Autor: Pedro Almeida Vieira

  • A cunha como instituição

    A cunha como instituição

    Título

    Salazar confidencial

    Autor

    MARCO ALVES

    Editora (Edição)

    Ideias de Ler (Maio de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Os documentos históricos têm uma enorme virtude para os investigadores, em comparação com a actualidade (objecto dos jornalistas): enquanto na actualidade, o poder tende a esconder e a manipular, depois da sua ‘queda’, tudo aquilo que se fixou no crivo obscurantista e manipulatório, e se não foi destruído, passa a ser matéria útil para caracterizar o passado. À posteriori, é certo.

    Por isto, fazer História, aparentando ser mais fácil porque baseado em documentos, nem assim revela(rá) toda a verdade. Por exemplo, daqui a uns anos podemos continuar sem saber se o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa fez ou não a ‘ponte’ – leia-se, cunha – entre o seu filho, o doutor Nuno, e o Ministério da Saúde para se usar um medicamento de dois milhões de euros em gémeas luso-brasileiras. Ora porque se destruíram provas que confirmariam para a posteridade quer porque se manipularam provas para desmentir a realidade.

    O mesmo se aplicará, por exemplo, à pandemia da covid-19, que curiosamente foi um tema muito abordado por Marco Alves, autor deste Salazar confidencial. Enquanto como investigador andava ele na Torre do Tombo a ler os calhamaços que a queda do Estado Novo lhe (nos) deixou, zurzia em simultâneo, como jornalista, naqueles que procuravam obter informação, questionar o Poder e propor medidas racionais de gestão da Saúde Pública. 

    Esqueceu Marco Alves, neste período, que apesar de serem tarefas muito distintas, tanto jornalistas como historiadores ‘amassam’ a mesma farinha – os factos –, apenas em períodos diferentes, mas onde ‘cohabitam’ duas características essenciais: a curiosidade e a desconfiança, que os obrigaria a conferir supostos factos, questionando a sua veracidade. Aliás, a História tem mostrado que os ‘factos’ na actualidade podem ser bem diferentes dos ‘factos’ na realidade, por causa da influência do Poder.

    Mas esqueçamos as ‘obras’ do jornalista Marco Alves, repórter da revista Sábado, que, disparatando, disparava a palavra ‘chalupa’ a qualquer um que questionasse a ‘narrativa oficial’, como o cão de Pavlov salivava a cada pedaço de carne, e dediquemo-nos ao seu objecto de interesse histórico, que deu neste livro: as cunhas no Estado Novo, tendo como óbvia figura central António de Oliveira Salazar. E podemos já adiantar que se saiu ele muitíssimo melhor como historiador do Estado Novo do que como jornalista da pandemia, o que convenhamos não seria difícil perante a fraca figura que nos ofereceu entre artigos e comentários nas redes sociais durante os dois primeiros anos da crise sanitária em 2021 e 2022. A História o julgará; não propriamente a ele, mas ao jornalismo.

    Passemos à frente.

    A figura de Salazar, como ditador é, convenhamos apetecível para qualquer historiador por várias razões, mas nem tanto por ter estado no poder tanto tempo: 36 anos. Se formos por aí, houve portugueses no poder com maior duração e com um domínio ainda mais absoluto: os reis D. João I (48 anos), D. Afonso Henriques (46 anos), D. Dinis (43 anos), D. João V (43 anos), Afonso V (42 anos) e D. Maria I (39 anos, embora grande parte dos quais sob regência do filho D. João VI). Mas naquelas épocas não se escrevia tanto, não se expunha tanto, e destruía-se muito mais. 

    Por isso, Salazar é um ‘objecto’ histórico apetecível sobretudo por ser um governante que, além de ser ditador ‘contemporâneo’, “recebia, aliás, correspondência sobre todos os assuntos, o que só era possível numa sociedade fortemente reverencial, hierarquizada e pequena, onde o presidente do Conselho ocupava o lugar cimeiro, incontestado, temido e ao mesmo tempo próximo e paternal”, como bem salienta Marco Alves (pg. 59).

    Ora, é exactamente por isso – por haver extensíssima correspondência, nunca destruída – que Marco Silva, tal como outros jornalistas e investigadores, possuem hoje matéria-prima riquíssima para contar detalhes mais ou menos picarescos sobre uma das principais ‘instituições’ lusitanas, que está longe de ser um exclusivo do salazarismo (antes fosse): a cunha, que inclui favorecimentos e outras ajudas por quem está no centro do poder, e que é tanto mais intenso quanto mais afastado nos encontramos da democracia (plena).

    Usando assim o ‘espólio’ de 2.466 processos individuais, onde se destacavam cartas, relatórios, currículos e fotografias, Marco Alves relata profusamente casos singulares que, se cometidos hoje (e revelados) dariam pena de prisão, onde se salientam episódios de peculato de uso, de pequenas ofertas (que poderiam ser agora classificadas de corrupção), de casos de infidelidade, de ‘jobs for the boys’, de favorecimentos, de veneração para obtenção de favores, etc., etc., etc..

    Ao longo das páginas, os casos são muitos, talvez demasiados – e se o objectivo principal era mostrar um Salazar ao estilo de um frei Tomás (‘bem prega frei Tomás, olha para o que ele diz, não olhes para o que ele faz’), Marco Alves mais do que nos convence; comprova. Desde logo na introdução, quando refere que cerca de seis mil pessoas escreveram ao governante desde que entrou em funções públicas, como ministro das Finanças em 1928, até à queda da cadeira em 1968.

    O livro de Marco Alves, como documento – e elogia-se o seu trabalho de investigação, bem protegido nas ‘catacumbas’ da Torre do Tombo durante os dois primeiros anos da pandemia – está mais próximo de um estilo de História, até pelos detalhes das transcrições das cartas e pelos pormenores cronológicos, com datas e horas precisas.

    Pessoalmente, talvez preferisse – e porventura teria ele mais leitores – que Marco Alves tivesse optado por uma selecção de casos exemplares, e os usasse como crónicas. Há ali uma boa trintena de casos apetecíveis que, em cada um, daria até para outros tantos romances. E haverá, como já houve muitos sobre uma personagem histórica muito similar a Salazar: o marquês de Pombal.

    Em suma, Marco Alves deveria dedicar-se mais à investigação histórica, e menos a assuntos de Ciência (que mostrou nunca saber dominar), até porque sobre assuntos do passado (ou seja, em temas não actuais) ele até demonstra capacidade de isenção, de rigor e de honestidade. Neste Salazar confidencial não se vislumbra, como deve sempre fazer um historiador (e um jornalista), qualquer tipo de ‘ideologite’, e por isso esta obra consegue apresentar-nos a figura de Salazar como era perante o povo e como este (infelizmente, diremos agora) então o via: “seu dono e senhor, como uma figura tutelar, acima dos outros, que tanto podia ser um pai, um chefe, um mestre, ou o próprio Deus”.

  • PÁGINA UM: dois anos de jornalismo independente

    PÁGINA UM: dois anos de jornalismo independente


    Sem publicidade, sem parcerias comerciais, de acesso livre, apenas com o apoio dos leitores e com um jornalismo incisivo, incómodo e independente, com rigor, sem mesuras e reverências. Esta tem sido a linha condutora do PÁGINA UM desde o seu nascimento em 21 de Dezembro de 2021.

    Quase duas mil notícias, artigos de opinião, entrevistas e outros textos em apenas dois anos com um pequeno mas bom punhado de jornalistas e outros colaboradores. É obra, mas é obra porque ainda não finalizada, e por isso é para continuar. E continuaremos. Para os leitores, e pelos leitores.

    Farei ao final da tarde uma melhor avaliação daquilo que foram estes dois anos de PÁGINA UM, e aquilo que se perspectiva para os seguintes. Isto porque, entretanto, tenho outros afazeres neste dia, ossos do ofício, como o de ir ao Forte do Alto do Duque, à PSP, pela tarde, prestar declarações (ou nada acrescentar) a pretexto de uma queixa de Sua Excelência o Chefe de Estado Maior da Armada Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo, que acha que o jornalismo, com base em documentos, não pode dizer que ‘mercadejou’ vacinas com a Ordem dos Médicos para se administrar em médicos não-prioritários, contra as normas em vigor e sem competências para tal, pouco depois de assumir o cargo de coordenador da task force, em Fevereiro de 2021.

    Mais do que parabéns ao PÁGINA UM, estão de parabéns os leitores que valorizam o jornalismo independente.

  • Global Media & José Paulo Fafe, ou o pedantismo da caloteira imprensa

    Global Media & José Paulo Fafe, ou o pedantismo da caloteira imprensa


    O ex-jornalista José Paulo Fafe, alcandorado a “testa de platina” de um fundo das Bahamas – do qual o único rosto conhecido, sob a forma de “beneficiário efectivo”, é um francês que vive da especulação financeira – que controla a Global Media, mimoseou-me numa entrevista de ontem no Eco, identificando-me como “um tipo de um site”, apenas porque, enfim, fui o primeiro jornalista a identificar que a proprietária do Jornal de Notícias e do Diário de Notícias deve 10 milhões de euros ao Estado, a escalpelizar o World Opportunity Fund e o senhor Clement Ducasse, a relevar os calotes à Lusa, a destacar os estranhos movimentos financeiros da Páginas Civilizadas, e a falar até das relações entre o antigo director do jornal Tal & Qual e a Páginas Civilizadas.

    Enfim, para Fafe, eu sou “um tipo de um site” – ou melhor, diz ele que “há aí um tipo de um site” –, porque destaco, incomodo e atrapalho negócios obscuros que, ao longo dos anos, inexoravelmente tornaram dois centenários jornais em decrépitas publicações, que obrigam os trabalhadores até a irem pedinchar não sei bem já o quê ao gabinete do ministro da Cultura de um governo demissionário.

    José Paulo Fafe, CEO da Global Media e ex-gerente da Parem as Máquinas.

    Enfim, para Fafe, eu sou “um tipo de um site”, porque sou um jornalista independente.

    Tem Fafe mais oito anos do que eu, o que lhe dará mais vida e um certo estatuto, podendo isso dar-lhe o benefício da arrogância. E, por regra, a arrogância vem com a petulância, mais grave ainda se acompanhada de calotes.

    Ora, José Paulo Fafe deveria ser o último dos administradores de uma empresa de media, e ainda mais sendo ele antigo jornalista, a desrespeitar um jornalista chamando-o “um tipo de um site”. Se um jornalista como eu – que esteve em órgãos de comunicação social onde ele até também passou (e.g. Grande Reportagem e Expresso) – pode ser por ele tratado por “um tipo de um site”, como podem os seus agora ‘subordinados’ da Global Media, muitos dos quais jornalistas, esperar respeito?

    Eu até compreendo – se bem que a coloque ao nível dos crápulas – a postura de José Paulo Fafe, e a sua estratégia de descredibilizar o PÁGINA UM, para assim minimizar ‘estragos’. Afinal, o PÁGINA UM é ‘apenas’ um jornal digital que se assumiu independente, e por isso não faz fretes, não tem publicidade nem parcerias comerciais… nem dívidas. Vive da qualidade que os leitores lhe atribuem, ainda mais sabendo-se que o acesso é livre.

    Trecho da entrevista ao ECO onde José Paulo Fafe se refere a mim como “há aí um tipo de um site”

    O PÁGINA UM vai terminar o seu segundo ano de existência com zero dívidas e sem prejuízo, porque a ideia sempre foi ser apenas aquilo que os leitores acharem que pode ou deve ser este projecto jornalístico. Costumo, aliás, dizer que, tendo ambas as empresas o mesmo capital social (10 mil euros), aquilo que mais se diferencia entre o Página Um Lda. (empresa gestora do PÁGINA UM) e a Trust in News Unipessoal (a dona da Visão e de outros 16 títulos) é um passivo de 27,2 milhões de euros.

    Seria apenas risível, se não fosse grave, ver um projecto editorial da natureza do PÁGINA UM ser desprezado por um ex-jornalista agora CEO de uma empresa que acumulou dívidas de 42 milhões de euros entre 2017 e 2022, que tinha no final do ano passado um passivo de quase 55 milhões de euros, dos quais 10 milhões ao Estado, e que ‘vampirizou’ os seus activos, ao ponto de aquele que contabilisticamente aparenta ter mais valor (um goodwill de quase 30,6 milhões de euros) ser afinal ‘fumo’, é nada.

    Mas Fafe nem sequer sabe olhar para o umbigo, ou então conseguiu ‘vender-se’ muito bem ao especulador Ducasse. Com efeito, José Paulo Fafe, antes da sua ‘aventura’ – que temo venha a ser desventura – na Global Media, estava a dirigir o jornal Tal & Qual (que é um título registado pela Global Media), através da empresa Parem as Máquinas, Edições e Jornalismo, Lda.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    Até à sua saída em Outubro do Tal & Qual, Fafe detinha 80% do capital desta empresa de apenas 5.000 euros, quer a título pessoal (70%) quer através de uma empresa por si detida denominada Pressco (10%). Corrijo: na verdade, a Pressco é detida pela Fernandes Fafe Consultoria Estratégica Unipessoal, mas para quem pense que Fafe é um Citizen Kane escondido, desengane-se.

    Na verdade, tanto uma como outra das suas empresas tem um capital social de 1.000 euros. E acrescento também, para justificar a pesquisa, que a Pressco já tem capitais próprios negativos (-4.136,03 euros) e passivo de quase 55 mil euros, enquanto a sua empresa unipessoal sempre tem capital próprio positivo (pouco mais de sete mil euros), mas segue já com um passivo de 67.415,69 euros.

    Mas vejamos se José Paulo Fafe – o CEO da Global Media, que quer endireitar uma empresa de media ‘limpando’ mais 200 trabalhadores, enquanto menospreza um jornalista com um jornal independente sem dívidas titulando-o de “um tipo de um site” – é ou não um ‘Mourinho dos Media’, com direito e autoridade para chamar nomes a jornalistas.

    Parem então já as máquinas para verem a performance da empresa Parem as Máquinas Lda, em 2022, quando José Paulo Fafe era não apenas seu gerente mas também director do periódico Tal & Qual, antes da sua entrada arrogante e pedante na Global Media com direito a tratar-me por “um tipo de um site”. Pois bem: resultado líquido negativo – leia-se, prejuízo – de 147.008,32 euros, um capital próprio negativo de 134.027,32 euros (falência técnica), dívidas aos fornecedores de 121.121,78 euros, mais dívidas de financiamentos de 130.569,61 euros, que compunham um passivo total de 334.283,10 euros.

    O francês Clement Ducasse é o beneficiário efectivo do fundo das Bahamas que controla agora a Global Media, mas não se sabe quem são os financiadores.

    Nada mau, Fafe, para uma empresa onde investiste 4.000 euros…

    E és tu que tens nas mãos, ou na testa, os destinos de um grupo de media… Desgraçados pela ‘amostra’ de pedantismo.

    E depois “há aí um tipo de um site”… a dizer verdades inconvenientes, não é?

    Pedantismo e água benta cada um toma a que quer. Mas água benta eu até suporto; pedantismo é que não; e ainda mais se vier com calotes.


    P.S. E já agora, convinha à empresa Parem as Máquinas Lda. fazer a declaração das demonstrações financeiras no Portal da Transparência dos Media, da ERC, que estão em falta desde sempre. Se calhar é para esconder a vergonha.

  • Ucrânia & Escola Pública & Argentina de Milei

    Ucrânia & Escola Pública & Argentina de Milei


    Com moderação de Pedro Almeida Vieira, o quinto episódio de O Estrago da Nação põe em confronto a visão de esquerda do Tiago Franco com a visão libertária do Luís Gomes. Hoje, analisa-se o imbróglio da guerra na Ucrânia (tema indicado pelo Tiago), a Escola Pública e o desempenho escolar dos jovens portugueses (tema indicado pelo Luís) e os primeiros passos de Javier Milei como empossado novo presidente da Argentina (tema-surpresa indicado pelo Pedro).

    Acesso: LIVRE, Acesso: LIVRE, mas subscreva o P1 PODCAST com um donativo mensal de 2,99 euros. Ajude o PÁGINA UM a amplificar o seu trabalho.

  • Rua da Prata: Tecnovia fez todas as obras sem contrato

    Rua da Prata: Tecnovia fez todas as obras sem contrato


    Corria o dia 16 de Dezembro, e passava poucos minutos do meio-dia, surgiu a indicação de um buraco junto a um passeio da Rua da Prata, na Baixa de Lisboa. Depois viu-se que afinal era mais grave; que o colector de águas pluviais, antigo desde a época do Marquês de Pombal, estava em colapso entre a Rua Vitória e a Rua de São Nicolau. Fechou-se a via e começaram as obras, que se ‘eternizaram’ por um ano, sem muito mais se saber do que um anúncio recente de restringir o tráfego rodoviário depois da reparação do colector.

    Porém, o mais surpreendente é que os dias foram passando, e somente no mês de Setembro a autarquia liderada por Carlos Moedas decidiu, quando as obras já iam avançadas, começar a pensar na elaboração do contrato com a Tecnovia, a empresa rapidamente escolhida para uma intervenção imediata, enviando-lhe então o convite para que se formalizasse a empreitada. Setembro passou. Outubro também. Novembro idem. E só já depois das obras concluídas, depois da reabertura da Rua da Prata concretizada, e anunciada em definitivo a ‘pedonalização’ das vias, a autarquia de Lisboa e a Tecnovia acharam por bem assinar o contratos da obra feita. E dando-lhe efeitos reatroactivos.

    16 de Dezembro de 2022, Rua da Prata: quem olhasse para o abatimento não imaginaria que 12 meses depois houvesse uma factura para pagar de 1,5 milhões de euros numa obra que decorreu sem contrato em vigor.

    De facto, e contrariando o espírito e mesmo a legalidade do Código dos Contratos Públicos, somente anteontem, dia 11, a autarquia de Lisboa e a Tecnovia assinaram o contrato de uma obra que já fora executada e que apenas agora se sabe o valor final: 1.502.126,11 euros. Ora, o contrato estipula que “o prazo de execução da presente empreitada é de 355 (trezentos e cinquenta e cinco) dias, contados à data da consignação da obra em 19 de Dezembro de 2022”, ou seja, a execução do contrato ocorreu no dia anterior à sua assinatura. E salienta também que um milhão de euros será pago ainda este ano e a parte remanescente, cerca de meio milhão de euros, ficará para o próximo ano.

    Para justificar a assinatura de um contrato depois das obras finalizadas, numa das cláusulas alegou-se a “eficácia retroativa” – ou seja, a aplicação de algo já executado antes – invocando uma norma de excepção do Código dos Contratos Públicos, que prevê que “as partes podem atribuir eficácia retroactiva ao contrato quando exigências imperiosas de direito público o justifiquem, desde que a produção antecipada de efeitos não seja proibida por lei, não lese direitos e interesses legalmente protegidos de terceiros e não impeça, restrinja ou falseie a concorrência garantida pelo disposto no presente Código relativamente à formação do contrato”.

    A forma irregular, e de legalidade muito duvidosa, em que decorreram as obras adjudicadas pela autarquia fica patente no facto de a própria placa com a identificação da empreitada nunca ter tido a identificação do prazo de execução nem do valor da empreitada. Ou seja, se as obras da Rua da Prata se tivessem transformado numas novas obras de Santa Engrácia, a Tecnovia poderia ‘sair de mansinho’ sem quaisquer responsabilidades legais.

    Ajuste directo sem contrato enquanto as obras decorrem, sem prazo de execução e sem preço definido: um paraíso para o empreiteiro; uma factura que poderá ser pesada para uma entidade pública.

    Ou seja, podendo ser invocada a urgência, a inexistência de contrato ao longo de toda a duração da obra – sem que estivessem sequer salvaguardadas eventuais indemnizações e responsabilidades entre as partes, até em relação a terceiros – mostra-se de legalidade muito duvidosa, que será agora dirimida pelo Tribunal de Contas que ainda vai ter de dar o visto.

    Mesmo não desejando abordar em concreto a empreitada da Rua da Prata, Paulo Morais, professor universitário e ex-vice-presidente da Câmara Municipal do Porto, salienta que, por regra, o ajuste directo para solucionar intervenções desta natureza são justificáveis, mas apenas para o início das obras, “para uma estabilização do problema”, não devendo resultar numa ‘luz verde’ para adjudicações de toda a obra, que deveria merecer um concurso público.

    “Não parece aceitável que um contrato seja assinado depois da obra concluída”, defende Paulo Morais, acrescentando ser “expectável que, perante uma obra urgente, o contrato possa demorar algumas semanas até ser assinado, até para salvaguarda das partes, mas já foge do espírito do Código se aparece depois das obras concluídas”.

    Uma outra questão relevante, com incidência legal, sobre este ajuste directo prende-se com a escolha da Tecnovia pela autarquia de Carlos Moedas, que terá sido escolhida antes mesmo de se ter uma ideia precisa sobre a dimensão da obra. De acordo com o Código dos Contratos Públicos “não podem ser convidadas a apresentar propostas, entidades às quais a entidade adjudicante [neste caso, o município de Lisboa] já tenha adjudicado, no ano económico em curso e nos dois anos económicos anteriores (…) propostas para a celebração de contratos cujo preço contratual acumulado seja igual ou superior” a 30.000 euros, no caso de empreitadas de obras públicas.

    Ora, ao longo deste ano, a Câmara Municipal de Lisboa fez mais oito ajustes directos com a Tecnovia para pequenas intervenções que totalizaram 88.559 euros (sem IVA), das quais se destaca a estabilização urgente de terrenos na Rua da Cruz a Alcântara, junto à Avenida de Ceuta, contratualizada em Setembro passado por 54.210 euros.

    Mas no final do ano passado, o município de Carlos Moedas já adjudicara por ajuste directo outro ajuste directo por alegada “urgência imperiosa” para a reabilitação do Viaduto da Avenida Mouzinho de Albuquerque sobre a linha do Norte por um preço de 232.257 euros.

    Além destes contratos de ‘mão-beijada’ – em que se mantém sempre o mistério sobre quem ‘pega no telefone’ para entregar empreitadas a determinada empresa a serem pagas pelo erário público – a Tecnovia também obteve mais dois contratos mas por concurso público: um em Agosto passado para a “execução de obras prioritárias e urgentes de conservação e manutenção de obras de arte, no valor de 650.000 euros, e outro em Fevereiro do ano passado para diversas obras, também prioritárias e urgentes”, de conservação e manutenção de muros e vedações. Mas aí a Tecnovia teve de ‘fazer pela vida’, candidatar-se contra a concorrência, e fazer por merecer a adjudicação e os dinheiros públicos por justa retribuição de serviços prestados.

    O contrato entre o município de Lisboa e a Tecnovia integra o Boletim P1 da Contratação Pública e Ajustes Directos que agrega os contratos divulgados no dia 6 de Dezembro. Desde Setembro, o PÁGINA UM apresenta uma análise diária aos contratos publicados no dia anterior (independentemente da data da assinatura) no Portal Base. De segunda a sexta-feira, o PÁGINA UM faz uma leitura do Portal Base para revelar os principais contratos públicos, destacando sobretudo aqueles que foram assumidos por ajuste directo.

    PAV

    Nota: Fotos das obras, da autoria de Frederico Duarte Carvalho.


    Ontem, dia 12 de Dezembro, no Portal Base foram divulgados 884 contratos públicos, com preços entre os 19,95 euros – para aquisição de medicamentos, pelo Centro Hospitalar Tondela-Viseu, ao abrigo de acordo-quadro – e os 34.128.000,00 euros – para fornecimento de energia eléctrica, pelo Município de Lisboa, também ao abrigo de acordo-quadro.

    Com preço contratual acima de 500.000 euros, foram publicados 12 contratos, dos quais oito por concurso público, três ao abrigo de acordo-quadro e um por ajuste directo.

    Por ajuste directo, com preço contratual superior a 100.000 euros, foram publicados 17 contratos, pelas seguintes entidades adjudicantes: Município de Lisboa (com a Tecnovia – Sociedade de Empreitadas, no valor de 1.417.100,11 euros); seis do Hospital de Braga (um com a Siemens Healthcare, no valor de 462.600,00 euros, dois com a Johnson & Johnson, um no valor de 462.563,53 euros e outro no valor de 271.073,62 euros, outro com a Smith & Nephew, no valor de 329.501,28 euros, outro com a Medicinália Cormedica, no valor de 247.376,00 euros, e outro com a Boston Scientific Portugal, no valor de 112.644,00 euros); Centro Hospitalar Tondela-Viseu (com a Takeda – Farmacêuticos Portugal, no valor de 309.031,20 euros); Ministério da Defesa Nacional – Marinha (com a Leonardo MW LTD, no valor de 217.232,97 euros); dois da Rádio e Televisão de Portugal (um com a Avantools, no valor de 182.669,00 euros, e outro com a Vantec, no valor de 143.923,00 euros); Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia – Espinho (com a Luso Palex, no valor de 131.725,00 euros); Instituto de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (com a Multicert – Serviços de Certificação Electrónica, no valor de 130.000,00 euros); Hospital Garcia de Orta (com a Pharmakern Portugal, no valor de 127.500,00 euros); Infraestruturas de Portugal (com a SMA und Partner AG, no valor de 125.000,00 euros); Estado-Maior-General das Forças Armadas (com a Alpha C2, no valor de 117.204,05 euros); e o Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira (com a Sanofi, no valor de 103.998,48 euros).


    TOP 5 dos contratos públicos divulgados no dia 12 de Dezembro

    1 Fornecimento de energia eléctrica a instalações e escolas municipais

    Adjudicante: Município de Lisboa

    Adjudicatário: Iberdrola Clientes

    Preço contratual: 34.128.000,00 euros

    Tipo de procedimento: Ao abrigo de acordo-quadro (artº 259º)


    2Empreitada de beneficiação de troço em Castro Daire

    Adjudicante: Infraestruturas de Portugal

    Adjudicatário: Construções Carlos Pinho, Lda.       

    Preço contratual: 6.184.531,43 euros

    Tipo de procedimento: Concurso público


    3Empreitada designada “Unidade de Saúde Familiar do Parque das Nações”

    Adjudicante: Município de Lisboa

    Adjudicatário: Construções Corte Recto – Engenharia & Construção       

    Preço contratual: 5.983.365,97 euros

    Tipo de procedimento: Concurso público


    4Aquisição de serviços de viagens aéreas, alojamentos e serviços conexos, para um período de 36 meses

    Adjudicante: Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal

    Adjudicatário: Transalpino – Viagens e Turismo

    Preço contratual. 4.353.587,00 euros

    Tipo de procedimento: Concurso público


    5Reabilitação de bairro municipal em Sacavém – PRR

    Adjudicante: Município de Loures

    Adjudicatário: Wikibuild, S.A.

    Preço contratual: 3.498.659,56 euros

    Tipo de procedimento: Concurso público


    TOP 5 dos contratos públicos por ajuste directo divulgados no dia 12 de Dezembro

    1 Empreitada de execução de trabalhos urgentes no colector da Rua da Prata

    Adjudicante: Município de Lisboa

    Adjudicatário: Tecnovia – Sociedade de Empreitadas

    Preço contratual: 1.417.100,11 euros


    2Upgrade da Ressonância Magnética     

    Adjudicante: Hospital de Braga

    Adjudicatário: Siemens Healthcare

    Preço contratual: 462.600,00 euros


    3Aquisição de material de ortopedia

    Adjudicante: Hospital de Braga

    Adjudicatário: Johnson & Johnson   

    Preço contratual: 462.563,53 euros


    4Aquisição de material de consumo clínico diverso

    Adjudicante: Hospital de Braga

    Adjudicatário: Smith & Nephew

    Preço contratual: 329.501,28 euros


    5Aquisição de medicamentos

    Adjudicante: Centro Hospitalar Tondela-Viseu

    Adjudicatário: Takeda – Farmacêuticos Portugal     

    Preço contratual: 309.031,20 euros


    MAP

  • Transparência nos media: Polígrafo já mentiu à ERC duas vezes este ano… pelo menos

    Transparência nos media: Polígrafo já mentiu à ERC duas vezes este ano… pelo menos


    Em apenas um ano, a empresa Inevitável e Fundamental, proprietária do Polígrafo, teve de ir a correr alterar informação falsa no Portal da Transparência dos Media após o PÁGINA UM ter colocado dúvidas. No primeiro caso, o Polígrafo omitia que no ano passado o Facebook lhe entregara 96% das receitas; agora, o fundador deste ‘fact checker’, Fernando Esteves, teve de resolver se era o director apenas para a ERC e não para os leitores; ou se era director para todos ou se não era director de coisa nenhuma. De permeio ao acto de se reassumir como director, Fernando Esteves corrigiu também a sua biografia no site do Polígrafo: detinha informação desactualizada, logo falsa. E voltou, na quinta-feira passada, a fazer fact checking… 11 meses depois da última vez.


    Para se ser mesmo rigoroso – ainda mais por se tratar de um ‘verificador de factos’ –, tem mesmo de se dizer que este ano a empresa gestora do Polígrafo, o mais conhecido fact-checker de Portugal, já teve de corrigir pelo menos por duas vezes informação junto da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) depois de ser apanhada a mentir pelo PÁGINA UM.

    No passado mês de Junho, o PÁGINA UM já detectara que a empresa Inevitável e Fundamental, proprietária do Polígrafo – e que tem como sócios Fernando Esteves (60%) e N’Gunu Tiny (40%) – omitia no Portal da Transparência dos Media a sua dependência financeira, quase em exclusivo, da rede social Facebook ao longo do ano de 2022.

    selective focus photography of Pinocchio puppet

    Apesar de advogar a máxima transparência nos seus financiamentos, o Polígrafo nem sequer respondeu aos três pedidos de esclarecimento do PÁGINA UM, feitos em 14 de Junho, em 16 de Junho e em 19 de Junho, mas passado algumas semanas, foi corrigir a informação na ERC, indicando que, afinal, a empresa fundada por Mark Zuckerberg tinha disponibilizado cerca de 456 mil euros, representando 96% das receitas da Inevitável e Fundamental. A elevadíssima dependência financeira do Polígrafo perante o Facebook – um autêntico sugar daddy financeiro – coloca objectivamente em causa a sua credibilidade como órgão de comunicação social com uma linha editorial sem interferências externas.

    Ou seja, antes da intervenção do PÁGINA UM – que chegou a questionar a ERC para a execução da sua notícia publicada em 5 de Julho –, o Polígrafo não declarara em 2022 a existência de quaisquer clientes relevantes no seu registo no Portal da Transparência, que exige que sejam identificados os clientes que tenham representado mais de 10% dos rendimentos anuais e as entidades com direitos superiores a 10% do valor do passivo.

    Depois desta situação, uma nova mentira apanhada pelo PÁGINA UM acabou recentemente corrigida. O fundador do Polígrafo, o jornalista Fernando Esteves – que, na verdade, até deveria usar obrigatoriamente o nome profissional de Fernando Macedo Esteves, por ser esse o registo que consta na CCPJ – tinha deixado de constar como director desta publicação nos registos da ERC. Na Plataforma de Transparência dos Media passara a constar o nome da jornalista Sara Beatriz Monteiro, embora na ficha técnica do site do Polígrafo o director fosse Fernandes Esteves. Uma desconformidade; na verdade, uma ilegalidade.

    No passado dia 25 de Novembro, para a ERC, o director do Polígrafo era Sara Beatriz Monteiro, mas que não era para os leitores. Mas hoje, o director para a ERC e para os leitores já é Fernando Esteves.

    A indicação do nome de Sara Beatriz Monteiro no registo da ERC já tinha sido detectada em Agosto passado pelo PÁGINA UM, e mantinha-se ainda em 25 de Novembro, quando se revelou mais esta inverdade neste ‘verificador de factos’. Na altura, o perfil de Fernando Esteves no site do Polígrafo continha outra falsidade, indicando-o ainda como “Publisher da Media9, a empresa que detém o ‘Jornal Económico’ e o ‘Novo’, bem como as licenças de publicação das revistas ‘Forbes Portugal’ e ‘Forbes África Lusófona’”, cargo que já não ocupava.

    Ora, depois da notícia do PÁGINA UM, a Inevitável e Fundamental – a empresa detentora do Polígrafo, e desse modo a única entidade que pode alterar os registos – foi a correr à plataforma da ERC para repor a legalidade, atribuindo de novo o cargo de director editorial a Fernando Esteves.

    A falsidade do nome do responsável editorial não é apenas uma formalidade nem um detalhe, mesmo se estamos perante um verificador de factos que assume a Verdade como parte da sua genética. É uma obrigatoriedade da Lei da Imprensa.

    Além do jornal digital, o Polígrafo tem uma parceria semanal com a SIC.

    Saliente-se que a Lei da Imprensa concede uma grande relevância ao director de um órgão de comunicação social, concedendo-lhe competências na orientação e determinação dos conteúdos, na designação dos jornalistas com funções de chefia e coordenação, na representação do período (mesmo junto da administração ou gerência) e na presidência do conselho de redacção.

    Além desta correcção para eliminar uma mentira, Fernando Esteves – que já não mostrava ‘prova de vida’ sob a forma de letras desde Janeiro, mas que na quinta-feira passada decidiu escrever sobre o neuropediatra António Levy Gomes – aproveitou para também corrigir outra inverdade na sua nota biográfica: agora diz que a sua ligação à Media9 é afinal “desde Outubro de 2023 [apenas] enquanto Conselheiro Editorial”.

  • Global Media: após novas rescisões, restará 30% da ‘força de trabalho’ de 2018

    Global Media: após novas rescisões, restará 30% da ‘força de trabalho’ de 2018


    Com um novo accionista maioritário que mostra mais sinais de desinvestimento do que de investimento, a Global Media anunciou a intenção de despedir até 200 funcionários, o que fará diminuir a sua ‘força de trabalho’ para apenas cerca de 150 trabalhadores, Há cinco anos, a empresa empregava 553 pessoas, ou seja, reduzirá mais de dois terços dos seus quadros em pouco mais de cinco anos. Num cenário de prejuízos acumulados e até de aumento das dívidas ao Estado, o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias também revelam números que os colocam a caminho da extinção. O PÁGINA UM mostra como evoluíram nas últimas três décadas as vendas destes dois centenários títulos da imprensa portuguesa.


    As dificuldades de tesouraria, a falta de crédito bancário, a contínua perda de receitas com a quebra de vendas dos principais periódicos, o aumento das taxas de juro e as dívidas ao Estado estão a levar a Global Media cada vez mais próximo da derrocada económica. Nas contas do ano passado, aprovadas há cerca de cinco meses, a consultora PKF & Associados já avisava que “os prejuízos acumulados em exercícios anteriores, bem como o resultado líquido negativo obtido no exercício de 2022, colocam em causa a capacidade da Entidade [Global Media] para continuar a operar, caso os acionistas não tomem as medidas necessárias no sentido de dotar a Empresa dos meios financeiros adequados”.

    Daí para cá, apesar da nova entrada de um accionista relevante – o World Opportunity Fund –, não houve propriamente alterações relevantes para além da ‘dança de cadeiras’ na administração da Global Media. O fundo das Bahamas apenas comprou ao Grupo Bel de Marco Galinha a sua quota na Páginas Civilizadas – o accionista maioritário da Global Media –, mas sem qualquer reforço do capital. Ou seja, sem investimento e sem sinais de controlo do passivo, onde se destaca uma dívida de cerca de 10 milhões ao Estado.

    Paulo Lima de Carvalho, José Paulo Fafe e Diogo Agostinho, administradores da Global Media, no início do mês passado, no Palácio de Belém, com o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

    Pelo contrário, a situação financeira deteriorou-se com a subida das taxas de juro que previsivelmente ‘sufocará’ as contas do exercício de 2023. No ano passado, as taxas de juro estiveram sempre abaixo dos 2%, e mesmo assim a Global Media teve de suportar encargos de quase 900 mil euros para o serviço da dívida. Em 2023, com os juros acima dos 4%, esse valor poderá ultrapassar os dois milhões de euros, se os empréstimos antigos não tiverem sido contraídos a taxa fixa.

    O anúncio de despedimento de até 200 trabalhadores, já anunciado pelo CEO da Global Media, aparenta ser apenas a confirmação da caminhada para o abismo. A concretização deste volume de rescisões tem o simbolismo de transformar a Global Media numa média empresa, porque ficará apenas com cerca de 150 funcionários. Mas mostra sobretudo uma imparável ‘sangria’ da força de trabalho.

    Em 2018, antes ainda da entrada do empresário Marco Galinha e do seu Grupo Bel, a Global Media contava com 553 colaboradores, mas no ano passado o relatório e contas já indicava apenas 341. As rescisões previstas podem cortar para menos de metade este último número. E os que restarem são apenas 30% dos que havia em 2018.

    O francês Clement Ducasse é o beneficiário efectivo do World Opportunity Fund, um fundo das Bahamas, que controla agora a Global Media.

    A situação financeira da Global Media é crónica desde há vários anos, acumulando prejuízos pelo menos desde 2017. Antes da entrada de Marco Galinha na Global Media, a empresa já apresentava dificuldades de liquidez, sendo necessário recorrer a “alguns bancos” para obtenção de “financiamentos que permitem assegurar o desenvolvimento normal das suas operações”, como se salientava no Relatório e Contas de 2018. As rescisões acompanharam a queda das receitas e também da circulação dos dois principais títulos. Assim, se em 2018 as vendas e serviços prestados ainda atingiram os 40,3 milhões de euros, em 2022 alcançaram apenas os 28,6 milhões de euros.

    Ignora-se ainda se a saída das revistas Volta ao Mundo e Evasões da esfera da Global Media terão também algum impacte ao nível do seu número de trabalhadores. Com efeito, a entrada do World Opportunity Fund como sócia maioritária da Páginas Civilizadas – a principal accionista da Global Media –, resultou também num ‘rearranjo’ da propriedade de alguns dos títulos.

    As duas revistas de viagens Volta ao Mundo e Evasões passaram, conforme já se confirma no Portal da Transparência dos Media, da posse da Global Media para a Palavras de Prestígio, uma empresa 100% detida por Marco Galinha (através do Grupo Bel) e que detém uma posição muito minoritária (10%) na Páginas Civilizadas. Em todo o caso, aparentemente as revistas continuam a ser produzidas pelos jornalistas e outros colaboradores da Global Media.

    Manifestação de trabalhadores do Jornal de Notícias na quarta-feira passada. Foto: PCP Porto.

    Com as novas rescisões, a intenção da administração da Global Media, agora liderada por José Paulo Fafe – indicado pelo fundo das Bahamas – será reduzir drasticamente a folha salarial. No ano passado, os custos com pessoal foram de 13,8 milhões de euros, o que significa a necessidade de um ‘fundo de maneio’ de cerca de um milhão em cada mês só para gastos de pessoal, a que acrescem os subsídios de férias e de Natal de igual montante.

    No entanto, reduzir custos salariais e diminuir despesas de serviços externos não parece ser uma solução com resultados extraordinários no passado, sobretudo porque as empresas de comunicação social vivem do ‘capital humano’. Por exemplo, face a 2018, o ano de 2022 teve menos cerca de 9,8 milhões de euros em gastos com pessoal e menos nove milhões de euros em fornecimentos e serviços externos, mas também registou uma queda significativa nas vendas e serviços: passando de 40,3 milhões para 28,6 milhões de euros. Ou seja, melhorou alguma coisa, mas as contas continuam no vermelho.

    O desinvestimento em pessoal, com repercussões na qualidade e credibilidade do produto jornalístico, explicará em parte a quebra de circulação dos dois principais órgãos de comunicação social da Global Media: o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias.

    Evolução do somatório das vendas em jornal impresso e das assinaturas digitais do Jornal de Notícias desde 1994 até ao terceiro trimestre de 2023. As assinaturas digitais começaram em 2011. Fonte: APCT.

    Com vendas diárias inferiores a 20 mil exemplares impressos – e apenas cerca de três mil assinaturas digitais, de acordo com os mais recentes dados trimestrais da Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação (APCT) –, o Jornal de Notícias é hoje uma pálida imagem daquilo que foi até 2012.

    Nas últimas décadas, o matutino sedeado no Porto teve a sua ‘época de ouro’ nos anos 90 e primeira década do século XXI. As vendas diárias chegaram a ultrapassar em largos períodos os 100 mil exemplares. Porém, a partir de 2012, as quedas das vendas têm sido imparáveis, apresentando uma tendência que não mostra sinais de inversão.

    Ainda em pior estado se encontra hoje o Diário de Notícias, que vende agora menos do que alguns jornais regionais, incluindo o seu congénere da Madeira. Os mais recentes dados trimestrais da APCT, ao período entre Julho e Setembro, indicam vendas de 1.176 exemplares impressos, a que acrescem mais 1.439 assinaturas digirais.

    Evolução do somatório das vendas em jornal impresso e das assinaturas digitais do Diário de Notícias desde 1994 até ao terceiro trimestre de 2023. As assinaturas digitais começaram em 2012. Fonte: APCT.

    As vendas em papel no início de 2017 ainda estavam acima dos 10 mil, e mesmo assim já se situavam bastante abaixo dos valores do início da segunda década do presente século. Por exemplo, no terceiro trimestre de 2011, quando ainda não existiam assinaturas digitais, o Diário de Notícias ainda vendeu mais de 43 mil exemplares por dia. E longe vai o segundo trimestre do ano 2000, período em que o Diário de Notícias chegou a um ‘pico’ de mais de 80 mil exemplares vendidos por dia.

    Recorde-se que entre o Verão de 2018 e Dezembro de 2020, o Diário de Notícias decidiu apostar quase em exclusivo no digital, mantendo apenas uma edição dominical em papel, uma ‘experiência’ que foi desastrosa.

  • Farense 1.1

    Farense 1.1


    Isto de ser um jornal independente, logo de parca capacidade de endividamento – o que, por norma, significa depois ter de se pagar em juros ou em ‘serviços’ –, traz como consequência problemas de agenda quando a Liga, o Glorioso e o… deixa-me ver com está ali no relvado… Farense, decidem marcar um jogo para as 18 horas, mesmo se num feriado, mesmo se santo, mesmo se em honra de Nossa Senhora de Fátima (também conhecida por Imaculada Conceição). Não dá para tudo, mesmo se o percurso entre o PÁGINA UM se faz célere em modo ‘sardinha em lata’ nas carruagens do metropolitano.

    Entre análises, leituras, edições de artigos de opinião, e um prazenteiro almoço com um dos mais consagrados ‘jornalistas de guerra’ (e outras coisas mais) da nossa praça – e sobre o qual teremos novidades em breve aqui no PÁGINA UM –, não consegui acabar o artigo sobre a Global Media, as rescisões e a desastrosa evolução das vendas dos ‘seus’ Diário de Notícias e Jornal de Notícias. Esteve quase pronto, mas ainda sem edição. Teve de ficar para este sábado.

    Lamento-me à Elisabete que não aprecio manter uma manchete no PÁGINA UM por mais de um dia. “Metes a tua crónica do Benfica”, sugere-me. “Não me parece”, respondo: “Só se suceder algo anormal, um 15 a zero; isso sim”. E aqui estou agora, portanto, esperançoso em assistir ao quimérico 15 a zero, aqui da varanda da Luz, embora milagres sejam milagres por raros serem, e por aqui já tivemos um há quase um mês com os dois golos nos descontos contra o Sporting. Melhor será que corram em vez de confiarem na Virgem.

    (além disso, entre ir buscar o ‘farnel’, subir as escadarias, passar por um colega mais ‘avantajado’ na tribuna, assentar arrais, incluindo ligar o computador à corrente, dar umas mordidas na ‘sandocha’, desta vez de paio e queijo, e escrever os três primeiros parágrafos da crónica, já se passaram 27 minutos, e o ‘melhor’ que veio foi um golo anulado por evidente fora-de-jogo do Tengstedt, mais uns habituais falhanços do Rafa)

    Deixemos a utopia, e desçamos à triste e actual realidade que é ambicionar ganhar apenas, apenas ganhar, sendo que agora, neste nosso Benfica, nem com três golos nos primeiros 45 minutos as coisas estão garantidas – o que até se mostra mais emocionante… e irritante.

    Enquanto ali em baixo se continua num rame-rame – que ‘anunciam’ os 15 golos do Benfica somente para a segunda parte –, quero deixar aqui um registo que muito me apraz, e que talvez me tenha passado desapercebido nos outros jogos: muita criançada veio à bola. Temo, porém, que a jogarmos assim, e com os tempos agrestes que se avizinham do ponto de vista financeiro – com a fraquíssima receita da Liga dos Campeões e um grande punhado de jogadores que nem à Imaculada Conceição e ao seu filho interessam –, não tenham muitas alegrias na adolescência, isto para não irmos já para umas décadas mais avançadas.

    (portanto, vamos então ter necessidade de marcar um golo em cada três minutos para os 15 a zero, já que não se conseguiu nenhum em quarenta e cinco)

    Entretanto, como o jogo esteve mesmo uma porcaria, em 17 remates nem um golo, e eu não sei quem foi o mais desastrado – se o Tengstedt, se o Rafa, se o João Mário, se o Kökçü, se o Di Maria, ou se o árbitro ou o VAR –, vou ali ao Facebook ver em quem está o nosso colunista e benfiquista Tiago Franco a desancar.

    Ora bolas! Acabou ele de escrever um post mas apenas para divulgar a sua crónica de hoje no PÁGINA UM. Sobre a Ucrânia. Vale a pena ler

    (raios!, começa a segunda parte com um falhanço incrível do Rafa; ainda ali houve uma carambola, e a bola não entra porque vai parar às mãos do guarda-redes caído… e entretanto, mais uma grande defesa do guarda-redes do Farense… isto nos primeiros três minutos da segunda parte)

    Vou pedir uma opinião por Messenger ao Tiago sobre as ‘incidências’ do jogo…

    (não sei se vale a pena… deve estar agora furibundo com o golo do Farense, por ironia marcado por um Falcão…não é o Radamel, aquele que foi do Porto e agora se arrasta pelo Rayo Vallecano, na segunda metade da tabela classificativa da La Liga)

    Enquanto aguardo pelo comentário do Tiago, e sabendo já que o mais próximo possível da utopia será ganhar agora por 15 a um, convenhamos, os meus fracos conhecimentos de bola me permitem garantir que começa a ser confrangedor assistir à ineficácia atacante deste Benfica, tudo aos repelões, passes mal medidos, centros esquizofrénicos, uma total ausência de um ponta de lança de jeito, ninguém sabe cabecear…

    (assobiadela monumental com as substituições engendradas pelo Robert Schmidt, que manda o João Neves para o banco, além do Tengstedt, por troca com Musa e Gonçalo Guedes… acho que o alemão se está a candidatar à indemnização por despedimento)

    O Tiago, entretanto, assegura-me que o João Mário e o Morato fazem uma ala esquerda que não entrava sequer na equipa do Carcavelinhos, que convém dizer ganhou o Campeonato de Portugal na época de 1927/28 e foi extinto em 1942. E diz-me também que o Tengstedt nos marcou o golo mais caro – o 2-1 contra o Sporting –, presumo que por assim ir jogar muitas mais vezes e falhar ainda mais.

    (goloooooooooooooooooo!!! Rafa!!! Ao décimo remate marca… grita-se Glorioso SLB, julgo que os mesmo que vaiaram o Schmidt há minutos)

    Só faltam agora 14 para o 15 a um… Ou mais um para vencermos à rasca. Pergunto ao Tiago, por Messenger, se está esperançoso. Diz que sim: “Golo do Guedes”, que posso ir escrevendo isso mesmo, e mais se lamenta pelas perdas de tempo.

    (por agora estamos com 88 minutos de jogo, mas com tantas perdas de tempo, os descontos só podem ser uns 10 minutos)

    Portanto, aqui temos mais uma crónica atípica, com o Benfica a deixar o escriba nervoso, e a querer assistir a mais um milagre… Assim, deixo desta vez a sorte ou a desdita do Glorioso nas mãos da Imaculada Conceição nestes… sete minutos de desconto concedidos pelo árbitro. ‘Hora’ para me concentrar, ou pior, minutos para me concentrar. Ou rezar.

    (um desperdício do Musa incrível!!!)

    (e mais outro falhanço, desta vez no fim da festa, nem sei bem de quem; apenas sei de alguém com falta de jeito)

    E pronto: não houve milagre. O Tiago manda entretanto dizer que “este alemão dá-me vontade de partir coisas”. Fica dito. E eu mal visto, porque meti-me em ‘caganças’ com o 15 a zero, e sai-me um empate destes, com o Benfica a rematar 14 bolas à baliza e outras tantas para fora…

    E aquilo que me custa mais é saber que isto não é azar: é aselhice. Mas como o masoquismo faz parte da vida de um adepto, e eu quis armar-me em cronista da bola, levo com estes miseráveis jogos, e ainda tenho de escrever sobre eles. Bem feito… para aprender a dedicar-me, aqui no PÁGINA UM, apenas àquilo que sei: o jornalismo.

    Portanto, até daqui a três semanas, quando voltar a escrever nova crónica que, assim espero, venha a titular Famalicão 15.0… Haja esperança! De milagres, claro.

  • Suposta ‘urgência imperiosa’ leva Forças Armadas a pagar 174 mil euros para ‘protecção’ contra o SARS-CoV-2

    Suposta ‘urgência imperiosa’ leva Forças Armadas a pagar 174 mil euros para ‘protecção’ contra o SARS-CoV-2


    Em pleno mês de Novembro do ano da graça de dois mil e vinte e três, o Estado-Maior-General das Forças Armadas considerou que existiam motivos de “urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis” para adquirir materiais de protecção para a “mitigação” da covid-19. E vai daí e gastou cerca de 174 mil euros em materiais que não se sabe o que é, nem a quantidade nem o preço unitário. Só se sabe que foi com dinheiro público. Nos últimos seis meses não se encontra compra similar, nem em valor irrelevante, feita por outra entidade pública.


    No início de Maio deste ano, a Organização Mundial da Saúde deixou de considerar a covid-19 como emergência global de Saúde Pública. Em Portugal, o Governo revogou todas as normas mais relevantes associadas à pandemia em Setembro do ano passado, e a própria Assembleia da República, há cinco meses, também ‘limpou’ a eficácia de 50 leis aprovadas em plenário. A normalidade regressou… mas não para todos.

    Por exemplo, para o Estado-Maior-General das Forças Armadas a ‘guerra’ contra o vírus continua, em força. Com muita urgência de meios. E com muito secretismo. E com muita despesa, claro. Fazendo lembrar outros tempos, a cúpula militar do país, liderada pelo general José Nunes da Fonseca, achou por bem, e necessário, celebrar no passado dia 16 de Novembro um ajuste directo à empresa Mundo Mercantil para a aquisição de uma ‘bazuca’ de 173.912 euros contra o vírus sob a forma de “material proteção consumo clínico – mitigação covid-19” (sic).

    General José Nunes da Fonseca, Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, ao lado do Almirante Gouveia e Melo, Chefe do Estado-Maior da Armada.​

    O PÁGINA UM gostaria de saber, em concreto, que material de protecção para mitigar a covid-19 foi efectivamente adquirido, e quais as quantidades e preços unitários, mas nada disso consta no Portal Base, por uma simples razão: a urgência dos ‘misteriosos’ materiais foi tão imensa que não houve tempo para lançar concurso público, e nem sequer para escrever um contrato. Com efeito, o Estado-Maior-General das Forças Armadas alegou “urgência imperiosa” para não disponibilizar qualquer informação em cláusulas contratuais ou em caderno de encargos sobre os materiais e quantidades adquiridas, as e os respectivos preços unitários.

    No Portal Base, refere-se que a não redução a escrito do contrato se justifica “por motivo de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis” por parte do Estado-Maior-General das Forças Armadas, pelo que se mostrou “necessário dar imediata execução ao contrato”. O prazo de execução foi de cinco dias, pelo que os materiais já terão assim sido entregues.

    Saliente que este contrato surge como um anacronismo, porque há muito que se observam compras de materiais de protecção contra a covid-19, entre as quais máscaras, viseiras, luvas, batas e álcool-gel. Uma consulta ao Portal Base mostra que nos últimos seis meses não se encontram outras compras similares (materiais de protecção) relacionadas especificamente com a covid-19. Além de contratos respeitantes ao projecto educacional Skills 4 pós-covid, desde Junho destacam-se apenas algumas compras associadas a testes de presença do SARS-CoV-2 em hospitais, além de instalação e desinstalação de módulos hospitalares na Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo.

    person holding white plastic pump bottle
    No mês passado, o Estado-Maior-General das Forças Armadas gastou quase 174 mil euros para materiais com vista à “mitigação” da covid-19, mas decidiu fazer um ajuste directo sem contrato escrito.

    O ajuste directo feito à Mundo Mercantil – uma empresa de importação e exportação de produtos médicos – é o maior que esta empresa conseguiu com entidades públicas. Mesmo durante a covid-19 não fez, comparando com outras empresas que nem eram do sector, muitos negócios com entidades públicas. Contudo, curiosamente os seus clientes públicos – com quem já celebrou 29 contratos no valor total de cerca de 597 mil euros – são quase apenas instituições militares e a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais.

    O PÁGINA UM tentou obter esclarecimentos do Estado-Maior-General das Forças Armadas sobre este contrato de quase 173 mil euros, mas o gabinete do general Nunes da Fonseca reagiu esta manhã dizendo apenas que ”o assunto foi encaminhado para os órgãos competentes a fim de ser analisado”.

  • O que é reconhecido mérito? Em Espanha sabem; em Portugal perguntem à ‘polícia’ dos jornalistas

    O que é reconhecido mérito? Em Espanha sabem; em Portugal perguntem à ‘polícia’ dos jornalistas


    Ontem, o Supremo Tribunal de Espanha anulou a nomeação de Magdalena Valerio como presidente do Conselho de Estado daquele país, porque considerou válida uma acção da fundação Hay Derecho. Em causa estava a exigência legal de Magdalena Valério ter de cumprido dois requisitos: “prestigio jurídico y conocimiento experto de los asuntos de Estado”. E ela não cumpria um. A sentença é exemplar, e vale a pena ser lida na íntegra.

    Que Magdalena Valerio, nascida em 1959 e licenciada em Direito pela Universidade Complutense de Madrid, detinha um currículo invejável em conhecimentos do Estado, não suscitou dúvidas ao Tribunal espanhol. Depois de exercer como professora de Direito do Trabalho e Segurança Social, teve passagem por cargos de gestão pública nos anos 90, foi vereadora do município de Guadalajara em dois mandatos (1999-2005 e 2011-2015), foi presidente da Associação Águas del Sorbe, ocupou vários ministérios no Governo autonómico de Castela-La Mancha entre 2005 e 2019, foi ainda deputada no Congresso em três legislaturas, e entre 2018 e 2020 foi Ministra do Trabalho, Migração e Segurança Social do Governo de Pedro Sánchez. Sintetizei-lhe o currículo, saliente-se. Pode ser lido aqui na íntegra.

    Nomeada em Outubro para a presidência do Conselho de Estado de Espanha, Magdalena Valerio Cordero viu o Supremo Tribunal de Espanha retirar-lhe o cargo por considerar que não tinha “prestígio jurídico”.

    Porém, faltava a Magdalena Valerio cumprir o segundo requisito: “prestígio jurídico” – que, traduzindo para português, também significa “mérito”. Ora, aquilo que o Supremo Tribunal espanhol concluiu é que os dois requisitos “são duas as condições que quem assumir a presidência deste órgão deve cumprir. Não há exceção, nem matização, nem preferência de uma sobre a outra. E a razão de ser de ambas é diferente, mas concorrente: garantir que quem estiver à frente do Conselho de Estado reúna a dupla qualificação desejada pelo legislador. Ou seja, prestígio jurídico e conhecimento especializado em assuntos de Estado.”

    E nessa medida, o Supremo Tribunal de Espanha concluiu que “a notória e destacada trajetória de Magdalena Valerio Cordero – ministra, deputada, conselheira, vice-prefeita, vereadora, entre outras responsabilidades públicas – certamente atesta sua profunda experiência em assuntos de Estado, mas não serve para considerá-la uma jurista de reconhecido prestígio. O seu currículo mostra uma carreira meritória no serviço público, mas dela não se pode deduzir a estima pública na comunidade jurídica que implica o prestígio reconhecido. Certamente, nada consta no expediente nesse sentido, e também não há qualquer indicação no procedimento sobre o assunto.

    Li esta notícia com um sorriso. Mas um sorriso irónico, por via da perseguição, que tive e tenho, desde que no ano passado, escrevi que Licínia Girão, a actual presidente das Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, não preenchia os critérios legais para aquele cargo, que por lei exige ser ocupado por “jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social”.

    a wallet with a purple cloth and a purple wallet

    Licínia era, à data da sua ‘entronização’ na CCPJ, em Maio de 2022, uma advogada-estagiária cinquentenária (eu também sou cinquentenário). Tinha tirado uma licenciatura recente em Direito (2015-2018) e dois turbo-mestrados – em Jornalismo (2019) e em Direito (2021), já na casa dos 50 anos. Seria um motivo de aplauso – eu próprio, embora com uma licenciatura finalizada em 1993, retomei estudos universitários a partir de 2015 e ‘coleccionei’ no currículo mais duas licenciaturas, um mestrado e uma pós-graduação –, mas isso não a fazia “jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social”.

    Até porque, enfim, nem sequer conseguiu Licínia Girão ter artes para concluir o estágio de advogada e teve um ‘chumbo’ sonante numa candidatura ao curso de magistrados do Centro de Estudos Judiciários. Quanto a artigos jurídicos ou de outra natureza, Licínia Girão vale zero, porque zero são as suas obras na componente jurídica e até jornalística.

    Mas sucedeu alguma coisa a Licínia Girão? Claro que não. A sua mediocridade – no sentido de mediania, de pouco mérito – contrastava de forma escandalosa com a exigência legal (de ter de ser “jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social”), mas quem se ‘crucificou’ foi o mensageiro – ou seja, eu –, até porque Licínia Girão não se elegeu sozinha: foi cooptada por oito jornalistas (já membros da CCPJ) e teve os empenhos do próprio Sindicato dos Jornalistas, no qual integra (e continua a integrar) o Conselho Geral.

    Ao invés do mundo jurídico, Licínia Girão, a actual presidente da CCPJ, tem tido mais “reconhecimento” nas artes. Por exemplo, em Junho de 2021, obteve a Menção Honrosa na categoria Ensaio/ Prosa no âmbito dos 13º Jogos Florais da Junta de Freguesia de São Domingos de Rana.

    Na verdade, os problemas vieram na minha direcção, sujeito que tenho estado às ‘fúrias’ de hipócritas zelotas, como os que se encontram no Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas e na própria CCPJ. Fui até acusado de andar a perseguir maldosamente a senhora e a cometer as maiores vilanagens deontológicas, num ‘processo’ que fica para os anais da filhaputice da imprensa nacional.

    Assim anda o Mundo.

    Por um lado, temos ali, na nossa vizinha Espanha, o exemplar caso de Magdalena Valerio: apesar de um forte currículo público, não pode ocupar o cargo de presidente do Conselho de Estado, após anulação da sua nomeação pelo tribunal, por não preencher a parte do prestígio jurídico que é premissa da lei.

    E aqui em Portugal, no nosso cantinho, 383 anos após a defenestração de Miguel de Vasconcelos do Paço da Ribeira, temos uma Licínia Girão – de currículo jurídico menos que paupérrimo (porque vale zero) e sem que ninguém lhe reconheça prestígio jurídico – no cargo de ‘polícia’ do Jornalismo, assumindo aquilo que objectivamente não é: “jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social”.

    E são os jornalistas portugueses os únicos com responsabilidade por esta vergonha, por alcandorarem a mediocridade como símbolo do descrédito da imprensa em Portugal. De facto, como pode o Jornalismo defender a meritocracia em cargos públicos, se entre portas tem uma Licínia Girão?