Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Crónica de um não-amor e de vidas perdidas

    Crónica de um não-amor e de vidas perdidas

    Título

    A fera na selva

    Autor

    Henry James (tradução: Ana Maria Pereirinha)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Janeiro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Publicada há 120 anos, Uma fera na selva mantém-se, nem que seja metaforicamente, jovial, no sentido de ser uma novela actual na sua complexidade psicológica e nas suas inúmeras subtilezas, que tão bem retratam a natureza humana: a vida, em si mesma, o tempo, as ânsias e as obsessões, as oportunidades (perdidas também) e a própria decadência e morte.

    Retratando a vida, ou a vida desaproveitada, de John Marcher – um homem que (sobre)vive na expectativa de um evento extraordinário que o tornará diferente dos demais (não se sabe se para melhor, se para pior) –, nesta novela Henry James cruza-o com May Bartram, uma mulher que, confidente inicial de um “segredo”, o acompanha pacientemente nas suas inseguranças e ânsias, numa estranha dinâmica que não permite nem avanços nem recuos para qualquer relação, que parece estar ali a gritar entre os dois. Ambos aguardam assim, mais ele que ela, mas ambos aguardam.

     “A forma real que esta relação o deveria ter tomado, tal como se apresentava, era o casamento de ambos. O diabo era que, justamente porque se apresentava assim, tornava o casamento impossível. A convicção, a apreensão, a obsessão dele, em suma, não era um privilégio que pudesse pedir a uma mulher para partilhar; e essa consciência era justamente o que o atormentava. Alguma coisa estava à sua espera, entre as circunvoluções dos meses e dos anos, como uma Fera agachada na Selva, a preparar o salto. Se a Fera estava destinada a matá-lo ou a ser morta por ele, era irrelevante” (pg. 34).

    Enfim, os dois personagens passam pelas respectivas vidas, de forma lenta e com a “fera”, omnipresente mas invisível, até que, efectivamente, algo sucede, mas, quando sucede, na verdade, a sua apreensão é já tardia e irremediável para John Marcher.

    Notável pela maneira e estilo da narrativa e seus diálogos ambíguos e subtis– que tornam a novela bastante complexa e aberta a várias leituras, daí que ser obra conhecida pela dificuldade de tradução –, Henry James explora magistralmente a natureza da vida, do amor e da perda (ou do não-ganho), onde uma selva metafórica – a vida e a sua imprevisibilidade – estão sujeitas (ou não) à ameaça de uma também metafórica fera, temida por ser desconhecida e imprevisível (embora certa, pelo menos para Marcher; não tanto, talvez, para May).

    Novela de múltiplas interpretações, A fera na selva pode ser entendida também como uma metáfora sobre a nossa constante luta interna sobre o sentido da vida, sobre as nossas opções e sobretudo sobre as hesitações que, se se mantiverem ao longo da vida – como sucedeu com John Marcher – nos surpreende apenas, à laia de saldo final, com uma terrível perda sem qualquer ganho. Na verdade, nem sempre quem espera sempre alcança. Pode apenas perder-se, sem glória.

  • A Ordem dos Psicólogos e os pequenos ditadores de capelinhas

    A Ordem dos Psicólogos e os pequenos ditadores de capelinhas


    Francisco Miranda Rodrigues é o bastonário da Ordem dos Psicólogos. Para mim, tanto me faz como me fez. Na breve biografia que se lhe conhece, diz-se que nasceu em 7 de Abril de 1974 – portanto, viveu 17 dias em ditadura (já moderada), que é psicólogo formado pela Universidade de Lisboa e especialista em Psicologia do Trabalho, Social e das Organizações e da Saúde Ocupacional, que dirigiu equipas de recursos humanos, qualidade, ambiente e de segurança, higiene e saúde no trabalho. E é bastonário da Ordem dos Psicólogos há mais de seis anos, embora ocupasse funções na associação antecessora desde o início do século.

    Procuro na internet, e vejo ser homem de opiniões, “autor de vários artigos de opinião na imprensa portuguesa”, segundo a sua página da Wikipédia. Publicou no mês passado aquele que julgo ser o seu primeiro ensaio para o mercado editorial, Como gerir pessoas, com prefácio do ex-ministro Poiares Maduro.

    Francisco Miranda Rodrigues, bastonário da Ordem dos Psicólogos.

    Não conheço a obra, mas deve ter muitas opiniões. Aliás, muitas opiniões deverão estar reflectidas também nos seis prefácios em diversos ensaios na área da Psicologia que escreveu nos últimos quatro anos, de acordo com consulta na Biblioteca Nacional.

    Pesquiso discursos seus pelas redes sociais, por exemplo no YouTube da Ordem dos Psicólogos, ele bota profusa faladura. Opina. Não é nenhum Freud, mas enfim, não é isso que está aqui em causa.

    Aquilo que está em causa é eu achar – e devo mesmo achar, por um imperativo de cidadania democrática – que o Doutor Francisco Miranda Rodrigues tem todo o direito a dizer o que bem lhe apetece, como lhe apetece, quando lhe apetece e da forma que lhe apetecer. Pode ser aplaudido pelo que disse, pode ser criticado negativamente pelo que disse (ou não disse), pode passar a ser, pelo que disse, respeitado, gozado ou endeusado.

    Faz parte da convivência democrática que tal suceda.

    E é exactamente pela convivência democrática que, estando eu a borrifar-me para as opiniões do Doutor Francisco Miranda Rodrigues, sobretudo em discursos que nem aquecem nem arrefecem, antes pelo contrário, defendo que ele tem o direitos proferir tanto sentenças como parvoeiras.

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    E, exactamente pelo mesmo motivo, não posso então tolerar que ele, como circunstancial bastonário da Ordem dos Psicólogos – que, recorde-se, tal como a famigerada Ordem dos Médicos, é apenas uma associação profissional de direito público, o que lhe traz direitos mas também obrigações perante os cidadãos comuns –, condicione a opinião de outras pessoas, somente por deterem a mesma profissão dele. E que use e abuse de um estatuto concedido pelo Estado – o de regulador de uma profissão – para condicionar e até punir opiniões de seus colegas de profissão, que, antes disso, são meus e nossos concidadãos.

    Ontem, o PÁGINA UM publicou uma entrevista com a psicóloga Laura Sanches e, até atendendo à sua genética (filha de Maria José Morgado e Saldanha Sanches), chega a ser perturbador saber que, em 2023 – quase cinco décadas após o 25 de Abril –, a Ordem do Doutor Francisco Miranda Rodrigues intentou-lhe dois processos disciplinares por mero delito de opinião ou por intervenção pública como cidadão. Pior: um desses processos é sobre alegadas opiniões que ela nem sequer tomou, estando até “proibida” de falar sobre o assunto.

    O esquecimento da História, acrescido da “alimentação” dos egos de pequenos ditadores com os seus “gabinetes”– que se pavoneiam de opinar mas em simultâneo condicionam a livre opinião dos seus pares – é um dos maiores flagelos da nossa democracia, que rapidamente caminha para uma degradação irreversível.

    Laura Sanches, psicóloga.

    Ver hoje que até a filha de Maria José Morgado e de Saldanha Sanches pode ser perseguida por delito de opinião – e não por más práticas clínicas ou por outra qualquer infracção punida pelo Código Penal – é intolerável. Imaginemos o que sucede aos cidadãos sem essa aprendizagem de luta democrática. Ou aos cidadãos anónimos ou aos profissionais que não têm sequer uma”rede protectora”. Esses calam-se.Cria-se o podre unanimismo controlado por inquisidores de opinião.

    Vivemos hoje uma aberração democrática com estes pequenos ditadores de capelinhas. A existência e acção debragada de figuras como as de Francisco Miranda Rodrigues – e, infelizmente, há tantos e tantos como ele nessas pequenas igrejas de condicionamento social – são um cancro autêntico para a nossa democracia. E deve ser o quanto antes extirpado. A Bem da Nação, como diria o outro, que era um ditador.

  • Morreram 75 jovens a mais. E há investigadores do Instituto Nacional de Saúde que são ou preguiçosos ou incompetentes

    Morreram 75 jovens a mais. E há investigadores do Instituto Nacional de Saúde que são ou preguiçosos ou incompetentes


    Susana Silva, Ana Rita Torres, Baltazar Nunes e Ana Paula Rodrigues são investigadores do Departamento de Epidemiologia do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), e receberam a incumbência de realizar um relatório que tem, “como objetivos, descrever a evolução da mortalidade por todas as causas durante o ano de 2022 [semana 01/2022 à semana 52/2022 (03 janeiro de 2022 a 01 janeiro de 2023)], bem como identificar e analisar os períodos de excesso de mortalidade identificados.”

    Sem prejuízo de ser uma análise muito criticável em muitos aspectos – como já expus esta quinta-feira –, certo é que, pela primeira vez, se viu um relatório de uma instituição oficial a referir um tema tabu: o excesso de mortalidade “no grupo etário entre os 15 e os 24 anos”, cuja afectação directa pela covid-19 foi nula (ou até com balanço favorável, porque a mortalidade dos doenças respiratórias nestas idades até regrediu).

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    Esta informação não me surpreendeu. Alertei sobre este problema pelo menos três vezes no PÁGINA UM: em 3 de Setembro e em 15 de Novembro do ano passado,  já este ano, em 2 de Janeiro:

    Mas que fizeram estes quatro investigadores do INSA? Foram analisar as causas para esse tão grave desvio? Nada disso. Especularam somente e passaram adiante. Na página 16 escreveram apenas: “Os excessos de mortalidade nos grupos mais jovens são raros estando, maioritariamente, associados a causas externas de mortalidade. A ausência de informação disponível quanto às causas de morte não nos permite confirmar esta hipótese que colocamos como mais provável, dado o conhecimento anterior e o padrão do excesso observado (aumento acentuado em relação ao habitual e de curta duração).”

    O negrito é meu. E esta pergunta também: mas que raio de investigadores são estes que, perante um excesso de mortalidade num grupo etário que congrega naturalmente tanta preocupação, descartam qualquer análise posterior, assumindo de forma leviana ser “provável” que siga um padrão de “causas externas”? E como podem investigadores – que investigam nesta área da epidemiologia – dizer que existe uma “ausência de informação disponível”?

    São eles preguiçosos?

    Análise feita em 2 de Janeiro passado pelo PÁGINA UM para o grupo etário dos 15 aos 24 anos: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e excesso de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do excesso de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável. Fonte: SICO.

    Ou são eles apenas incompetentes?

    Qualquer um destes dois predicados são incompatíveis com a função de (bom) investigador.

    Vamos lá ver. Recordo-me que recentemente – em Maio do ano passado, para ser mais concreto – houve grande burburinho mediático e político porque se soube que “morreram 17 mulheres devido a complicações da gravidez, parto e puerpério, em 2020”, o valor mais alto dos últimos 38 anos. São 17 óbitos em cerca de 100 mil gravidezes por ano. Mas logo se anunciou a criação de uma “equipa com especialistas de diferentes áreas para investigar o problema.”

    Ora, sabe-se que o excesso de mortalidade no grupo etário dos 15 aos 24 anos durante o ano passado foi de 65 mortes superior à média do quinquénio anterior à pandemia. Morreram 375 jovens; a média para o período de referência foi de 310. Se se considerar o quinquénio 2017-2021 a média é de 314.

    Estamos perante um desvio de 75 mortes em relação ao valor que seria expectável para esse ano (face à redução do número de jovens). É um acréscimo relativo muito significativo, que não pode ser descartado numa frase sobre uma alegada “ausência de informação disponível”: 20% acima da média dos cinco anos anteriores.

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    Face a um desvio de 20% não é o padrão da “causa externa” que nos deve surgir como a mais “provável” – a menos que tenha caído uma camioneta cheia de estudantes por uma ribanceira e ninguém se tenha apercebido disso.

    Se houve um desvio tão pronunciado e repentino num curto espaço de tempo, o mais provável é que o padrão tenha sido quebrado; não o contrário.

    Além disso, como é possível que investigadores do INSA, ainda mais do Departamento de Epidemiologia, ignorem os seus direitos (mas também os deveres) de acesso à informação que lhes concedeu a lei que instituiu o Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO)?

    Se não sabem, eu relembro-lhes. De acordo com a Lei nº 15/2012, que criou o SICO – onde se integram dados não disponibilizados ao público, como os certificados de óbito de cada falecido – no seu artigo 12º, “os dados constantes do certificado de óbito podem ser disponibilizados pelo diretor-geral da Saúde às entidades do Ministério da Saúde responsáveis pela vigilância epidemiológica, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 7.º da Lei n.º 67/98, de 26 de outubro.”

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    E para que não haja dúvidas, a Lei Orgânica do Ministério da Saúde estipula, no seu artigo 18º, que “o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, I. P., abreviadamente designado por INSA, I. P., é o laboratório do Estado que tem por missão contribuir para ganhos em saúde pública através da investigação e desenvolvimento tecnológico, actividade laboratorial de referência, observação da saúde e vigilância epidemiológica, bem como coordenar a avaliação externa da qualidade laboratorial, difundir a cultura científica, fomentar a capacitação e formação e ainda assegurar a prestação de serviços diferenciados, nos referidos domínios.”

    Portanto, e dizem estes quatro investigadores que estamos perante uma “ausência de informação disponível”?

    Repito, por isso a pergunta: são estes quatro investigadores do INSA apenas preguiçosos ou incompetentes? Ou estão antes a tentar relativizar e esconder uma verdade inconveniente?

  • Contas do Página Um Lda. relativas ao ano de 2022

    Contas do Página Um Lda. relativas ao ano de 2022


    Além das exigências fiscais, o PÁGINA UM, tal como os outros órgãos de comunicação social, tem de divulgar, junto da Plataforma da Transparência da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), diversos dados económicos e financeiros, conforme os artigos 3º e 4º do Regulamento nº 348/2016, publicado em Diário da República, 2ª série, de 1 de abril de 2016.

    Como é do conhecimento público, o modelo de negócio do jornal PÁGINA UM é muito sui generis no contexto dos media portugueses: não temos publicidade nem parcerias comerciais e, nessa medida, os rendimentos provêm, em exclusivo dos donativos, desde a constituição da empresa gestora (Página Um, Lda. em Abril do ano passado).

    Nesa medida, os rendimentos totais (que não incluem os donativos do FUNDO JURÍDICO) foram, no ano económico de 2022, de 42.810 euros, que serviram para suportar encargos muito diversos (estrutura e funcionamento do jornal e sobretudo pagamentos de jornalistas). Saliente-se que os donativos são sempre considerados fiscalmente como rendimentos, embora não como vendas ou prestação de serviços. O PÁGINA UM não recebe nem nunca recebeu donativos em numerário, sendo todos os donativos feitos através de meios electrónicos registados (transferência bancária e meio indirectos como Paypal e Steady).

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    A estratégia de gestão do PÁGINA UM passa também por uma política de não-endividamento, pelo que o passívo do PÁGINA UM se circunscreve a pequenas dívidas ao Estado por pagamentos a efectuar em Janeiro deste ano e ao IRC dos resultados líquidos positivos.

    O PÁGINA UM apresentou assim resultados líquidos positivos, com um lucro de 1.843 euros.

    São valores que, no quadro da imprensa, e para um projecto desta natureza, nos mostra que o PÁGINA UM tem sustentabilidade, mesmo se em moldes ainda minimalistas.

    Neste momento, conseguimos ter, em média, a produção de três ou quatro conteúdos diários, entre notícias, artigos e entrevistas, além da criação do P1 PODCAST, um projecto que se encontra em forte consolidação,e que veio substituir um projecto algo falhado que foi o P1 TV,embora com a produção de um documentário.

    Com mais apoios, por certo garantiremos sim uma maior produtividade, com a mesma ou ainda maior qualidade e assertividade. E sem esquecer também um dos nossos maiores desafios: a luta a favor de uma maior transparência da Administração Pública, de que o FUNDO JURÍDICO, que tem sustentado os encargos dos processos em Tribunal Administrativo, constitui a nossa principal arma.

    Lembremo-nos que no contexto da imprensa mainstream, a generalidade das empresas de comunicação social apresentam, por regra, prejuízos (e muito elevados), com passivos aflitivos. O PÁGINA UM poderia optar por uma estratégia de endividamento para poder investir mais, mas consideramos que temos ainda uma margem de crescimento, através do aumento dos donativos, por via da qualidade do nosso trabalho, necessitando também de chegar a cada vez mais pessoas.

    Dados financeitos mais relevantes constantes do relatório da ERC sobre o Página Um, Lda., empresa gestora do PÁGINA UM.

    O PÁGINA UM quer mesmo provar que a sustentabilidade de um órgão de comunicação social está enraizada sobretudo na qualidade jornalística, e que esta é valorizada pelos leitores.

    Obrigado a todos os que contribuíram até agora. Esperemos que os resultados que temos mostrado (e agora também financeiros) contribuam para que tenham a convicção que os apoios foram por nós bem aplicados. Para aqueles que ainda não contribuíram, esperemos que tenham essa oportunidade. Como tem sido o nosso lema, a independência do jornalismo depende dos leitores.

    Pode ler AQUI o relatório da ERC com os dados financeiros relevantes do PÁGINA UM, Lda.

    Pedro Almeida Vieira

    Director do PÁGINA UM e gerente do PÁGINA UM, Lda.


    O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

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  • Salvar o coiro do almirante Gouveia e Melo: eis a nova atribuição da Entidade Reguladora para a Comunicação Social… e vale tudo!

    Salvar o coiro do almirante Gouveia e Melo: eis a nova atribuição da Entidade Reguladora para a Comunicação Social… e vale tudo!


    Sem necessidade de qualquer alteração legislativa por iniciativa da Assembleia da República ou do Governo, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) tem agora uma nova atribuição: salvar o coiro do (vice-)almirante Gouveia e Melo, antigo coordenador da task force da vacinação contra a covid alcandorado “herói nacional”, actual Chefe do Estado-Maior da Armada e putativo candidato a Presidente da República.

    Todas as outras atribuições legais da ERC – entre as quais a de assegurar o livre exercício do direito à informação e à liberdade de imprensa; a de zelar pela independência das entidades que prosseguem actividades de comunicação social perante os poderes político e económico; e a de garantir a efectiva expressão e o confronto das diversas correntes de opinião, em respeito pelo princípio do pluralismo e pela linha editorial de cada órgão de comunicação social – ficam secundarizadas perante esta nova atribuição quando se “belisca” o senhor almirante.

    Sede da ERC

    Ou então talvez esteja a ser injusto. Na verdade, se calhar, a ERC só serve para fazer fretes e atacar o jornalismo independente.

    Enfim, certo é que a ERC foi extraordinariamente diligente em “despachar” uma deliberação – a segunda – contra o PÁGINA UM por mor de investigações jornalísticas na área da Saúde. No primeiro caso, como se sabe, abordou a investigação em redor da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, que foi “censurada”, apesar de se ter revelado que tudo o que escrevemos era factual e verdadeiro, tanto assim que o presidente desta associação foi multado pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde e “enxotado” pelo Infarmed como consultor.

    E agora temos o caso Gouveia e Melo – onde a ERC quis meter o bedelho –, que no início de 2021 andou com o ex-bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, a mercadejar vacinas covid-19, para serem administradas em médicos do sector privado (que não estavam em contacto com doentes) a troco de cerca de 27 mil euros para o Hospital das Forças Armadas, de sorte a se ultrapassar a norma da Direcção-Geral da Saúde (DGS) que estabelecia as prioridades de vacinação. Gouveia e Melo não tinha, como líder da task force, competências para autorizar excepções à norma nem negociar coisa nenhuma. Curiosamente, também aqui, a ERC crítica o rigor do PÁGINA UM enquanto decorrem diligências da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde. Esta pressa da ERC em julgar o trabalho do PÁGINA UM pareceria amor se fosse para dizer bem… Como é para dizer mal…

    Já agora, sobre o caso da vacinação dos médicos não-prioritarios, e para compor o ramalhete, o pagamento ao Hospital das Forças Armadas veio da conta conjunta de Miguel Guimarães, Ana Paula Martins (actual presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte) e Eurico Castro Alves (actual presidente da secção do Norte da Ordem dos Médicos), que eram os gestores ad hoc (em nome individual) do fundo Todos por Quem Cuida, cujas verbas totais (cerca de 1,4 milhões de euros) vieram quase na sua totalidade das farmacêuticas.

    Gouveia e Melo, actual Chefe do Estado-Maior da Armada, foi coordenador da task force. Uma semana após a tomada de posse, começou logo a fazer aquilo que prometera não permitir: vacinações à margem das prioridades definidas pela DGS

    Porém, em vez de a factura do Hospital das Forças Armadas ter sido passado em nome da campanha Todos por Quem Cuida, acabou por ser emitida em nome da Ordem dos Médicos – ou seja, uma factura falsa, porque não houve fluxo financeiro entre a Ordem dos Médicos e o Hospital das Forças Armadas. Depois, ainda tivemos quatro farmacêuticas a receber facturas, também falsas, para justificar donativos nunca efectivamente recebidos pela Ordem dos Médicos – e, já agora, sem declaração no Portal da Transparência do Infarmed – de quatro farmacêuticas (Ipsen Portugal, Bial, Laboratório Atral e Gilead, onde então trabalhava Ana Paula Martins). Também mais uma vez não houve fluxo financeiro associado – das farmacêuticas para a Ordem dos Médicos –, pelo que existem aqui mais quatro facturas falsas.

    Na verdade, os únicos fluxos financeiros que existiram foram entre as farmacêuticas e a conta da campanha Todos por Quem Cuida (gerida a título pessoal por Guimarães, Martins e Alves) e depois entre a conta da campanha Todos por Quem Cuida e o Hospital das Forças Armadas. Em suma, onde houve fluxos financeiros não houve facturas; onde houve facturas não houve fluxos financeiros que as justificassem.

    Mas, perante tudo isto – e ademais, profusamente documentado e explicado no artigo de investigação jornalística do PÁGINA UM, e após o acesso aos documentos ter sido possível somente depois de uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa –, que faz a ERC com uma queixa de um “anónimo de rabo de fora”?

    Ana Paula Martins e Miguel Guimarães, ex-bastonários das Ordens dos Farmacêuticos e dos Médicos, geriram, em parceria com o actual presidente da secção do Norte da Ordem dos Médicos, um fundo de 1,4 milhões de euros, quase todo proveniente de farmacêuticas, com diversas ilegalidades e promiscuidades à mistura.

    Trata a ERC de abrir um processo que questiona o rigor informativo do PÁGINA UM (sem explicitar em concreto onde existiam as falhas) e acelera uma “deliberação” em tempo recorde (há processos que demoram no regulador mais de dois anos; este, contra o PÁGINA UM, demorou pouco mais de um mês).

    O almirante agradece. O ex-bastonário, idem. E as farmacêuticas, idem. E todos os outros envolvidos numa gigantesca falcatrua com 1,4 milhões de euros travestida de acções de beneficiência, idem.

    E não esqueçamos também que a ERC perdeu em primeira instância uma intimação do Tribunal Administrativo de Lisboa interposta pelo PÁGINA UM sobre transparência dos media. E não esqueçamos que a ERC está a adiar desde já há quase um ano uma solicitação do PÁGINA UM sobre estranhos contratos comerciais entre grupos de media e diversas empresas e entidades públicas. E que a ERC andou a ameaçar o PÁGINA UM quase de actos de vandalismo, até que pareceres da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos a acalmasse e fizesse cumprir os normativos legais…

    Mas passemos à frente os oito pontos da deliberação em causa em defesa de Gouveia e Melo (e contra o PÁGINA UM) – que ocupam as duas últimas páginas das 20 que foram paridas e divulgadas no seu site, sem sequer terem sido enviadas previamente ao PÁGINA UM nem ter sido concedida qualquer audiência prévia de interessados (isso é só para a “imprensa amiga”).

    Segunda página da Norma 002/2021, de 31 de Janeiro de 2021, onde se definem os grupos prioritários. Documentos confirmam que Gouveia e Melo desrespeitou a norma e negociou a vacinação de médicos não-prioritários, que só deveriam ser vacinados na Fase 2 e 3 em função das comorbilidades e idade.

    E analisemos sim alguns aspectos  da deliberação, para saber, enfim, do rigor de análise dos membros do Conselho Regulador da ERC – e também do seu departamento de análise de media liderado por Tânia de Morais Soares, até porque foram feita profusas considerações sobre aspectos operacionais e contabilísticos em redor do tema abordado pelo PÁGINA UM.

    E nem precisam de ser todos; basta alguns para não se ser demasiado exaustivos.

    Peguemos então num aspecto essencial: a ERC tem a lata de omitir na sua deliberação – e em particular quando genérica e hipocritamente elogia o jornalismo de investigação – que o trabalho do PÁGINA UM decorreu num cenário de obscurantismo.

    Os documentos a que o PÁGINA UM teve acesso vieram apenas após uma sentença em Tribunal Administrativo contra a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos, uma vez que o bastonário da Ordem dos Médicos recusou até cumprir dois pareceres da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos.

    A ERC, na sua deliberação, farta-se de fazer referências àquilo que era do “conhecimento público” – e aquilo que a investigação do PÁGINA UM revelou vai muito além do conhecimento público. Que os médicos em causa foram vacinados, era do conhecimento público, e aí não havia novidade. Mas não era sobre isso que versava o trabalho de investigação do PÁGINA UM. A ERC confundiu, e quer confundir-nos, que conhecimento público – e suposta transparência – não significa que um acto seja legal. Se eu anunciar aos sete ventos que vou “fugir ao fisco”, esta minha postura de transparência, do conhecimento público, não altera a ilegalidade do meu acto se alguém o investigar.

    Em suma, uma coisa é saber-se que houve médicos vacinados por influência da Ordem dos Médicos; outra bem diferente é questionar a legalidade do processo. Infelizmente, durante a pandemia fecharam-se os olhos a muitos atropelos legais e éticos sob a justificação que era para o “nosso bem”.

    Na procura de encontrar supostas falhas de rigor, a ERC chega mesmo a acusar o PÁGINA UM de omitir partes da “história”, que na verdade, estão escaparrapachadas no artigo, incluindo referências, com ligação, para notícias da época dos factos.

    Na sua fúria persecutória, a ERC até chega a acusar o PÁGINA UM de omitir uma entrevista do bastonário da Ordem ao Diário de Notícias que garantiria a lisura do processo. E até cita, extensamente, essa entrevista de Miguel Guimarães ao Diário de Notícias: “O último momento que considera marcante destes seis anos tem a ver com o facto de ter sido a Ordem a assumir o processo de vacinação de todos os médicos que não estavam integrados no SNS, porque os do serviço público foram os primeiros a serem vacinados, eram profissionais de risco, mas “os outros estavam a ser esquecidos e a Ordem fez uma coisa que vai ficar para a história: planeou e organizou o processo de vacinação a nível nacional de todos os médicos que estavam a ficar para trás. Obviamente, que tudo foi autorizado pela Task Force, liderada pelo vice-almirante Gouveia e Melo, que nos deu vacinas, que nos ajudou a criar quatro centros de vacinação, três em unidades militares e um no hospital do Algarve, para vacinarmos sete mil médicos no país. Foi um processo em que tínhamos também todos os holofotes virados para nós, mas que correu bem e nos trouxe grande satisfação“.

    ERC acusa o PÁGINA UM de omitir informação de conhecimento público, citando longamente uma entrevista de Miguel Guimarães ao Diário de Notícias que… foi publicada um mês e meio depois do artigo do PÁGINA UM.

    Aliás, esta é a mais patética e asquerosa lavagem de imagem – patrocinada pela ERC – que se pode conceber, por uma simples razão: o artigo do PÁGINA UM que denuncia a ilegalidade dos procedimentos foi publicado em 15 de Dezembro de 2022, enquanto a entrevista de Miguel Guimarães foi concedida ao Diário de Notícias em 30 de Janeiro de 2023. Na verdade, estas afirmações até justificam uma parte das denúncias do PÁGINA UM: o líder da task force “autorizou” quando não tinha competências para tal, e se “autorizou” foi porque ultrapassou o que estava na norma da DGS.

    Mas gargalhemos: então não é que a notícia do PÁGINA UM omitiu, segundo a ERC, uma entrevista de Miguel Guimarães que apenas viria a ser dada um mês e meio depois? Lamentável, não é? Que falta de rigor! Inadmissível! O PÁGINA UM vai pedir uma bola de cristal à ERC para evitar mais omissões deste quilate.

    Mas vamos ser claros.

    O caso denunciado pelo PÁGINA UM baseia-se em factos e documentos: houve pessoas vacinadas por indicação da Ordem dos Médicos, em conluio com Gouveia e Melo, que não constavam na lista de prioridades no contexto da norma da DGS em vigor. A norma não foi mudada; foi sim combinado por duas pessoas (Miguel Guimarães e Gouveia e Melo), a troco de dinheiro para o Hospital das Forças Armadas, um desvio de vacinas (então destinadas a grupos de risco, sobretudo idosos) para um grupo específico de pessoas escolhidas não em função da sua actividade profissional (em contacto com doentes) mas sim por estarem inscritas numa associação profissional (Ordem dos Médicos). Miguel Guimarães e o então vice-almirante Gouveia e Melo não cumpriram a norma da DGS – basta saber ler para confirmar isso –, e sabiam disso.

    Se eles achavam errada a norma deveriam influenciar a sua alteração pela DGS ou pelo Governo. E não mancomunarem-se, envolvendo pagamento de serviços ao Hospital das Forças Armadas. E note-se que Gouveia e Melo nunca deteve poderes legais para uma autorização daquela natureza – podia achar que tinha, mas não tinha por força do Despacho 11737/2020 de criação da task force –, pelo que extravasou as suas competências.

    Mais evidente não pode ser.

    Aliás, por 11 vezes – repita-se: 11 vezes – a ERC acusa, na sua deliberação, o PÁGINA UM de lançar “suspeições” sobre este expediente entre Miguel Guimarães e Gouveia e Melo!

    Quais suspeições?! São evidências, caramba: a norma era clara; não foi alterada por quem de direito (DGS); e houve uma combinação para excepções à margem da tutela da task force. Tudo está explicado, com documentos, com a ligação à norma da DGS em vigor e com a ligação ao Despacho 11737/2020 de criação da task force. E ainda dizem que são “suspeições”? Eu chamo-lhe factos e evidências.

    Mas a ERC ainda foi mais longe no labéu, e meteu-se a defender a operação contabilística dos procedimentos de vacinação entre os envolvidos, não percebendo – ou não querendo perceber – que em causa está a existência de quatro “entidades”: farmacêuticas (que concederam os donativos), os gestores da campanha Todos por Quem Cuida (que receberam os donativos e pagaram ao Hospital das Forças Armadas), o Hospital das Forças Armadas (que prestou um serviço) e a Ordem dos Médicos (que apenas coordenou a vacinação).

    Numa situação normal (e legal), tudo seria simples, com dois fluxos financeiros e correspondentes documentos associados, com os seguintes passos: as farmacêuticas concediam o donativo aos gestores da campanha Todos por Quem Cuida (primeiro fluxo financeiro) contra entrega da correspondente emissão de factura (necessária para justificar a saída de dinheiro), e em consequência os gestores da campanha pagavam o serviço de vacinação ao Hospital das Forças Armadas (segundo fluxo financeiro) contra entrega de factura de prestação de serviços.

    Factura para pagamento da vacinação de médicos não-prioritários. Apesar do pagamento ter sido feito por uma compra titulada por três pessoas, a factura foi emitida para a Ordem dos Médicos, que por sua vez emitiu quatro facturas falsas para justificar donativos que, na verdade, nunca recebeu.

    Certinho e limpinho, certo?

    Mas o que é que aconteceu?

    Mantiveram-se os dois fluxos financeiros e dois documentos que os justificaram, mas não de forma correcta, por não coincidirem entre entidades.

    Na verdade, aquilo que se fez foi o seguinte:

    1. As farmacêuticas deram um donativo aos gestores da campanha Todos por Quem Cuida – que, aliás, a título individual se furtaram a pagar imposto de selo de 10% para os donativos superiores a 500 euros (e a campanha recebeu 1,4 milhões de euros), não havendo também registo no Portal da Transparência do Infarmed, portanto, só aqui são duas ilegalidades –, mas sem emissão de qualquer factura, pelo que não foi por aqui, como devia ser, que as farmacêuticas justificaram a saída de dinheiro.
    2. A campanha Todos por Quem Cuida pagou a vacinação dos médicos não-prioritários ao Hospital das Forças Armadas (não sendo este pagamento do conhecimento público antes da notícia do PÁGINA UM), mas este fluxo financeiro não teve a correspondente emissão de factura em nome dos gestores da dita campanha.
    3. Em alternativa à legalidade, o Hospital das Forças Armadas teve sim indicações para emitir a factura em nome de uma entidade que, efectivamente, não lhe tinha pagado nada: a Ordem dos Médicos.
    4. Por fim, a Ordem dos Médicos passou (largos meses depois) quatro facturas a quatro farmacêuticas, como se estas tivessem transferido para si alguma verba. Falso, porque os donativos tinham sido enviados para a conta bancária que tinha Miguel Guimarães como principal titular (e que não entrava na contabilidade da Ordem dos Médicos).
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    No meio disto, a ERC põe-se a especular sobre possíveis causas ou hipotéticos documentos perdidos ou serviços distintos – enfim, uma embrulhada –, esquecendo vários detalhes fundamentais. Primeiro, o PÁGINA UM, para a preparação deste artigo, baseou-se em TODA a documentação operacional e contabilística que a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos foram obrigadas a disponibilizar pelo Tribunal Administrativo de Lisboa. Assume-se assim que não existem documentos perdidos, até porque nos três dias de análise, e posteriormente, se pediram todos os esclarecimentos (e muitos foram transmitidos pelos técnicos que acompanharam atentamente todas as horas de consulta). Segundo, a análise contabilística foi feita por um jornalista com licenciaturas em Economia e Gestão, e que, em duas das visitas à Ordem dos Médicos, foi ainda coadjuvado por uma outra pessoa com formação académica e elevados conhecimentos de Gestão e de Contabilidade.

    Sejamos claros: do ponto de vista contabilístico, há cinco facturas falsas. Cinco! Há a factura emitida pelo Hospital das Forças Armadas à Ordem dos Médicos, porque não foi esta entidade que lhe pagou nem existe referência de que houvera um terceiro a proceder ao pagamento (alternative payer). E há quatro facturas emitidas pela Ordem dos Médicos a quatro farmacêuticas, com datas “fictícias” (algumas sem correspondência com os fluxos de caixa do período), para justificar donativos que, na verdade, nunca entraram nos cofres da Ordem dos Médicos, uma vez que as saídas de dinheiro (donativos) dessas farmacêuticas se destinaram à conta de Miguel Guimarães (e companhia), integrando indiscriminadamente o “bolo” de cerca de 1,4 milhões de euros da campanha Todos por Quem Cuida. A Ordem dos Médicos emitiu assim quatro facturas falsas para aquelas farmacêuticas como podia ter passado a outras quaisquer.

    Portanto, temos cinco facturas falsas, e a ERC ainda acha que está tudo bem, e o trabalho de PÁGINA UM todo mau?

    O pagamento ao Hospital das Forças Armadas foi feito por uma conta que geria a campanha, mas que não pertencia nem à Ordem dos Médicos nem à Ordem dos Farmacêuticos, e portanto sob contabilidade paralela e ilegal. Os titulares das contas (Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves) nunca cumpriram as exigências fiscais nem de transparência, e nunca emitiram qualquer factura de recepção dos donativos, promovendo uma “corrente de facturas falsas”.

    Há dinheiros a circular entre farmacêuticas e médicos sem sequer serem registados no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed, e a ERC acha tudo bem, e o trabalho do PÁGINA UM todo mau?

    Há fuga aos impostos cometidos pelos gestores da campanha Todos por Quem Cuida, e a ERC acha tudo bem, e o trabalho do PÁGINA UM todo mau?

    Há normas não cumpridas e acordos ad hoc para contornar prioridades na vacinação (com desvio de vacinas destinadas a grupos mais vulneráveis), por actos de Gouveia e Melo, e a ERC acha tudo bem, e o trabalho do PÁGINA UM todo mau?

    Enfim, toda a análise feita pela ERC – numa tentativa de denegrir o trabalho do PÁGINA UM e salvar a face das duas Ordens, dos gestores da campanha Tudo por Quem Cuida e de Gouveia e Melo – é ridícula e absurda. Mas muito, muito grave.

    E a argumentação técnica chega a ser risível. Atente-se, por exemplo, ao ponto 78 da deliberação da ERC: “Por outro lado, todas as faturas em questão se encontram descritas como ‘donativo sem contrapartida’, o que é inconsistente com o argumento do Página Um de se tratar de despesas para efeito fiscal.”

    Sonora gargalhada! Ó senhores da ERC: qualquer factura, incluindo as de donativos, tem sempre um efeito fiscal associado, no pressuposto que justificam gastos e/ou servem para se assumirem despesas, sem as quais estaremos, em última análise, perante saídas de dinheiro indocumentadas, que se assim for também terão consequências fiscais. E isto independentemente de existirem benefícios fiscais em donativos a determinadas entidades – que, aliás, também se verificou na gestão da campanha Todos por Quem Cuida, através da emissão de largas centenas de outras facturas falsas, como o PÁGINA UM denunciou num outro artigo.

    Os pontos seguintes da deliberação da ERC, abordando outras questões contabilísticas e fiscais, para acusarem o PÁGINA UM de “especulações abusivas, sem a devida e necessária sustentação factual nos documentos apresentados”, deveriam merecer, como reacção da minha parte, chamar azémolas a esta gente.

    Mas como no ano passado eu já acusara os membros do Conselho Regulador da ERC de analisarem processos “por um prisma tão redutor, tipo antolhos de equídeos” – e levei um processo-crime por isso, entretanto abandonado, não sei ainda se por terem acabado por concordar comigo – não me apetece ser repetitivo. Ou redundante.


    Nota final: Não é função de um jornal fazer denúncias directas para o Ministério Público investigar eventuais crimes em redor das suas notícias, embora em muitos casos se espere que haja iniciativa própria da Justiça quando tal se justifica. Mas, neste caso em concreto – e face a esta vergonhosa deliberação da ERC –, o PÁGINA UM, em prol da defesa do rigor do seu trabalho, vai comunicar ao Ministério Público as notícias que produziu em Dezembro passado sobre estas matérias, e manifestar a disponibilizade para facultar cópia de diversos documentos operacionais e contabilísticos extraídos da consulta aos dossiers da campanha Todos por Quem Cuida. Em todo o caso, os originais estarão na Ordem dos Médicos, para consulta ou buscas da PJ. E às tantas estará lá também uma auditoria que, durante o processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa, as duas Ordens juravam estar em conclusão…

  • Gouveia e Melo “mercadejou” (mesmo) administração de vacinas a médicos não-prioritários uma semana após tomar posse na task force

    Gouveia e Melo “mercadejou” (mesmo) administração de vacinas a médicos não-prioritários uma semana após tomar posse na task force

    N.D. Republicamos um dos trabalhos de investigação da campanha “Todos por Quem Cuida”, originalmente publicados em Dezembro do ano passado, após a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) ter decidido tomar uma “deliberação” (leia-se a opinião de três pessoas) que, entre outros dislates, dá bitates sobre como se deveria conduzir uma investigação jornalística num país democrático, “insta o PÁGINA UM ao escrupuloso cumprimento dos normativos legais e deontológicos em matéria de rigor informativo”. Como nada há a mudar no que publicámos em Dezembro passado, o PÁGINA UM insta a ERC a não ingerir, como reiteradamente tem feito, na independência dos jornalistas e a interferir nos seus métodos de trabalho (sobretudo naquele que seja incómodo), recomenda-lhe ainda que aprenda a analisar melhor as normas da DGS e as questões atinentes sobre a matéria em causa, que estude melhor (e sem viés) os documentos que profusamente apresentámos (e que não eram públicos antes, e tornaram-se acessíveis por sentença do Tribunal Administrativo), e, por fim, que prescinda de juízos de valor sobre esta investigação jornalística, sobretudo antes de serem conhecidos os resultados do “processo de esclarecimento” instaurado por despacho do inspector-geral das Actividades em Saúde em 15 de Janeiro passado. O PÁGINA UM deseja também um sossegado fim de mandato (que, por lei, já deveria ter terminado em Novembro passado) aos (ainda) membros do Conselho Regulador da ERC, e que o façam com um mínimo de dignidade. Recorde-se ainda que em outra deliberação, esta de Julho do ano passado, a ERC também decidiu criticar um trabalho do PÁGINA UM sobre o presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, António Morais. A investigação do PÁGINA UM era tão má, mas tão má, mas mesmo tão má, que, enfim, e afinal, esteve na base da aplicação de uma contra-ordenação sobre António Morais, que, hélas, se queixara à ERC do mau trabalho jornalístico. Este presente artigo manter-se-á como manchete até sexta-feira.


    Em Fevereiro de 2021, num polémico início da campanha de vacinação contra a covid-19, e apenas uma semana após tomar posse na task force, Gouveia e Melo, o agora Chefe do Estado-Maior da Armada, negociou com o bastonário Miguel Guimarães as condições para se vacinarem vários milhares de médicos que não estavam na lista de prioridade da Direcção-Geral da Saúde. Mais de 27 mil euros foram parar aos cofres do Hospital das Forças Armadas, sem que o acordo ad hoc tenha sido autorizado. Pior ainda foi a operação contabilística: a conta acabou paga pela campanha “Todos por Quem Cuida” (detida por três particulares), mas a factura foi endereçada para a Ordem dos Médicos. Entretanto, este ano, surgiram quatro farmacêuticas a “reivindicar” o apoio nesta operação à Ordem dos Médicos, atestando sob a forma de recibo. Este é o quarto artigo de uma investigação jornalística do PÁGINA UM, profusamente documentada, que merece ser um caso de polícia.


    Há pelo menos mais de uma semana que Manuel Pizarro, ministro da Saúde, sabe, mas não comenta: em Fevereiro do ano passado, o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, e o então responsável pela task force, Gouveia e Melo, mercadejaram a administração de vacinas a quase quatro mil médicos a troco de um pagamento de mais de 27.000 euros, que foram encaminhados para o Hospital das Forças Armadas.

    Este expediente, realizado à margem das orientações então emanadas pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) – que é a Autoridade de Saúde Nacional – começou a desenhar-se apenas uma semana após o então vice-almirante Henrique Gouveia e Melo tomar posse como coordenador da task force da vacinação contra a covid-19, substituindo Francisco Ramos. Este ex-secretário de Estado da Saúde demitira-se por irregularidades relacionadas com as prioridades de vacinação no Hospital da Cruz Vermelha. Nas primeiras fases da vacinação, devido à escassez de doses, surgiram muitos casos de administração indevida, levando mesmo à instauração de 216 processos judiciais, apesar de apenas um ter levado a condenação, conforme revelou ontem o jornal Público.

    Gouveia e Melo, actual Chefe do Estado-Maior da Armada, foi coordenador da task force. Uma semana após a tomada de posse, começou logo a fazer aquilo que prometera não permitir: vacinações à margem das prioridades definidas pela DGS.

    Embora no dia de posse tivesse considerado “lamentável” a administração indevida de vacinas que então estava na ordem do dia. incluindo no Parlamento e prometido “apertar mais as regras” de controlo, uma semana mais tarde, em 10 de Fevereiro, Gouveia e Melo reuniu-se com o bastonário Miguel Guimarães para acertar uma forma de contornar a posição da DGS que não priorizara a vacinação dos médicos que trabalhavam fora do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Apesar de não constar no processo consultado pelo PÁGINA UM eventuais respostas escritas de Gouveia e Melo, nessa reunião terá saído a garantia de colaboração não apenas da task force, mas também das próprias Forças Armadas.

    No dia 19 de Fevereiro, o bastonário escrevia um e-mail ao “Distinto Senhor Coordenador da Task Force Mui Ilustre Vice-Almirante Henrique Gouveia e Melo”, enviando em anexo, “tal como combinado na reunião do passado dia 10”, uma lista de médicos a serem vacinados, à margem do programa oficial de vacinação, defendendo a justeza e relevância desta questão.

    A troco de mais de 27 mil euros para o Hospital das Forças Armadas, Gouveia e Melo permitiu, à margem das prioridades, que Miguel Guimarães “brilhasse”.

    Certo é que, independentemente da eventual justeza desta medida, muitos médicos sobretudo do sector privado e social, bem como os médicos aposentados do SNS que mantinham actividade clínica, não estavam na lista das prioridades em Fevereiro do ano passado. Gouveia e Melo tinha conhecimento disso, até por integrar a task force desde Novembro de 2020, e também saberia que negociar à margem do processo oficial era cometer os mesmos erros ou até ilegalidades que levaram à “queda” de Francisco Ramos.

    As negociações foram rápidas. Em 25 de Fevereiro, após um contacto telefónico com Gouveia e Melo, Miguel Guimarães fecharia então um acordo ad hoc – dir-se-ia informal, porque não há qualquer protocolo ou acordo escrito – para vacinar um pouco mais de quatro mil profissionais, dos quais 1.382 no pólo do Porto do Hospital das Forças Armadas, 2.004 no de Lisboa, 623 no Centro de Saúde Militar de Coimbra e 189 no centro hospitalar do Algarve. Em vésperas, Miguel Guimarães estava preocupado em saber se poderia chamar a comunicação social para acompanhar toda a operação, que acabou por se realizar de forma discreta. Foram vacinados quase 3.700 médicos. Obviamente, as vacinas tiveram de ser “desviadas” do circuito oficial.

    O uso das palavras “negociação” e “acordo ad hoc” não são abusivas nem despropositadas no contexto em que se realizou esta vacinação paralela.

    Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, foi o “maestro” da campanha “Todos por Quem Cuida”, que, apesar das boas intenções, se encontra enxameada de maus procedimentos.

    Com efeito, a vacinação daqueles médicos à margem das orientações da DGS não teve apenas como eventual desiderato “proteger os profissionais de saúde e dar confianças aos doentes”, como então garantia Miguel Guimarães ao jornal Nascer do Sol, mas envolveu também contrapartidas monetárias. Apesar das vacinas serem gratuitas, Gouveia e Melo somente as disponibilizou contra a cobrança unitária de 3,7 euros para supostamente suportar custos do Hospital das Forças Armadas. No Portal Base não consta que esta entidade tenha contratado quaisquer serviços externos para vacinar os médicos.

    A factura do Hospital das Forças Armadas, num total de 27.365 euros – pela administração de 7.396 doses – foi emitida em 18 de Julho do ano passado para pagamento pela Ordem dos Médicos. Mas é aí que surge ainda mais um caso rocambolesco, envolvendo o fundo “Todos por Quem Cuida”.

    A Ordem dos Médicos quis ficar com os louros mas também com o dinheiro nos seus cofres. E assim, em 26 de Abril do ano passado, a tesoureira do Conselho Nacional, Susana Garcia de Vargas, escreveu um ofício aos gestores do fundo pedindo-lhes 30.000 euros para custear o processo de vacinação. Sendo expectável que o pedido fosse aceite – por via do próprio bastonário da entidade que pedia apoio ser um das três pessoas que decidia se dava apoio –, como foi, o problema mais uma vez passou pelo expediente contabilístico pouco ortodoxo. Isto é, ilegal.

    Factura pela vacinação paralela dos médicos foi enviada à Ordem mas paga pela campanha solidária.

    Uma vez que a factura do Hospital das Forças Armadas estava em nome da Ordem dos Médicos, deveria ter sido esta entidade a proceder ao pagamento, e depois receber o donativo de 30.000 euros. Porém, não foi isso que sucedeu.

    A factura manteve-se na Ordem dos Médicos, e em seu nome, mas o dinheiro recebido pelo Hospital das Forças Armadas proveio da conta do fundo “Todos por Quem Cuida”, de acordo com o pedido de operação bancária assinado em 4 de Agosto do ano passado por Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves.

    Contudo, para aumentar a estranheza desta operação de financiamento, a Ordem dos Médicos passaria, já este ano, facturas/ recibos a quatro farmacêuticas assumindo que tinham sido estas a suportar os custos de vacinação.

    De acordo com os documentos consultados na Ordem dos Médicos pelo PÁGINA UM – por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa –, no passado dia 4 de Março a Ordem dos Médicos passou este documento contabilístico com o valor de 3.725,2 euros à Gilead. Nesta altura, Ana Paula Martins – que terminara o mandato em Fevereiro na Ordem dos Farmacêuticos – já ocupava o cargo de directora dos negócios governamentais desta farmacêutica norte-americana.

    Três dias mais tarde, a Ordem de Miguel Guimarães passaria mais três facturas/ recibo a outras três farmacêuticas [vd., as ligações]: Ipsen Portugal (no valor de 11.040 euros), Bial (2.590 euros) e Laboratórios Atral (10.000 euros), também expressando que se trata de “donativo sem contrapartida” para a “campanha de vacinação da Ordem dos Médicos”.

    Para aumentar a estranheza destes comprovativos – que, em última análise, permitiriam que as farmacêuticas pudessem assumir o donativo como uma despesa para efeitos fiscais –, apenas no caso do alegado donativo da Ipsen surge a referência a “pronto de pagamento”. No caso da Gilead aparece, como condição de pagamento, “Factura 10 dias”, enquanto nas situações da Bial e Laboratórios Atral surge “Factura 30 dias”. Ou seja, numa situação normal, isto significaria que a Ordem dos Médicos teria, nestes casos, a promessa de entrada de dinheiro em caixa no prazo de 10 e 30 dias, respectivamente.

    Mas, repita-se, o pagamento foi feito pela conta solidária já no ano anterior – ou seja, deveria ser esta (ou os seus titulares) a receber a factura/ recibo das farmacêuticas.

    Factura/ recibo da Laboratórios Atral, uma das quatro em que se assume que o apoio financeiro para vacinar quase quatro mil médicos proveio de farmacêuticas. Contudo, o pagamento ao Hospital das Forças Armadas foi realizado pela conta solidária titulada (em nome individual) por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves.

    Acresce também que, independentemente de serem ou não documentos forjados, ou de a Ordem dos Médicos ter recebido mesmo os donativos daquelas quatro farmacêuticas (apesar do pagamento ter sido feito pela conta solidária), os montantes daquelas facturas deveriam ter sido declarados no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed.

    Não foram, e nem o Infarmed reagiu ainda, passado mais de uma semana, ao pedido de esclarecimento do PÁGINA UM.

    Sobre estas matérias, o bastonário da Ordem dos Médicos, a ex-bastonária da Ordem dos Farmacêuticos e o médico Eurico Castro Alves – ou seja, os gestores da conta solidária “Todos por Quem Cuida” – optaram por não responder directamente à dezena de perguntas que o PÁGINA UM lhes colocou, decidindo fazer uma declaração conjunta através de uma representante legal.

    A advogada Inês Folhadela diz que “o procedimento de quitação [no caso da operação das vacinas] foi o mesmo que foi adotado em relação aos restantes donativos”, e garante que para a sua administração “foi estabelecido [um acordo] com o Ministério da Saúde, através do coordenador da task force, vice-almirante Gouveia e Melo”, acrescentando que “o Hospital das Forças Armadas não prescindiu da remuneração dos serviços prestados, tendo a Comissão de Acompanhamento (sem intervenção da Ordem dos Médicos) deliberado que as despesas seriam suportadas pela ação solidária”. A advogada insiste que a task force, sendo uma “unidade criada pelo Governo para assegurar a estratégia, planificação e logística para a campanha de vacinação em massa contra a covid-19 (…), estava autorizada a concertar essa ação”.

    Convém salientar que não há nenhum acordo escrito por Gouveia e Melo, até porque o Despacho 11737/2020 não lhe dava autonomia para Gouveia e Melo contrariar as orientações da DGS sem sequer autorização superior. A definição da estratégia, do plano logístico e outras acções eram sempre feitas sob liderança da DGS, do Infarmed e de outros organismos tutelados pelo Ministério da Saúde, como taxativamente consta do despacho governamental assinado em 23 de Novembro de 2020 pelos ministros da Defesa Nacional, da Administração Interna e da Saúde.

    O PÁGINA UM não encontrou no processo consultado qualquer documento de autorização nem qualquer protocolo que tenha formalizado o acordo de administração das vacinas entre Gouveia e Melo e o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães.


    N.D. Este é o quarto artigo de um dossier em redor da campanha “Todos por Quem Cuida”, que resultou da consulta, durante três dias ao longo do mês de Novembro passado, de todos os documentos operacionais e contabilísticos na sede da Ordem dos Médicos, em Lisboa. A possibilidade de consulta não foi concedida de forma voluntária: foi uma imposição, por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa (através de uma intimação, financiada pelo FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM, ou seja, pelos seus leitores), após sistemáticas recusas tanto da Ordem dos Médicos como da Ordem dos Farmacêuticos, mesmo após a obtenção de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA). Com esta investigação, o intuito do PÁGINA UM não é colocar em causa a bondade de campanhas de angariação de fundos nem acções de solidariedade; é exactamente averiguar se, em acções nobres, os procedimentos são exemplares, incluindo a componente da transparência perante o eventual escrutínio dos jornalistas. Não há nada pior para uma boa causa do que maus procedimentos. Tal como os meios não justificam os fins, também os fins não podem justificar os meios.

  • Jornalistas (muitos): os ferreiros sem espeto nem pau

    Jornalistas (muitos): os ferreiros sem espeto nem pau


    Ponto prévio: “O jornalista deve lutar contra as restrições no acesso às fontes de informação e as tentativas de limitar a liberdade de expressão e o direito de informar. É obrigação do jornalista divulgar as ofensas a estes direitos.” Esta é uma das normas do Código Deontológico dos Jornalistas. Posto isto, siga, e justifica-se, o editorial…

    Imaginemos que, por exemplo, um jornalista do Expresso fazia um requerimento ao Governo a solicitar documentos ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, isto num cenário em que se via obrigado a invocar a lei para obter informação, porque não lhe bastaria um simples telefonema ou e-mail.

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    Eu sei que é um exercício que exige demasiada imaginação: não tanto por mim – que colaborei vários anos no Expresso –, mas por ser difícil imaginar o Expresso (ou outro órgão de comunicação social mainstream) de hoje a “morder nas canelas” do Governo ao tal ponto de invocar leis para aceder a documentos…

    Mas imaginemos então esse pedido, e que, na volta do correio, o jornalista do Expresso receberia a seguinte resposta:

    Embora o Governo reconheça que tal informação nunca foi requerida e o número de documentos, não obstante ser morosa, não configure propriamente um impedimento, a verdade é que a finalidade do acesso aos documentos é, em si, manifestamente abusiva. E é assim porque o requerente tem vindo, ao longo do último ano, a mover sucessivos pedidos de acesso aos mais variados documentos na posse da Governo, acabando por fazer um uso abusivo dos mesmos quando a eles tem acesso, concretamente através da publicação no Expresso, aliada a outras tantas sobre o Governo e o seu Primeiro-Ministro.

    O que acham que aconteceria? Como reagiria a classe jornalística? Como reagiria o Sindicato dos Jornalistas? Como reagiria a Entidade Reguladora para a Comunicação Social? Como reagiria a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista?

    Pagaria para ver.

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    Porém, resposta similar obtive, não do Governo, mas, pasme-se, da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, que integra apenas jornalistas. E isto porque pedi formalmente diversos documentos, entre os quais actas de reuniões, diligências tomadas em sede de processos de averiguação e disciplinares a jornalistas e também a decisões quanto a remunerações dos nove membros do Plenário de uma entidade de direito público.

    A resposta, esta semana transmitida, contém esta e outras “pérolas”:

    “Embora o Secretariado reconheça que tal informação nunca foi requerida e o número de documentos, não obstante ser morosa, não configure propriamente um impedimento, a verdade é que a finalidade do acesso aos documentos é, em si, manifestamente abusiva. E é assim porque o requerente tem vindo, ao longo do último ano, a mover sucessivos pedidos de acesso aos mais variados documentos na posse da CCPJ, acabando por fazer um uso abusivo dos mesmos quando a eles tem acesso, concretamente através da publicação no “Página Um”, aliada a outras tantas sobre a CCPJ e a sua Presidente.

    Convém referir que as minhas expectativas face a esta CCPJ estão já abaixo de zero, como se pode constatar pela cobertura noticiosa e opinativa que lhe temos dedicado no PÁGINA UM. A sua inacção em diversas matérias – como o fechar os olhos às relações promíscuas entre grupos de media e determinadas empresas é um exemplo –, já não tem cura. Mas convinha que não enterrassem a própria essência do jornalismo, abrindo uma caixa de Pandora perante a passividade da classe só porque se deparam, pela primeira vez, com um jornalista que não quer ser corporativista nem agradar à classe.

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    Imaginar que se pode dar uma resposta daquele quilate a um jornalista – invocando uma norma legal, isto é, o ser “manifestamente abusivo”, porque acham os pedidos “chatos” – é dar em simultâneo “instruções” ao Governo, à Administração Pública, às empresas e a todas as entidades para tratarem, do mesmo modo, outros jornalistas.

    Para a jornalista (credo!) Licínia Girão e para o jornalista (duplo credo, porque também ensina estudantes de Comunicação Social), que assinaram a carta a mim remetida, haver um jornalista a pedir, por exemplo, actas de reuniões e documentos de remuneração (numa altura em que a CCPJ pretendia aumentar as receitas através de uma subida dos emolumentos) é “manifestamente abusivo”. Presumo que já não seria se eu lhes cantasse loas.

    Mas não me surpreendendo que a CCPJ (tal como em tempos a Entidade Reguladora para a Comunicação Social) tenha este tipo de atitudes pouco adultas (fazendo “birras”, porque os incomodam), também sei como as “coisas” funcionam em corporações – e sei muito bem o quão corporativista é a classe jornalística.

    Por isso, não me espanta, embora lamente, que, por exemplo, as minhas tentativas de telefonemas e de mensagens para o presidente do Sindicato dos Jornalistas, Luís Simões, para lhe chamar a atenção para a gravidade da reposta da CCPJ, tenham ficado sem qualquer resposta. Ainda mais porque a resposta da CCPJ lhe seguiu por mensagem de correio electrónico. Compreendo o seu silêncio, dentro do contexto da classe.

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    Afinal, por que carga de água o presidente do Sindicato dos Jornalistas teria de reagir ao PÁGINA UM, que é um “minúsculo” jornal e que ainda por cima só faz pedidos “manifestamente abusivos”? E logo pedidos manifestamente abusivos à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, onde pululam figuras tão gradas de uma imprensa onde todos se conhecem e se cruzam.

    Na verdade, ignore-se um “minúsculo” jornal que, para recordar os assuntos que levámos até às últimas instâncias, também faz pedidos manifestamente abusivos ao Governo.

    Pedidos manifestamente abusivos ao Conselho Superior da Magistratura.

    Pedidos manifestamente abusivos ao Ministério da Saúde.

    Pedidos manifestamente abusivos ao Infarmed.

    Pedidos manifestamente abusivos à Ordem dos Médicos.

    Pedidos manifestamente abusivos à Ordem dos Farmacêuticos.

    Pedidos manifestamente abusivos à Direcção-Geral da Saúde.

    Pedidos manifestamente abusivos ao Instituto Superior Técnico.

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    Pedidos manifestamente abusivos ao Banco de Portugal

    Pedidos manifestamente abusivos à Inspecção-Geral das Actividades em Saúde.

    Pedidos manifestamente abusivos à Administração Central do Sistema de Saúde.

    E tantos mais fará…

    Por isso, e pedindo desculpas (enfim, sarcásticas) por não fazermos no PÁGINA UM um jornalismo fofinho, sem abusos, e muito menos manifestos – passem muito bem com o vosso conceito de “manifestamente abusivo”. O PÁGINA UM, lamento desiludir-vos, não vai fazer o jornalismo que a maioria de Vossas Excelências deseja: jornalismo domesticado, amorfo e que se banqueteia com o poder. No dia em que tal me suceder, deixarei de ser jornalista.


    Nota final: A Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos já se pronunciou esta semana sobre uma primeira recusa da CCPJ aos documentos solicitados pelo PÁGINA UM, dando-nos inteira razão. Abordaremos este assunto, com detalhe noticioso, na próxima semana.

  • Reaccções adversas: Infarmed mente mas consegue enganar Tribunal Administrativo

    Reaccções adversas: Infarmed mente mas consegue enganar Tribunal Administrativo

    Desde Dezembro de 2021, o PÁGINA UM quer consultar o Portal RAM que regista as reacções de fármacos, e em concreto as referentes às vacinas contra a covid-19 e ao antiviral remdesivir. O Infarmed recusou e lutou tenazmente, através de requerimentos e testemunhos, para induzir o Tribunal Administrativo de Lisboa de que estavam em causa dados nominativos e que seria impossível evitar por completo a exposição da identidade de pessoas. O PÁGINA UM ainda requereu a junção de dois documentos no processo que provavam a completa anonimização do Portal RAM, mas a juíza do processo rejeitou a junção, argumentando que um deles nem existia e que outro não era relevante. Afinal, num outro processo, paralelo a este, o Infarmed acabou por entregar os tais documentos, incluindo o supostamente inexistente. E no outro, um caderno de encargos para melhoria do Portal RAM, devido ao número “exponencial” de reacções adversas às vacinas contra a covid-19, afinal garante-se que a informação do Portal RAM é “totalmente anonimizada”, ou seja, é impossível identificar pessoas em concreto. O caso segue para o Tribunal Central Administrativo Sul onde os juízes desembargadores terão oportunidade de analisar os documentos que a juíza de primeira instância ostensivamente recusou ver.


    O Infarmed depositou anteontem no Tribunal Administrativo de Lisboa, no âmbito do Processo 646/23.9BELSB – uma intimação do PÁGINA UM colocada em 27 de Fevereiro passado – um conjunto de documentos administrativos que confirmam, de forma taxativa, que a plataforma de registo das reacções adversas de fármacos (Portal RAM), incluindo especificamente das vacinas contra a covid-19, é “totalmente anonimizada” antes do seu envio à Agência Europeia do Medicamento.

    De entre esses documentos entregues pelo Infarmed – e também já enviados ao PÁGINA UM esta semana – encontra-se o caderno de encargos do “procedimento de ajuste direto para a celebração de contrato de implementação urgente de alteração à aplicação Portal das Reações Adversas”, que viria a ser assinado entre o regulador e a empresa Altran em 12 de Novembro de 2021.

    Rui Santos Ivo; presidente do Infarmed, continua há mais de um ano a esconder dados do Portal RAM. Até quando?

    Segundo este documento – nunca divulgado anteriormente –, na parte do enquadramento, o Infarmed salientava que “face ao aumento exponencial do nº de RAM [números de reacções adversas a medicamentos] submetidas pelos profissionais de saúde e cidadãos relativas às vacinas COVID, é impossível atualmente tratar manualmente toda a informação submetida” à Agência Europeia do Medicamento, pelo que seria necessário, “neste contexto, e por forma a eliminar (ou, pelo menos, minimizar) todos os constrangimentos daí decorrentes”, se mostrava necessário “contratar serviços de implementação de alterações à aplicação Portal RAM”.

    Nesse documento anexo ao contrato com a Altran explicava-se também que o Portal RAM “permite aos profissionais de saúde e utentes comunicarem ao Infarmed suspeitas de reações adversas a medicamentos (RAM), contribuindo para a monitorização contínua da segurança e a avaliação do benefício/ risco dos medicamentos”, e que “assim, após receção e validação a informação é avaliada por uma equipa de farmacêuticos e médicos especialistas em segurança de medicamentos”, sendo que, “posteriormente, a informação do caso (totalmente anonimizada) é enviada para as bases de dados europeia (Eudravigilance) e mundial da OMS (Vigibase), para efeito de uma avaliação permanente mais abrangente do perfil de segurança do medicamento”.

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    Ou seja, de raiz, a informação relativa a Portugal constante do Portal RAM está “totalmente anonimizada” antes de ser enviada para as outras bases de dados, onde surge agregada. Recorde-se que a norma ISO 29100:2011 define anonimização como o “processo pelo qual as informações pessoais identificáveis (IPI) são alteradas irreversivelmente de modo que uma entidade IPI já não possa ser identificada direta ou indiretamente, quer pelo responsável pelo tratamento de IPI por si só ou em colaboração com qualquer outra parte”.

    O Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD) salienta que os dados pessoais deixam de o ser se forem anonimizados. A anonimização é diferente de um outro processo de ocultação de dados nominativos – a pseudonimização. Com efeito, na pseudonimização os dados nominativos escondidos podem ser recuperados porque se mantêm elementos informativos para uma reversão.

    Outros documentos relevantes que o Infarmed veio agora entregar ao Tribunal Administrativo de Lisboa, no processo 46/23.9BELSB, são os manuais do utilizador do Portal RAM, o primeiro que esteve activo até ao início deste ano, e um segundo que foi aprovado, curiosamente, em 27 de Janeiro. Ambos mostram a existência de vários perfis de acesso, incluindo a tarefa de anonimização – ou seja, exclusão de dados que permitam identificação em concreto, mesmo que de forma indirecta, de qualquer pessoa afectada por efeitos adversos de medicamentos.

    Caderno de encargos revela que Portal RAM tem informação “totalmente anonimizada”.

    No entanto, desde Abril do ano passado, o Infarmed andou a tentar – e até conseguiu – convencer a juíza de um processo principal – relativo à consulta do Portal RAM pedida pelo PÁGINA UM para se conhecerem em detalhe os efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 e do antiviral remdesivir em Portugal – de que os dados continham dados nominativos de saúde, e por isso um processo de “anonimização” nunca seria completamente possível, porque permitiria, indirectamente, uma identificação concreta de pessoas, o que perigaria a confiança no sistema.

    De facto, no passado dia 8 de Março, em sentença de primeira instância, ainda passível para o Tribunal Central Administrativo Sul, a juíza Sara Ferreira Pinto dispensou o Infarmed, num processo de intimação iniciado em Abril do ano passado (Processo 980/22.5BELSB), de ceder ao PÁGINA UM o acesso directo ao Portal RAM, por considerar, e apenas com base em prova testemunhal – de uma técnica e do presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo, ouvidos em audiência em Janeiro passado –, que, apesar de anonimizados, seria sempre “possível identificar uma pessoa em concreto”.

    Para esta recusa, a magistrada considerou que um eventual expurgo de dados nominativos (porque disse ter sido provado que o Portal RAM tinha em todas as fases dados nominativos passíveis de identificação de pessoas) seria equivalente à produção de um novo documento, pelo que o Infarmed não estaria obrigado a fazer essa tarefa. Saliente-se que esta é uma posição polémica, abrindo um precedente ainda não acolhido na jurisprudência, porquanto expurgo de dados nominativos (retirada, com rasura de tinta, ou ocultação de dados em ficheiro informático) é uma tarefa prevista legalmente para permitir o acesso a partes dos documentos que não contenham matéria reservada. Aliás, o PÁGINA UM sempre defendeu a retirada de dados nominativos.

    Além disto, na sua sentença, a juíza Sara Ferreira Pinto aparentemente confundiu conceitos de pseudonimização e anonimização. No primeiro caso, existe possibilidade de se identificarem pessoas, porque há efectivamente a possibilidade de reversão. Mas o processo de anonimização é bem diferente – e o Infarmed diz expressamente, no caderno de encargos, que os dados estão anonimizados –, porque aí é irreversível, não existindo forma de ninguém saber, até mesmo o técnico que procedeu a essa tarefa, a que pessoas se referem os dados.

    Embora o Infarmed tenha usado todos os processos para obstaculizar e baralhar o processo no Tribunal Administrativo – que são morosos e baseados quase em exclusivo em troca de argumentos por escrito com grande formalismo –, a juíza do processo principal, Sara Ferreira Pinto, impediu activamente que o PÁGINA UM pudesse incluir como prova o caderno de encargos do contrato com a Altran e os manuais do utilizador do Portal RAM.

    PÁGINA UM tem analisado dados anonimizados da Agência Europeia do Medicamento sobre reacções adversas às vacinas contra a covid-19, mas os dados especificamente de Portugal são escondidos pelo Infarmed, que usou todos os subterfúgios para convencer uma juíza de primeira instância que a plataforma nacional contém dados nominativos que identificam pessoas.

    De facto, prevendo que o referido caderno de encargos e o manual de utilizador do Portal RAM pudesse confirmar a completa anonimização dos dados, o PÁGINA UM requereu à juíza Sara Ferreira Pinto, em 30 de Novembro, que requeresse ao Infarmed a junção desses documentos ao processo principal, bem como fosse ouvida em audiência o responsável da Altran que tivesse assinado o contrato.

    Mas a juíza optou por nunca responder ao requerimento, apenas liminarmente recusado a sua junção no final da audiência em 23 de Janeiro.

    Em acta, a juíza escreveu o seguinte: ”Considerando a prova documental junta aos autos, a prova por depoimento de parte e prova testemunhal produzida em sede de audiência, além do mais, aferida a inexistência do Manual de utilização do portal RAM na componente backoffice, por entender-se que os referidos documentos [manual e caderno de encargos do Portal RAM] não detêm interesse para a decisão da causa, indefere-se o peticionado, nos termos do artigo 429.º CPC e aplicado por força do artigo 1.º do CPTA).”

    No mesmo dia, e após esta estranha recusa da juíza na parte final da audiência, o PÁGINA UM requereu formalmente esses documentos ao Infarmed, que não respondeu, razão pela qual foi intentado novo processo de intimação.

    Juíza Sara Ferreira Pinto escreveu em acta (imagem central) que foi “aferida a inexistência do Manual de utilização do portal RAM”, e considerou que o caderno de encargos requerido pelo PÁGINA UM “não detém interesse para a decisão em causa”. A magistrada nunca quis ver os documentos em causa. Ora, afinal, o caderno de encargos prova que os dados do Portal RAM estão completamente anonimizados e, além disso, nos últimos dois anos o Infarmed elaborou dois manuais de utilização da aplicação (imagens laterais).

    Foi apenas nesse segundo processo de intimação que se acabou por revelar que, afinal, não apenas existe um manual de utilização na componente backoffice como o caderno de encargos – que a juíza dizia não deter interesse para a decisão da causa – mostrava que afinal a informação do Portal RAM está “totalmente anonimizada”.

    Em todo o caso, somente em sede de recurso a sentença da juíza Sara Ferreira Pinto no processo principal poderá ser contestada, juntando-se como elementos probatórios os documentos que recusou analisar, mas que agora estão apensos ao segundo processo de intimação.

    Saliente-se, em todo o caso, que a sentença da juíza Sara Ferreira Pinto considera que o Infarmed tem a obrigação de disponibilizar as notificações que tenham sido enviadas por e-mail – e não pelo sistema informático do Portal RAM.

    Para estes casos, em número desconhecido, a sentença diz que “os elementos solicitados à Entidade Requerida [Infarmed] e que esta tem disponíveis devem, pois, ser comunicados [ao PÁGINA UM] conquanto se garanta a não identificação (direta e indireta) das pessoas a quem digam respeito (expurgando todos os dados pessoais e de saúde do doente e do notificador, incluindo, além dos mais, o nome (ainda que anonimizado), devendo a idade ser referida por intervalos e a localização, havendo-a, limitada ao distrito).”

    Extracto do caderno de encargos de contrato entre o Infarmed e a Altran. Apesar de requerido pelo PÁGINA UM, juíza Sara Ferreira Pinto recusou sequer ver o conteúdo deste caderno de encargos, agora entregue pelo Infarmed num processo de intimação autónomo. Será requerido que os juízes desembargadores do Tribunal Central Administrativo Sul o analisem para saber se o Portal RAM tem ou não informação “totalmente anonimizada” e, sendo assim, se é necessário expurgar dados ou criar novos documentos.

    Nesse aspecto, a sentença é paradoxal, porque além de considerar que o expurgo de dados nominativos não constitui, quando em papel ou em mensagem electrónica, a produção de um novo documento, na verdade a juíza acaba mesmo por determinar que o Infarmed terá que fazer um tratamento de dados posterior, com a criação de classes etárias que nem sequer explicita – e aí sim, há uma elaboração de um documento anteriormente não existente).     

    Com o envio deste longo processo para o Tribunal Central Administrativo Sul, o Infarmed – e em especial o seu presidente Rui Santos Ivo – continuará a esconder dos portugueses a verdadeira dimensão dos efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 e o antiviral remdesivir. O PÁGINA UM esgotará todas as possibilidade jurídicas para que a verdade seja conhecida.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de cerca de uma dezena e meia de processos em curso (amanhã serão revelados mais dois intentados recentemente), o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.

  • A melancolia da vida enquanto se envelhece

    A melancolia da vida enquanto se envelhece

    Título

    Memorial de Aires

    Autor

    MACHADO DE ASSIS

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Setembro de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Última obra escrita pelo grande Machado de Assis, Memorial de Aires é de uma delicadeza contemplativa, lírica mas irónica, que, ainda hoje, deslumbra quem lê este romance.

    Não tem a loucura e sarcasmo de Memórias póstumas de Brás Cubas nem o drama angustiante de Dom Casmurro, mas não lhe fica atrás, sobretudo por via de uma narrativa contemplativa mas crítica de um Brasil no último quartel do século XIX, a que acresce a forma como aborda a melancolia da vida enquanto parte do envelhecimento.

    Romance epistolar, diarístico, este memorial do conselheiro Aires, diplomata aposentado que aparecera no romance anterior, Esaú e Jacó (1904), onde era personagem e autor ficcional. consiste num vasto conjunto de cartas a um seu amigo imaginário, relatando aspectos da vida quotidiana na cidade do Rio de Janeiro, entremeadas com reflexões sobre a sociedade brasileira, ainda marcada pela escravidão e por uma forte influência europeia.

    Mas mais do que essas contemplações de um “refomado”, o romance deambula por uma série de personagens secundários, entre os quais o casal Aguiar (e a sua “orfandade às avessas”) e sobretudo a jovem viúva Fidélia – misteriosa, enigmática e supostamente inalcançável –, por quem o conselheiro Aires acaba por se apaixonar.

    A relação entre os dois transforma-se em ambiguidade e tensão, tornando-se asssim o romance numa reflexão sobre o amor e sobre as relações entre homens e mulheres naquela época.

    Sendo uma óbvia ficção, em Memorial de Aires vemos talvez a mais autobiográfica das obras de Machado de Assis, sentindo-se a envelhecer, e desse modo se encontra ali depurado toda a sua ironia e sarcasmo para, dessa forma, estabelecer uma crítica contundente à hipocrisia e ao oportunismo e aos demais vícios da natureza humana.

    Leitura imprescindível no século XXI, embora seja obrigatório ler, antes ou depois, as outras obras de Machado de Assis, incluindo os seus contos, em especial após a fase romântica.

    Destaque também para o posfácio de Abel Barros Baptista e Clara Rowland, que coordenam a colecção da Tinta da China dedicada à literatura brasileira, intitulada “Os melhores deles todos”,  e que entretanto já integra as obras Vai, Carlos!, de Carlos Drummond de Andrade, e Primeiras histórias, de João Guimarães Rosa.

  • Instituto Superior Técnico: Atenção!, acho que tens aí um covil de burlões da Ciência…

    Instituto Superior Técnico: Atenção!, acho que tens aí um covil de burlões da Ciência…


    Esqueçam a pandemia. Centrem-se nas revelações que ontem aqui apresentámos. Isto tem já apenas a ver com Ciência. Com prática científica. Com ética. Pelo menos, a pandemia per si deixou de ser a questão central da luta do PÁGINA UM sobre um infame relatório do Instituto Superior Técnico (IST) de finais de Julho do ano passado que atribuiu, quantificando, mortes directas às festas populares e festivais musicais no mês anterior.

    Foi por ser tão evidente o desfasamento entre aquilo que os investigadores do IST tinham concluído e os dados reais da incidência e da mortalidade que me levaram a solicitar o relatório daquela instituição universitária – que hoje sabemos ser o Relatório Rápido nº 52 –, bem como a metodologia e os dados numéricos usados, tanto para esse relatório como para todos os anteriores, desde Julho de 2021.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico. A ignorância com honra é preferível à inteligência sem ética.

    Num cenário habitual em meio científico – onde os investigadores têm confiança absoluta no rigor e boa-fé do seu trabalho –, haveria completa abertura para se disponibilizarem relatórios, metodologias e dados numéricos. Para ser possível a um terceiro replicar os resultados. Isto não é desconfiança; pelo contrário: é confiança. Isto é a base da Ciência.

    Mas não foi isso que sucedeu. E o que sucedeu foi uma Universidade estar no banco dos réus por recusar disponibilizar relatórios científicos.

    Mas como a juíza do processo de intimação se terá esquecido de englobar os relatórios anteriores ao Relatório Rápido nº 52 – presume-se 51 relatórios –, foi necessário recorrer para o Tribunal Central Administrativo Sul.

    Ora, o que se esperaria do comportamento do Instituto Superior Técnico?

    Talvez que o seu presidente, o catedrático Rogério Colaço, pusesse a mão na consciência, tirasse o pó à humildade científica e puxasse lustro à ética – e depois entregasse os outros 51 relatórios e os ficheiros de dados.

    Existem dois relatórios – Relatório Rápido nº 52 e Relatório Rápido nº 51 – e depois há, segundo o IST, “supostos relatórios”.

    Mas não. Ontem, o PÁGINA UM noticiou mais um episódio desta “novela IST”, que coloca a Ciência portuguesa nas ruas da amargura – exagero!, apenas a Ciência feita nos corredores, gabinetes e laboratórios do Instituto Superior Técnico.

    Em sede de contra-alegação, o IST defendeu que não deve existir qualquer alteração da sentença, porque terá ficado “apenas provada a existência do relatório intitulado Relatório Rápido n.º 52, não se provando a existência de outros elementos”, e que “cabia ao recorrido [PÁGINA UM] fazer prova da existência dos restantes relatórios, assim como, dos alegados ficheiros informáticos com dados numéricos, usados para a elaboração dos supostos relatórios.”

    Mas pergunto: o que é isto?!

    Deveria haver dúvidas sobre a existência dos relatórios que foram publicamente revelados pela imprensa mainstream sempre sob a chancela do IST? Que foram sendo sempre divulgados pela Agência Lusa, que fez fé que os viu?

    Serviram estes relatórios do IST apenas para, de tempos em tempos, alimentar a hipocondria nacional, mesmo depois de uma taxa de vacinação elevadíssima, do surgimento da pouco letal Ómicron e de (oficialmente) mais de metade da população portuguesa adquirir imunidade natural?

    Trecho das contra-alegações do Instituto Superior Técnico, para tentar convencer os juizes desembargadores da inexistência dos relatórios anteriores ao Relatório Rápido nº 52.

    Serviram para os lobistas das farmacêuticas, como Filipe Froes, usarem a imprensa para “vender o seu peixe” – leia-se fármacos das empresas que os avençam?

    Leia-se, aliás, a título de exemplo, uma notícia de 11 de Maio de 2022 no portal Sapo, a Multinews, onde se destaca que “Filipe Froes defende antecipação da 4ª dose da vacina”, sendo estas declarações enquadradas nos famigerados relatório do IST:

    O coordenador do gabinete de crise da Ordem dos Médicos, Filipe Froes, que também participou na elaboração do relatório do IST, defende ‘que há uma necessidade de voltar a estar disponível no site da DGS a informação diária relativamente ao movimento, internamento e caracterização demográfica dos indicadores’.

    Para além disso, adianta à Multinews, o ressurgimento da pandemia e a possível sexta vaga, ‘reforça a antecipação da quarta toma da vacina para a população idealmente com mais de 60 anos, independentemente de haver fatores de risco ou não’.

    É ainda necessário ‘haver acesso aos novos fármacos antivíricos e aos anticorpos monoclonais, de maneira a que as pessoas mais vulneráveis, possam encontrar a proteção que precisam sem estarem dependentes da máscara, do confinamento e da imunidade menor da vacina’, conclui.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes, na sede da Ordem dos Médicos, em 14 de Julho de 2021, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia, que previu a realização de relatórios periódicos. Filipe Froes aproveitou os relatórios para ir “incentivando” a vacinação e a compra de anti-virais comercializados por farmacêuticas com quem colabora (e tem rendimentos comerciais).

    Mas se existirem dúvidas sobre a existência dos ditos relatórios anteriores ao Relatório Rápido nº 52, então convinha que o Polígrafo fosse a correr dar bordoada nos órgãos de comunicação social que deram notícias sobre os relatórios (inexistentes?) do IST. Eis aqui uma breve selecção, apenas de 2022, com os respectivos títulos, entrada e ligações:

    26 de Janeiro de 2022

    Estudo. Portugueses imunizados após atual vaga

    Relatório do IST prevê um número de casos em isolamento acima de 1.050.000 no dia de eleições legislativas, a 30 de janeiro e aponta que a covid-19 passará a ser como a gripe.

    Relatório IST: Em meados de fevereiro é altura de “preparar o pós-covid em Portugal”

    Todos os portugueses estarão imunizados após a atual vaga da pandemia, o que deverá acontecer depois de fevereiro, e a covid-19 vai evoluir para uma “doença residente” como a gripe ou a herpes, prevê o Instituto Superior Técnico.

    15 de Fevereiro de 2022

    Covid-19. Redução acentuada do risco recomenda alívio “quase total” das medidas, refere relatório do IST

    Portugal regista uma “redução acentuada do perigo pandémico”, indica o relatório do grupo de acompanhamento da pandemia do Instituto Superior Técnico (IST), que recomenda que as “medidas em vigor sejam reduzidas de forma quase total”.

    10 de Março de 2022

    Covid-19: pandemia está a “agravar-se de forma significativa”. Portugal pode registar sexta vaga de infecções

    O relatório do IST indica que a “subida acentuada” do R(t) pode resultar numa nova vaga. O risco pandémico ainda não é muito elevado, mas os dados apontam para uma tendência de aumento dos internamentos em enfermaria e em UCI nos próximos 15 dias.

    11 de Março de 2022

    Instituto Superior Técnico admite sexta vaga de covid-19 para breve

    A ministra da Saúde, Marta Temido recusa, para já, falar numa sexta vaga da pandemia de covid-19 em Portugal, apesar do cenário ser admitido por um relatório do Instituto Superior Técnico.

    Covid-19. Portugal com transmissibilidade de 1,17 e sexta vaga “a começar a desenhar-se”, diz relatório

    Relatório do Instituto Superior Técnico indica que a incidência média a sete dias aumentou de 8.763 para 14.267 casos desde 19 de abril, o que se deve “à retirada abrupta do uso de máscara em quase todos os contextos e à nova linhagem BA.5 da variante Ómicron que começa a instalar-se” no país.

    24 de Maio de 2022

    Covid-19: mortalidade vai aumentar. Máscara é recomendada caso exista risco de contágio, diz IST

    Um relatório do Instituto Superior Técnico (IST) divulgado nesta terça-feira alerta para a subida da mortalidade por covid-19 no próximo mês. Máscaras voltam a ser recomendadas em concertos ou grandes eventos ao ar livre — e sempre que exista risco de contágio.

    Em conclusão, na Ciência não basta a inteligência. Sem ética, a inteligência (e, neste aspecto, quanto maior, pior) pode ser usada para burlas e fraudes, mesmo se, aos olhos de incautos, crédulos e ignorantes, possam parecer verdades insofismáveis.

    Cabe, por isso, a nós, não sermos incautos nem crédulos nem ignorantes, e não aceitarmos os comportamentos de Rogério Colaço e dos investigadores dos ditos relatórios – Henrique Oliveira, Pedro Amaral, José Rui Figueira e Ana Serro.

    Estou confiante que, em sede de tribunal, o PÁGINA UM obrigará o IST a revelar todos os relatórios – ou a assumir que nunca fez parte deles. Mas o trabalho essencial não cabe a nós: é tarefa dos professores e investigadores do IST, que talvez tenham mesmo de arrumar a “casa”, com umas boas vassouras de ética. Lembrem sempre que a ignorância com honra é preferível à inteligência sem ética.