Autor: Pedro Almeida Vieira

  • 60-0: a cabazada da aldrabice contra a decência num país pestilento

    60-0: a cabazada da aldrabice contra a decência num país pestilento


    Sente-se a podridão no ar, nojenta, exalando odores. A falta de ética transforma uma sociedade numa lixeira, num salve-se quem puder, em benefício de quem tiver artimanhas, e não arte. Vence o espertalhaço, não o inteligente. Vence o canastrão, não o artesão.

    E essa podridão, insidiosa e mesquinha, que forma e deforma uma sociedade, vê-se até ao jogo de berlindes, até num campeonato distrital de futsal, nome pomposo para o futebol de salão, onde este fim-de-semana a aldrabice espetou uma “cabazada” à decência.

    Foto: Luís Ribeiro / Médio Tejo

    A história conta-se em breves palavras. Em igualdade pontual com o Vitória de Santarém, a equipa do Mação Futebol Clube partia com uma desvantagem de 33 golos para a última jornada. E como esperado, ambas as equipas venceram os respectivos jogos, mas enquanto o Vitória de Santarém superou o seu adversário por uns escassos 7-5, o Mação massacrou o seu adversário, Benavente, por 60-sessenta-60 golos sem resposta, o que significa um golo em cada 90 segundos. Resultado: o Mação Futebol Clube foi campeão.

    Dois pormenores, relevantes. Primeiro, o Benavente jogou apenas com três jogadores – mínimo regulamentar – face aos cinco do Mação. Segundo, mesmo sabendo-se que o Mação não conseguira antes mais do que sete golos de vantagem numa partida, sendo assim mais do que remota a probabilidade de ultrapassar o Vitória de Santarém em caso de vitórias destas duas equipas –, houve quem se lembrou de estampar coloridas camisolas de campeão.

    O Mação Futebol Clube – e em paralelo a equipa de Benavente (que nos 19 jogos anteriores sofrera 68 golos) – é a imagem trágica de um país. A imagem de um país sem ética, consolidando os seus objectivos em trapaças, custe o que custar; em esquemas, aqueles que a imaginação aprouver mesmo se fraca; em compadrios, mais que muitos; em manipulações, as que forem necessárias; em corrupção, se não financeira, pelo menos moral, para quem assim se seduzir sem escrúpulo.

    selective focus photography of dried fruits on field

    Independentemente das provas, estamos perante uma pouca-vergonha, uma desavergonhice, que seria apenas risível se não fosse grave, por ser o espelho daquilo em que se transformou Portugal.

    Hoje, sentimos – todos sentem, e os “responsáveis” pelo Mação Futebol Clube sentiram – que, mesmo com trafulhice, mesmo com manipulação, mesmo com aldrabice e mesmo com esquemas ínvios, vale a pena tentar, é justificável tentar, porque basta congeminar ser possível iludir a verdade para que se tente que a mentira se transmute na realidade, proveitosa para o seu autor, mesmo que tal seja profundamente injusto e prejudique quem não deveria.

    Caricaturando a paráfrase de Fernando Pessoa, em Portugal, num país de aldrabões, a obra nasce, quando o homem sonha, mesmo se Deus não quer. E assim se ganha por 60 a 0, com a mesma decência da vitória do Mação Futebol Clube sobre o Benavente Futsal Clube.

    Foto: Luís Ribeiro / Médio Tejo

    E assim se sente a desonestidade na política, no Governo, na Administração Pública, nas escolas, nas forças armadas, nas forças de segurança, nas empresas públicas e nas empresas provadas, em muitas das nossas relações sociais. Em tudo, já.

    Portugal pode continuar a gabar-se de ganhar sempre na recta final por 60-0, sermos os melhores de tudo e da Cantareira; pode sempre erguer-se a taça, que de ouro seja. Mas no seu âmago está lá dentro uma pestilência que não se aguenta.

  • Boa noite, e até para a semana…

    Boa noite, e até para a semana…


    Olho para os títulos de três dos meus editoriais no PÁGINA UM em Abril:

    O pântano de uma república de mentiras: a pretexto de Manuel Pizarro e suas aldrabices

    Medina: o pináculo de um Governo de aldrabões

    Do pântano à cloaca”.

    Bem sei que tenho, por vezes, uma verve mais desbragada, mas não menos verdade o Governo fez, desde 28 de Abril – data do terceiro destes textos –, muito mais para justificar cada palavra acintosa que escrevi.

    Se há apenas uma semana, como escrevi, “É altura de puxar o autoclismo. Fim de ciclo”, mais motivos temos para encerrar este pesadelo, mesmo sabendo que pode vir pior. Pode sempre vir pior, mas no processo de mudança há sempre algo que vem: a esperança de melhor. Mesmo se ténue, mesmo se incerta, mesmo se pouco provável.

    Marcelo Rebelo de Sousa sublinhou diversas vezes, no seu patético discurso desta noite – patético no sentido de pena, até pelo show off que foi criando nos últimos dias, incluindo o gelado do Santini –, quatro palavras: responsabilidade, credibilidade, confiabilidade e autoridade.

    Não há, neste Governo, qualquer pingo de responsabilidade. Em nada. Os últimos três anos só agudizaram a postura de um partido no Governo que, com o beneplácito de uma imprensa colaborativa e uma sociedade amedrontada pela pandemia, usou e abusou a seu bel-prazer dos direitos dos seus cidadãos e do seu dinheiro (não no sentido clássico dos impostos, mas através da “maquina de impressão” do Banco Central Europeu que fez disparar a inflação e agora compramos menos com o mesmo).

    O Governo e seus apaniguados estão viciados em tudo fazer sem responsabilidade. Confundem o Estado com os seus interesses, porque conseguem sempre, através da mentira, da ocultação e da manipulação, transmutar a realidade para jamais serem responsabilizados.

    Não assumindo nunca responsabilidades pelos actos, o Governo sabe que a sua credibilidade anda pelas ruas da amargura. Pouco importa a António Costa e, na Assembleia da República, a Augusto Santos Silva. Usam-se uns soundbites, diaboliza-se a extrema-direita, e mesmo que se ouçam uns impropérios aqui e ali, para eles basta fazer passar, através da imprensa, que os “outros” são piores. António Costa não quer manter-se como político credível; quer apenas mostrar que os “outros” são mais incredíveis.

    Sem sentido de responsabilidade e sem qualquer pingo de credibilidade, já ninguém confia neste Governo. A recusa de Marcelo Rebelo de Sousa em dissolver o Parlamento neste momento, em simultâneo à sua manifestação de descrença neste Governo, serve apenas para que cada vez menos pessoas (e as poucas são talvez somente aquelas que vivem na “esfera” económica e dos interesses do Estado) tenham confiança em António Costa e no seu séquito.

    Sem sentido de responsabilidade, sem qualquer pingo de credibilidade e sem dose alguma de confiabilidade, nos próximos tempos resta uma arma ao Governo para se manter no poder, custe o que custar: a autoridade.

    E aí, até pela amostra de um Serviço de Informações de Segurança a “resgatar” um portátil de um assessor escorraçado para salvar o coiro de um inclassificável ministro, eu temo que a autoridade se transforme em autoritarismo.

    E enquanto tudo isto sucede, perante os nossos atónitos olhos, Marcelo come gelados e convida-nos a ouvi-lo às 20 horas pelas televisões para nos dizer: “Boa noite, e até para a semana…”

  • Caramba, ó Galamba!

    Caramba, ó Galamba!


    Em hipótese, pode um licenciado em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e na Université Sorbonne Nouvelle Paris III cometer um crime que justifique a intervenção do SIS para resgatar um computador com suposta “informação classificada pelo Gabinete Nacional de Segurança”?

    Pode!

    Pode, em hipótese, um putativo criminoso ser um mestre em Economia e Políticas Públicas, no ISCTE, com dissertação intitulada “Compreender a realidade: os fatores explicativos das notícias”?

    Pode!

    João Galamba, o ainda ministro das Infraestrutras.

    Pode, também em hipótese, um alegado ladrão de informação confidencial ter uma pós-graduação em Direito Fiscal pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa?

    Pode!

    Pode ainda, por hipótese, um presumido agressor de mulheres ser doutorando em Economia Política num programa conjunto do ISCTE, ISEG e Universidade de Coimbra?

    Pode!

    Pode ainda, por hipótese, um suspeitoso arremessador de bicicletas contra portas de vidro ter sido jornalista no Record, na Agência Reuters, na Rádio Renascença, no Sol e na Antena Um, além de investigador da Fundação Rosa Luxemburgo e assessor do Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda?

    Pode!

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    Pode ainda, por hipótese, tudo isto se acumular na mesma pessoa, e ela ter sido um discreto técnico especialista no Gabinete do Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares entre 2017 e 2019, e adjunto no Gabinete do Ministro das Infraestruturas desde 2019?

    Pode!

    E pode João Galamba continuar a ser ministro?

    Não! Não pode.

  • Os saudosistas do 25 de Abril

    Os saudosistas do 25 de Abril


    Cada sociedade apega-se aos seus símbolos, aos seus totens, para os impor como referências, como modelos. Portugal tem, desde 1974, o seu totem: o 25 de Abril.

    Não haja mal-entendidos. A Revolução dos Cravos tem, no contexto histórico de um país quase milenar, uma relevância indesmentível. Talvez equiparável apenas à própria fundação de Portugal como nação no século XII, à recuperação da independência em 1640, à Revolução Liberal de 1820 ou à implantação da República em 1910.

    Porém, sem margem de dúvida, para as actuais gerações, e sobretudo para grande parte da elite política, a Revolução dos Cravos constituiu ainda mais do que uma referência histórica. Foi uma mudança drástica do quotidiano, começando pela afirmação de uma democracia plena que, além do direito de voto, trouxe liberdade de expressão, de associação, de intervenção cívica, criando-se também, num contexto europeu e mundial distinto – social, tecnológico, político e geoestratégico –, possibilidade de desenvolvimento de acordo com o primado dos direitos e garantias (e também deveres) individuais.

    Ou seja, a Revolução dos Cravos foi a “cozinha” que os capitães de Abril nos forneceram para cozinharmos uma democracia ao nosso bel-prazer.

    Ora, entretanto, passaram já 49 anos, para o ano estamos no meio centenário. Mais do que meia vida. Hoje, os tempos anteriores ao 25 de Abril de 1974 são somente História, literalmente História, para mais de metade da actual população portuguesa. A vida no passado – leia-se, durante o Estado Novo – “interessa-lhes” tanto como à minha geração a II Guerra Mundial, ou à geração dos meus pais a I Guerra Mundial ou mesmo a implantação da República ou os estertores da Monarquia portuguesa.

    Explico-me melhor. O “interesse” deve existir – somos o fluxo dos acontecimentos do passado. Um jovem de 30 anos ou menos deve saber como era o país antes de 1974 para que a sua geração não permita um retrocesso civilizacional. A minha geração deve saber o que foi a II Guerra Mundial para que se evite uma III Guerra Mundial. Todos nós deveríamos saber como se vivia nos tempos do feudalismo, antes mesmo desse período, durante a Inquisição, nas nossas antepassadas sociedades misóginas, esclavagistas, racistas, homofóbicas, segregacionistas, opressoras.

    Mas esse “interesse” é para saber de onde viemos e para onde não queremos regressar; não deve servir para comparar, para servir como bode expiatório dos nossos falhanços, ou para “revisitarmos” esse passado cada vez mais longínquo para exorcizar os nossos fracassos. Olhar o passado é uma referência, mas os olhos e as nossas acções devem estar focados no futuro e na ementa que queremos servir.

    As comparações entre períodos cronológicos são, aliás, muito falaciosas. E somos sempre péssimos avaliadores dos nossos antepassados. Para o bem e para o mal. É-nos fácil, e confesso que confortável, apresentarmo-nos sempre melhores do que eles, esquecendo que eles, tal como nós agora, foram frutos dos seus tempos. Do seu passado e das circunstâncias.

    Há três séculos, um português branco com posses seria, quase de certeza, machista, racista, fanático religioso (apoiante da Inquisição), defensor da pena de morte e possuiria naturalmente escravos ou serviçais que trataria sem respeito algum.

    Há seis décadas, a maioria da sociedade portuguesa aceitava, por medo ou resignação, o Estado Novo como uma inevitabilidade.

    Mas as sociedades, felizmente, evoluem. Sempre evoluíram, mesmo quando houve alguns retrocessos. E evoluíram não apenas porque houve homens e mulheres que criaram rupturas sociais – ou mesmo revoluções, como a dos Cravos de 1974 –, mas muito mais pelo sentimento comum da sociedade para aproveitar a tal “cozinha”, de modo a “confeccionar” metas e objectivos. Para termos uma sociedade mais desenvolvida, mais equilibrada, mais justa e mais equitativa. Aconteceu a Revolução dos Cravos em 1974; sucederia mais ano menos ano; era uma inevitabilidade política (a menos que alguém acredite que, nesta nossa Europa, ainda pudesse subsistir, isolada,uma ditadura à la Salazar em pleno século XXI.

    Olhar para o futuro, com o retrovisor no passado, deve ser aquilo que nos tem de nortear o presente.

    Contudo, aquilo que mais se tem visto nos últimos anos em Portugal – com uma cadência aflitiva – é olhar-se para a democracia como um facto consumado, como uma Conquista de Abril irreversível, revisitando-se ad nauseam o dia 25 de Abril como um totem, onde de cravo ao peito os políticos nos “mostram” os horrores do passado, para que, inebriados e agradecidos, aceitemos o miserável “estado a que chegámos”, parafraseando Salgueiro Maia, ao longo das últimas décadas.

    Não me “interessa” já – ou melhor dizendo, não me interessa na perspectiva de muitos – revisitar a Revolução dos Cravos ano após ano com os mesmos discursos, com as mesmas loas às “conquistas”, com a hipócrita idolatria aos heróis da democracia, quando o mais importante é saber o que fizemos com aquilo que nos ofereceram há 49 anos, que caminho soubemos trilhar em cinco décadas.

    A nossa avaliação da Revolução do 25 de Abril – ou seja, da democracia em Portugal – não pode continuar focada na comparação com o Estado Novo – deixemos já isso para os historiadores –, mas sim atenta à evolução da geopolítica internacional e aos novos perigos que se avizinham para as nações e para as sociedades, como a perda de soberania perante uma Comissão Europeia não-eleita (e com objectivos obscuros), a ameaça às liberdades individuais (incluindo a propriedade) e colectivas, o aumento da corrupção moral (raiz de todas as outras), a degradação da liberdade de expressão e até de imprensa, por via do oligopólio dos conglomerados tecnológicos e de media promíscuos.

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    Numa crescente cultura do obscurantismo e da auto-censura (por medo de represálias) – eu sei que o nosso colunista Tiago Franco acenará com o lápiz azul da Censura e com as prisões do Estado Novo, mas é suposto só nos preocuparmos se chegarmos a esse estado, porque até aí está (ainda) tudo bem? –, se quisermos salvar a democracia – e salvar significa manter ou melhorar os seus princípios –, deixemos de visitar o 25 de Abril como se fôssemos a uma romaria ou a uma feira onde os vendedores da banha da cobra nos tentam endrominar. E nós sabemos disso. 

    Não nos deixemos, por isso, anestesiar pelos saudosistas do 25 de Abril, porque se assim for, em desespero, quando tudo ruir, e vai ruir se assim continuarmos, acabaremos nas mãos de populistas de ideologia duvidosa, que a História, hélas, já nos mostrou ser caminho ainda mais insano.

    Como atrás escrevi, a Revolução dos Cravos foi a “cozinha” que os capitães de Abril nos forneceram para cozinharmos uma democracia. Ao que sabe o prato que nos estão a servir neste momento é o que nos deve preocupar mais. Hoje e amanhã. E em todos os amanhãs, mesmo aqueles que não cantam.

  • Que bicho mordeu a bastonária da Ordem dos Contabilistas?

    Que bicho mordeu a bastonária da Ordem dos Contabilistas?


    Causa-me estupor ter visto um bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, armado em Torquemada do século XXI, perseguindo outros médicos por delito de opinião.

    Causa-me assombro assistir ao bastonário da Ordem dos Psicólogos, Francisco Miranda Rodrigues, com a pretensão de, através também de processos disciplinares, condicionar o pensamento e a acção de outros psicólogos, o que só pode justificar-se, porventura, por alguma não diagnosticada “patologia psicossocial”.

    grilled fish dish

    Causa-me estupefacção observar como uma bastonária da Ordem dos Farmacêuticos, Ana Paula Martins, saltita da dita Ordem para um cargo de destaque de uma farmacêutica com um espantoso lobby na pandemia (leia-se Gilead, com o seu remdesivir) e a seguir, pouco tempo depois, para a presidência do Conselho de Administração do mais importante centro hospitalar e universitário do país.

    Causa-me pasmo – ou vergonha alheia, talvez mais – ter visto a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, emparceirar num videoclip do cançonetista-deputado Luís Gomez (com Z) que tem o lindo refrão: Leva-me contigo meu amor / Leva-me contigo / Não deixes que morra o nosso amor / Leva-me contigo / Leva-me contigo coração / Leva-me contigo / Não deixes que morra de dor / Leva-me contigo.

    E causa-me agora tudo isto – estupor, assombro, estupefacção e pasmo (mas neste caso pela desavergonha) – ver a bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados, Paula Franco, defender que se os restaurantes podem agora comprar produtos a IVA zero (0%), então devem vender mais barato.

    A bastonária Paula Franco, ao lado de Marcelo Rebelo de Sousa, durante o 7º Congresso da Ordem dos Contabilistas Certificados, que contou no seu programa com a presença de quatro ministros e um secretário de Estado.

    Segundo declarações de Paula Franco à Rádio Renascença, “se conseguimos comprar produtos a um preço mais barato isso terá efeito no preço final e pode-se baixar o preço final, neste caso da refeição confeccionada, porque os bens que lhe deram origem foram adquiridos a preços mais baixos.” E, com isto, diz que a decisão de os restaurantes não baixarem os preços após a decisão do Governo é “uma questão de vontade ou de ajustamento”, pois “a verdade é que compraram os bens por um preço ligeiramente inferior e podiam reduzir o seu preço final, se assim o entenderem”.

    Isto é verdadeiramente incrível saído da boca de uma bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados, porque nem num candidato a escriturário de vão-de-escada seria tal admissível.

    Que se anda a passar com os bastonários deste país? Que bicho lhes anda a morder?

    Mas vamos ao IVA – ou, melhor dizendo Imposto sobre o Valor Acrescentado, até porque a denominação o auto-explica.

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    Um dos grandes dramas dos portugueses – e era também um drama para mim, antes de uma formação tardia em Economia e Gestão – é a sua baixa literacia financeira, razão principal não apenas para más escolhas individuais ao longo vida – tanto em decisões como em argumentação em negociações –, mas também pela incapacidade de monitorizar e exigir melhor aplicação dos dinheiros públicos.

    E, por isso, a esmagadora maioria dos portugueses, depois destas palavras da bastonária da Ordem dos Contabilistas, vão pôr acriticamente o odioso sobre os donos dos restaurantes. São eles os maus por os preços não baixarem; não é da inflação para a qual o Governo muito contribuiu, e muito está a beneficiar com o enchimento dos cofres da Fazenda Pública à custa do empobrecimento real dos portugueses, a quem dá, depois, umas migalhas, enquanto faz alarde de um papel de (hipócrita) benemérito.

    De facto, o IVA é um imposto neutro aplicado a bens ou serviços, em que todos os intervenientes são sujeitos passivos, excepto o consumidor final. Significa isto que os sujeitos passivos recuperam o IVA dos bens que adquirem para o seu negócio, uma vez que deduzem esse montante ao IVA que têm depois de pagar ao Estado quando vendem os seus produtos e serviços aos seus clientes.

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    Ou seja, imaginemos que um restaurante para servir cada refeição de lombo ao preço de 22,60 euros (20,00 euros + 2,60 euros de IVA), vai ao talho comprar a carne que lhe custava, antes da decisão do Governo de aplicar IVA zero a diversos produtos, 10,60 euros (10,00 euros + 0,60 euros de IVA). Agora, pagará 10,00 euros (10,00 euros + 0,00 euros de IVA). Ou seja, o dono do restaurante poupa 0,60 euros.

    Mas isso é uma poupança aparente. De facto, tem ele margem para repercutir, só por essa redução na factura do talho, qualquer valor no preço que aplica na refeição do seu cliente?

    Não, por aí jamais. Porque, na verdade, ao fim do mês (ou trimestre), quando for “fazer contas com o Estado” no que toca ao IVA, o proprietário do restaurante terá de entregar agora a totalidade dos 2,60 euros deste imposto que cobrou ao seu cliente, uma vez que, obviamente, não tem qualquer montante a deduzir do IVA zero da carne que comprou no talho.

    Antes do IVA zero, o proprietário do restaurante entregaria ao Estado “apenas” 2,00 euros, uma vez que deduziria os 0,60 euros de IVA que lhe tinham sido já cobrados pelo talho. E o talho, obviamente, tinha então a obrigação de entregar os 0,60 euros pagos pelo proprietário do restaurante quando lhe comprou a carne.

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    Dito de outra forma, é igual ao litro, para um restaurante a existência do IVA zero nos produtos que adquire para a confecção dos alimentos. Não há nem vantagens nem desvantagens, sobretudo se a entrega das declarações de IVA for mensal.

    Mesmo com entrega de declaração trimestral, a única vantagem seria muito relativo e em termos de tesouraria, e apenas se mostraria economicamente relevante (em valores que se vissem) se os juros estivessem muito mais elevados e houvesse um grande volume de mercadorias envolvidas (algo que apenas sucede, por exemplo, nos supermercados).

    Por tudo isto, as palavras da bastonária da Ordem dos Contabilistas são, além de um disparate, de uma enorme gravidade pela imagem que dá do topo desta profissão: ou ela sabe que aquilo que transmitiu é falso e esteve a ludibriar-nos (com fins inconfessáveis); ou então pensa que aquilo que transmitiu é verdadeiro e nem sequer deveria ter passado na cadeira de Contabilidade Geral I.

  • Medina, o pináculo de um governo de aldrabões

    Medina, o pináculo de um governo de aldrabões


    Hoje, o nosso colunista Tiago Franco escreveu, na sua coluna de opinião do PÁGINA UM, sobre os “engenheiros roubados a Portugal” que chegam à Suécia “sem nunca terem recebido um salário” no nosso país, “e que, em pouco tempo, se adaptam a tudo o que lhes aparece pela frente: ao clima que não ajuda ninguém, ao modo de vida, aos ritmos de trabalho, às tecnologias que nunca viram”, acrescentando que “destacam-se perante colegas muito mais velhos, com anos disto”.

    E pasmado – força de expressão –, o Tiago Franco diz que gostaria de saber “de onde virá tanta fome de aprender”, colocando três perguntas essenciais, quando se confronta aquilo que podemos ser como pessoas, de nacionalidade portuguesa, e aquilo que Portugal, lamentavelmente, é:

    “Onde é que errámos?”

    “Como é que ficámos tão pobres?”

    “De que forma é que fazemos este pessoal regressar e produzir em Portugal?”

    Fernando Medina, em foto hoje colocada no Twitter, “transportando” Mário Soares, entretanto falecido em 2017.

    E eu respondo-lhe.

    Errámos porque permitimos que um Governo desça tão baixo que até tem um ministro como Medina.

    Ficámos tão pobres porque permitimos que Governos tenham ministros como Medina.

    E, quanto à terceira questão: que esqueça ele regressos de emigrantes portugueses em massa enquanto tivermos políticos como Medina.

    Fernando Medina, o Medina, surge aqui como representante de um homem que sempre viveu debaixo de António Costa – não direi que é um capacho, mas andou sempre onde andaram os pés do actual primeiro-ministro –, mas também como metonímia de político medíocre, sem chama nem garra, sem uma ideia nem plano, que passeia a sua nulidade num país político sem glória nem honra.

    Os Medinas – que encontram, no actual Governo a sua máxima plenitude – vivem com e da manipulação, da mentira e da sem-vergonhice, mas confiantes da ilimitada capacidade dos portugueses – dos que aqui estão, não dos que partem – em suportar todas as suas diatribes.

    Os Medinas, e sobretudo o seu máximo representante, o Fernando, já esteve envolvido nas mais díspares polémicas, a começar com o caso das denúncias de activistas à embaixada russa, antes da Rússia ser um pária para o mundo lusitano, quando ele era o alcaide alfacinha. Este ano, já perdi a conta aos casos e aos casinhos deste Governo, quase sempre tendo o Fernando envolvido, mas sempre conseguindo ele, com o beneplácito de todos, incluindo do seu eterno chefe Costa, manter-se como um sempre-em-pé.

    Hoje, Medina, o Fernando, e todos os outros Medinas do Governo espetaram mais um prego no caixão da nossa já podre democracia.

    Dias sem fim, andou o Governo a garantir a existência de um parecer jurídico defendendo justa causa para o despedimento da ex-CEO da TAP, Christine Ourmières-Widener. Para salvar o coiro, o Governo não se importou de imolar uma estrangeira e uma mulher num circo mediático.

    A seguir, o Governo fez aquilo que melhor sabe fazer, e que durante a pandemia melhor desenvolveu: manipulou, mentiu e escondeu, não exactamente por esta ordem, até porque age de acordo com as circunstâncias. E confia numa comunicação social dócil.

    Ainda ontem, através de uma nota enviada à agência Lusa – que, nos últimos anos, parece funcionar como uma espécie de Pravda do Governo de Costa –, o gabinete da ministra-Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes, sustentava que “o parecer em causa não cabe no âmbito da comissão parlamentar de inquérito” e que “a sua divulgação envolve[ria] riscos na defesa jurídica da posição do Estado”.

    E hoje, afinal, Medina, o Fernando, como ministro de um Governo podre, veio dizer que, afinal, o parecer nunca existiu. E mantém-se, consta, ele como ministro… e todos os outros.

    Enfim, temos um Governo de gente de má índole, que desonra as palavras, os actos, os portugueses. Um país onde o próprio Presidente da República permite que sejamos geridos por um Governo de aldrabões. Um Governo que nos envergonha. Um Governo que só nos ajuda a ser piores. Cá dentro.

    E queres tu, Tiago Franco, regressar da Suécia e veres regressar os nossos compatriotas? Para isto? Para esta “merdina”?

  • P1 PODCAST e a sustentabilidade financeira do Página Um

    P1 PODCAST e a sustentabilidade financeira do Página Um


    Nascido em Dezembro de 2021, o PÁGINA UM é manifestamente um jornal diferente. Assumidamente independente, sem publicidade e sem parcerias comerciais nem mecenas. Sem reverências. Sem concessões. Fazemos aquilo que os outros não fazem ou não querem fazer, mesmo com parcos meios humanos e financeiros – a independência absoluta tem essas desvantagens. Os processos de intimação que temos colocado nos tribunais, perante a cultura do obscurantismo que reina em Portugal, são disso exemplos paradigmáticos.

    Mas sabemos – e eu sei, pessoalmente, em particular – que este “modelo de negócios”, chamemos-lhe assim, implica limitações muito fortes, sobretudo se, como é o caso do PÁGINA UM, os donativos dos leitores são a única fonte de financiamento e, mesmo assim, o acesso às notícias é inteiramente livre. Ou seja, os leitores que nos apoiam, sustentam a produção das nossas notícias e permitem, em simultâneo, que leitores com menores posses tenham também acesso.

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    Para o PÁGINA UM conseguir fazer mais – e queremos fazer mais, de forma sustentável, sem endividamento (o nosso passivo é zero) –, temos também de diversificar as nossas plataformas ou a forma como chegamos aos nossos leitores. O design do novo site enquadra-se nessa estratégia de consolidação e contínua melhoria.

    Foi também com esta filosofia em mente que criámos no início do ano o P1 PODCAST, que, neste momento, é constituído sobretudo pelos podcasts diários da Elisabete Tavares (Caramba,ó Galamba) – que hoje chegou ao 100º episódio –, mas também pelos “debates” entre mim e o Luís Gomes (Os economistas do diabo), pela minha improvisada “crítica de imprensa” (Que nos salves, São Francisco de Sales) e pela crónica semanal do Frederico Duarte Carvalho (Histórias que eu sei).

    Produzir estes podcasts – e outros mais que temos em mente – não deve, contudo, afectar a necessária prossecução da actividade normal do PÁGINA UM, nem pode retirar, de forma contínua, financiamento à nossa actividade como jornal de investigação. Produzir tanta diversidade com tão poucos meios implicaria reduzir a qualidade.

    Por esse motivo – e embora tenha sido já anunciado previamente –, o P1 PODCAST somente tem condições para se manter se for sustentável de forma autónoma do ponto de vista financeiro. Ora, como os recursos financeiros do PÁGINA UM se têm mantido estáveis, não temos outra hipótese que não seja a aplicação de subscrições para a audição dos nossos podcasts por um período máximo de 10 dias.

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    Ou seja, significa que, a partir de hoje, apenas os subscritores (através de um pagamento mensal de 5,99 euros) terão acesso, durante os primeiros 10 dias de cada emissão, aos podcasts que formos produzindo. Findos esses 10 dias, para cada emissão, o acesso passa a ser livre.

    Sabemos que para alguns dos nossos leitores – sobretudo os que nos apoiam com maior regularidade –, o pedido de apoio suplementar em troca de acesso aos conteúdos do P1 PODCAST no período inicial de 10 dias será profundamente injusta, até porque muitos deles apoiam com valores bem superiores. Contudo, por razões logísticas e operacionais, não se mostra possível fornecer senhas de acesso aos apoiantes regulares, uma vez que o sistema de subscrições é gerido por uma entidade externa ao PÁGINA UM (e.g., Spotify). Com outros meios, porventura teremos oportunidade de implementar um sistema de gestão que controlemos directamente.

    Temos consciência que esta é também uma experiência que fazemos, um teste à nossa credibilidade – mas também uma forma de mantermos o espírito e a filosofia do PÁGINA UM como jornal, que é o nosso core business: manter a linha editorial independente, sem publicidade e sem parcerias comerciais, e de acesso livre. Mas isso não significa que seja um jornal de custo zero; significa sim que o jornalismo independente depende mesmo dos leitores. E dos ouvintes para o P1 PODCAST.

    Por isso, se concluirmos, em breve, que o P1 PODCAST não é um projecto sustentável, e que “canibaliza” os recursos do PÁGINA UM, não hesitaremos em dar um passo atrás para nos dedicarmos em exlusivo apenas no jornal digital. É nele que apostamos as “nossas fichas”.


    Para aceder aos conteúdos do P1 PODCAST (apoio mensal de 5,99 euros) em exclusivo durante os primeiros 10 dias de cada emissão, clique AQUI.

  • O PÁGINA UM 2.0: novo design, uma renovada prova de sucesso dos nossos leitores

    O PÁGINA UM 2.0: novo design, uma renovada prova de sucesso dos nossos leitores


    O PÁGINA UM, sempre em continuidade desde Dezembro de 2021, renasce hoje com um novo design, mais moderno, num estilo mais próximo de um jornal digital.

    Este é um esforço que, em primeira linha, se deve à colaboração do José Maria Gonçalves Pereira e do António Almeida – que, no seu caso, nos tem acompanhado desde os primórdios.

    Com este modelo do site do PÁGINA UM confirma-se a magia do projecto, e também a nossa quimera, que afinal se tem alcançado no quotidiano, ao longo dos últimos 16 meses: é possível a criação de um projecto editorial de acesso livre, que se afirma pela acutilância e irreverência, sem quaisquer reverências, e que conjuga dois (bons) géneros de pessoas: o primeiro grupo, aquelas que vêem o PÁGINA UM como um modelo de jornal absolutamente independente – que deve ser acarinhado e apoiado financeiramente através de donativos, tanto mais que o modelo de negócio (em contraponto com a mercantilização do jornalismo na imprensa mainstream) não inclui anúncios nem parcerias comerciais; e o segundo grupo, aquelas pessoas que colaboram, pro bono ou a troco de pequenas compensações, em tarefas que colocam o jornal como uma referência na imprensa portuguesa.

    silhouette of person

    Não falo numa referência em termos de dimensão e de desafogo financeiro (mesmo se o desafogo financeiro na imprensa mainstream se faz, em muitos casos, à custa de passivos estratosféricos, que colocam sempre em causa a independência), mas de prática e de princípios deontológicos, mostrando aos leitores aquilo que deve ser o jornalismo.

    Sabemos que, perante uma redacção minúscula, dificilmente conseguiremos uma abordagem temática similar à da imprensa mainstream, mas temos dado cartas – e mais haverá – sobre como deve (e tem de) ser o comportamento do jornalismo perante os poderes económicos e políticos. Além das investigações que temos apresentado, os processos de intimação que temos colocado no Tribunal Administrativo de Lisboa para a obtenção de informação pública, com a extraordinária coragem do nosso advogado Rui Amores, são exemplos paradigmáticos. Não que estejamos a fazer muito; os outros é que, nesta matéria, nada fazem. E deviam fazer.

    Em todo o caso, o novo design do PÁGINA UM mostra sobretudo a nossa vitalidade, e é o corolário do sucesso que nos foi concedido e confiado pelos leitores que nos apoiam. É mais do que prova de sobrevivência; é uma prova de vitalidade: para fazermos esta aposta num novo design é porque estamos cientes e conscientes de que o projecto editorial, mesmo nos moldes actuais, apresenta potencial para crescer, para obter financiamentos para crescer mesmo se somente através dos donativos dos leitores. E isso consegue-se também se, em paralelo, mantivermos ou até crescermos em quantidade informativa com a qualidade de sempre.

    asphalt road between trees

    E este novo design mostra também a vitalidade e interesse dos nossos colunistas habituais, que já ocupam as nossas páginas diariamente. Assim, os artigos de opinião e as crónicas do Tiago Franco, Clara Pinto Correia, Frederico Duarte Carvalho, Mariana Santos Martins, Vítor Ilharco e Diogo Cabrita passam a ter uma maior visibilidade logo na página principal do site.

    Por outro lado, com este novo design fica mais clara a nossa aposta na Cultura, existindo a possibilidade de se produzir mais temáticas nesta secção – para além dos ensaios (que serão retomados em breve) de Carlos Jorge Figueiredo Jorge, ou da crítica de cinema e de séries televisivas do Bernardo Almeida –, para além das recensões habituais, sobretudo a cargo da Ana Luísa Pereira, Maria Carneiro e Paulo Moreiras (e também das minhas e dos outros colaboradores do PÁGINA UM).

    Esta segunda fase da vida do PÁGINA UM também contará com um pequeno reforço de meios humanos. A Maria Afonso Peixoto passará, nos próximos tempos, a ter uma presença mais assídua, bem como a Elisabete Tavares, que se tem vindo a destacar, neste momento, na criação de podcasts de análise ao quotidiano. Haverá, muito em breve, novidades sobre o P1 PODCAST, que constitui um projecto paralelo do PÁGINA UM, com recursos autónomos, mas também sem publicidade nem parcerias comerciais.

    aerial view of people walking on raod

    Já agora, por falar na Elisabete Tavares, é da sua safra a intimista entrevista que hoje publicamos, em manchete, com a psicóloga Laura Sanches, que merece ser lida (e reflectida) para compreendermos os perigos que ainda pairam sobre a nossa democracia e vida pós-pandemia. E sobre as novas gerações.

    Convém, aliás, referir que as entrevistas serão uma das nossas apostas nos próximos tempos, procurando ouvir sobretudo quem julgamos que deve ser ouvido. E que queira expor-nos os seus pontos de vista sem contemplações.

    Por fim, um agradecimento especial a todos aqueles que nos têm acompanhado e sobretudo apoiado desde os primórdios desta aventura do PÁGINA UM, em Outubro de 2021, quando a semente nasceu. Se hoje estamos aqui, a fazer um jornalismo incómodo – um pleonasmo que, por esquecido, convém aqui usar –, deve-se aos nossos leitores, aqueles que nos apoiam mesmo sabendo que não precisariam de apoiar para nos lerem – mas que sabem bem que a informação, mesmo gratuita, tem um valor. E nos tempos que correm parece tão rara que deve ser cuidada e mantida.

  • Somos racistas quando queremos parecer não-racistas

    Somos racistas quando queremos parecer não-racistas


    Em Portugal, a cor da pele – ou a raça ou etnia, termos que, em si mesmo, devem ser usados sempre com a máxima prudência, porque o wokismo está ao virar da esquina para tachar epítetos – é considerada um dado nominativo e, por esse motivo, quase nunca é recolhido para efeitos de estudos sociológicos, económicos, sociais ou sanitários.

    Ora, mas como grande parte de toda a informação relevante para a elaboração de diagnósticos e de avaliação de políticas económicas, sociais e de saúde pública somente fazem sentido se a componente étnica e racial constituir uma variável com informação fiável, ficamos sempre às cegas.

    selective focus photography of woman and boy

    Por exemplo, não conseguimos em Portugal comparar, com uma base minimamente rigorosa, qual o rendimento médio da população negra em comparação com a população de origem caucasiana; não conseguimos comparar o grau de qualificação da população de etnia cigana; e não conseguimos sequer saber qual a esperança média de vida e o impacte de determinadas doenças – por exemplo, a letalidade da covid-19, hélas – nas diferentes etnias que vivem no nosso país.

    Não se sabe porque, ai Jesus!, seria uma promoção do racismo recolher essa informação sensível. E assim protegida a intimidade dos negros, assim ignoramos as carências da população negra. Assim protegida a intimidade da população cigana, assim a ignoramos e a estigmatizamos, com mitos e preconceitos.

    O racismo é, na verdade, o reflexo da ignorância, de um medo tantas vezes infundado ao desconhecido. O racismo alimenta-se do desconhecimento, da congeminação de preconceitos, da alimentação de estigmas, de mitos, do boato.

    woman dancing on seashore

    Esta reflexão sobre a forma como em Portugal se colocam sempre mil obstáculos em incluir a variável étnica em estudos – e de isso ser, para mim, um acto de perpetuação do racismo e da discriminação –, surge a propósito de dados divulgados na sexta-feira passada no The New York Times sobre o impacte da pandemia – covid-19 e outras doenças – naquele Estado norte-americano.

    Ora, como se sabe, o sistema de saúde norte-americano não é universal, estando muito dependente do tipo de seguro individual e, obviamente, dos rendimentos. E existem enormes diferenças em função das etnias, que não está associada a questões genéticas.

    No Estado de Nova Iorque, mesmo antes da pandemia, a esperança média de vida da população negra não chegava sequer aos 79 anos, sendo três anos inferior à da população branca e hispânica.

    people walking on street during daytime

    Em 2020, com o impacte da covid-19 e de toda a desestabilização dos serviços de saúde nos Estados Unidos, sendo certo que a queda da esperança média de vida foi substancial e generalizada em todas as etnias – muito pela elevada mortalidade na população idosa –, a população negra e hispânica foram as mais afectadas comparando com a (mais rica) população branca.

    Enquanto a “perda” no primeiro ano na população hispânica – que pela alimentação mais saudável era até superior à população branca em 2019 – e na população negra foi de seis anos (passando de cerca de 83 anos para 77,3; e de um pouco menos de 79 para 73 anos –, a “queda” na população branca foi de três anos, passando para 80,1 anos.

    Evolução da esperança média de vida no Estado de Nova Iorque. Fonte: NYT

    Este indicador demonstra não apenas um impacte das políticas económicas, sociais e de saúde antes como durante a pandemia, mostrando que o impacte das doenças não atinge todos por igual.

    E em Portugal, o que sucedeu?

    Não se sabe, porque não se pode saber. Saber seria ser-se racista.

    Mas conhecerem-se esses dados permitiria que os políticos não tivessem a desculpa da ignorância para não actuarem, para não corrigirem essas desigualdades absurdas. E não corrigirem as desigualdades, supostamente evidentes mas não quantificáveis, logo não “avaliáveis” (em termos de diagnóstico e de avaliação de medidas), isso sim, é que é um acto de perpétuo racismo.

    woman wearing leotard sketch

    Por isso, quando se defende em Portugal que a recolha de dados étnicos se mostrará sempre uma atitude intolerável, discriminatória e mesmo racista, eu acho exactamente o contrário: racismo é a manutenção desta ignorância sobre dados fundamentais para se definirem políticas sociais que combatam as desigualdades, a discriminação e o “negócio da lamúria”.

    Para deixar de se ser racista, convém conhecermos como vive cada uma das nossas etnias. Somente assim se eliminam os preconceitos e se ganha empatia e se promove a equidade, e por fim a igualdade de oportunidades.

  • “Jornalistas comerciais”: a cagufa dos vendilhões do templo

    “Jornalistas comerciais”: a cagufa dos vendilhões do templo


    Ontem, o PÁGINA UM revelou, em primeira-mão, a deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) sobre os contratos comerciais entre o Porto Canal e entidades públicas, que resultou na abertura de três processos, o envio de uma comunicação ao Tribunal de Contas e a remessa de um caso de participação de um jornalista na execução de contratos de índole comercial para efeitos disciplinares junto da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista.

    O assunto é de inegável interesse. Basta observar outras situações em que a ERC e o canal televisivo associado ao Futebol Clube do Porto, presidido por Jorge Nuno Pinto da Costa, se envolvem.

    A jornalista e pivot da SIC Marta Atalaya durante uma conferência no âmbito de uma parceria comercial entre o seu empregador e uma farmacêutica.

    Porém, o assunto não foi pegado, até agora pela imprensa, apesar da notícia do PÁGINA UM ter já um número muito apreciável de leituras (já acima das 12 mil, por agora). E não digo, desta vez, que seja por uma certa “aversão”, na imprensa mainstream, a se citar o PÁGINA UM – que tem funcionado como uma espécie de “consciência pesada”. Basicamente, é por cagufa.

    Sim, cagufa. Miúfa. Cagaço. Medo, enfim.

    Sim, porque – e aleluia!, elogie-se! –, finalmente a ERC entendeu que a vergonha tinha de parar. No decurso da análise do regulador ao Porto Canal esteve, em grande medida, a identificação de ligações entre jornalistas habilitados com a carteira profissional e contratos comerciais que , directa ou indirectamente, estipulavam tarefas, compromissos e funções de informação. Ou seja, colocavam a independência e a linha editorial em causa.

    Bem sei que há muitas equipas de marketing e muitas administrações e direcções de grupos empresariais de media – na verdade, quase todas – que surgem agora a defender que a evolução do mercado levou à necessidade de reformulação de conceitos comunicacionais e blá blá blá blá… Tudo tretas: uma coisa são os canais de comunicação, que podem e devem – por questões de sustentabilidade financeira – ser veículos de mensagens publicitárias; outra coisa é garantir, mesmo que caia Carmo e Trindade, que os “conteúdos” informativos têm de ser isentos, rigorosos e independentes, e executados por jornalistas que nada devem fazer na parte comercial ou de marketing.

    Rosalia Amorim, directora do Diário de Notícias, é uma habitué na moderação de eventos realizados pela Global Media e pagos pelo Estado, empresas e autarquias.

    E essa independência pode – e deve – ser completa, mesmo arriscando a perda de clientes das tais mensagens publicitárias. Mais vale a morte do Jornalismo do que um Jornalismo Prostituto. Siga-se pois a máxima de Cristo, segundo o Evangelho de São Mateus: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Ou, prosaicamente, “Dai, pois, ao Marketing o que é do Marketing, e ao Jornalismo o que é do Jornalismo”.

    Mas o Jornalismo nunca morrerá. A prazo, é sempre a isenção, o rigor e a independência da informação que sustentam um órgão de comunicação social. Não o digo com o mesmo modelo do PÁGINA UM – que leva ao extremo essa máxima, como contraponto, renunciando às receitas publicitárias. O modelo do PÁGINA UM serve sobretudo para demonstrar que a qualidade “vende” até mesmo se o produto é “oferecido”, seguindo os princípios económicos da disposição a pagar (willingness to pay). Se o produto “qualidade” for escasso, as pessoas valorizam-no.

    A isenção, o rigor e a independência podem não trazer anunciantes imediatos, mas trazem leitores, trazem consumidores das tais mensagens publicitárias; e garante-se assim “fluxo normal e saudável”: as empresas pagam para apenas anunciar os seus produtos e mensagens num órgão de comunicação social de uma forma independente da informação.

    Público, e o seu director Manuel Carvalho, têm executado contratos comerciais susceptíveis de interferirem com a independência editorial do jornal.

    Ora, aquilo que foi sucedendo com a imprensa – sem prejuízo das novas tecnologias – foi a subversão deste equilíbrio, de sorte que se vendeu a alma ao diabo. Começou-se com publireportagens – que mesmo assim tinham uma clara distinção entre o conteúdo jornalístico – e acabou-se nisto: na mais completa e pornográfica promiscuidade entre entidades públicas e privadas e órgãos de comunicação social, com os seus jornalistas transformados em tarefeiros para executar contratos comerciais, sem que o leitor se aperceba se aquilo que lê, ouve e/ou vê é um produto jornalístico ou é afinal uma encomenda paga pelo patrocinador.

    Aquilo que a ERC finalmente fez com os contratos do Porto Canal, com a deliberação divulgada pelo PÁGINA UM, é somente a ponta de um icebergue que temos, ao longo dos últimos meses aqui anunciado. O jornalista Pedro Carvalho da Silva, do Porto Canal, é apenas um dos muitos “jornalistas comerciais” da nossa praça.

    E estamos a falar ao mais alto nível. Ou seja, de jornalistas com cargos de direcção. Por exemplo, Manuel Carvalho, o ainda director do Público, ou David Pontes, que o vai substituir em Junho, já participaram activamente na concretização de diversos contratos comerciais, através da sua presença como moderadores em tarefas estipuladas nos cadernos de encargos.

    Na Mobi Summit do ano passado, um evento de uma empresa municipal de Cascais, chegou a ser nomeado um “curador editorial”, Paulo Tavares, antigo jornalista, que coordenava a cobertura mediática pelos periódicos da Global Media. Esta função não existe na Lei da Imprensa nem os jornalistas podem estar sob a alçada de pessoas sem carteira profissional de jornalista ou equiparado.

    Rosália Amorim (CP 1788), pela sua tamanha presença em eventos de índole comercial, é de jure directora do Diário de Notícias, mas parece acumular de facto o cargo de comercial da Global Media. Mas está longe de ser a única neste grupo de media.

    Há alguns meses, em Outubro do ano passado, noticiámos que num evento (Mobi Summit) patrocinado por uma empresa municipal de Cascais quase todos os debates foram moderados por directores das publicações da Global Media, demonstrando a forte ingerência de jornalista num evento comunicacional. Além de Rosália Amorim, também Joana Petiz (directora-adjunta do Diário de Notícias e directora do Dinheiro Vivo, CP 4449) e Pedro Cruz (director executivo da TSF, CP 1611) moderaram três debates, cada um. Pedro Ivo Carvalho, director-adjunto do Jornal de Notícias, CP 3104) moderou dois e Jorge Flores (editor executivo do Motor 24, sem registo de carteira profissional) um.

    Neste evento, a quantidade de “jornalistas comerciais” foi avassaladora. Por exemplo, Rute Coelho (CP 1893) tanto escreveu no Diário de Notícias como no site do evento Portugal Mobi Summit. Esta jornalista, com mais de 20 anos de experiência, revelou-se como um dos casos evidentes de “mercantilização” do jornalismo, impedido por lei, uma vez que oferece serviços de relações públicas e consultoria em marketing no LinkedIn. Além desta, houve participação na cobertura mediática por mais três jornalistas Elisabete Silva (CP 4391), Ana Meireles (CP 2808) e Carla Aguiar (CP 739), que foi a autora da peça sobre a intervenção do ministro Duarte Cordeiro. Esta jornalista do Jornal de Notícias fez também pelo menos uma entrevista a um participante do Mobi Summit antes da realização do evento.

    Para completar o leque de directores que já tiveram tarefas promíscuas, identifico também Inês Cardoso, directora do Jornal de Notícias, e Mafalda Anjos, directora da Visão. Sobre a Visão, aliás, regressarei ao tema em breve.

    O jornalista Bernardo Ferrão, que apresenta também o Polígrafo SIC, já moderou conferências de índole comercial entre a Impresa e farmacêuticas.

    Por diversas vezes falei aqui também numa dupla de “jornalistas comerciais”, que personificam a libertinagem absoluta e absurda, onde já nenhuma fronteira de decência e ética subsiste. São eles os jornalistas Francisco de Almeida Fernandes (CP 7706) e Fátima Ferrão (CP 6197), que a pretexto de trabalharem numa agência de produção de conteúdos, fazem tanto notícias como free lancers para periódicos, sobretudo da Global Media e da Impresa, como conteúdos patrocinados para cumprimentos de contratos comerciais nessas mesmas empresas de comunicação.

    A empresa onde trabalham estes jornalistas (a Mad Brain) concebia e executava a revista Energiser da Galp, fruto de uma parceria comercial com a Impresa. Nada lhes aconteceu desde que o PÁGINA UM denunciou este fartote de indecência.

    Aliás, foram as promiscuidades (e ainda mais pornográficas, porque nada se esconde) detectadas, que o PÁGINA UM, em Maio do ano passado, em vez de continuamente fazer notícias, acabou por elencar 56 contratos suspeitos (e juntou posteriormente mais cerca de uma dezena), envolvendo os principais grupos de media e entidades públicas, onde aparentemente se exigia a participação activa de jornalistas para a sua execução, numa clara ingerência na linha editorial independente que se exige. E mandou tudo para a ERC, a aguardar comentários. A ERC prometeu averiguar, e espero ainda sentado.

    A Mad Brain é uma empresa de conteúdos onde dois jornalistas tanto escrevem notícias como conteúdos patrocinados, e onde, na verdade, se ignora se as notícias são ou não também conteúdos patrocinados.

    Nesse lote seguia, por exemplo, uma entrevista ao bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas em cumprimento de um contrato comercial, que foi publicada no Diário de Notícias.

    Mas não estava ainda incluída a participação de jornalistas da SIC na execução de um contrato de 31 mil euros entre a Impresa e a Ordem dos Contabilistas para a cobertura de um congresso, onde vários jornalistas a darem o “corpo ao manifesto”, como foram os casos dos pivots e jornalistas Bento Rodrigues (CP 1270) e Rodrigo Pratas (CP 3979) e dos jornalistas Débora Henriques (CP 5674) e Afonso Guedes (CP 7857).

    E isto só para citar os contratos com entidades públicas, cujos contornos são conhecidos. Imagina-se apenas o que se passará com empresas privadas, onde os contratos ficam no segredo dos deuses. Com as farmacêuticas, por exemplo. Pela amostra de que já falei aqui, dá para se ter uma ideia do regabofe.

    Por tudo isto, compreende-se que muitos vendilhões do templo não estejam muito interessados em noticiar que a ERC – esperando que não seja isto o canto do cisne do actual Conselho Regulador, a ser eliminado pelo próximo – anda agora, finalmente, à “caça de jornalistas comerciais”; daqueles que, na verdade, têm contribuído para a perda de confiança pública na imprensa.

    ERC identificou, pela primeira vez, um jornalista por estar associado à concretização de um contrato comercial. O primeiro de muitos ou um canto de cisne?

    É preciso uma lavagem de ética na profissão, por muitas dores que tal cause, e por alguns empregos que se percam. Depois deste “tiro” da ERC com a deliberação sobre o Porto Canal, não é mais suportável a inacção da corporativa (e cultora do amiguismo) Comissão da Carteira Profissional do Jornalista nem a postura ambígua do Sindicato dos Jornalistas, que criticam estas promiscuidades, mas que calam na hora de identificar nomes e responsabilizar atitudes.   

    Espero que este seja o primeiro passo para inverter o actual pântano do jornalismo português. Precisamos, cada vez mais, de uma imprensa forte e credível – e credível pelo seu rigor e independência, e não pelos fatos & gravatas & voz certa, ou pela maquilhagem & postura & beleza. Sem uma imprensa forte e credível, com uma imprensa na dependência financeira de patrocinadores que mexem os cordelinhos da linha editorial, apenas teremos informação oca e manipulação grosseira, tudo aquilo que mina uma democracia.