Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Heróis da pandemia: glorifiquemos o memorial à estupidez, à acefalia e à vaidade

    Heróis da pandemia: glorifiquemos o memorial à estupidez, à acefalia e à vaidade


    Ainda não surge no Portal Base o custo das duas esculturas de Rogério Abreu, hoje inauguradas, defronte ao Tejo, a caminho de Belém, mas por mim espero que lhe venham a pagar pelo menos os 1,6 milhões de euros da redução de custos do altar das Jornadas Mundiais da Juventude. Merece: glorifica a estupidez, a acefalia e a vaidade, que são sempre predicados necessários para um efectivo reconhecimento da arte no futuro de coisas irracionais do passado.

    Onde uns hoje se podem chocar com o estranho sentido estético e simbólico de um monumento oco aos Heróis da Pandemia, eu vejo veneração no futuro.

    Onde uns hoje podem ficar boquiabertos com as duas figuras – masculina e feminina, sendo que esta tem de ter o seu rabo de cavalo para assim ser, porque ambas estão mascaradas –, eu vejo uma lição de História para o futuro.

    Onde uns hoje podem ficar assombrados com a vanitas vanitatum et omnia vanitas (cf. Eclesiastes 1:2) do (ainda) bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, e do presidente da autarquia de Lisboa, Carlos Moedas – que pespegaram tanto os seus nomes na base de uma das estátuas, ao lado do nome do escultor, como na placa de inauguração, neste caso fazendo companhia ao nome do ministro da Saúde, Manuel Pizarro –, eu vejo um ensinamento sobre perenidade das acções para os empreendedores no futuro.

    Esqueçam as críticas. Não olhem para detalhes nem analisem obras ou acções feitas, não para nós, mas para serem admiradas e veneradas no futuro.

    Hoje, a arcaria do Vale de Alcântara é um ex-libris da capital; ontem, no século XVIII, foi tão zurzido por alguns arquitectos, por razões estéticas (arcos góticos em período barroco) que Ludovice, o criador do convento de Mafra, chamou Herodes do Aqueduto ao engenheiro Custódio Vieira, que a concebeu.

    Também estou a imaginar os mais cépticos moradores de Rapa Nui a criticarem a inutilidade dos moais – cuja edificação, aliás, aparentemente esteve na base de um ecocídio involuntário –, pois hoje as grandes estátuas da chilena ilha da Páscoa são a cobiça de qualquer turista.

    Olhem, olhem bem. Não percam assim uma passagem pelo agora denominado Passeio Carlos do Carmo, entre o Terreiro das Missas e o Jardim das Docas da Ponte, porque, sendo certo que “tudo isto existe, tudo é triste, [e] tudo isto é fado” (como cantava Amália Rodrigues), também é verdade que os protagonistas desta escultura – o seu autor e os seus promotores – conseguiram, talvez involuntariamente, transmitir várias lições para as gerações vindouras. Desfrutem, por isso. Deliciem-se, agora.

    De facto, hoje, somente por relatos sabemos que, em tempos de antanho, os arcaicos médicos para combater epidemias aplicavam, geralmente, sangrias aos enfermos – que mais os debilitavam – ou davam-lhes purgas, xaropes e mistelas diversas, que tantas vezes causavam piores males e nenhum bem. Para contrariar as supostas emanações pestilentas no ar ambiente – que se considerava estar na origem dos contágios e que, em certa medida, podemos associar à decomposição do lixo –, usavam-se meios de duvidosa eficácia, como soluções de vinagre, perfumes, ervas odoríferas queimadas e até tiros de pólvora. Mas não há símbolos disso. Só papéis.

    No futuro, haverá este memorial. Toda uma lição em perpétuo e inamovível aço.

    Ali estão as máscaras – elevadas a estúpido símbolo de suposta protecção (agora a ruir cientificamente, como um óbvio baralho de cartas), num período histórico em que conheciam as dimensões de um vírus e as dimensões dos poros das ditas máscaras. E sendo as ditas máscaras o centro nevrálgico das duas figuras escultóricas de Rogério Abreu – e tendo ele, sabiamente, introduzido profusas e profundas “porosidades” –, transmite-nos assim fielmente um sentido realista à coisa: a aragem que venha Tejo acima ou Tejo abaixo, invade e trespassa livremente as cabeças, tal como um vírus abre alas entre as fibras de uma máscara cirúrgica. Serviram tanto como uma peneira para estancar o vento.

    Imagens de vídeo das esculturas de Rogério Abreu, hoje inauguradas por Miguel Guilherme, bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Moedas, presidente da autarquia de Lisboa, e Manuel Pizarro, ministro da Saúde.

    Também de enorme felicidade, pelo realismo, embora aqui um pouco mais alegórico, se mostra a opção do escultor por duas figuras de cabeça oca, onde, efectivamente, nada existe no interior. Será esta a melhor imagem para nossos vindouros: saberão eles, quando certo dia estudarem o que sucedeu entre 2020 e 2022 – com consequências para os anos seguintes –, como foi a gestão da pandemia: acéfala.

    Por tudo isto, glória ao escultor Rogério Abreu! Glória à vaidade de Miguel Guimarães e Carlos Moedas!, porque sem eles não teríamos um Memorial tão bem conseguido, tão perene, um tão arejado Monumento destinado ao futuro, um legado sobre tempos de Estupidez e Acefalia – que não se podem repetir quando surgir um novo vírus.

    P.S. Apelo, não irónico: espero que as pessoas mais exaltadas se contenham e não façam nenhum acto de vandalismo às esculturas. Não transformem um Monumento à Estupidez e Acefalia em Memorial da Vitimização.


    N.D. Afinal, apurou-se entretanto que a obra custou 57.000 euros, tendo sido integralmente paga pela Ordem dos Médicos.

  • Glorifiquemos o memorial à estupidez, à acefalia e à vaidade

    Glorifiquemos o memorial à estupidez, à acefalia e à vaidade


    Ainda não surge no Portal Base o custo das duas esculturas de Rogério Abreu, hoje inauguradas, defronte ao Tejo, a caminho de Belém, mas por mim espero que lhe venham a pagar pelo menos os 1,6 milhões de euros da redução de custos do altar das Jornadas Mundiais da Juventude. Merece: glorifica a estupidez, a acefalia e a vaidade, que são sempre predicados necessários para um efectivo reconhecimento da arte no futuro de coisas irracionais do passado.

    Onde uns hoje se podem chocar com o estranho sentido estético e simbólico de um monumento oco aos Heróis da Pandemia, eu vejo veneração no futuro.

    Onde uns hoje podem ficar boquiabertos com as duas figuras – masculina e feminina, sendo que esta tem de ter o seu rabo de cavalo para assim ser, porque ambas estão mascaradas –, eu vejo uma lição de História para o futuro.

    Onde uns hoje podem ficar assombrados com a vanitas vanitatum et omnia vanitas (cf. Eclesiastes 1:2) do (ainda) bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, e do presidente da autarquia de Lisboa, Carlos Moedas – que pespegaram tanto os seus nomes na base de uma das estátuas, ao lado do nome do escultor, como na placa de inauguração, neste caso fazendo companhia ao nome do ministro da Saúde, Manuel Pizarro –, eu vejo um ensinamento sobre perenidade das acções para os empreendedores no futuro.

    Esqueçam as críticas. Não olhem para detalhes nem analisem obras ou acções feitas, não para nós, mas para serem admiradas e veneradas no futuro.

    Hoje, a arcaria do Vale de Alcântara é um ex-libris da capital; ontem, no século XVIII, foi tão zurzido por alguns arquitectos, por razões estéticas (arcos góticos em período barroco) que Ludovice, o criador do convento de Mafra, chamou Herodes do Aqueduto ao engenheiro Custódio Vieira, que a concebeu.

    Também estou a imaginar os mais cépticos moradores de Rapa Nui a criticarem a inutilidade dos moais – cuja edificação, aliás, aparentemente esteve na base de um ecocídio involuntário –, pois hoje as grandes estátuas da chilena ilha da Páscoa são a cobiça de qualquer turista.

    Olhem, olhem bem. Não percam assim uma passagem pelo agora denominado Passeio Carlos do Carmo, entre o Terreiro das Missas e o Jardim das Docas da Ponte, porque, sendo certo que “tudo isto existe, tudo é triste, [e] tudo isto é fado” (como cantava Amália Rodrigues), também é verdade que os protagonistas desta escultura – o seu autor e os seus promotores – conseguiram, talvez involuntariamente, transmitir várias lições para as gerações vindouras. Desfrutem, por isso. Deliciem-se, agora.

    De facto, hoje, somente por relatos sabemos que, em tempos de antanho, os arcaicos médicos para combater epidemias aplicavam, geralmente, sangrias aos enfermos – que mais os debilitavam – ou davam-lhes purgas, xaropes e mistelas diversas, que tantas vezes causavam piores males e nenhum bem. Para contrariar as supostas emanações pestilentas no ar ambiente – que se considerava estar na origem dos contágios e que, em certa medida, podemos associar à decomposição do lixo –, usavam-se meios de duvidosa eficácia, como soluções de vinagre, perfumes, ervas odoríferas queimadas e até tiros de pólvora. Mas não há símbolos disso. Só papéis.

    No futuro, haverá este memorial. Toda uma lição em perpétuo e inamovível aço.

    Ali estão as máscaras – elevadas a estúpido símbolo de suposta protecção (agora a ruir cientificamente, como um óbvio baralho de cartas), num período histórico em que conheciam as dimensões de um vírus e as dimensões dos poros das ditas máscaras. E sendo as ditas máscaras o centro nevrálgico das duas figuras escultóricas de Rogério Abreu – e tendo ele, sabiamente, introduzido profusas e profundas “porosidades” –, transmite-nos assim fielmente um sentido realista à coisa: a aragem que venha Tejo acima ou Tejo abaixo, invade e trespassa livremente as cabeças, tal como um vírus abre alas entre as fibras de uma máscara cirúrgica. Serviram tanto como uma peneira para estancar o vento.

    Imagens de vídeo das esculturas de Rogério Abreu, hoje inauguradas por Miguel Guilherme, bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Moedas, presidente da autarquia de Lisboa, e Manuel Pizarro, ministro da Saúde.

    Também de enorme felicidade, pelo realismo, embora aqui um pouco mais alegórico, se mostra a opção do escultor por duas figuras de cabeça oca, onde, efectivamente, nada existe no interior. Será esta a melhor imagem para nossos vindouros: saberão eles, quando certo dia estudarem o que sucedeu entre 2020 e 2022 – com consequências para os anos seguintes –, como foi a gestão da pandemia: acéfala.

    Por tudo isto, glória ao escultor Rogério Abreu! Glória à vaidade de Miguel Guimarães e Carlos Moedas!, porque sem eles não teríamos um Memorial tão bem conseguido, tão perene, um tão arejado Monumento destinado ao futuro, um legado sobre tempos de Estupidez e Acefalia – que não se podem repetir quando surgir um novo vírus.

    P.S. Apelo, não irónico: espero que as pessoas mais exaltadas se contenham e não façam nenhum acto de vandalismo às esculturas. Não transformem um Monumento à Estupidez e Acefalia em Memorial da Vitimização.


    N.D. Afinal, apurou-se entretanto que a obra custou 57.000 euros, tendo sido integralmente paga pela Ordem dos Médicos.

  • Mas afinal a Tesla já faliu? E o Elon Musk ainda não foi escorraçado do Twitter?

    Mas afinal a Tesla já faliu? E o Elon Musk ainda não foi escorraçado do Twitter?


    Em Dezembro do ano passado – foi há menos de dois meses, minhas senhoras e meus senhores! –, a imprensa mainstream rejubilava. As acções da Tesla – a empresa de automóveis eléctricos dominada por Elon Musk desde 2004– estava, supostamente, a colapsar: desde Novembro de 2021, quando atingiram um máximo de 407,36 dólares, a cotação não parava de descer, com queda abrupta sobretudo a partir de Setembro de 2022.

    Em Dezembro, em cada dia que se passava, vinham os arautos da desgraça, da punição divina, do castigo do merecido karma – leiam-se os jornalistas especializados em mercados de trazer por casa –, apontar as causas. Por exemplo, o jornal Expresso, na véspera de Natal, titulava muito apropriadamente: “Voaram 85 mil milhões de dólares numa semana das ações da Tesla. Foi a rede do pássaro que os levou?”, esclarecendo-nos depois o jornalista Pedro Carreira Garcia logo no início do seu texto: “Os investidores da Tesla estão nervosos com o negócio paralelo do seu fundador [sic], Elon Musk, dono e presidente executivo do Twitter desde Outubro. E desconfiam de tal forma das capacidades de Musk para gerir o negócio de construção de automóveis elétricos que em cinco dias provocaram uma forte perda de valor das ações da Tesla em bolsa.”

    Elon Musk, novo dono do Twitter e CEO da Tesla.

    Podia-se apresentar mais exemplos da imprensa mainstream, incluindo estrangeiros, mas todos seguiram o diapasão, todos eram consensuais: Elon Musk – que nunca foi um investidor consensual – estava a pagar a ousadia de ter comprado o Twitter e aberto uma caixa de Pandora com a “libertação do pássaro” de uma gaiola de censura criada pelas redes sociais em conluio com os governos mundiais.

    Com a reabertura de contas suspensas pela anterior administração desta rede social, sobretudo daquelas que contestavam a gestão da pandemia, e sobretudo com a divulgação dos #Twitter Files, a imprensa tratou de ignorar o impacte das denúncias de ingerência do Governo Federal dos Estados Unidos nas redes sociais em simultâneo com uma estratégia conjunta para denegrir a imagem de Elon Musk. O multimilionário parecia apreciar estes ataques, alimentando-os com sondagens online sobre como deveria gerir a sua vida empresarial.

    E a imprensa caindo no jogo, e anunciando que o seu fim estava à vista. “Despedimentos, receitas em queda e muitas sondagens. Menos de dois meses depois, Twitter diz a Musk que é tempo de sair”, titulava o Eco em 20 de Dezembro do ano passado. A Exame Informática, por exemplo, dava o foco na queda da Tesla nos últimos dias de 2022: “Ações da Tesla em mínimos de dois anos”, indicando que “os investidores receiam que a liderança de Elon Musk no Twitter e as constantes decisões polémicas estejam a retirar o foco do executivo na gestão da fabricante automóvel.”

    blue coupe parked beside white wall

    Em suma, invariavelmente, a Tesla estava em colapso por culpa (basta meter a palavra colapso e Tesla no Google para confirmar) e era tudo só por culpa de Musk e da forma irresponsável como geria o Twitter. Não havia dúvidas. E ele estava a pagar a ousadia. Para a imprensa mainstream de pouco valiam os fenómenos de especulação que tinham catapultado a Tesla para uma capitalização bolsista quase inaudita (e a qual Musk até criticava).

    Veja-se: no início de 2020, as acções da Tesla cotavam ainda abaixo dos 30 dólares. E qualquer fenómeno de variação bolsista tem subjacente uma carga psicológica misturada com fundamentais que, embora possam ser previsíveis, nunca podem ser explicados por visões tão simplistas.

    Nas últimas semanas – ou melhor dizendo, desde o início do ano –, a Tesla deixou praticamente de ser notícia na imprensa mainstream. Ou, pelo menos, o seu “garantido” desastre bolsista.

    O que aconteceu entretanto, perguntará o leitor? Aqui está.

    No dia 3 de Janeiro deste ano fechou nos 108,30 dólares, uma queda de 70% face ao máximo de 2022 (361,53 dólares, em 1 de Abril). E depois, upa, que se faz tarde: hoje fechou nos 207,32 dólares, uma subida de mais de 91,79% desde o início do ano.

    Explicações para isto não as tenho, ou não as deve ter ou nem quero ter, ou nem as devo transmitir publicamente. Mas devo dizer o seguinte: isto é o mercado a funcionar; e os jornalistas da imprensa mainstream a falharem. Ou melhor, a trabalharem com uma função específica: contar histórias da carochinha para manipulação das massas e com objectivos ínvios. Aquilo que andaram a fazer em Dezembro não era informação: com os #Twitter Files no seu auge, estiveram esforçadamente a tentar mostrar que Elon Musk era o mau da fita.

  • Da podridão e da queixa-crime do senhor juiz Sebastião Póvoas, presidente da ERC

    Da podridão e da queixa-crime do senhor juiz Sebastião Póvoas, presidente da ERC


    A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) anunciou esta semana a realização de sessões formativas sobre “Desinformação e fake news” e sobre “estereótipos, discurso de ódio e discriminação”, no próximo mês de Março.

    Os temas não poderiam ser mais actuais, até porque incluem tópicos que se encontram interligados, embora haja aqui algo de irónico. A desinformação, as fake news, os estereótipos, o discurso de ódio e a discriminação grassam hoje por aí, mas a ERC é uma das principais culpadas pelo regabofe, porque se demitiu do seu papel de regulação isenta, tanto mais que os estereótipos, os discursos de ódio (subliminares, é certo) e a discriminação são agora apanágio da imprensa mainstream.

    Estrada do Forte do Alto do Duque, em Lisboa, à saída das instalações da PSP onde iria, em princípio, ser constituído arguido…

    Basta olhar para o deplorável comportamento da imprensa mainstream durante a pandemia, as suas atitudes face à vacinação (sobretudo dos mais jovens) e dos efeitos adversos (anda por aí um elefante na sala que os jornalistas não querem ver nem saber), as abordagens enviesadas sobre a lamentável guerra da Ucrânia (promovendo, além disso, a russofobia como algo justificável contra qualquer cidadão daquele país e enaltecendo aos píncaros da democracia um regime ucraniano igualmente corrupto), os ataques a quem cria rupturas (veja-se o caso de Elon Musk, e a inexistência de cobertura dos #TwitterFiles), etc., etc., etc..  

    O PÁGINA UM também já levou a sua dose de efeitos adversos da desinformação, fake news, estereótipos, discurso de ódio e discriminação, tanto na imprensa como nas redes sociais (não é só a Cristina Ferreira que se queixa). Acrescem os ataques de redes sociais como o Facebook ou o Youtube, que já nos retiraram conteúdos noticiosos ou as constantes acções de shadow banning para diminuir a exposição e visibilidade do PÁGINA UM. Já sem falar nos inimigos de estimação nas redes sociais que se desunham para me enxovalhar, nem sequer se apercebendo que os seus infantis ataques são um excelente tónico para ainda fazer mais e melhor, para mais os irritar.

    Forte do Alto do Duque, sede do Divisão de Investigação Criminal da PSP de Lisboa.

    Sobre a desinformação – que deve incluir também a ausência de informação, porque, em muitos casos, o silêncio ou o silenciamento são uma forma enviesada de desinformação –, o PÁGINA UM tem procurado ser um paladino nessa luta, sobretudo da mais perniciosa de todas, a criada e fomentada pelo Estado.

    Não é por acaso que demos entrada, desde Abril do ano passado, no Tribunal Administrativo de Lisboa com 14 processos de intimação contra diversas entidades públicas exactamente pela recusa na disponibilização de dados que, hélas, serviriam para dar informação verídica aos leitores.

    Aliás, muitas destas intimações têm o exacto propósito de saber que desinformação nos têm estado a vender nos últimos anos. Mas sobre isto, a ERC – e sobretudo o seu (ainda) presidente, o juiz Sebastião Póvoas, “aos costumes tem dito nada”.

    Sobre fake news, o PÁGINA UM foi e tem sido um dos alvos desde que nasceu este projecto assente em quatro pilares: acesso livre à informação; inexistência de patrocínios, anúncios e parcerias comerciais; apoio exclusivo por donativos pessoais; e ausência de temas tabu como garante de independência. O ataque começou logo nos primeiros dias, em Dezembro de 2021, com uma ignóbil “notícia” da CNN Portugal, seguida por outra imprensa mainstream (Público, Observador, Lusa, Expresso, etc.), que pretendeu associar o PÁGINA UM a movimentos ditos negacionistas e de ter práticas supostamente criminosas por se ter revelado dados clínicos de crianças, dados esses anonimizados.

    Ao longo dos meses de 2022, o PÁGINA UM foi sendo sujeito ao mais absurdo bullying de que há memória na comunicação social por parte de duas entidades que deveriam proteger a imprensa livre e os jornalistas independentes: a ERC e a Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas (CCPJ). A primeira entidade (ERC) chegou mesmo a fazer dois comunicados de imprensa contra mim apenas por ela própria estar a incumprir a lei de acesso a documentos, como aliás concluíram pareceres da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos. Mas a fake news de que eu andava a “insultar os membros do Conselho Regulador [da ERC] e a exercer coação sobre os funcionários” ficou, para quem ainda quiser vasculhar, pela Internet.

    Padrão dos Descobrimentos

    De igual modo, tanto a ERC como a CCPJ tudo tentaram para que as notícias caluniosas sobre o PÁGINA UM em Dezembro de 2021 não tivessem “rectificação”, através de direito de resposta. A ERC ainda conseguiu libertar o Expresso e a Lusa (através de uma manhosa deliberação), não conseguiu nos casos mais evidentes da CNN Portugal, Observador e Público, mesmo se, neste último caso, o jornal do Grupo Sonae tenha ido até ao limite do absurdo com uma providência cautelar chumbada.

    Não satisfeitas, tanto uma como outra destas entidades reguladores (ERC e CCPJ), ao invés de intentarem processos por desinformação e falhas deontológicas graves da imprensa mainstream – incluindo parcerias pouco ortodoxas com empresas que prostituem o jornalismo (há uma lista de 56 contratos suspeitos na ERC a aguardar comentário e acção do regulador desde Maio do ano passado) –, lançaram-se numa campanha de apoio a quem o PÁGINA UM denunciava.

    Exemplos disso são os dois vergonhosos pareceres que as duas entidades ofereceram ao presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia a censurar o trabalho de investigação do PÁGINA UM. No caso da CCPJ, o parecer aparentemente nunca antes fora feito a visar outro qualquer jornalista.

    Sede do Público

    E também recentemente surgiu novo processo na ERC, por via de uma queixa de alguém cuja identidade o regulador esconde, por causa de notícias em redor da campanha de vacinação de médicos não-prioritários em Fevereiro do ano passado, e que envolve o então líder da task force, o actual chefe de Estado-Maior da Armada, Gouveia e Melo. Note-se que ambos os casos denunciados pelo PÁGINA UM originaram processos na Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS).

    Sei estar em curso, contra o PÁGINA UM, aquilo que se denomina SLAPP, acrónimo de Strategic Lawsuit Against Public Participation, uma estratégia que consiste na apresentação de queixas judiciais por dá cá esta palha apenas com o intuito de obrigar a uma dispersão de tempo e recursos, ou mesmo da constituição de provisões para supostas indemnizações que asfixiam contabilisticamente uma empresa jornalística independente.

    Ainda na passada sexta-feira, lá tive eu de subir ao Forte do Alto do Duque, para os lados de Monsanto, porque o senhor presidente da ERC não apreciou um escrito de 10 de Março do ano passado – que, entre outras verdades, dizia que o Conselho Regulador tinha deliberadamente analisado um caso “por um prisma tão redutor, tipo antolhos de equídeos” – e meteu-me um processo por difamação.

    Estas fotografias foram tiradas no regresso ao PÁGINA UM, na passada sexta-feira, após a ida à PSP. A tarde estava bonita e decidi pegar numa bicicleta eléctrica e seguir zona ribeirinha desde Belém até ao Cais do Sodré.

    Usando, claro, dinheiros públicos, porque quem paga aos advogados que fazem a queixa e aos funcionários judiciais e de investigação que a processam não é o senhor Sebastião Póvoas. Somos todos nós. Ainda mais debalde, lá fui e saí: o senhor presidente da ERC afinal desistira da queixa apenas dois dias antes, talvez acossado por mais uma sua diatribe na sua já penosa travessia deste mandato do regulador dos media.

    Há notícias que mais casos virão. São os ossos do ofício. Por isso, se por vezes não conseguimos fazer mais, não é por preguiça; é porque estamos na podridão de um pantanal, promovido em grande parte por aqueles que até andam sempre a falar contra a desinformação, contra as “fake news”, contra os estereótipos, contra os discurso de ódio e contra a discriminação, e sempre com o Credo na boca, mas que, por detrás do pano, afiam facas contra a imprensa livre e incómoda.

  • Óbitos por distúrbios mentais e comportamentais em Portugal duplicaram em apenas cinco anos

    Óbitos por distúrbios mentais e comportamentais em Portugal duplicaram em apenas cinco anos

    Os números são impressionantes: as demências e outras desordens mentais e comportamentais em Portugal já representaram em 2020 mais de 5% das mortes. O aumento da esperança de vida dos idosos é uma causa óbvia – para doenças que são particularmente fatais nos maiores de 85 anos –, mas o crescimento desde 2015 não parece apenas ser justificado por esse factor. Hábitos de vida, cada vez menor interacção social dos mais idosos e até o excessivo consumo de calmantes são também causas que explicam esse aumento. As mortes são, porém, a face visível de um problema ainda mais vasto: como manter a vida de um cada vez maior número de pessoas que necessita, de cuidados contínuos por estarem completamente dependentes?


    A mortalidade devida a desordens mentais e comportamentais duplicou em Portugal em apenas cinco anos. De acordo com os dados do Eurostat, este grupo de doenças – que inclui dependência de drogas e álcool, mas não doenças como a de Parkinson e de Alzheimer, que são classificadas como doenças do sistema nervoso –, foi a causa de morte de 3.267 pessoas no ano de 2015, enquanto em 2020 atingiu os 6.422 óbitos.

    Neste grupo, a demência – onde se insere a demência vascular por destruição de tecido cerebral – constitui o grosso das mortes e do incremento neste período, tendo passado de 3.076 óbitos em 2015 para 6.070 em 2020. Cerca de dois terços das pessoas falecidas tinham mais de 85 anos, e 99,4% mais de 65 anos.

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    Este incremento da letalidade nos últimos anos fez com que só as demências tenham ultrapassado o conjunto de todas as doenças do sistema nervoso, que incluem as doenças de Parkinson e de Alzheimer, bem como outras neuropatias, afecções e inflamações do sistema nervoso central.

    Em 2015, este grande grupo de doenças tinha sido a causa de 3.751 óbitos (mais 675 do que as demências), tendo subido para 4.556 em 2020 (menos 1.514 do que as demências). Em 2020, a doença de Parkinson foi responsável por 1.276 óbitos, enquanto a doença de Alzheimer por 1.777, sendo que esta segunda mostra um perfil de estabilidade.

    Nas desordens mentais e comportamentais encontram-se também as mortes directamente associadas ao consumo agudo de álcool e drogas, mas com peso comparativamente muito baixo.  

    Os dados do Eurostat – que apenas desde a semana passada integram dados de Portugal para 2020 – apontam para 114 óbitos causados por alcoolismo registados nesse ano, que é o valor mais elevado desde 2012. Em todo o caso, saliente-se que, neste aspecto, os valores de Portugal são relativamente baixos em relação a outros países europeus. Por exemplo, a Suécia – com a mesma população – registou 304 óbitos por alcoolismo em 2020, ligeiramente abaixo do registado no ano anterior. Na Alemanha, com cerca de oito vezes mais população do que Portugal, a mortalidade por distúrbios mentais associados ao alcoolismo foi de 44 vezes superior (5.046 óbitos).

    Evolução dos óbitos causados por demência (F01-F03, na classificação da OMS) e de outros distúrbios mentais e comportamentais. Fonte: Eurostat.

    Convém, no entanto, referir que estas diferenças podem dever-se a metodologias distintas de atribuição da causa principal do óbito.

    Do ponto de vista epidemiológico, o peso relativo das desordens mentais e comportamentais têm estado a aumentar. Em 2015 representaram 3,0% da mortalidade total, enquanto em 2020 ascendeu aos 5,2%. Não existem ainda evidências de o aumento ter tido qualquer relação com a pandemia iniciada em 2020. De facto, apesar de este grupo de doenças ter registado um incremento em 2020 face a 2019 (mais 746 óbitos), existia já uma tendência de crescimento nos anos anteriores. Por exemplo, o aumento entre 2018 e 2019 fora de 803 óbitos.

    A tendência de crescimento da mortalidade por este tipo de distúrbios é quase generalizada nos outros países europeus abrangidos pelo Eurostat, embora mais nuns do que em outros. Se se comparar os números de 2015 com 2020, na União Europeia apenas a Croácia (-6,0%) e a França (-0,1%) registaram ligeiros decréscimos, enquanto a Dinamarca (+0,8%), Espanha (+1,7%) e Holanda (+2,6%) registaram subidas.

    grayscale photo of woman in sweater smiling

    Dos países da União Europeia com mais de três milhões de habitantes – excluindo-se assim Luxemburgo, Chipre, Malta e os três países bálticos –, Portugal é o terceiro que contabiliza um maior crescimento entre aqueles dois anos (+96,6%), apenas atrás da Grécia (+129,3%) e da Polónia (97,7%). O Eurostat ainda não recebeu os dados de 2020 da Itália e da Bélgica, mas confrontando os dados de 2019 é previsível que os incremento entre 2015 e 2020 seja mais modesto do que o de Portugal.

    Este aumento extraordinário das mortes por distúrbios mentais e comportamentais em Portugal poderá ser explicado por uma maior acuidade na atribuição das causas de mortes e pelo processo de envelhecimento, mas existirão também eventuais efeitos adversos medicamentosos e também de estilos de vida.

    Pio Abreu, psiquiatra e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra – e autor do best-seller Como tornar-se doente mental – destaca não apenas os hábitos de vida, com “os idosos cada vez mais isolados nas comunidades”, mas também o uso excessivo de certos medicamentos. “Começa a ser evidenciada uma associação entre o uso de calmantes e certas formas de demência”, salienta este especialista.

    Pio Abreu considera, contudo, que estes números revelam um outro problema bastante grave que passa pela incapacidade do Estado e das instituições particulares de solidariedade social (IPSS) de darem resposta ao crescente número de pessoas com problemas de demência, incluindo aqui a doença de Alzheimer. “São situações de dependência total que obrigam a um acompanhamento contínuo, superior à de um bebé”, salienta, acrescentando que “o estatuto do cuidador informal tem de ser mais implementado”. “As pessoas que prestam cuidados a familiares com este tipo de doenças têm de ter um maior e melhor apoio”, diz.

    De acordo com a Organização Mundial da Saúde, os vários tipos de demência – demência vascular, demência com corpos de Lewy, demência frontotemporal, demência decorrente de acidentes vasculares cerebrais e ainda por doença de Alzheimer – afectam cerca de 55 milhões de pessoas em todo o Mundo, sendo que mais de 60% vivem em países de baixa e média renda. Com o aumento da esperança média de vida, estima-se que esse número suba para os 78 milhões em 2030 e para 139 milhões em 2050.

  • As delícias dos erros e os prazeres das falácias

    As delícias dos erros e os prazeres das falácias

    título

    O mundo pelos olhos da língua

    autor

    MANUEL MONTEIRO

    Editora (Edição)

    Objectiva (Novembro de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Por mais excelso que seja um escritor, ou dotado que seja um jornalista – e permitindo uma só pessoa possuir os dois predicados pela ordem indicada, ou inversa –, não há jamais capacidade para se livrar de um aziago e medonho companheiro: a gralha. Ou como gralhas. Muitas ou poucas, são horrorosas, envergonham qualquer escriba.

    Se, como sucede com a PÁGINA UM, as folhas forem digitais, a vergonha mostra-se efémera. Entra-se no backoffice e corrige-se, sendo certo que quem viu, já viu, mas já passou.

    Em papel mostra-se mais complicado, sobretudo em livros. É mais persistente. Fica para a eternidade. José Saramago, por exemplo, confessou com propriedade que “quando pegamos no livro novo [da nossa autoria] e abrimos, a gralha normalmente aparece imediatamente, é a primeira bofetada que levamos”, contando depois ao jornalista (e também escritor) João Céu e Silva a famosa gralha da primeira edição do Memorial do Convento em que alguém decidiu corrigir (mal) a expressão “estridor operática”, que passou a “escritor operário”.

    Há uns anos, a editora e escritora Maria do Rosário Pedreira também contava, no seu blog Horas Extraordinárias , o caso de uma editora australiana que publicou um livro de culinária onde se recomenda acrescentar na receita de tagliatelle com sardinhas, em vez de “salt and black pepper” (sal e pimenta preta), “salt and black people“ (sal e gente preta). Retirar os livros do mercado custou-lhe cerca de 20.000 dólares australianos.

    Sendo certo que as gralhas irritam – e causam fúrias, mas também histórias deliciosas que até valorizam edições para bibliófilos –, acrescem aos involuntários corvachos os demais erros dos escritores, que nem sempre escrevem tão bem como parece, numa perspectiva ortográfica e gramatical.

    Não se critique os autores em demasia. Numa língua de tamanha riqueza mas de imensas regras, mostra-se impossível saber-se tudo, lembrar-se de todas as exceções, saber a globalidade dos detalhes linguísticos. Por exemplo, sabem todos em que circunstâncias se escrevem glaciares e glaciais? E sabem também que é correto escrever que ser leve é melhor do que ser pesado, mas já assim não será se se disser que ser pesado não é o mesmo do que ser gordo? E quanto ao gênero de certas palavras? Aluvião? Amálgama? Pulseira? Cotonete? Dengue? Entorse? Usucapião? Acertam em tudo? Ah!, e as vírgulas!, onde e como as colocar de modo correcto, para evitar mal-entendidos?

    Na hora de publicar um livro – ou até um jornal –, o melhor amigo do escritor (e também do editor) acaba por ser o revisor. O seu trabalho é discreto (uma linha na ficha técnica do livro) e meticuloso, mas de enorme erudição. Para tudo ficar perfeito, não basta ele ter bom olho (ajuda, é certo); tem ele de (ou que?) saber preciosismos ortográficos e gramaticais. E o mais que (nos) vale. Para um escritor, o revisor é o seu pára-quedas, embora também deva ele (o escritor) aprender com o saber dele (o revisor).

    Daqui se vê que o escritor não sonha apenas com bons leitores; deseja ardentemente um bom revisor. Ora, um desses revisores perfeitos é – dizem-me, e parece ser – Manuel Monteiro, que nos últimos anos, além de trabalhar para evitar vergonhas alheias (dos autores), tem aproveitado para escrever livros sobre a arte de não escrever mal, ou pelo menos a de não cometer erros muito horríveis enquanto se dedilha no teclado. 

    Começou em 2015 com Dicionário de erros frequentes da língua e, mais recentemente, lançou Por amor à língua (2018) e Sobre o politicamente correto (2020), além de um livro de contos, tudo obras que, talvez infelizmente, (ainda) não se leram.

    Se forem como O mundo pelos olhos da língua serão, por certo, obras não só de grande utilidade pedagógica como de diversão didática. Pelo menos neste, Manuel Monteiro usa um estilo escorreito, associado a um humor peculiar, para nos apresentar uma deliciosa colectânea de erros (ou dúvidas quotidianas na arte da escrita), e não só, agrupando tudo em 11 categorias, com mais de uma centena de “casos”, quase todos hodiernos – que parece ser palavra que o autor aprecia muito. 

    Em muitos casos, os erros são tratados de uma forma sucinta; Manuel Monteiro vai logo ao osso, porque basta curto e grosso para se cortar o mal pela raiz. Noutros, espraia-se mais, como um contista, como sucede na história do menino italiano que escreveu para a Accademia della Crusca depois de inventar uma palavra nova: petalosa. Ou errada.

    Mas não só de léxico, ortografia e gramática vive O mundo pelos olhos da língua . Particularmente interessante é, já na parte final do livro, o conjunto de falácias usadas em discussões (aí está) hodiernas: a falácia do falso nexo de casualidade, a falácia do verbo poder (muito usada pelos jornalistas mainstream nos últimos anos), a falácia da exceção, a falácia da adversativa, a falácia do espantalho, a falácia “E se fosse com o seu filho?”, a falácia “O que ganhou fez tudo certo”, a falácia da tradição e a falácia do afunilamento. Depois disso, há ainda mais umas páginas de armadilhas, truques e (arti)manhas para vencer ou evitar segredos. Os rótulos, por exemplo.

    Um livro para ir lendo e relendo, até se aprender a não errar… tanto. Até porque, enfim, teremos sempre necessidade de revisores. Humanos e eruditos.

  • Governo apaga contratos do Portal Base para enganar Tribunal Administrativo

    Governo apaga contratos do Portal Base para enganar Tribunal Administrativo

    Depois da intimação do PÁGINA UM no Tribunal Administrativo de Lisboa para aceder a todos os contratos de compra de vacinas contra a covid-19, o Governo fez desaparecer o conteúdo dos únicos quatro contratos inseridos no Portal Base, que somente reportavam a compras de cerca de 10 milhões de doses. Portugal terá comprado pelo menos 45 milhões de doses, mas ignora-se as condições futuras. Com o expurgo dos quatro primeiros contratos, a estratégia do Ministério da Saúde seria convencer o Tribunal Administrativo de que, por haver um acordo central assinado entre a Comissão Europeia e as farmacêuticas, Portugal não assinou qualquer contrato. A artimanha, porém, não resultou. O PÁGINA UM tem os quatro contratos “apagados” do Portal Base. E quer mesmo ver os outros.


    O Governo apagou literalmente do Portal Base os quatro únicos contratos de compra de vacinas contra a covid-19 numa clara tentativa de evitar que o Tribunal Administrativo de Lisboa obrigue o Ministério da Saúde a ceder ao PÁGINA UM a globalidade dos acordos comerciais com as farmacêuticas, que já deverão aproximar-se dos 700 milhões de euros. No último dia do ano passado, o PÁGINA UM colocou um processo de intimação, depois de esgotadas todas as tentativas para o ministério de Manuel Pizarro permitir a consulta dos contratos com a Pfizer, Moderna, AstraZeneca e Janssen.

    Os custos exactos destas vacinas adquiridas por Portugal são desconhecidos, porque nunca foram comprovadas as quantidades efectivamente compradas nem o respectivo preço unitário, alegadamente por cláusulas de confidencialidade de legalidade duvidosa e de transparência democrática nula. Também se ignora as quantidades adquiridas a cada farmacêutica, sendo certo que as vacinas da Janssen e a AstraZeneca quase deixaram de ser administradas e a Pfizer tem vindo a suplantar a Moderna.

    Manuel Pizarro. O seu ministério luta com todas as armas e artimanhas possíveis e imagináveis para evitar mostrar compras e compromissos com as farmacêuticas ao PÁGINA UM. Quando não se pode já esconder, então apagam-se contratos.

    A Direcção-Geral da Saúde apenas colocara, até agora, os primeiros quatro contratos, assinados entre Dezembro de 2020 e Janeiro de 2021, no valor de 135 milhões de euros, que serviram para comprar as primeiras 10 milhões de doses para a fase inicial do programa de vacinação. Estes lotes terão dado para vacinar 5 milhões de pessoas. Na plataforma da contratação pública estavam, até há poucas semanas, tanto os dois contratos assinados entre a Direcção-Geral da Saúde e a Pfizer como os que foram assinados com a Moderna.

    Embora faltassem na plataforma de contratação pública todos os contratos subsequentes a partir de Janeiro de 2021 – que terão envolvido pelo menos a aquisição de cerca de 35 milhões de doses –, no Portal estiveram integralmente inseridos os quatro contratos, sem rasuras nem cortes, durante quase dois anos.

    Agora, os ficheiros dos quatro contratos foram substituídos por outros ficheiros completamente vazios de conteúdo. Toda a informação foi apagada, conforme se pode confirmar aqui (primeiro contrato da Pfizer), aqui (segundo contrato da Pfizer), aqui (primeiro contrato da Moderna) e aqui (segundo contrato da Moderna). Nos dois ficheiros anexos aos dados dos contratos com a Pfizer, agora inseridos no Portal Base,

    white and black labeled bottle

    O acto de expurgo foi absoluto, intencional e recente. Com efeito, decorre neste momento um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa com vista ao acesso integral aos contratos das vacinas contra a covid-19, às comunicações com as farmacêuticas e a documentos complementares (como guias de transporte) , intentado pelo PÁGINA UM, tendo já o ministério de Manuel Pizarro alegado que como a Comissão Europeu “estabeleceu um processo de contratação central”, através dos denominados Advance Purchase Agreements (APAs), isso “dispensa[ria] os Estados-membros de qualquer procedimento adicional de contratação”. Ou seja, que não existiam contratos entre a DGS e as farmacêuticas.

    Mas isso é falso – aliás, o recurso à mentira tem sido uma prática sistemática do Ministério da Saúde em processos de intimação. Há contratos, até porque, apesar dos acordos (APAs) terem sido concretizados ao nível da Comissão Europeia, existe sempre a necessidade de as compras específicas para Portugal serem suportadas por contratos mais simplificados, como se mostrava evidente nos quatro primeiros contratos colocados no Portal Base.

    Antes do “apagão” dos documentos no Portal Base, o PÁGINA UM pôde garantir que, no caso dos dois contratos aí existentes com a Pfizer, conseguia-se conhecer o número de doses adquiridas e os prazos de entrega, o valor da aquisição, o nome do responsável em Portugal pela recepção das vacinas e quem os assinara, entre outros pormenores.

    Primeiras páginas dos ficheiros com os contratos com a Pfizer e a Moderna agora inseridos no Portal Base, depois do expurgo ordenado pelo Governo, segundo consulta realizada hoje.

    No primeiro contrato – para a aquisição de 4.4400.804 doses, no valor total de 54.489.660 euros –, contendo seis páginas, pela Direcção-Geral da Saúde assinou a então subdirectora-geral Vanessa Pereira de Gouveia. No segundo contrato – para a compra de 2.220.596 doses por 34.419.238 euros –, também com seis páginas, foi Graça Freitas a signatária. Pela farmacêutica norte-americana assinou Nanette Coccero, presidente da Vaccine Global.

    Quanto aos dois contratos entre a DGS e a Moderna, que constavam no Portal Base, o PÁGINA UM também pode garantir que tinham menos detalhes e apenas cinco páginas cada. Ambos foram assinados por Graça Freitas e por Jerome Maddox, então vice-presidente da Moderna – que estava sedeado em Cambridge, no estado norte-americano de Massachusetts – em 29 de Dezembro de 2020, a um preço de 27.247.155 euros e de 18.780.000 euros. Saliente-se que é uma completa anormalidade a existência de contratos públicos desta natureza e dimensão financeira sem qualquer informação nem detalhe.

    E o PÁGINA UM pode garantir tudo isto, porque, antes de o Governo ter ordenado a substituição dos contratos do Portal Base – para apagar provas perante o Tribunal Administrativo de Lisboa –, descarregou os originais do Portal Base.

    Primeiras páginas dos ficheiros com os contratos com a Pfizer e a Moderna, e inicialmente colocados no Portal Base, antes do expurgo ordenado pelo Governo.

    Assim, quem quiser pode confrontar-se, para o primeiro contrato da Pfizer, o ficheiro que agora lá está com o que lá estava antes (sacado pelo PÁGINA UM).

    Para o segundo contrato da Pfizer, pode confrontar-se o ficheiro que agora lá está (que é igual ao do primeiro contrato) com o que lá estava antes (sacado pelo PÁGINA UM).

    Para o primeiro contrato da Moderna, pode confrontar-se o ficheiro que agora lá está com o que lá estava antes (sacado pelo PÁGINA UM).

    E, por fim, para o segundo contrato da Moderna, pode confrontar-se o ficheiro que agora lá está com o que que lá estava antes (sacado pelo PÁGINA UM).

    Recorde-se ainda que outro argumento do Ministério da Saúde junto do Tribunal Administrativo de Lisboa, para evitar o acesso do PÁGINA UM aos contratos, é a alegada realização de uma auditoria à gestão das vacinas, algo que não foi ainda comprovado nem justificado, nem conflitua com uma consulta.

    E, depois de tudo isto, retirar as devidas conclusões, esperando que o último bastião da Democracia, os tribunais, não se deixem ludibriar com estas artimanhas governamentais.


    N.D. Não vá o Ministério da Saúde repor os ficheiros originais no Portal Base, fazendo crer que o PÁGINA UM não é rigoroso, decidiu-se então gravar integralmente uma consulta aos conteúdos do contratos nesta madrugada. A confiança na transparência do Governo, em geral, do Ministério da Saúde, em particular, é neste momento nula. Para memória futura, os ficheiros expurgados agora pelo Governo podem ser visualizados aqui (primeiro contrato da Pfizer), aqui (segundo contrato da Pfizer, que aparenta ser igual ao do primeiro, pelos sombreados), aqui (primeiro contrato da Moderna) e aqui (segundo contrato da Moderna). Também para memória futura, conheça-se um dos contratos originais entre a Pfizer (BioNTech) e a Comissão Europeia (SANTE/2020/C3/043/043) antes de ser expurgado e depois de ser expurgado das partes “sensíveis”.

  • Correio da Manhã, bem-vindo ao (nosso) Clube contra o Obscurantismo do Estado

    Correio da Manhã, bem-vindo ao (nosso) Clube contra o Obscurantismo do Estado


    Hoje, o Correio da Manhã faz manchete com o título “Governo esconde pensões dos políticos”. Em causa está a recusa da ministra da Segurança Social e da Caixa Geral de Aposentações (CGA) de permitir o acesso aos documentos administrativos que contenham os valores reais das pensões mensais vitalícias pagas a 298 beneficiários.

    O Correio da Manhã, após a recusa governamental, recorreu à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) que, em parecer de 14 de Dezembro passado, concluiu que no que “diz respeito ao acesso ao valor atual das subvenções mensais vitalícias, trata-se de informação que não é de acesso reservado, na esteira do que foi afirmado no Parecer n.º 217/2016 [na verdade, é o Parecer nº 472/2016] , em que a CADA subsumiu o acesso à subvenção mensal vitalícia à doutrina aplicada a vencimentos, ajudas de custo, despesas de representação e outros suplementos remuneratórios e de apoio social auferidos pelo exercício de funções públicas, que “[p]or serem pagos com dinheiros públicos e em obediência a critérios legais objetivos, não têm qualquer caráter reservado”.

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    Mas, mesmo assim, o Governo continuou a recusar.

    O mais surpreendente disto não é a recusa governamental.

    Na verdade, o mais surpreendente é o Correio da Manhã – e os outros jornais que fizeram eco desta recusa – só agora terem acordado para um Estado obscurantista, que engloba não apenas o Governo como a Administração Pública e mesmo instâncias judiciais.

    Os leitores e apoiantes do PÁGINA UM sabem, desde o nosso início, a quantidade enorme – mais de uma dezena em poucos meses – de pareceres favoráveis que obtivemos da CADA face a recusas de acesso a documentos administrativos.

    O primeiro caso, por sinal, foi para aceder ao inquérito da distribuição da Operação Marquês por parte do Conselho Superior da Magistratura, que continuou a ser recusada, e mesmo tendo perdido na primeira instância no Tribunal Administrativo de Lisboa recorreu, aguardando-se ainda o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul.

    Sobre recusas da Direcção-Geral da Saúde e de outras entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde, como o Infarmed, foram também incontáveis os pedidos de parecer que fizemos à CADA por recusa de acesso a documentos.

    Contudo, não me recordo de nenhum parecer favorável da CADA que tenha desbloqueado a recusa de acesso. Todos foram ignorados. A CADA é uma entidade presidida por um juiz conselheiro e tem membros indicados pela Assembleia da República, Ordem dos Advogados e Governos regionais da Madeira e dos Açores. Mas isso pouco incomoda.

    A título de exemplo, recordemos a recusa do Infarmed em fornecer o acesso ao Portal RAM das reacções adversas das vacinas contra a covid-19 e o remdesivir. Em Março de 2022 – há quase um ano –, o PÁGINA UM obteve um parecer da CADA que chegava a considerar que “o interesse público no conhecimento de elementos que possam informar quanto à segurança da vacina é, por conseguinte, manifesto”. E instava assim o regulador dos medicamentos a fornecer os elementos convenientemente anonimizados. Foi isso que aconteceu? Não. E o caso está ainda numa renhida luta no Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Foram tantos os pareceres da CADA, obtidos pelo PÁGINA UM mas ignorados pelas entidades públicas, que mudámos de estratégia: perante um Estado e um Governo claramente obscurantistas – e que já incluem mesmo instituições universitárias, como se viu recentemente com o Instituto Superior Técnico –, a solução passou por, face à recusa inicial, seguir imediata intimação para o Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Se o parecer da CADA – uma instituição que está associada à Assembleia da República – continua a ser não-vinculativo e ignorado pelas entidades públicas, acaba assim por ser uma inutilidade. Daí essa mudança de estratégia.

    Nos últimos seis processos de intimação do PÁGINA UM – contra a Administração Central do Sistema de Saúde, Entidade Reguladora para a Comunicação Social, Banco de Portugal, Instituto Superior Técnico, Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e Ministério da Saúde (para obtenção dos contratos das vacinas contra a covid-19) – já nem sequer pedimos parecer à CADA. Prescindimos de vitórias de Pirro e de ver entidades públicas a gozarem o pagode na chafurdice do obscurantismo em que botaram a nossa democracia.

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    Assim, com a recusa da ministra da Segurança Social em fornecer ao Correio da Manhã os documentos sobre os políticos beneficiários da subvenção mensal vitalícia, esperamos que este jornal – que tem muitas mais posses do que o PÁGINA UM – se junte na luta contra este obscurantismo.

    Estamos numa fase em que já não basta só denunciar na imprensa. A boa imprensa tem de ir mais longe, e recorrer aos tribunais para salvar a democracia de pessoas que nos querem sonegar o direito de saber o que se passa na res publica.

    Mas se for intenção do Correio da Manhã, e da sua proprietária (Cofina), ficar só pela denúncia, avisem-nos: o PÁGINA UM terá todo o prazer, e coragem, com a ajuda dos nossos leitores, através do FUNDO JURÍDICO, apresentar mais uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Seria a nossa 15ª desde Abril do ano passado – é que já andamos a fazer o tipo de denúncias, que hoje foi manchete do Correio da Manhã, há muitos meses, e mesmo se a imprensa mainstream tenha mantido um incessante silêncio a este respeito. E temos já um bom punhado de vitórias alcançadas em prol da democracia.

  • Onze “puxões de orelhas” e seis coimas depois, a ERC ainda faz “descontos” à SIC por infracções reiteradas

    Onze “puxões de orelhas” e seis coimas depois, a ERC ainda faz “descontos” à SIC por infracções reiteradas

    A Entidade Reguladora para a Comunicação Social demorou mais de 44 meses para decidir aplicar uma coima à SIC por não colocar intérpretes gestuais nos debates televisivos para as eleições europeias em 2019, após uma queixa do então deputado André Silva, porta-voz do PAN. O Grupo Impresa tem sido reincidente em infracções (17, no total, desde 2011), mas até agora só apanhou admoestações e seis coimas, das quais quatro já transitaram em condenações nos tribunais.


    Tudo começou em Maio de 2019. E termina agora, quase quatro anos depois, com uma coima de 45 mil euros à Impresa, mas com um estranho e apreciável desconto da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) à dona da SIC e SIC Notícias.

    Em 9 de Maio de 2019, o então porta-voz do PAN, André Silva, insurgiu-se por a SIC, no debate para as eleições do Parlamento Europeu, não ter contado com intérprete de língua gestual. Queixa à ERC, e o regulador haveria de confirmar o desrespeito pelas regras das emissões televisivas que estipulavam que os “debates entre candidatos aos diversos atos eleitorais que ocorram durante os períodos de pré-campanha e campanha deverão ser integralmente objeto de interpretação por meio de língua gestual”.

    Debate de André Silva (PAN) e de António Costa (PS), em 11 de Maio de 2019, já contou com intérprete de linguagem gestual. Dois dias antes, o dirigente político queixara-se à ERC de falhas que levaram agora à aplicação de uma coima de 45 mil euros.

    A decisão de abrir um processo de contra-ordenação foi extremamente rápida para os padrões da ERC: entre a queixa, em 9 de Maio, e a deliberação a confirmar a ilegalidade passaram apenas 32 dias, uma vez que a deliberação foi tomada em 10 de Junho daquele ano. No total foram detectadas quatro infracções à Lei da Televisão, considerada, cada uma, “contraordenação grave punível com coima mínima de 20.000 euros e máxima de 150 000 euros”.

    Porém, depois disto, como habitualmente o Conselho Regulador da ERC presidido pelo juiz conselheiro Sebastião Póvoas, andou a marinar o processo de contra-ordenação, que somente foi agora concluído no passado dia 4 de Janeiro, embora divulgado apenas esta semana. Confirmando todos os factos, a ERC aplicou quatro coimas de 30 mil euros, que assim totalizariam 120 mil euros. No limite, se aplicado o limite máximo, a Impresa sujeitava-se a uma coima de 600 mil euros.

    Mas a ERC acabou por ser ainda mais benevolente com a dona da SIC, aplicando-lhe o regime de cúmulo jurídico, que acabou assim numa coima única de 45 mil euros, ou seja, um “desconto” de 62,5% pela prática de quatro infracções reiteradas em dias distintos por ocasião de quatro debates políticos.

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    Embora o cúmulo jurídico seja uma norma bastante usual em processos contra-ordenacionais – e também até em processos penais –, na avaliação da “multa” a pagar é também ponderado se as infracções cometidas são pontuais ou não. Ora, no caso concreto dos canais da Impresa, a ERC até acaba por elencar todas as admoestações e infracções cometidas anteriormente por falhas e lacunas deste género.

    E, por isso, acaba por ser algo surpreendente que, após 11 admoestações por infracções à Lei da Televisão (quatro em 2011, duas em 2012, três em 2013 e duas em 2015), mais duas coimas (no valor total de 23.750 euros) e mais quatro condenações em tribunal com trânsito em julgado (com pagamento de mais de 67 mil euros, no total), o Grupo Impresa ainda beneficie de um desconto por reiteradas infracções. Ainda por cima nas “barbas de políticos”, porquanto a falta de intérprete de linguagem gestual ocorreu em debates políticos.

  • Filipe Froes recebe dinheiro por sessão de lançamento de fármaco ineficaz que recomendou como consultor da DGS

    Filipe Froes recebe dinheiro por sessão de lançamento de fármaco ineficaz que recomendou como consultor da DGS

    Já nem é uma questão só de promiscuidade, mas de despudor: o pneumologista Filipe Froes já recebe honorários para estar presente em sessões de lançamento de fármacos que acaba por recomendar como consultor da Direcção-Geral da Saúde. O caso passou-se com um evento sobre um fármaco da AstraZeneca, o Evusheld, um anticorpo monoclonal. Mas o fármaco serve para tão pouco que, nos Estados Unidos, a Food & Drug Administration retirou a autorização porque o Evusheld tinha eficácia sobre menos de 10% das variantes do SARS-CoV-2. O Ministério da Saúde mantém-se em silêncio sobre (mais este) caso do pneumologista que se destacou como uma das figuras mais mediáticas a nível nacional durante a pandemia, e que é mandatário de Carlos Cortes, um dos “finalistas” a novo bastonário da Ordem dos Médicos.


    O médico Filipe Froes recebeu 750 euros da farmacêutica da AstraZeneca apenas por participar na sessão de lançamento do Evusheld, um fármaco constituído por anticorpos monoclonais. A verba consta do Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed, onde se mostra que o pneumologista acumulou, só em Janeiro deste ano, 3.353 euros da AstraZeneca, Merck Sharpe & Dohme e GlaxoSmithKline.

    O montante recebido pelo evento da AstraZeneca, em si, até chega a ser banal para os bolsos deste pneumologista – actual mandatário de Carlos Cortes nas eleições a bastonário da Ordem dos Médicos – que saltita entre os corredores do Hospital Pulido Valente e as salas e apertos de mão de dezenas de farmacêuticas, sempre com contrapartidas económicas, se não fosse o caso de ele ser um dos consultores da Direcção-Geral da Saúde (DGS) que recomendou este mesmo fármaco Evusheld como terapia contra a covid-19 para imunodeprimidos.

    Filipe Froes (ao centro), entregou como mandatário, no dia 21 de Novembro, a candidatura de Carlos Cortes (quarto à esquerda) a bastonário da Ordem dos Médicos.

    Com efeito, no passado dia 2 de Dezembro, a directora-geral da Saúde, Graça Freitas, aprovou a norma 015/2022 que definiu “a implementação da profilaxia de pessoas com imunodepressão grave, através da utilização de anticorpos monoclonais anti-SARS-CoV-2”.

    Nessa linha ficou estabelecido que eram elegíveis para profilaxia com anticorpos monoclonais (PAM) as pessoas com transplantes (medula óssea, coração e pulmão), com certos tumores ou com infecção por VIH, tendo-se recomendado “a administração conjunta de Tixgevimab e de Cigavimab”, os dois anticorpos monoclonais que constituem o fármaco Evusheld, da AstraZeneca. A Agência Europeia do Medicamento tinha aprovado este fármaco apenas em Setembro do ano passado.

    De entre os 12 peritos da DGS que elaboraram esta norma, consta Filipe Froes. Este médico participou, aliás, na generalidade das normas terapêuticas aprovadas contra a covid-19 durante a pandemia, introduzindo medicamentos de farmacêuticas com quem trabalhava, através de consultadorias e participação em eventos de interesse comercial.

    O fármaco da AstraZeneca foi aprovado pela Agência Europeia do Medicamento em Setembro do ano passado.

    Froes foi, por exemplo, consultor da Gilead especificamente para o remdesivir, um polémico antiviral usado para o tratamento de doentes com covid-19. E no ano passado esteve particularmente activo em eventos com a Sanofi e a GlaxoSmithKline, farmacêuticas que entraram recentemente no chorudo negócio das novas versões dos boosters contra a covid-19, com a VidPrevtyn Beta.

    Ao longo do ano passado, Filipe Froes foi um dos mais fervorosos adeptos do uso – e da compra pelo Estado – dos diversos medicamentos de última geração contra a covid-19, mas de eficácia duvidosa, que foram surgindo pelas mãos de muitas importantes farmacêuticas, como a Pfizer (antiviral Paxlovid), a Merck Sharpe & Dohme (antiviral Lagrevio) e a GlaxoSmithKline (anticorpo monoclonal Xevudy).

    Com todas e muitas mais farmacêuticas, Froes teve fortes relações comerciais, com valores totais que rondam os 50 mil euros por ano, de acordo com o Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed. Convém, contudo, salientar que o regulador não faz fiscalização regular a estas relações entre clínicos e farmacêuticas, sendo a inserção dos montantes realizada voluntariamente e sem necessidade de comprovativo legal.

    Apesar do Ministério da Saúde não ter revelado ao PÁGINA UM, depois de questionado, o valor de eventuais compras de Evusheld à AstraZeneca, certo é que a sua utilização poderá vir a ser reduzida, se for seguida, na Europa, a decisão da agência norte-americana Food and Drug Administration (FDA) que, no passado dia 26 de Janeiro, decidiu retirar a autorização para administração do fármaco da AstraZeneca.

    O regulador dos Estados Unidos concluiu que o Evusheld era eficaz apenas para menos de 10% das variantes que circulavam naquele país, e que só se justificariam os eventuais efeitos adversos se a eficácia fosse superior a 90%. A própria farmacêutica já assumiu essa decisão do regulador norte-americano no seu próprio site.

    Registo de Janeiro de 2023 dos honorários (registados) de Filipe Froes provenientes da indústria farmacêutica. Fonte: Infarmed.

    A decisão da FDA acaba por não surpreender, porque o regulador foi dando avisos ao longo de 2022 sobre o fraco desempenho do fármaco da AstraZeneca: o primeiro em Fevereiro do ano passado, o segundo em Junho, o terceiro em Outubro e o quarto já no dia 6 de Janeiro deste ano.

    Surpreendente, talvez mais, seja a manutenção da confiança do Ministério da Saúde em Filipe Froes, que entretanto está com um processo disciplinar instaurado pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) desde Fevereiro do ano passado. O PÁGINA UM quis saber se a participação de Filipe Froes na sessão de lançamento – um evento comercial – do fármaco da AstraZeneca alteraria essa postura governamental, mas não obteve, até agora, qualquer resposta.


    N.D. Embora se esteja a noticiar factos, tanto nesta como em outras notícias o PÁGINA UM poderia ter tentado obter um comentário de Filipe Froes. Sucede que não o fez nem faz por uma simples razão: há um meses, tentou-se obter uma reacção deste pneumologista, através de uma mensagem por Messenger, que obteve como resposta um simples “bloqueio de conta”, que se mantém. Presume-se assim que Filipe Froes jamais esteja interessado em dar esclarecimentos aos leitores do PÁGINA UM. Contudo, isso não desonera o PÁGINA UM de escrever com o máximo rigor sobre tudo aquilo que diga respeito à acção pública deste médico. Como, aliás, faz com tudo o resto.