    Com efeito, entre a documentação consultada pelo PÁGINA UM conta-se a referência a 132 compras àquela farmacêutica norte-americana num valor global da ordem dos 130 milhões de euros, enquanto a Moderna registou 17 vendas com um montante acima dos 50 milhões. A AstraZeneca e a Janssen – que não usam a tecnologia mRNA – ficaram com fatias minúsculas deste colossal bolo: apenas conseguiram vender vacinas em montantes da ordem dos dois milhões de euros. O custo unitário médio foi de 14,7 euros.

    Mas estas compras da DGS financiadas pela União Europeia – que nem sequer ainda foram auditadas pelo Compete 2020, segundo apurou o PÁGINA UM – representam pouco mais de um terço do total de vacinas administradas.

    Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, fez vários acordos com farmacêuticas, mesmo antes de estar provada a sua eficácia, como sucedeu coma Curevac em 16 de Novembro de 2020.

    E, em todo o caso, até estas compras se mantêm no segredo dos deuses, desconhecendo-se os compromissos já assumidos com as farmacêuticas numa altura em que a covid-19 se tornou endémica. Tanto em Portugal como nos outros países da União Europeia, sobretudo porque as compras foram negociadas directamente entre a Comissão von der Leyen e as farmacêuticas.

    Aliás, nos APA chegou-se mesmo a prometer compras de vacinas a farmacêuticas que nunca as conseguiram concluir, como sucedeu com a do consórcio da Sanofi e da GlaxoSmithKline e com a da Curevac. No primeiro caso, estava já prometida a compra pela Comissão Europeia de até 300 milhões de doses da vacina, enquanto para a vacina da Curevac ficou prevista a aquisição inicial de 225 milhões de doses, bem como a opção de se requerer 180 milhões de doses suplementares se ficasse comprovada a segurança e a eficácia de uma vacina contra a covid-19.

    people walking on pedestrian lane near vehicles

    Este modelo seguido pela Comissão Europeia mostra bem como os negócios das farmacêuticas floresceram ao longo da pandemia, mesmo quando nada garantia que houvesse sucesso na produção de vacinas seguras e eficazes. Por exemplo, a Curevac, uma farmacêutica alemã, obteve 80 milhões de euros de financiamento da União Europeia e um empréstimo de 75 milhões do Banco Europeu de Investimento, além da entrada no capital da KfW, um banco estatal, que injectou 300 milhões de euros para ficar com cerca de um quarto do capital social.

    Em Agosto de 2020, a Curevac entrou no Nasdaq, através de uma oferta pública inicial (IPO), conseguindo ainda mais 213 milhões de dólares para se financiar. Começou com uma cotação de 46,55 dólares, chegou a atingir os 116,94 dólares em 1 de Abril de 2021, fruto da especulação e da promessa de contratos. Com o completo insucesso da sua vacina contra a covid-19, começou a despencar. Fechou a sessão de ontem a valer apenas 7,52 dólares, uma descida de quase 94% face ao seu máximo histórico.

  • Jornal de Notícias, Diário de Notícias e Dinheiro Vivo também sob a “mão pesada” da Lei do Tabaco

    Jornal de Notícias, Diário de Notícias e Dinheiro Vivo também sob a “mão pesada” da Lei do Tabaco

    A Tabaqueira “brincou com o fogo” e tentou contornar a Lei do Tabaco, que proíbe taxativamente a publicidade directa e indirecta aos produtos do tabaco. Este ano multiplicou-se em pagamentos de conteúdos comerciais a vários órgãos de comunicação social. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social já concluiu que, em quatro conteúdos de periódicos da Global Media, houve ilegalidade. Seguem-se agora processos para aplicação de coimas que podem ascender aos 250 mil euros por cada infracção. O Público ficou entretanto hoje também sob a alçada punitiva do regulador.


    Dias difíceis para as parcerias entre os grupos de media e a Tabaqueira. Na mesma semana em que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) revelou ao PÁGINA UM a abertura de um “procedimento” por alegada violação da Lei do Tabaco, foi também ontem divulgada uma deliberação que custará quatro processo de contra-ordenação devido a publicidade a produtos de tabaco a três jornais da Media Capital: Jornal de Notícias, Diário de Notícias e Dinheiro Vivo.

    Em causa, de acordo com a deliberação ERC/2022/296, estão dois conteúdos patrocinados pela Tabaqueira no Jornal de Notícias (nas edições de 20 e 29 de Abril deste ano), um no Diário de Notícias (2 de Junho) e outro no Dinheiro Vivo (20 de Abril), onde se faz promoção da marca Tabaqueira e dos seus produtos, quer directa quer indirectamente, o que viola a Lei do Tabaco.

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    A publicidade aos produtos de tabaco em toda a imprensa, de forma directa ou indirecta, está proibida desde 2005, embora nas televisões e rádios remonte a 1980. Outras restrições em termos de divulgação de marcas, incluindo em provas desportivas, foram sendo implementadas a partir daquele ano. Contudo, nos últimos meses, recorrendo a parcerias comerciais, extremamente dúbias, a Tabaqueira foi lançando uma imagem de empresa preocupada com a saúde e o ambiente, e na vanguarda da Ciência, enquanto aborda os seus novos produtos, designadamente os cigarros electrónicos e o tabaco aquecido.

    A ERC analisou, nesta fase, dois artigos patrocinados do Jornal de Notícias, intitulados “Investir em ciência para construir um mundo sem fumo” e “’Gaia não é um Cinzeiro’ procura limpar da cidade as beatas dos cigarros”.

    No primeiro artigo reflecte-se sobre o desenvolvimento da Ciência em prol dos consumos tabágicos menos nocivos, anunciando que substituir “os cigarros tradicionais por novos produtos menos nocivos é o grande objetivo da Philip Morris International, que investiu mais de 8,1 mil milhões de dólares nesta missão”, adiantando-se que próximo passo será uma aposta no sector da saúde e do bem-estar.

    Conteúdos comerciais da Tabaqueira são publicidade proibida mesmo que não se promova directamente produtos.

    No segundo artigo, é dada uma visão de marketing social desenvolvido entre a Tabaqueira e a Câmara de Gaia para benefício geral da comunidade e ambiente, mas onde também surge a promoção aos novos produtos da empresa, supostamente “substanciadas por evidência científica”.

    No artigo do Dinheiro Vivo, intitulado “Como a inovação está a ajudar a Philip Morris International a transformar o seu negócio”, é feita, segundo a ERC, uma retrospectiva do percurso da Philip Morris International (PMI) na venda de produtos de tabaco e a inversão das campanhas promocionais, que apelam a um consumo sem fumo. ERC exemplifica com o seguinte excerto: “A inversão oficial da estratégia da empresa deu-se em 2016, quando anunciou que iria comercializar produtos alternativos, mais modernos e com redução dos riscos do tabaco. ‘Dissemos que conseguíamos reduzir drasticamente os malefícios do tabaco e que podíamos ter um produto que retira 95% dos elementos tóxicos do fumo de tabaco’, afirmou o empresário polaco, que assumiu a gestão do grupo em 2021. O grande objetivo passa pela substituição dos cigarros a combustão por produtos de tabaco aquecido sem fumo.”

    O argentino Marcelo Nico, director-geral da Tabaqueira, tentou contornar a Lei do Tabaco, fazendo parcerias com grupos de media para publicar conteúdos comerciais para dar boa imagem à empresa. A ERC diz agora ser proibido.

    Por fim, no Diário de Notícias, através do artigo pago (e assumidamente identificado como publicidade) intitulado “Uma jornada de transformação para a construção de Um Amanhã Melhor”, é feita, também seguindo a síntese da ERC, uma apologia aos novos produtos de tabaco sem combustão, pela British American Tobacco (BAT), em que se defendem valores da marca socialmente responsáveis, evidenciando-se as seguintes características, «[a] marca de tabaco aquecido da BAT, o glo, é composta por um dispositivo eletrónico portátil que contém uma bateria de iões de lítio que alimenta uma câmara de aquecimento. Por fim, os produtos modernos orais, que incluem bolsas de nicotina sem tabaco, são igualmente uma das novas categorias da marca. Sendo que também incluem produtos orais tradicionais, como os tabacos húmidos ‘snus’ e ‘snuff’.”

    Segundo a ERC, os quatro artigos pagos pela Tabaqueira às três publicações da Global Media “têm um carácter eminentemente institucional de posicionamento das empresas e marcas associadas a produtos de tabaco e a cigarros eletrónicos, em que se defendem valores sociais relevantes como sejam a saúde e o ambiente.”

    Entidade Reguladora para a Comunicação Social “ameaça” aplicar multas ao Jornal de Notícias, Diário de Notícias e Dinheiro Vivo, e também Público, por receberem patrocínios da Tabaqueira em violação à Lei do Tabaco.

    No procedimento aberto pela ERC, a Global Media veio defender que aqueles artigos publicitários tenham tido “por efeito direto ou indireto a promoção de cigarros eletrónicos”, alegando, por exemplo, que os textos do Jornal de Notícias tinham um “cariz e estilo informativo”, designadamente sobre o Fórum Económico de Delfos, na Grécia, realizado em Abril de 2022, em que se “reporta a ciência sobre o tabaco sem fumo, o investimento que uma empresa está a fazer em inovação, os objectivos”.

    Por outro lado, o grupo de media liderado por Marco Galinha – que se tem especializado em parcerias mediáticas com todo o tipo de empresas e entidades públicas, incluindo autarquias e Governo – diz que, algumas daquelas publicações se enquadravam no conceito de “brandstory”.

    Segundo a Global Media, “as designadas ‘brandstories’ afastam-se do fenómeno publicitário qua tale, já que, originariamente, constituem a criação de textos em torno da história de determinada marca e da sua identidade”. E acrescenta que, nesta lógica peregrina, se “procura comunicar a identidade da marca, englobando todas as definições da sua construção, como a personalidade, o propósito, os valores, a cultura, a missão e a visão.”

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    A ERC mostrou-se, contudo, pouco favorável à argumentação da Global Media, até porque a Lei do Tabaco é muito clara. Com efeito, esse diploma legal dizer ser “proibida a comunicação comercial em serviços da sociedade da informação, na imprensa e outras publicações impressas, que vise ou tenha por efeito direto ou indireto a promoção de cigarros eletrónicos e recargas, com exceção das publicações destinadas exclusivamente aos profissionais do comércio de cigarros eletrónicos e recargas, e das publicações que sejam impressas e publicadas em países terceiros, se essas publicações não se destinarem principalmente ao mercado da União Europeia.»

    Para o regulador, com a publicação daqueles textos no Jornal de Notícias, Diário de Notícias e Dinheiro Vivo, existe a finalidade de promover uma marca [Tabaqueira], uma imagem [responsabilidade social, defensora do ambiente, promotora da Ciência através de tecnologia para consumo de tabaco supostamente menos lesiva] e, consequentemente os produtos/ serviços por esta distribuídos, promovendo o engagement do leitor com a marca.”

    Na deliberação, encabeçada pelo juiz conselheiro Sebastião Póvoas, acrescenta-se que “ainda que se possa considerar que o conteúdo ali veiculado não é promovido através de publicidade tradicional, não deixa de ser um conteúdo patrocinado por uma marca que visa a distribuição e venda de produtos de tabaco.”

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    E a ERC não tem dúvida que se trata de publicidade, ainda que encapotada. “Quando uma empresa que tem como atividade principal, a venda de cigarros, com ou sem combustão, promove incessantemente campanhas em prol da saúde, está a promover, ainda que indiretamente, um produto cuja comunicação comercial é proibida, a pretexto de promover um debate que confunde os leitores e os induz a práticas de promoção e consumo, com o subterfúgio de não se estar a promover um produto”, salienta o regulador na sua deliberação.

    Saliente-se que as tabaqueiras têm usado estratagemas para convencer os consumidores de que o uso dos novos produtos, como o tabaco aquecido, não são prejudiciais à saúde, A própria Organização Mundial de Saúde acusou em Maio de 2020 “a indústria do tabaco de usar um milhão de dólares por hora a tentar vender os seus produtos e de querer viciar cada vez mais jovens em cigarros eletrónicos como se fossem doces.”

    O passo seguinte desta deliberação ERC será a “instauração de processo contraordenacional contra a Global Notícias”, a empresa da Global Media detentora daqueles três periódicos. Em princípio, serão abertos quatro processos de contra-ordenação, tantos quanto as ilegalidades cometidas, ademais face ao facto de estarem em causa três periódicos distintos. Além disso, a ERC determinará ainda se a aplicação das coimas, que podem atingir os 250 mil euros cada, será também paga pela Tabaqueira.

    Recorde-se que hoje o PÁGINA UM noticiou que a ERC iniciou um “procedimento” contra o Público com vista à aplicação de um processo de contra-ordenação pelos mesmo motivos.

    O PÁGINA UM tentou ter a opinião sobre estes processos junto da Tabaqueira, mas sem sucesso.

  • Lei do Tabaco: publicidade encapotada já “queima” o jornal Público

    Lei do Tabaco: publicidade encapotada já “queima” o jornal Público

    A publicação de um conteúdo comercial da Tabaqueira, elogiando o tabaco aquecido, e que coincidiu com o lançamento de um novo sistema daquela empresa, levou a Entidade Reguladora para a Comunicação Social a instaurar hoje um “procedimento” contra o Público. A multa pode atingir os 250 mil euros.


    A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) decidiu instaurar um “procedimento” contra o Público por violação da Lei do Tabaco que pode resultar na aplicação de uma coima até 250 mil euros. A informação foi confirmada esta tarde ao PÁGINA UM – que revelara essa ilegalidade na quarta-feira passada – pelo Departamento de Supervisão do regulador, que informa também que “a publicação periódica Público foi notificada, nesta data [hoje], para pronúncia sobre os factos descritos”.

    Em causa está a publicação no diário da Sonae, na sexta-feira da semana passada, de um conteúdo comercial da Tabaqueira que promove o consumo de tabaco aquecido e elogia este produto, citando várias vezes o director-geral da empresa, Marcelo Nico, que chegou a destacar o lançamento da “última tecnologia” que começou a ser vendida a partir do dia 4 deste mês.

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    A publicidade aos produtos de tabaco em toda a imprensa, de forma directa ou indirecta, está proibida desde 2005, embora nas televisões e rádios remonte a 1980. Outras restrições em termos de divulgação de marcas, incluindo em provas desportivas, foram sendo implementadas a partir daquele ano.

    O conteúdo não-jornalístico – que antes se denominava publireportagem – pago pela Tabaqueira ao Público termina mesmo com uma foto claramente de carácter publicitário, apresentando o novo sistema de tabaco aquecido por indução IQOS Iluma, a aposta da Philip Morris neste sector, e que começou a ser comercializado no dia 4 deste mês.

    O texto do conteúdo pago aceite pelo Público começa por anunciar que “o tabaco de combustão deverá ter os dias contados”, mas que “são cada vez mais as alternativas que surgem no mercado e que têm como objectivo diminuir o seu consumo, substituindo-o por opções menos nocivas e com a sua eficácia comprovada cientificamente”, adiantando ainda que causa “alguma estranheza” que seja a Tabaqueira a fazer “este esforço”.

    Na semana em que lançou o seu novo sistema de tabaco aquecido, a Tabaqueira conseguiu publicar um conteúdo comercial no Público a elogiar a nova tecnologia por si desenvolvida.

    O director-geral da Tabaqueira, o argentino Marcelo Nico, surge também sempre a transmitir uma atitude de autoridade em matéria científica, de que é exemplo a seguinte afirmação: “É uma tecnologia [referindo-se implicitamente ao IQOS Iluma] com menos cheiro, que não necessita de limpeza, que é mais intuitiva, e que resolve alguns dos problemas encontrados pelos utilizadores de tabaco aquecido. Podemos afirmar que a nossa empresa, hoje, é caracterizada pela ciência, pela tecnologia e pela inovação. E a tecnologia é, sem dúvida, o que distingue esta nova geração”.

    Saliente-se que a lei define “publicidade ao tabaco” como “qualquer forma de comunicação feita por entidades de natureza pública ou privada, no âmbito de uma actividade comercial, industrial, artesanal ou liberal, com o objetivo directo ou indirecto de promover um produto do tabaco ou o seu consumo”.

    Além da questão da publicidade proibida, as alegadas vantagens do tabaco aquecido não estão provadas. Por exemplo, em 2 de Abril de 2019, uma dúzia de sociedades científicas – incluindo as Sociedades Portuguesas de Pneumologia, de Cardiologia, de Oncologia, de Pediatria, de Estomatologia e Medicina Dentária, de Medicina Interna, de Medicina do Trabalho e de Angiologia e Cirurgia Vascular – emitiu uma posição extremamente crítica sobre os produtos de tabaco aquecido, relembrando que contêm à mesma “nicotina, substância altamente aditiva que existe no tabaco, causando dependência nos seus utilizadores, para além de estarem presentes outros produtos adicionados que não existem no tabaco e que são frequentemente aromatizados”

    A ERC vem agora dizer que, “em virtude da análise prévia do referido artigo [conteúdo pago da Tabaqueira], considera-se que os factos alegados poderão constituir violação” da denominada Lei do Tabaco. A coima está compreendida entre um mínimo de 30 mil e um máximo de 250 mil euros, além de eventuais sanções acessórias. O valor pode vir a ser aplicado tanto ao Público como à Tabaqueira.

    O PÁGINA UM tentou obter um comentário do director do Público, mas não obteve resposta.

    Também contactada a Tabaqueira, não houve sequer interesse em passar o telefonema para o gabinete de comunicação desta empresa. A comunicação electrónica, entretanto enviada pelo PÁGINA UM para o endereço geral da Tabaqueira, questionando se a empresa iria suspender este tipo de publicidade, ainda não teve qualquer reacção.

  • Vidas e dramas dos génios

    Vidas e dramas dos génios

    Título

    As guerras de Albert Einstein (1/2)

    Autores

    FRANÇOIS DE CLOSETS, CORBEYRAN e ÉRIC CHABBERT (tradução: Ana Maria Pereirinha)

    Editora (Edição)

    Gradiva (Setembro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Conhecida sobretudo por ser uma editora de obras científicas, apesar dos retumbantes sucessos comerciais dos romances de José Rodrigues dos Santos, a Gradiva tem vindo a apostar cada vez mais na banda desenhada, ajudando a conhecer algumas figuras ímpares.

    Destaque-se, por exemplo, a colecção Descobridores, sobre as vidas de Fernão de Magalhães, Charles Darwin, Tenzing Norgay e Marco Polo; a colecção Grandes Figuras da História, sobre as vidas de Lenime, Chirchill, Estaline e Mai Tse-Tung.

    Não estando em nenhuma destas colecções, As Guerras de Albert Einstein, em dois volumes, contribui para trazer (mais) luz sobre um dos mais brilhantes génios do século XX, através da pena e do traço de um trio francês de luxo: Françoise de Closets – jornalista e ensaísta de 88 anos, e autor de uma biografia deste físico –, Corbeyran – que aos 57 anos é um dos mais destacados escritores de banda desenhada do Mundo – e ainda Éric Chabbert, autor dos desenhos.

    Mais do que retratar Einstein como cientista, cada um dos volumes – embora apenas se tenha ainda contemplado o primeiro – destaca dois períodos-chave da sua vida e do Mundo no século XX: a I Guerra e a II Guerra Mundial.

    No primeiro período, vemos o pacifista Einstein num episódio marcante do primeiro grande conflito mundial que envolve a participação do seu amigo Fritz Haber – um brilhante químico inventor do fabrico do amoníaco para fomento agrícola e que seria galardoado com o Prémio Nobel em 1918 – no esforço de guerra alemão, através do iníquo desenvolvimento de armas químicas à base de cloro, usadas primeiramente na batalha de Ypres em 1915. Este evento teria uma trágica consequência: o suicídio da mulher de Fritz Haber.

    Numa obra desta natureza, mostra-se difícil dar densidade psicológica aos personagens – ainda por cima bem reais –, mas a estratégia dos autores e os próprios desenhos ajudam a dramatizar cada um dos episódios. Não apenas os dilemas dos dois cientistas (Einstein, um pacifista, e Haber, um pragmático), mas também os dramas das suas relações com as respectivas mulheres (Mileva e Clara), ambas de grande inteligência, mas “condenadas” por viverem com dois génios num período histórico que não lhes dava liberdade plena para ombrearem com eles.

    Na verdade, para quem se debruça neste breve primeiro volume de banda desenhada, por certo quererá buscar mais sobre a vida não apenas de Albert Einstein (alguns anos antes de ser galardoado com o Prémio Nobel da Física, em 1921), mas em especial de Fritz Haber, de Mileva Marić e, ainda mais, sobre Clara Immerwahr.

  • Jornal Público permite publicidade “encapotada” ao tabaco aquecido

    Jornal Público permite publicidade “encapotada” ao tabaco aquecido

    É ilegal desde 2005, mas a crise está a empurrar os media para engenhosas tentativas de contornar a lei. Na semana passada, o diário Público autorizou um conteúdo comercial da Tabaqueira onde são tecidos controversos elogios ao tabaco aquecido e se anuncia uma nova tecnologia. Nem de propósito, a subsidiária da Philip Morris começou a comercializar na semana passada o seu novo sistema IQOS Iluma.


    O jornal Público aceitou publicar na sexta-feira passado um conteúdo comercial da Tabaqueira que promove o consumo de tabaco aquecido e elogia este produto, citando bastamente o director-geral da empresa, Marcelo Nico, que destacou o lançamento da “última tecnologia” que começou a ser vendida a partir do dia 4 deste mês.

    A publicidade aos produtos de tabaco em toda a imprensa, de forma directa ou indirecta, está proibida desde 2005, embora nas televisões e rádios remonte a 1980. Outras restrições em termos de divulgação de marcas, incluindo em provas desportivas, foram sendo implementadas a partir daquele ano.

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    Actualmente, depois de uma actualização da legislação para incorporar o consumo de tabaco sem combustão, a violação dos normativos de publicidade implica coimas entre 30 mil e 250 mil euros para pessoas colectivas, podendo os processos ser instaurados pela Direcção-Geral do Consumidor ou pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC). A ser aplicada uma coima, pode ser subsidiariamente aplicada à Tabaqueira e ao Público.

    O conteúdo não-jornalístico – que antes se denominava publireportagem – pago pela Tabaqueira ao diário da Sonae termina mesmo com uma foto claramente de carácter publicitário, apresentando o novo sistema de tabaco aquecido por indução IQOS Iluma, a aposta da Philip Morris neste sector, e que começou a ser comercializado no dia 4 deste mês.

    Com efeito, na legenda daquela foto faz-se referência ao evento de lançamento da nova geração de tabaco aquecido, destacando a “busca incessante” da Tabaqueira dos “insights, da recolha e análise de dados que permitiu a criação da tecnologia avançada SmartCore Induction System, graças à qual o tabaco é aquecido através de indução e a partir de dentro, sem ser preciso lâmina”. E conclui: “O que acontece é uma experiência optimizada e sem resíduos de tabaco ou necessidade de limpeza.” 

    Na semana em que lançou o seu novo sistema de tabaco aquecido, a Tabaqueira conseguiu publicar um conteúdo comercial no Público a elogiar a nova tecnologia por si desenvolvida.

    O texto do conteúdo pago aceite pelo Público começa por anunciar que “o tabaco de combustão deverá ter os dias contados”, mas que “são cada vez mais as alternativas que surgem no mercado e que têm como objectivo diminuir o seu consumo, substituindo-o por opções menos nocivas e com a sua eficácia comprovada cientificamente”, adiantando ainda que causa “alguma estranheza” que seja a Tabaqueira a fazer “este esforço”.

    Ao longo de cinco parágrafos, incluindo quatro citações do director-geral da Tabaqueira, encontram-se sete referências explícitas ao tabaco aquecido, sempre em tons encomiásticos. Exemplo disto é o seguinte parágrafo: ”A PMI [Philip Morris International] e, subsequentemente a Tabaqueira, assumem-se como pioneiras a nível global no lançamento de produtos de tabaco aquecido. Desde 2016 que o trabalho tem sido desenvolvido nesse sentido e hoje, 6 anos depois, são 70 os países onde se encontra disponível. ‘Portugal foi o 4º país onde foi lançado, e agora é o 6º onde iremos lançar a última tecnologia que temos. Que é uma tecnologia melhor, seja para os fumadores que passam para o tabaco aquecido, quer para os restantes fumadores’, partilha Marcelo Nico, acrescentando em seguida que Portugal se encontra à frente nesta transição, contando já com 400 mil utilizadores de tabaco aquecido.”

    O director-geral da Tabaqueira surge também sempre a transmitir uma atitude de autoridade em matéria científica, de que é exemplo a seguinte afirmação: “É uma tecnologia [referindo-se implicitamente ao IQOS Iluma] com menos cheiro, que não necessita de limpeza, que é mais intuitiva, e que resolve alguns dos problemas encontrados pelos utilizadores de tabaco aquecido. Podemos afirmar que a nossa empresa, hoje, é caracterizada pela ciência, pela tecnologia e pela inovação. E a tecnologia é, sem dúvida, o que distingue esta nova geração”.

    Saliente-se que a lei define “publicidade ao tabaco” como “qualquer forma de comunicação feita por entidades de natureza pública ou privada, no âmbito de uma actividade comercial, industrial, artesanal ou liberal, com o objetivo directo ou indirecto de promover um produto do tabaco ou o seu consumo”.

    Saliente-se, além da questão da publicidade, que as alegadas vantagens do tabaco aquecido não estão provadas. Por exemplo, em 2 de Abril de 2019, uma dúzia de sociedades científicas – incluindo as Sociedades Portuguesas de Pneumologia, de Cardiologia, de Oncologia, de Pediatria, de Estomatologia e Medicina Dentária, de Medicina Interna, de Medicina do Trabalho e de Angiologia e Cirurgia Vascular – emitiu uma posição extremamente crítica sobre os produtos de tabaco aquecido, relembrando que contêm à mesma “nicotina, substância altamente aditiva que existe no tabaco, causando dependência nos seus utilizadores, para além de estarem presentes outros produtos adicionados que não existem no tabaco e que são frequentemente aromatizados”

    Conteúdo comercial da Tabaqueira termina com foto claramente publicitária.

    Estas entidades alertaram ainda que o uso de tabaco aquecido “permite imitar o comportamento dos fumadores de cigarro convencional, podendo haver o risco de os fumadores alterarem o seu consumo para estes novos produtos em vez de tentarem parar de fumar”. E acrescentaram que “do ponto de vista de segurança e do risco para a saúde, actualmente não existe evidência que demonstre que os PTA [produtos de tabaco aquecido] são menos prejudiciais do que o cigarro convencional”.

    Em 27 de Junho passado, a Tabaqueira já tivera um conteúdo pago na secção Estúdio P, mas não fazia referências explícitas a um produto do tabaco, focando-se sobretudo nos resultados de um inquérito sobre ciência patrocinado pela Philip Morris Internacional.

    Em todo o caso, mesmo esse texto acabava por ser indirectamente elogioso ao tabaco aquecido, embora nunca o citando. No texto destacava-se, por exemplo, que os resultados daquele estudo eram “relevantes no panorama actual, especialmente quando confrontados com a legislação dos produtos de tabaco e da nicotina, um sector onde os inquiridos – tanto consumidores e não consumidores – acreditam que os produtos alternativos podem ter um papel importante na redução do impacto social e para a saúde dos produtos de tabaco.” E acrescentava ser “uma visão partilhada pela Philip Morris International e a sua subsidiária portuguesa Tabaqueira, que têm vindo a desenvolver produtos sem combustão, no âmbito da sua estratégia de redução de risco.”

    Contactada pelo PÁGINA UM, a Direcção-Geral do Consumidor diz que, “tratando-se de um conteúdo editado pelo meio de comunicação visado, similar a texto noticioso, compete à Entidade Reguladora para a Comunicação Social fazer respeitar os princípios e limites legais aos conteúdos difundidos pelas entidades que prosseguem atividades de comunicação social”. Essa visão, contudo, é redutora, uma vez que a legislação incumbe ambas as entidades na função de “fiscalização das matérias relativas à publicidade”.

    O PÁGINA UM tentou ainda obter durante a tarde de hoje uma reacção junto da ERC, mas não a obteve em tempo útil.

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    Eduardo Cintra Torres, crítico de media e especialista no sector da publicidade, defende que “a publicidade em forma de conteúdo jornalístico [como sucede com os textos no Estúdio P] é um género praticado há mais de um século, e é aceite por todas as partes”, acrescentando que, na sua opinião, no caso concreto do conteúdo comercial da Tabaqueira está “correctamente identificado como patrocinado”.

    Este professor universitário diz que se mostra evidente “um problema no conteúdo em si mesmo, dado que promove publicitariamente um produto cuja publicitação está proibida, o tabaco aquecido.”, dizendo ainda que “a Direcção-Geral do Consumidor deveria estar atenta e é sua obrigação agir neste caso”, tal como a ERC, “dado que se trata de uma utilização ilegal de um media.”

    O PÁGINA UM também enviou um pedido de comentários ao director do Público, Manuel Carvalho, sem resposta.