Quando se afirma que uma sondagem foi feita com “rigor científico”, geralmente associada a uma reduzida margem de erro, espera-se, no mínimo, que esse rigor não se dissolva ao primeiro olhar sobre a ficha técnica. Mas o que o Público, a RTP e a Antena 1 aceitaram publicar por estes dias — com chancela ‘científica’ da Universidade Católica, via CESOP — não é uma sondagem: é uma palermice mascarada de estatística.
E pior: é uma palermice perigosa, porque serve para manipular a opinião pública sob o verniz da respeitabilidade académica. Com a bênção silenciosa da ERC, essa entidade reguladora que há muito perdeu a utilidade e hoje apenas funciona como um armazém de pareceres burocráticos, incapaz de defender os cidadãos contra a intoxicação informativa.
Comecemos pelo número mais escandaloso: a taxa de resposta desta suposta sondagem (que, como todas as outras nunca são validadas externamente) foi de 29%. Isto significa, de forma crua, que sete em cada dez pessoas recusaram participar na sondagem. Foram contactadas 4.177 pessoas, mas só 1.206 aceitaram responder. E, ainda assim, esses 1.206 são tratados como se representassem fielmente os mais de nove milhões de eleitores portugueses. Há aqui dois problemas gravíssimos que deviam invalidar qualquer pretensão de fiabilidade desta sondagem:
1. Auto-selecção dos inquiridos: quem responde não é uma amostra aleatória pura, mas sim quem quis responder. Esse grupo tende a ser mais politizado, mais disponível e, muitas vezes, mais alinhado com os meios de comunicação que encomendam a sondagem. Há uma diferença enorme entre uma amostra aleatória de 1.206 pessoas com alta taxa de resposta e uma amostra de 1.206 extraída de um universo onde 71% recusaram participar. A Universidade Católica sabe isso; os directores dos órgãos de comunicação social talvez -mas todos participam na farsa que alimentará notícias, comentários e entrevistas até à próxima fraude.
2. Distância entre método e realidade eleitoral: por mais que os ‘produtores’ destas ‘sondagens’ se defendam com “ponderações estatísticas”, o facto é que não se pode corrigir um viés de auto-selecção se não se conhece sequer o perfil dos que não responderam. A ilusão de representatividade criada pelas chamadas ponderações é apenas isso: uma ilusão. Ou, se quisermos ser mais justos, um embuste.
Que uma universidade alimente este tipo de práticas já seria, por si só, um motivo de vergonha académica. Que meios de comunicação social com responsabilidades públicas, como a RTP, aceitem difundir os resultados como se fossem uma fotografia fiável do país — isso, sim, é escandaloso. E que a ERC assista e abençoe esta prática de manipulação de massas num regime democrático é uma prova da sua absoluta inutilidade e de uma indigência que mina a democracia. A ERC, que devia zelar pela integridade da informação difundida, transforma-se, com a sua cumplicidade, numa aliada objectiva da pura desinformação.
Aliás, esta não é uma falha isolada. Há muito que os chamados estudos de opinião servem mais para formar percepções do que para retratar realidades. O objectivo não é saber em quem os portugueses tencionam votar, mas sim condicionar o voto dos indecisos com o argumento da viabilidade e da “preferência nacional”, construídas em cima de amostras frágeis e enviesadas.
Não basta publicar a margem de erro (aqui 2,8%, como se isso tivesse algum valor real com 71% de não respondentes). A verdadeira margem de erro é outra: a do bom senso que se perdeu.
Estamos perante um caso claro de abuso da credibilidade académica e jornalística para alimentar um ritual estatístico vazio. E, assim, quando o ritual substitui o rigor, a ciência cede o lugar à propaganda.
Se ainda há quem leve estas ‘sondagens’ a sério, só pode ser porque prefere viver numa realidade fabricada a aceitar a verdade nua: a maioria dos portugueses recusa participar nestes exercícios porque já percebe, por instinto, que são uma fraude. E essa é, por ironia, a única sondagem verdadeiramente representativa: a cada vez menor taxa de respostas em sondagens.
Há-de surgir o dia em que ninguém atenderá um telefone de uma empresa de sondagens – mas, lamentavelmente, serão sempre apresentados ‘resultados’ com rigor. Nem que se invente. Há gente para tudo, sobretudo quando a numeracia em Portugal ainda é pior do que a literacia.
A Operação Pactum, conduzida pela Polícia Judiciária e que envolve suspeitas de conluio e cartelização na aquisição de material informático por várias entidades públicas, revela — mais uma vez — que a bandalheira na contratação pública em Portugal não é um acidente, é um sistema. Em causa estarão, neste processo, vícios procedimentais com um valor acumulado “não inferior a 17 milhões de euros”, mas o que realmente interessa vai muito além de uma cifra avultada: está em causa o próprio sentido da legalidade e do interesse público.
Ao longo dos últimos anos, o PÁGINA UM tem destacado, com persistência jornalística e rigor documental, largas dezenas de contratos públicos em que o abuso, a opacidade, a promiscuidade e, por vezes, a ilegalidade são práticas aparentemente correntes, dir-se-ia corriqueiras. Não se trata de meros erros administrativos ou de desatenções burocráticas.
Estamos a falar de estratégias recorrentes para contornar a lei e favorecer determinadas empresas, das pequenas aos grupos económicos — muitas vezes os mesmos, sobretudo em sectores sensíveis e de negócios apetecíveis como as tecnologias de informação, a alimentação (escolar e hospitalar), a segurança privada, a limpeza ou os transportes escolares e de doentes. E sempre com o mesmo pano de fundo: o assalto ao erário público com a conivência dos decisores políticos e administrativos, e a passividade de reguladores e fiscalizadores, com o Tribunal de Contas à cabeça.
Vejamos alguns dos esquemas que se tornaram rotineiros e que o PÁGINA UM tem vindo a denunciar:
a) Ajustes directos por “urgência imperiosa”, invocada a pretexto de atrasos provocados pelas próprias entidades adjudicantes, ou em prazos que de urgentes nada têm. A “urgência” é frequentemente fabricada para contornar os concursos públicos.
b) Concursos públicos vazios ou com exclusão total dos concorrentes, seguidos de ajustes directos previamente combinados. Um clássico da concertação: quem ganha o ajuste directo raramente concorre — sabe de antemão que a concorrência será anulada.
c) Adjudicações sucessivas à mesma empresa, por ajuste directo, sem que haja qualquer reacção da concorrência ou do mercado. Uma evidência de cartelização consentida. Em muitos casos, os ajustes directos ocorrem após terminar a vigência de um contrato após concurso público, não sendo sequer sensato que não se tenha lançado novo concurso público para evitar ajustes directos.
d) Empresas que impugnam concursos que não venceram, mas que, enquanto aguardam decisão judicial, continuam a prestar o serviço por ajuste directo, mantendo de facto o monopólio. e) Consultoras e sociedades de advogados contratadas por ajuste directo, com a desculpa de que é “impossível definir critérios objectivos” para concurso, quando os serviços são perfeitamente quantificáveis. Escolhas pessoais travestidas de necessidade técnica.
f) Contratações durante pandemia, muitas feitas sem cadernos de encargos, sem contratos escritos e muitas vezes com registo tardio no Portal Base — como no caso do Hospital de Braga, que demorou mais de dois anos a registar contratos de centenas de milhares de euros. Estou ainda aguardar que o Ministério Público fala buscas ao Hospital de Braga, cuja gestão durante a pandemia foi um verdadeiro ‘caso de polícia’, mas longe de ser o único.
Perante este panorama, a única coisa verdadeiramente surpreendente é a escassez de buscas policiais, detenções e condenações. Os sinais de prevaricação e conluio são tantos e, por vezes, tão descarados que se justificaria, aqui sim, uma task-force permanente da Justiça só para a contratação pública. Há cerca de ano e meio, encaminhei uma participação com mais de duas dezenas de casos suspeitos para o Tribunal de Contas. Foi um teste. Não houve qualquer consequência visível. Não é só o sistema que está capturado: é também a fiscalização que parece paralisada.
Torna-se assim imperioso adoptar uma política de mão-de-ferro na contratação pública, desde os ajustes directos de 19.999,99 euros (um ‘número mágico’ para entregar uns cobres aos ‘amigos do café’ sem concorrência) até aos contratos de milhões com cadernos de encargos a preceito ou a possibilidade de reajustes de preço. Isso significa, por exemplo:
• Transparência absoluta: contratos e cadernos de encargos publicados atempadamente, com prazos escrupulosamente cumpridos.
• Cumprimento rigoroso da lei: aplicação inflexível do Código dos Contratos Públicos e sanções reais para quem o violar.
• Responsabilização efectiva: penalizações monetárias a gestores públicos que façam adjudicações irregulares e demissões de responsáveis políticos sempre que se detetem práticas sistemáticas de atropelo à legalidade.
• Punição dissuasora de conluios e cartelizações: multas pesadas e, acima de tudo, exclusão temporária ou definitiva de empresas prevaricadoras da contratação pública.
Mas o combate à corrupção não se faz apenas pela punição: faz-se também pela correcção das falhas de mercado. Quando sectores inteiros se viciam em práticas de cartelização e de ajustezinhos directos combinados, cabe ao Estado intervir com soluções públicas.
Se, por exemplo, os concursos para fornecimento de alimentação escolar, de limpeza, de segurança privada ou de transportes continuam sistematicamente vazios — para depois surgir uma confortável adjudicação directa ao mesmo do costume —, talvez seja altura de o Estado ameaçar assumir directamente esses serviços, com empresas públicas dimensionadas e fiscalizadas. Não por ideologia, mas por defesa do interesse público e da concorrência verdadeira. Só o simples anúncio levaria a uma moralização de muitos sectores que vivem de esquemas em contratos públicos.
É tempo de dizer basta. A Operação Pactum está muito longe de ser um caso isolado: é apenas a prova de que há muito tempo a excepção deixou de ser a corrupção — ela é, hoje, a norma. A decência, essa, é que se tornou rara.
Suspeitas de uma fraude em contratos no valor de 17 milhões de euros — e que levaram hoje a 75 buscas em organismos do Estado, escritórios e outras instituições — pode parecer montante chorudo, mas, no contexto dos contratos públicos no sector da informática e tecnologias de informação, acaba por ser uma parcela relativamente pequena.
Embora a identidade das empresas visadas pela investigação não tenha sido tornada pública, algumas das entidades públicas alvo de buscas foram reveladas, entre as quais o Banco de Portugal, o Instituto dos Registos e do Notariado e a Secretaria-Geral do Ministério da Justiça, bem como a Agência para a Modernização Administrativa e a EPAL.
De acordo com um levantamento rápido do PÁGINA UM para uma primeira avaliação do mundo dos contratos públicos, recorrendo aos dados disponíveis no Portal BASE, este é um negócio que mobiliza centenas de milhões de euros. Apenas com uma simples pesquisa pela palavra “Informática” na descrição dos contratos, o lote dos 500 maiores contratos registados (todos acima dos 500 mil euros, sem IVA) atinge um montante total de 763 milhões de euros. Com IVA incluído, este valor ascende a aproximadamente 939 milhões de euros.
Destes contratos, 225 têm valores unitários superiores a um milhão de euros, totalizando um valor global de 567,7 milhões de euros. Nos útimos cinco anos foram celebrados 15 contratos acima dos 5 milhões de euros, incluindo assim três com valores superiores a 10 milhões de euros. Estes valores demonstram o peso colossal deste sector na despesa pública.
Perante este universo, a fraude agora sob investigação — embora relevante — representa uma ínfima fracção dos investimentos realizados nos últimos anos em serviços informáticos, software, licenciamento e infraestruturas digitais para a Administração Pública.
Uma análise detalhada aos contratos com valores acima de 500 mil euros permite ainda identificar os organismos do Estado que mais têm investido em tecnologias de informação. O Instituto de Informática, responsável por múltiplas plataformas críticas da Segurança Social, lidera de forma destacada com um total de 304.567.835 euros em contratos desta natureza. Segue-se a Autoridade Tributária e Aduaneira, com 79.904.388 euros, e os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, com 39.309.515 euros.
A Secretaria-Geral do Ministério da Educação e Ciência surge com 31.262.054 euros, à frente do Banco de Portugal, com 19.992.006 euros, e do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP), com 18.119.608 euros. A Direcção-Geral de Infra-Estruturas e Equipamentos (16.274.541 euros), a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (15.326.438 euros), a Secretaria-Geral do Ministério da Justiça (13.447.001 euros) e o Instituto dos Registos e do Notariado (11.161.059 euros) completam o grupo das dez entidades com maiores investimentos no sector. Saliente-se que os valores serão superiores, uma vez que esta análise se circunscreve aos contratos acima de meio milhão de euros e não inclui aqueles que, mesmo sendo do sector da tecnologia de informação, não tenham a palavra “Informática” na denominação.
O contrato de maior valor identificado pelo PÁGINA UM diz respeito à aquisição de computadores e outros equipamentos tecnológicos, no montante de 14,8 milhões de euros, adjudicado por concurso público à Informantem, em Dezembro de 2020, pela Secretaria-Geral do Ministério da Educação e Ciência.
Em segundo lugar, surge um contrato de 14 milhões de euros celebrado em Agosto de 2017 pelo Banco de Portugal, por concurso limitado por prévia qualificação, com um agrupamento de empresas liderado pela MEO, Claranet, Widesys e Altran Portugal. O terceiro contrato envolveu também a Secretaria-Geral do Ministério da Educação e Ciência, com um valor de quase 11,2 milhões de euros, beneficiando a Inforlândia em Outubro de 2020. Foi um contrato por ajuste directo para aquisição de computadores portáteis nos tempos da pandemia.
Entre os contratos mais volumosos surgem também duas adjudicações da SPMS – Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, ambas datadas de 2022, e ambas por concurso público, com valores de 8.725.405,96 euros e 8.435.438 euros, atribuídas à WWS, Normática e Timestamp, para aquisição de licenciamento Oracle e respectivos serviços de suporte. A Autoridade Tributária e Aduaneira surge com múltiplos contratos milionários: em 2023, contratou por um pouco mais de 8 milhões de euros um conjunto de cinco tipos de software Oracle à Forecast IT e à Normática, e em 2021, por 8,6 milhões de euros, contratou à Timestamp e à WWS o upgrade das plataformas Exadata e BigData.
Já em 2023, o Instituto de Gestão Financeira da Educação adjudicou à Normática e à WWS, por 4,1 milhões de euros, serviços de administração de bases de dados e clusters para a Plataforma Digital da Educação. Noutro caso, o IFAP – Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas contratou a Informática El Corte Inglés por 4,2 milhões de euros, em 2020, para implementação de um sistema de disaster recovery.
A Secretaria-Geral do Ministério da Justiça surge também com um contrato relevante: em 2023, adjudicou por quase 3,8 milhões de euros, por concurso público, a um consórcio liderado pela Accenture e pela Tech-Avanade, para serviços de desenvolvimento de software. Outro caso digno de nota é o do Instituto de Informática, que celebrou vários contratos por valores superiores a três milhões, incluindo um com a Unisys, em 2023, no valor de 3,4 milhões de euros, por ajuste directo, e outro com a CGITI Portugal, também em 2023, por quase 3,3 milhões de euros, ao abrigo de acordo-quadro.
Apesar de existirem largas dezenas de empresas contratadas, algumas em consórcio, destacam-se algumas pelo volume de negócios com entidades públicas, entre as quais a Normática (que lidera), a MEO, a ATOS II, a Informantem e a Informática do El Corte Inglês. Porém, este é um sector multifacetado e especializado, pelo que em alguns contratos haja uma forte dependência da Administração Pública relativamente a grandes operadores.
São números avassaladores. Desde Outubro de 2023, a retaliação de Israel na Faixa de Gaza tornou-se o conflito mais letal para os profissionais da imprensa, registando um recorde impressionante de 232 mortes, das quais 37 num único mês. Estes números ultrapassam largamente os valores registados em grandes conflitos do século XX e transformam a Faixa de Gaza num verdadeiro “cemitério de jornalistas”.
O relatório “Costs of War: The Reporting Graveyard”, assinado pelo jornalista e investigador Nick Turse, ontem revelado com a chancela do Watson Institute da Universidade de Brown, apresenta uma investigação aprofundada sobre a violência contra os trabalhadores dos media em zonas de guerra – e o sanguinário conflito de Gaza –, mesmo numa região com cerca de metade da superfície da ilha da Madeira, embora com mais de dois milhões de habitantes.
Além das mortes, o relatório apresenta as crescentes pressões e formas de limitar a cobertura de conflitos por meio de uma variedade de mecanismos, desde políticas repressivas até ataques armados, fomentando uma cultura de impunidade e transformando zonas de guerra como a Síria e Gaza em “cemitérios de notícias”. De acordo com Nick Turse, a guerra em Gaza matou, desde 7 de Outubro de 2023, mais jornalistas do que a Guerra Civil dos Estados Unidos, as I e II Guerras Mundiais, a Guerra da Coreia, a Guerra do Vietname (incluindo os conflitos no Camboja e Laos), as guerras na Jugoslávia nas décadas de 1990 e 2000, e a guerra no Afeganistão pós-11 de Setembro. Mas não de forma isolada. Todas juntas. Segundo Turse, “é pura e simplesmente o pior conflito de sempre para jornalistas”.
Com efeito, na Ucrânia estão, por agora, contabilizados 29 jornalistas mortos, incluindo o período da guerra no Dombass iniciada em 2014. As duas décadas de guerra no Afeganistão, entre 2001 e 2021, causaram cerca de sete dezenas de mortes, embora os números reais sejam incertos. As guerras resultantes do desmembramento da Jugoslávia também causaram largas dezenas de vítimas entre a imprensa, mas também muito aquém dos valores atrozes de Gaza. E mesmo conflitos de dimensão territorial vasta tiveram menos vítimas. Por exemplo, a II Guerra Mundial causou a morte a 67 jornalistas, enquanto as guerras do Vietname, Cambia e Laos provocaram a morte de 71 jornalistas estrangeiros e locais.
O número decrescente de correspondentes experientes em zonas de conflito prejudica, destaca o relatório, o conhecimento crítico e facilita a elevada mortalidade dos profissionais da informação, quase todos da imprensa palestiniana. E sucede um efeito de bola de neve: quanto mais mortes, menos ‘apetecível’ se mostra enviar jornalistas da imprensa mainstream para esses locais. Em Gaza, por exemplo, a proibição israelita de entrada de jornalistas estrangeiros, aliada ao assassinato indiscriminado de repórteres palestinianos, significa que há muito menos jornalistas capazes de traduzir e relatar o que se passa naquela região ao público ocidental, especialmente ao norte-americano. Isto mostra-se particularmente problemático, considerando-se, como salienta o relatório e Nick Turse, que os Estados Unidos aprovaram cerca de 18 mil milhões de dólares em assistência militar a Israel no ano que se seguiu a Outubro de 2023.
No que diz respeito a Gaza, o relatório evidencia que a política de restrição de acesso a correspondentes estrangeiros, imposta pelo governo israelita, tem agravado sobremaneira a situação dos jornalistas locais. Com os repórteres internacionais impedidos de aceder à região, o fardo da cobertura recai sobre profissionais locais – frequentemente desprovidos dos recursos e apoios necessários para enfrentar condições extremas. Esta “externalização do risco” implica não só a perda irreparável de vidas, mas também o enfraquecimento da qualidade e da imparcialidade da informação disponível ao público.
Contudo, Turse amplia a análise para outros conflitos que também assinalam elevados níveis de violência contra a imprensa. O estudo aborda, por exemplo, as zonas de guerra no Iraque e na Síria, onde a prática de privar os jornalistas do apoio institucional e de garantir o acesso a áreas de conflito contribuiu para um elevado número de vítimas ao longo das últimas décadas. No Afeganistão, as condições extremas e a instabilidade política têm permitido que o trabalho de correspondentes seja marcado por um risco constante, onde cada reportagem pode significar a diferença entre a vida e a morte. Outras regiões, como a República Democrática do Congo e o Sahel, em África, também figuram na análise de Turse, que evidencia como a violência – muitas vezes perpetrada por milícias ou forças armadas sem escrúpulos – se torna um factor determinante na qualidade e na continuidade da cobertura jornalística.
Além dos números devastadores, o relatório sublinha o impacto humanitário e psicológico dessa violência extrema. Histórias trágicas, como a do repórter Samer Abudaqa – gravemente ferido num ataque sem receber socorro atempado, vindo a sucumbir aos ferimentos – ilustram de forma pungente o custo humano de uma guerra que silencia vozes críticas. Cada vida perdida não é apenas uma estatística chocante; é o encerramento de uma narrativa que contribuía para a memória colectiva e para a promoção de um debate público fundamentado.
Mortes de profissionais de imprensa nos principais conflitos bélicos. Fonte: Nick Turse.
Outro aspecto crucial é a destruição de infraestruturas associadas à comunicação social. Em Gaza, cerca de 90 centros de imprensa foram eliminados pelas forças militares de Israel, prejudicando gravemente a capacidade de documentar e transmitir informações fiáveis e verificadas. Esta realidade alimenta a propagação de narrativas distorcidas e perpetua um ciclo de impunidade, uma vez que os responsáveis pelos ataques raramente são punidos, o que fragiliza a confiança do público na capacidade do jornalismo de servir de vigilante democrático.
Adicionalmente, a investigação de Nick Turse denuncia uma crise estrutural que afecta a indústria jornalística global. A retirada progressiva dos correspondentes estrangeiros, aliada ao encerramento de redacções e à redução de postos de trabalho – fenómeno que tem originado verdadeiros “desertos de notícias” em territórios como os Estados Unidos – está a comprometer a existência de uma cobertura abrangente e imparcial dos acontecimentos.
E, como se salienta no relatório, sendo por de mais evidente, esta crise não só empobrece o debate público como mina a função do jornalismo enquanto “quarto poder”, essencial para a fiscalização dos governos e para a salvaguarda dos direitos democráticos.
Os números apontados pelo relatório de Nick Turse chegam a ser mais elevados do que aqueles apresentados hoje pelo Comité para a Protecção dos Jornalistas (CPJ) que indica pelo menos 173 jornalistas e profissionais da media estarão entre as mais de dezenas de milhares de pessoas mortas em Gaza, Cisjordânia, Israel e Líbano desde o início da guerra. Destes, 165 eram palestinianos, dois israelitas e seis libaneses. O CPJ identificou ainda 13 jornalistas e dois trabalhadores da media como alvos directos de ataques israelitas que classifica como assassinatos, estando em investigação outros 20 casos com fortes indícios de segmentação deliberada.
Na semana do aniversário da guerra, em Outubro de 2024, dois jornalistas foram mortos e três feridos, o que levou o CPJ a renovar o seu apelo pelo fim da impunidade. A organização documenta ainda 59 jornalistas feridos, dois desaparecidos, 75 detidos e regista uma multiplicidade de agressões, ameaças, ataques cibernéticos, censura e até assassinatos de familiares.
Financeiramente desastroso: o mandato de três anos de Licínia Girão deixou um rasto desolador nas contas da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), o órgão de acreditação e de disciplina da classe. À frente da entidade desde Maio de 2022, Licínia Girão – uma jornalista que trabalhou sobretudo em jornais regionais – imprimiu, ao longo do seu mandato, uma postura despesista que, agora, está reflectida nas contas: nos anos de 2023 e 2024, o prejuízo acumulado foi de quase 154 mil euros, ou seja, os fundos patrimoniais da CCPJ regrediram 45%, passando de 347.264 euros para apenas 192.511. Significa isto que mais três anos de gestão com o nível de desempenho de Licínia Girão ditariam a falência deste órgão.
Esta erosão patrimonial, inédita na história da CCPJ, até coincide com um aumento das receitas, que são quase em exclusivo provenientes dos emolumentos pagos pelos jornalistas para exercerem a sua actividade, uma vez que, apesar de ser uma entidade pública, o Estado apenas lhe concede um apoio de 50 mil euros. Com efeito, o ano passado até bateram um recorde, cifrando-se em mais de 262 mil euros, o que contrasta, por exemplo, com os cerca de 196 mil euros em 2020.
Licínia Girão desempenhou funções de presidente da CCPJ desde Maio de 2022, ainda não tendo sido encontrado substituto.
O grande ‘problema’ da CCPJ acabou por ser um aumento absurdo nos gastos gerais e, sobretudo, dos honorários por prestações de serviços e das remunerações aos órgãos sociais, isto é, aos membros do Plenário e, em especial, do Secretariado, onde Licínia Girão esteve em permanência, coadjuvada pelo seu ‘braço direito’, Jacinto Godinho, jornalista da RTP.
De facto, a rubrica de fornecimentos e serviços externos – que em 2020 e 2021 foi, respectivamente, de 83 mil e 58 mil euros – saltou, no mandato de Licínia Girão, sempre para cima dos 100 mil euros: 107.426 euros em 2022, 124.064 euros em 2023 e 147.568 euros no ano passado. Uma parte desta despesa foi para honorários diversos, não revelados nas contas, que chegaram a atingir os 67 mil euros, quando, por exemplo, em 2021 tinham sido de apenas 417 euros.
Uma parte substancial deste agravamento de custos esteve associada à própria presidente da CCPJ que, apesar de viver em Coimbra e sem actividade jornalística conhecida nos últimos anos, aparentou dedicar-se profissionalmente à liderança desta entidade. Assim, além das despesas de transporte e estadias, houve uma outra rubrica que disparou: as remunerações aos órgãos sociais.
CCPJ teve receitas recorde em 2024, mas apresentou prejuízos pelo terceiro ano consecutivo.
Apesar de ser uma entidade pública, a CCPJ sempre se recusou a divulgar os valores das senhas de presença e outras remunerações usufruídas pelos seus membros, sendo certo que formalmente não têm salários – ou seja, os membros do Secretariado (três jornalistas), que tratam do expediente, e os do Plenário (que incluem os restantes seis), recebem apenas pelas suas presenças. A revelação dos valores é uma das causas para uma intimação do PÁGINA UM contra a CCPJ que ainda corre nos tribunais administrativos.
Independentemente disso, as contas da CCPJ revelam agora que as despesas com os órgãos sociais – que o PÁGINA UM sabe estarem associadas sobretudo a pagamentos a Licínia Girão – dispararam sobretudo em 2023 e 2024. Na análise às contas do último quinquénio, verifica-se que, nos dois anos civis em que a CCPJ foi liderada por Leonete Botelho, jornalista do Público, as remunerações de todos os elementos dos órgãos sociais atingiram os 18.124 e os 22.295 euros, respectivamente em 2020 e 2021. No ano de 2022, que incluiu o início do mandato de Licínia Girão (que entrou em funções em Maio), essa rubrica subiu para 26.311 euros, ou seja, ainda de forma moderada.
Porém, e atendendo a que não se está perante órgãos com salário, o acréscimo de remunerações dos órgãos sociais foi bastante relevante: quase 41 mil euros em 2023 e aproximadamente 50 mil euros no ano passado. Tudo isto com senhas de presença. A forma de gestão de Licínia Girão da CCPJ levou mesmo à demissão de três membros da CCPJ – Anabela Natário, Isabel Magalhães e Miguel Alexandre Ganhão –, que bateram com a porta, com estrondo, em Outubro do ano passado.
No rol de acusações conhecidas aquando das cartas de renúncia, constam as excessivas despesas, sobretudo pelo uso indiscriminado de senhas de presença, de Licínia Girão – que reside em Coimbra, não tendo actividade jornalística conhecida nos últimos anos –, bem como as suas tentativas de ‘reorientar’ as funções da CCPJ de acreditação e acção disciplinar para passar a exercer também como ‘centro de formação’, e ainda o facto de ter metido despesas de honorários de advogados para tratar de questões pessoais.
O PÁGINA UM pediu comentários e esclarecimentos à CCPJ sobre a sua situação financeira, que remeteu uma resposta para depois da escolha da nova presidência, a eleger por cooptação pelos quatro membros eleitos pelos jornalistas e pelos quatro membros indicados pelos órgãos de comunicação social.
As eleições para o cargo de bastonário da Ordem dos Advogados, cuja derradeira segunda volta se realiza esta segunda-feira, entraram em clima de ‘guerra aberta’, de confrontação clara, depois da actual bastonária Fernanda de Almeida Pinheiro – que passou à segunda volta com João Massano – ter enviado uma mensagem de correio electrónico aos colegas da classe, acusando de forma directa os seus opositores de estarem ao serviço da ASAP – Associação das Sociedades de Advogados de Portugal. O conteúdo e sobretudo o tom da missiva de Fernanda de Almeida Pinheiro – que obteve 33% dos votos na primeira volta, contra 30% de Massano – está a causar ‘ondas de choque’ na rede social LinkedIn, plataforma de excelência onde proliferam os advogados.
Apesar de a comunicação da actual bastonária não estar em circulação, o PÁGINA UM teve acesso integral ao seu conteúdo, com o sugestivo título de “Finalmente, tudo se revelou”, que é extremamente duro, dir-se-ia panfletário. Começa logo por acusar João Massano e José Costa Pinto – que ficou em terceiro lugar na primeira volta com 25% – de serem “meros peões da ASAP”, ou seja, da Associação das Sociedades de Advogados de Portugal. Segundo Fernanda de Almeida Pinheiro, a ASAP representa interesses contrários aos da maioria dos advogados, sobretudo dos que exercem em prática individual ou em pequenas sociedades.
Fernanda de Almeida Pinheiro, actual bastonária.
“O puzzle está completo!”, lê-se na missiva. “Agora está claro quais são os interesses representados por estas candidaturas: os da ASAP, que pretende ‘repensar’ o acesso ao direito e manter intocada a CPAS [Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores].”
A mensagem enumera diversos nomes ligados à candidatura de João Massano, com a indicação expressa das sociedades onde trabalham, incluindo os nomes de Eduarda Proença de Carvalho e André Matias de Almeida (Proença de Carvalho), Manuel Protásio (Vieira de Almeida), Paula Ponces Camanho (Morais Leitão & Associados), todos com cargos relevantes em sociedades associadas da ASAP.
Também a lista de José Costa Pinto – agora afastado da segunda volta, mas que já declarou apoio a Massano – é alvo de denúncia por integrar membros de sociedades com vínculos à mesma associação, entrte os quais Gonçalo Gama Lobo (Gama Lobo Xavier, Luís Teixeira e Melo & Associados), Félix Bernardo (Caldeira Pires & Associados), Joana Whyte (Telles de Abreu & Associados), João Martins Costa (José Pedro Aguiar-Branco & Associados) e Paulo Saragoça da Matta (DLA Piper).
João Massano passou à segunda volta a curta distância da actual bastonária.
A bastonária em funções alerta para os riscos de se entregar a Ordem dos Advogados a interesses que, segundo ela, pretendem “repensar” o regime de acesso ao direito manter a actual caixa de previdência (CPAS) sem reformas estruturais. Os efeitos, avisa, podem ser “devastadores”, avisa na missiva, nomeadamente para os profissionais mais vulneráveis: “Advogados/as em prática individual podem ver a sua actividade ameaçada. Pequenas e médias sociedades podem ser gravemente prejudicadas. Até associados das grandes sociedades, que há muito reivindicam direitos laborais, podem ver as suas expectativas frustradas.”
Considerando que a carta de Fernanda de Almeida Pinheiro se assemelha a um “alerta admonitório” – uma advertência formal com intuito de repreensão e censura com intenção correctiva –, o antigo bastonário Rogério Alves manifestou-se este fim-de-semana no LinkedIn contra “um texto insólito […] com marcado perfil sindical, fora da órbita do que a Ordem é e deverá continuar a ser”. Para Rogério Alves, que liderou esta estrutura profissional de 2005 a 2007, “os debates entre advogados devem ser pautados pela cordialidade e pela urbanidade e não por linguagem comicieira”, acrescentando que “a Ordem deve unir e agregar, sem fomentar uma espécie de luta de classes, mais a mais feita sem classe”. E considera que o debate deve ser feito “sem ataques pessoais, sem desrespeito pelos colegas e pelas suas opiniões”.
Alguns dos visados peça actual bastonário também têm reagido ao longo dos últimos dias através de comentários no LinkedIn. É o caso de Paulo Saragoça da Matta, mandatário de José Costa Pinto, que acusa Fernanda de Almeida Pinheiro de andar “com e-mails e publicações de insulto e mentira nas redes de diversão que usa para granjear apoios ao engano”. Para este advogado, “a Sra. Bastonária não só transformou a Ordem num Circo”, colocando o emoji de uma tenda, “como está de cabeça perdida pois vai perder a ten[ç]a gulosa”, terminado por a acusar de transformar a campanha eleitoral numa “latrina”. E prognostica: “Vai enterrar-se tanto que nem de andas sai da valeta que escava…”.
Os dois principais visados – José Costa Pinto e João Massano, agora apoiado pelo primeiro – mantêm silêncio sobre a agressiva missiva de Fernanda de Almeida Pinheiro. Na passada sexta-feira, já depois do polémico e-mail da bastonária, José Costa Pinto apelou ao voto em João Massano, considerando que “num momento crítico para a Advocacia, não há lugar a neutralidades, a conveniências pessoais ou estados de alma: a escolha deve ser informada pelo compromisso firme de servir a Classe e de proteger a Instituição que a representa”.
Quanto a João Massano – que assegurará a eleição se conseguir juntar os ‘seus votos’ aos de José Costa Pinto –, tem passado os últimos dias a divulgar apenas uma lista de apoios, incluindo com gravações, nas redes sociais, sobretudo no LinkedIn. Até porque tem sido sobretudo aí, nesta rede social, que muito desta campanha eleitoral se tem desenrolado com maior ou menor fel.
Já em tempos aqui escrevi — na verdade, há cerca de uma semana, com o realismo que a democracia exige — que se impunha fixar os nomes dos membros da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC): Helena Sousa, Pedro Correia Gonçalves, Telmo Gonçalves, Carla Martins e Rita Rola. Defendi essa exposição porque os actos do regulador, com especial destaque para as suas omissões e incoerências, não podem ser resguardados sob o biombo da institucionalidade abstracta, mas antes devem estar associados, com nome e sobrenome, às pessoas concretas que os praticam.
É que, ao contrário das instituições — que, coitadas, por vezes são mal frequentadas ou representadas —, os cidadãos têm responsabilidade moral. E, quando ocupam cargos de regulação, essa responsabilidade deveria ser, como o próprio nome indica, reguladora — ou seja, ancorada num mínimo de exigência intelectual, num sentido apurado de justiça e, já agora, numa relação funcional com a realidade.
Ora, uma nova (e sempre surpreendente, pelos mais motivos) deliberação da ERC — datada de 19 de Março — volta a exigir esse gesto de fixação nominal. Não por mera vaidade cívica, mas porque é absolutamente intolerável que, num país que se diz democrático e esclarecido, o órgão máximo de regulação dos media considere aceitável, sem motivos de crítica – uma sondagem política em que 400 inquiridos declaram em quem votarão “de certeza”, mas depois o somatório dessas respostas chega aos 1032 votos de certeza.
Sim, leu bem: 1032 votos garantidos por apenas 400 pessoas. Uma impossibilidade não apenas democrática, mas também aritmética. Isto porque a sondagem da Pitagórica para a TVI e a CNN Portugal afinal permitia que cada pessoa pudesse ‘votar de certeza’ em mais do que um candidato. E assim, através desta sondagem cada candidato podia recolher com ‘certeza’ o voto de um inquirido que, afinal, também votara com ‘certeza’ em outros candidatos. E assim se fizeram notícias sobre as eleições presidenciais com base numa farsa, numa palhaçada, numa fraude, numa manipulação. E, no entanto, depois de uma participação bem sustentada do PÁGINA UM, em defesa do rigor, a ERC viu, analisou e — com serenidade burocrática — nada viu de mal.
A Matemática é, para a ERC, uma ciência tão maleável como o Direito e a Política. Com erros metodológicos crassos e interpretações espúrias, aparentemente intencionais para conduzir a falsas conclusões, que levariam ao ‘chumbo’ de um qualquer aluno universitário, a ERC tratou de mitigar uma horrível manipulação da realidade e um ‘linchamento’ da semântica e da numeracia. Com a ERC ficámos a saber que “votar de certeza” em fulano é passível, em democracia, de votar também em beltrano e em sicrano, e já agora também em fulsicrano (junção de fulano e sicrano), em sicbeltrano (junção de sicrano e beltrano), fulbeltrano (junção de fulano e beltrano) e em fulsicbeltrano (junção de fulano, sicrano e beltrano). Se em democracia, tal é impossível; nos gabinetes da ERC, que regula sondagens, tudo se mostra agora possível.
Helena Sousa, Pedro Correia Gonçalves, Carla Martins, Telmo Gonçalves e Rita Rola, membros do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social.
E tudo é possível apesar de a Lei das Sondagem — e do bom senso — determinar que devem ser observadas diversas regras, entre as quais se destacam a necessidade de as perguntas serem “formuladas com objectividade, clareza e precisão, sem sugerirem directa ou indirectamente, o sentido das respostas”; e de “a interpretação dos resultados brutos deve[r] ser feita de forma a não falsear ou deturpar o resultado da sondagem”.
Os erros e a pura aldrabice desta sondagem, promovida pela empresa Pitagórica para a TVI e CNN Portugal, e divulgada depois pela generalidade da imprensa, é, na sua essência, uma violação da lógica elementar. Não se exige sequer conhecimentos avançados de estatística para detectar a trafulhice. Basta, neste caso, saber somar. E saber que, num sufrágio, um cidadão só pode votar, de certeza, num único candidato. Mas, pelos vistos, os inquiridos da Pitagórica puderam votar com certezas múltiplas. E o regulador, qual monge beneditino da pós-verdade, aceitou com fleuma e talvez até com reverência aquilo que se poderia descrever, com precisão orwelliana, como a novilíngua da estatística deformada: a verdade é soma, e a soma é fé, não precisão.
É aqui que devemos introduzir Roland Barthes, com o seu conceito de “grau zero da escrita”. A ERC — perdão: Helena Sousa, Pedro Correia Gonçalves, Telmo Gonçalves, Carla Martins, sendo que Rita Rola faltou — encarna, na perfeição, o “grau zero da regulação”: um lugar onde, quando não se pretende incomodar certas elites mediáticas, o conteúdo desaparece, a crítica dissolve-se e o acto regulador se converte numa forma vazia de autoridade sem sentido.
Podemos ir mais longe. Estamos também no terreno daquilo que Pierre Bourdieu designava como a reprodução simbólica do poder através da linguagem autorizada. A ERC autoriza-se a si própria como detentora de um juízo mediático, mas exerce essa função, neste caso, baseando-se numa operação matemática de uma forma tão asinina que dificilmente se admitiria numa criança de sete anos.
Aquilo que se passou com esta sondagem — e sobretudo com esta deliberação — é, em qualquer democracia funcional, um escândalo. Um escândalo simples, evidente, quantificável, objectivo. Mas escândalos numéricos parecem não existir quando os números são tratados como fetiches e não como factos. George Orwell, que já nos avisara sobre os perigos da linguagem como instrumento de manipulação, teria provavelmente dedicado um capítulo especial a esta sondagem: a liberdade é a soma dos votos garantidos — ainda que os votantes não existam. Não se trata aqui de margens de erro ou de métodos de ponderação obscuros. Trata-se, tão-só, de somar. E de perceber que 400 pessoas não podem garantir 1032 “votos de certeza” aos diferentes candidatos.
Nem se exigiria à ERC que discutisse fórmulas de amostragem complexas para sondagens. Exige-se apenas que saiba distinguir uma metodologia válida de um disparate aritmético. Aquilo que torna esta deliberação ainda mais inquietante é a dúvida que ela suscita: não quiseram ver ou não souberam ver? E confesso: não sei qual das hipóteses é mais grave.
Se não quiseram ver, então temos uma ERC cúmplice da manipulação informativa. Se não souberam, então temos uma ERC composta por adultos de meia-idade que desconhecem os fundamentos do sistema eleitoral e da matemática básica, até de simples aritmética. Ambas as hipóteses são inaceitáveis, minam o Jornalismo e a Democracia, e mostram que, em sondagens, estamos no campo do vale-tudo. Ambas são motivo suficiente para exigir não só a revisão desta deliberação, mas também a renovação da própria ERC.
TVI e CNN Portugal apresentaram, em Janeiro, resultados de uma sondagem fraudulenta como se fossem intenções de voto. Apesar de haver apenas 400 inquiridos, contabilizaram-se 1032 votos ‘de certeza’, o que significa que cada inquirido atribuiu, de forma convicta, uma média de 2,6 votos pelos proto-candidatos. Assim, uma parte dos 28% dos 400 inquiridos que garantiram que votariam ‘de certeza’ em Gouveia e Melo terão também votado ‘de certeza’ noutros proto-candidatos. A ERC achou que não houve qualquer ilegalidade. ‘Carta branca’ para o vale-tudo.
Repito: neste caso, nem estamos perante um erro de interpretação. Estamos perante uma indigência matemática em estado puro, que faria corar de vergonha um aluno da escola primária. Bem sei que os modernos e mais humanizados métodos de pedagogia o desaconselham a crianças, mas os membros da ERC — Helena Sousa, Pedro Correia Gonçalves, Telmo Gonçalves, Carla Martins, sendo que Rita Rola faltou — mereceriam um par de orelhas de burro bem pontiagudas, de cartolina resistente e uso prolongado. Que as usem com a dignidade que a ocasião exige — e com o silêncio de quem já não tem contas para apresentar.
Não faltará quem veja neste texto uma reacção desproporcionada. Dirão que não se fazem guerras por uma mera sondagem. Mas a questão é exactamente essa: não é apenas uma sondagem política. É um instrumento de influência sobre a opinião pública sobre a qual a ERC anuncia implicitamente que vale tudo. É uma peça que integra o jogo democrático, e que, se for viciada, transforma esse jogo num simulacro.
Quando se admite — com indiferença — que um erro deste calibre passe incólume, estamos a normalizar a fraude informativa. Estamos a declarar, com todas as letras, que a quantificação da vontade popular pode ser uma charada — desde que sirva certos propósitos.
Diz-se muitas vezes que a democracia morre aos poucos, de forma insidiosa. Eu diria que, entre nós, ela se esvai aos números, entre gráficos mal feitos e somas impossíveis, legitimadas por entidades cuja única missão deveria ser impedir esses abusos. Mas talvez seja já tarde. Talvez estejamos mesmo num país onde reguladores não regulam, jornalistas não questionam e cidadãos já não contam. Pelo menos, não a contar. Porque, como bem se viu, os números já não são o reflexo da realidade — são o seu encobrimento.
E por isso volto a insistir: fixem-se os nomes dos membros do Conselho Regulador da ERC: Helena Sousa, Pedro Correia Gonçalves, Telmo Gonçalves, Carla Martins e Rita Rola. Que não se escondam por detrás da sigla. Que sejam lembrados, não por actos de coragem regulatória, mas pela sua indigência matemática e pela complacência com o inaceitável. O seu legado está agora cravado numa operação aritmética que nem o acaso conseguiria fabricar. Que se saiba, no futuro, quem foram estes lamentáveis rostos de uma soma impossível.
Depois de cinco meses a solicitar, sem êxito, provas da execução de mais de duas dezenas de contratos por ajuste directo – envolvendo sociedades de advogados e consultoras – o PÁGINA UM deu entrada hoje, no Tribunal Administrativo de Lisboa, de um processo contra o Banco Português de Fomento (BPF) de intimação para prestação de informações e obtenção de documentos administrativos
Em causa está sobretudo a recusa reiterada desta instituição bancária em entregar documentação comprovativa da realização efectiva de serviços pagos com dinheiro público, num total que ultrapassa os 2,3 milhões de euros.
A recusa do BPF abrange também um contrato por ajuste directo no valor de 700 mil euros com a Universidade Católica Portuguesa, sobre o qual não se conhece o objecto concreto, nem se compreende, sequer, o destino das verbas, aparentando ser para pagar avenças a professores universitários como “observadores”, ignorando-se quem são, as razões da escolha e as suas tarefas em concreto. Parte substancial da documentação enviada pelo BPF encontra-se totalmente rasurada a negro, apagando inclusive nomes dos signatários dos contratos.
Desde Novembro do ano passado, o PÁGINA UM tem vindo a solicitar acesso, ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), a relatórios de execução, folhas de registo de trabalho, actas de reuniões, facturas, ordens de pagamento e recibos – em suma, quaisquer documentos que confirmem se os contratos foram ou não acompanhados de tarefas reais. No entanto, o banco público, então sob a presidência de Ana Carvalho – ex-mulher do actual ministro Pedro Duarte e actual administradora da Caixa Geral de Depósitos – limitou-se a protelar as respostas e, mais recentemente, a enviar documentos mutilados ou totalmente desprovidos de conteúdo útil.
A lista dos contratos celebrados entre finais de 2021 e Outubro de 2024 inclui a antiga sociedade do actual primeiro-ministro, Sousa Pinheiro & Montenegro, com um contrato de 100 mil euros, bem como três contratos com a sociedade SRS do irmão do Presidente da República, num total de cerca de 110 mil euros. Estão ainda referenciadas sociedades como a Sérvulo & Associados (dois contratos de 210 mil euros cada), a Vieira de Almeida & Associados (com contratos que ultrapassam 450 mil euros), Abreu & Associados, Cuatrecasas, Andrade de Matos, e consultoras como Deloitte e Ernst & Young.
Documentos em falta e outros mutilados: Tribunal Administrativo de Lisboa decidirá se é lícito o Banco Português de Fomento continuar a esconder informação pública.
Na base legal para os ajustes directos está a invocação de uma norma do Código dos Contratos Públicos, o qual tem sido interpretado de forma abusiva para justificar adjudicações sem qualquer concurso público, com argumentos baseados numa alegada “confiança subjectiva” ou “carácter eminentemente intelectual” dos serviços. O PÁGINA UM obteve documentos em que estas justificações surgem como meras fórmulas genéricas, onde não se identificam critérios objectivos ou qualquer avaliação comparativa.
Além disso, os contratos fornecidos surgem com nomes dos signatários riscados, incluindo o de Beatriz Freitas, CEO do BPF à data da assinatura do contrato com a sociedade de Luís Montenegro, o que viola frontalmente o princípio da transparência administrativa e o entendimento reiterado da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA). Diversos acórdãos do Tribunal Central Administrativo indicam claramente que, no acesso a documentos administrativos, não se aplica o Regulamento Geral de Protecção de Dados, sobretudo estando em causa nomes de titulares de cargos públicos no exercício das suas funções.
No caso do contrato de 700 mil euros com a Universidade Católica Portuguesa, celebrado em Fevereiro de 2024, o BPF limitou-se a enviar documentação rasurada e incompleta, não apresentando sequer o caderno de encargos, a proposta adjudicada ou os documentos comprovativos de qualquer consulta a outras instituições académicas. Esta é, aliás, a segunda vez que o PÁGINA UM tenta que o BPF envie a documentação. No ano passado, o Tribunal Administrativo de Lisboa concluiu, com base num extenso relatório de uma empresa informática contratada pela instituição bancária, que o e-mail do PÁGINA UM com o requerimento não chegara às mãos do BPF, apesar da existência de confirmação da recepção pelo servidor. Nessa linha, o PÁGINA UM viu-se obrigado a fazer novo requerimento, que acaba novamente no Tribunal Administrativo, desta vez sem qualquer dúvida sobre a sua recepção.
Até porque, no início deste mês, o BPF enviou cerca de meia centena de páginas relacionadas com este contrato que, ao invés de elucidarem, mais dúvidas causam, até porque adensam. Com efeito, nas cópias enviadas – e o PÁGINA UM requereu acesso aos originais –, há rasuras um pouco (e muito) por todo o lado, a começar pelo cabeçalho do contrato, onde o nome do dirigente do BPF e da Universidade Católica Portuguesa são ostensivamente apagados. Neste caso, ainda se consegue ler o resto, porque noutros documento tudo é apagado – ou, melhor dizendo, colorido a negro.
Sociedade de advogados onde Montenegro era sócio recebeu em finais de 2021 um ajuste directo de 100 mil euros do Banco Português de Fomento sem que tenham sido apresentadas provas de trabalho realizado.
Elucidativo da clara intenção de esconder informação relevante envolvendo dinheiros públicos encontra-se num e-mail remetido em 20 de Novembro de 2023 por alguém do BPF a alguém da Universidade Católica, cujos nomes foram rasurados, que começa com um “Caro” antes do nome do interlocutor ser apagado. Nesse e-mail, apresenta-se sucintamente a intenção do BPF de ser assessorado por “observadores” , referindo-se que, “em termos de remuneração: estamos a apontar para cerca de [riscado a negro]”. Na documentação por agora facultada ao PÁGINA UM, mutilada em várias páginas, incluindo actas, não se encontrou qualquer explicação plausível para a afectação do montante de 700 mil euros nem a lista de “observadores”, levantando dúvidas sobre a existência de uma rede informal de distribuição de avenças entre docentes universitários.
Este é a 25ª vez, em três anos, que o PÁGINA UM interpõe intimações no Tribunal Administrativo para a obtenção de informação recusada por entidades públicas, a esmagadora maioria das quais com decisões favoráveis, mesmo no caso em que o ‘antagonista’ foi o Conselho Superior da Magistratura, a Ordem dos Médicos ou o Instituto Superior Técnico. Porém, além dos custos e morosidade de alguns destes processos – por exemplo, um intentado em Dezembro de 2022 contra a Direcção-Geral da Saúde ainda não teve decisão de primeira instância –, acresce o facto de que, mesmo sob a ‘espada’ de uma sentença, existem dirigentes públicos que insistem em manipular documentos que têm obrigação de revelar.
N.D. Este e muitos outros processos judiciais do PÁGINA UM têm sido apoiados pelos leitores através do FUNDO JURÍDICO, que, neste momento, apresenta um défice.
Num tempo em que tantos projectos jornalísticos nascem com promessas e morrem com silêncios, ou agonizam em dívidas, atingir a marca dos dez milhões de visualizações — de leituras de notícias e outros conteúdos — seria, para qualquer órgão de comunicação social português, uma meta digna de registo.
Mas para um jornal independente como o PÁGINA UM — que desde o primeiro dia recusou publicidade institucional, subsídios estatais e favores travestidos de parcerias —, nascendo e crescendo em condições agrestes, este número tem outro peso: é o sinal claro de que é possível fazer jornalismo com qualidade, coragem e independência.
Mais relevante do que o total acumulado, que esta semana alcançámos, é o que os últimos meses revelam: nos últimos seis meses, o PÁGINA UM aproximou-se das 2,5 milhões de visualizações, o que traduz uma média mensal superior a 405 mil — um crescimento consolidado que não resulta de campanhas, virais ou algoritmos comprados, mas da força das notícias e da vasta panóplia de conteúdo e sobretudo da fidelidade dos leitores.
Esta tendência, cada vez mais evidente, surge sem o apoio de redes mediáticas, sem ecos forçados nem favores corporativos. Pelo contrário: o PÁGINA UM não se revê — nem nunca se reverá — num espírito corporativista e, por isso, acéfalo porque proteccionista. Denunciámos, por isso, más práticas, revelámos ocultações, enfrentámos o silêncio com factos e com a razão. E talvez por isso muitas das nossas notícias não tenham eco na chamada imprensa mainstream. Mas chegam, chegam cada vez mais, por mérito próprio, aos leitores, a um número cada vez maior de leitores.
E chegam por duas razões fundamentais: a qualidade — malgrado a persistente atitude dos reguladores, como a ERC e a CCPJ (que estoicamente compreendemos, porque também não temos sido meigos com as suas falhas)— e a coragem, que se materializa, por exemplo, nas mais de duas dezenas de intimações no Tribunal Administrativo de Lisboa para obrigar entidades públicas a cumprirem a lei e a fornecerem informação que legalmente deve ser pública.
Evolução mensal das visualizações do PÁGINA UM desde Dezembro de 2021. Fonte: Google Analytics.
No mercado nacional, em termos de projectos independentes, mesmo sem os recursos de financiamento que estes ostentam , o PÁGINA UM é o primus inter pares. Nenhum dos projectos independentes portugueses se equipara, embora vejamos tal como uma responsabilidade. E mesmo num plano internacional, a comparação ajuda a perceber a verdadeira relevância do que temos vindo a construir com uma redacção reduzida a dois jornalistas e um punhado de colaboradores em ‘regime cívico’.
Com cerca de 405 mil visualizações mensais entre Outubro do ano passado e o presente mês de Março, e dirigido sobretudo para uma população de pouco mais de 10 milhões de habitantes, o PÁGINA UM regista actualmente perto de 39 mil visualizações mensais por milhão de habitantes. Esta métrica, usada para comparar proporcionalmente o alcance dos meios em diferentes países, coloca o PÁGINA UM num patamar assinalável quando confrontado com projectos de jornalismo independente internacionais bem financiados e amplamente estruturados.
Por exemplo, o Correctiv, na Alemanha, ou o The Intercept Brasil, registam proporcionalmente pouco mais de 10 mil visualizações por milhão de habitantes. O The Tyee, no Canadá, mantém valores semelhantes. Já as duas grades referências europeias de jornalismo independente, o De Correspondent, nos Países Baixos, e o Mediapart, em França, situam-se num patamar superior (71 mil e 87 mil visualizações por milhão de habitantes, respectivamente), mas contam com equipas numerosas, financiamento estável e uma presença mediática consolidada nos seus países. O PÁGINA UM , pelo contrário, opera com recursos mínimos, sem subsídios nem publicidade, e conquista os seus leitores apenas com o que publica – e são os leitores que se disponibilizam de forma voluntária a apoiar (ou não) financeiramente este projecto. Para que possam continuar e ler e permitir que outros (com menos posses) posam também ler.
Ou seja, o PÁGINA UM não impõe subscrições nem oferece brindes. Vive do que vale, não do que exige — e isso é, no fundo, o único willingness to pay que merece esse nome.”
Sabemos que os 10 milhões de visualizações são apenas um número. Mas contêm dentro de si milhares de gestos de confiança, de partilha, de leitura atenta. São, acima de tudo, a prova de que há espaço — e sede — para um jornalismo diferente. Sem rede. Mas com vértebra.
Obrigado por esta marca. Continuaremos a honrá-la com o que sabemos fazer: jornalismo.
Vivemos tempos em que a liberdade de expressão — tantas vezes evocada como bandeira democrática — é posta à prova não por regimes autoritários, mas pelos próprios cidadãos e instituições que, teoricamente, a deveriam defender com unhas e dentes. A recente entrevista conduzida por José Rodrigues dos Santos (JRS) ao secretário-geral do PCP, Paulo Raimundo, transmitida na RTP, reacendeu uma dessas fogueiras mediáticas em que o zelo pela liberdade rapidamente se transforma em zelo pela censura. E por isso, com plena consciência da sua impopularidade, este editorial surge como uma carta em defesa das entrevistas, mesmo que parvas — e em defesa, sim, das entrevistas conduzidas por José Rodrigues dos Santos.
Comecemos pelo princípio: o jornalismo é uma actividade que vive da articulação entre a independência profissional dos seus actores — os jornalistas —, a orientação geral dos seus órgãos — através da direcção editorial —, e os compromissos deontológicos e éticos que os norteiam. Acresce ainda, no caso da RTP, o ónus maior do serviço público, que deveria guiar cada decisão editorial com redobrada responsabilidade e compromisso com os cidadãos. Este triângulo de forças — independência, orientação editorial e serviço público — é não só legítimo como necessário à saúde da Democracia. E é precisamente por isto que devemos rejeitar de forma veemente todas as tentativas de sanção institucional a jornalistas pelo conteúdo das suas entrevistas, por mais infelizes, enviesadas ou absurdas que possam ser.
Numa entrevista sobre as legislativas, Paulo Raimundo (à direita), secretário-geral do PCP, não conseguiu fugir das insistentes perguntas sobre a guerra da Ucrânia por parte de José Rodrigues dos Santos.
No caso vertente, é público e notório que a RTP decidiu, no âmbito da cobertura das eleições legislativas, realizar entrevistas aos líderes partidários. Também é claro que essa decisão editorial — legítima e até desejável num canal público — envolveu a escolha de um jornalista para esse trabalho. A escolha recaiu sobre José Rodrigues dos Santos. Independentemente da opinião que cada um tenha sobre o estilo ou o historial de JRS, esta escolha foi assumidamente editorial. Não foi improvisada. E é aqui que entra a responsabilidade da direcção de informação da RTP: se a entrevista correu mal — e há boas razões para considerar que correu —, então é à direcção editorial que se deve apontar o dedo, não à figura do jornalista como bode expiatório mediático.
Quem viu a entrevista a Paulo Raimundo assistiu a um espectáculo insólito: a totalidade do tempo foi consumida num único tema — a guerra da Ucrânia —, tema que, embora relevante, dificilmente se justifica como o exclusivo numa entrevista a um secretário-geral partidário às portas de uma eleição. José Rodrigues dos Santos interrompeu, impôs leituras, tentou empurrar o entrevistado para armadilhas retóricas. Foi uma entrevista mal conduzida, desequilibrada, até manipuladora. Um péssimo exemplo de jornalismo — esta é a minha opinião, tão legítima quanto a de outra qualquer pessoa que possa considerar o oposto.
Mas mesmo admitindo que a entrevista conduzida por José Rodrigues dos Santos é um péssimo exemplo de jornalismo, permanece jornalismo. E por isso deve ser julgado como tal: com critérios internos, por pares, e não com a espada de reguladores que deviam permanecer silenciosos quando se trata de decisões editoriais legítimas, mesmo quando desastradas.
Nesta linha, é absurdo — e perigoso — recorrer à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) ou à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) para avaliar se um jornalista agiu bem ou mal numa entrevista. Aliás, basta recordar uma lamentável (e até mesmo errada) deliberação da ERC por causa de uma outra entrevista de JRS no ano passado à agora eurodeputada Marta Temido. A acção de um jornalista, mesmo quando desajustada ou provocadora, está no domínio editorial e profissional, não regulatório.
No ano passado, Marta Temido não apreciou uma entrevista de José Rodrigues dos Santos e despediu-se com acrimónia. A ERC achou por bem emitir uma deliberação, ainda por cima com erros de transcrição.
A missão da ERC e da CCPJ não é avaliar se uma entrevista tem qualidade ou se um jornalista foi correcto: a sua função é garantir o cumprimento de princípios estruturais, como a liberdade de imprensa e a não-discriminação, e assegurar que o exercício do jornalismo decorre dentro da legalidade. Não deve nem pode avaliar jornalistas. Avaliar perguntas, estilo ou pertinência de temas numa entrevista não é, nem nunca poderá ser, missão de qualquer regulador. É missão da crítica, dos pares e, sobretudo, do público.
Aquilo que se impõe, portanto, é o funcionamento de mecanismos internos de crítica e responsabilização — nomeadamente o Provedor do Telespectador e o Conselho de Redacção, que na RTP existe e deve ter um papel activo — e a mobilização do cidadão como agente crítico. O cidadão atento deve exigir da RTP responsabilidade editorial, deve manifestar-se junto da direcção de informação (cujos contactos deveriam ser públicos e acessíveis) e, acima de tudo, deve usar o seu comando de televisão como instrumento de protesto. Quem não tolera o estilo inquisitório de JRS pode — e deve — mudar de canal. O zapping é uma das formas mais poderosas de regulação numa sociedade livre.
Há, pois, uma lição a tirar desta polémica: entrevistas parvas são, antes de mais, entrevistas. Não são crimes, não são delitos de opinião, não são transgressões que exijam a intervenção de polícias do pensamento. São, quando muito, actos jornalísticos falhados. E como todos os actos falhados, devem ser corrigidos por quem os propõe, e não por quem vigia. Devem merecer crítica severa — como esta —, mas nunca punição institucional.
Se permitirmos que reguladores ou organismos administrativos se imiscuam nas decisões editoriais e nos conteúdos de entrevistas, abrimos a porta a algo mais grave: o controle político do jornalismo. E isso é o princípio do fim do jornalismo livre. O erro de um jornalista não pode ser tratado como um delito; deve ser discutido como um erro, revisto como um erro, exposto como um erro. Mas nunca silenciado como um crime.
Em defesa, pois, das entrevistas — mesmo que parvas. E em defesa de José Rodrigues dos Santos, não pelo que fez, mas pelo que representa: o direito de um jornalista errar sem que o Estado o puna por isso. A liberdade de imprensa vive também do direito à má imprensa. Defender a liberdade é aceitar os erros, não aniquilar os que os cometem.