Autor: Pedro Almeida Vieira

  • ERC: o descrédito de um regulador que fomenta o pântano

    ERC: o descrédito de um regulador que fomenta o pântano


    Na semana passada, escrevi à presidente do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), Helena Sousa, para lhe comunicar algo que se impunha há muito: o PÁGINA UM não lhe reconhece qualquer idoneidade ou capacidade técnica para avaliar o nosso rigor informativo.

    Esta decisão não foi tomada de ânimo leve. Nasceu do acumular de deliberações enviesadas, de juízos sem rigor técnico e de um silêncio cúmplice que, para além de revelar desprezo pela transparência, escancara as portas à promiscuidade entre órgãos de comunicação social e o poder político. Num país onde se pretende defender a liberdade de imprensa, é inaceitável que um regulador criado pela Constituição se comporte como um corpo obscurantista, que recusa dar informação pública e se refugia na opacidade processual e na tibieza institucional.

    Nos processos que conduz, a ERC nem sequer identifica os seus técnicos nem revela os seus pareceres – parece, nisto, o Santo Ofício. Recusa também esclarecer se quem analisa as queixas sobre rigor tem formação científica e técnica para o fazer. Esconde-se por detrás de pareceres anónimos e conclusões nebulosas, sem método nem escrutínio, como se fosse um tribunal de excepção para proteger os poderosos e castigar os incómodos. Não se sabe sequer se o Conselho Regulador decide em sentido contrário dos pareceres dos técnicos da ERC com o objectivo político de livrar os ‘amigos’ ou condenar os ‘inimigos’.

    A minha crítica à ERC não é uma negação da regulação – pelo contrário. Sempre defendi que o Estado deve intervir para corrigir falhas de mercado e travar abusos das empresas privadas. Mas um regulador que age por omissão, como a ERC, que se escusa a exercer os seus poderes de forma transparente e que, pior ainda, tenta ludibriar juízes administrativos, não merece senão o meu mais firme repúdio.

    Em 2022, o PÁGINA UM teve de recorrer ao Tribunal Administrativo para obter documentos que a ERC se recusava a facultar. Foi uma vergonha ter de apresentar uma intimação contra a entidade que deveria ser a guardiã e defensora do jornalismo livre e com acesso privilegiado às fontes de informação. No mês passado, voltámos a ser obrigados a recorrer ao Tribunal Administrativo. Desta vez, estão em causa quatro processos distintos, entre os quais os negócios da Global Media e as contas da IURD. Num desses processos, os advogados da ERC tiveram o desplante de tentar enganar o juiz, manipulando contagens de prazos para ganhar na secretaria aquilo que arriscam perder em tribunal: o direito (a que se arrogam) a serem obscuros. Sejamos claros: a ERC, actualmente, com a liderança de Helena Sousa, não é já uma instituição reguladora; estamos a falar de um bastião da opacidade.

    Helena Sousa, presidente do Conselho Regulador da ERC.

    E o que dizer da indigência estatística? Há poucas semanas, a ERC considerou que uma sondagem da Pitagórica para a TVI e CNN Portugal, em que 400 inquiridos votavam 1.032 vezes com toda a certeza, não tinha qualquer problema. Perante este nível de incompetência – ou cumplicidade – não posso, nem devo, aceitar que um conselho regulador com este grau de inconsciência se arrogue autoridade moral ou técnica para avaliar o PÁGINA UM.

    É por isso que já deixei claro à ERC: o PÁGINA UM continuará a cumprir, com rigor escrupuloso, a Lei da Imprensa e a Lei da Transparência dos Media. Nada mais, até porque as deliberações sobre rigor informativo não passam de bitaites que nem sequer podem ser contestados em tribunal, exactamente por isso: são meros bitaites – e de gente pouco séria, além disso. O PÁGINA UM não se prestará a participar em fantochadas regulatórias que têm por único fim silenciar o único jornal que ousa expor as falhas gravíssimas da própria ERC.

    Posto isto, sinto-me mais liberto para manter as críticas e a ‘vigilância’ sobre a acção da ERC, que é, hoje, um dos principais responsáveis pelo pântano de credibilidade da imprensa nacional – tanto por acção como por omissão. E o caso que publicamos hoje é a mais gritante demonstração disso.

    Em Lagoa, uma autarquia socialista celebrou, desde 2019, contratos no valor de quase meio milhão de euros com uma empresa de media, exigindo explicitamente, em alguns contratos, a realização de entrevistas e cobertura de eventos da autarquia. Esta exigência é escrita. Há cláusulas que estipulam tiragens, conteúdos, periodicidade, presença no terreno, reuniões quinzenais com a autarquia e relatórios de desempenho. Isto não é um contrato publicitário: é um protocolo de subordinação editorial. E o jornal em causa, o Lagoa Informa, é dirigido por um jornalista com carteira profissional, Rui Santos Pires, que acumula as funções de gerente e assinante dos contratos.

    Lagoa Informa: um jornal que aceita fazer fretes políticos a troco de contratos de publicidadade. E a ERC não vê ilegalidade.

    A ERC esteve dois anos a analisar um contrato de 2023 que mostra a institucionalização do frete político feito por um órgão de comunicação social com recurso a dinheiros públicos. Concluiu que não havia ilegalidades, aceitou as desculpas esfarrapadas da empresa e emitiu uma recomendação inócua: que se garantisse, no futuro, a separação entre publicidade e jornalismo. Dez dias depois dessa recomendação, a Pressroma assinou novo contrato com cláusulas ainda mais abusivas. E, só porque o PÁGINA UM denunciou o caso, a ERC lá anunciou que vai abrir “um procedimento de averiguações”. Só agora. Só porque os obrigámos. Só porque a revelação lhe é demasiado vergonhosa. Uma vergonha que se junta a mais actos vergonhosos.

    Aquilo que está aqui em causa é gravíssimo. A ERC está a institucionalizar o jornalismo encomendado. Está a declarar, com todas as letras, que não há problema algum que jornalistas prestem serviços comerciais ou políticos desde que misturem um pouco de publicidade num qualquer contrato. O recado foi dado: está aberta a temporada de caça por parte de empresas de media com espírito de agência de comunicação, usando a credibilidade, cada vez menor, dos jornalistas. E depois finge-se que há liberdade editorial.

    O Lagoa Informa é apenas a ponta do icebergue de uma imprensa onde já há pouco jornalismo puro e já muita veneração paga. E isso, para a ERC, não merece sequer um puxão de orelhas.

    Helena Sousa, Pedro Correia Gonçalves, Carla Martins, Telmo Gonçalves e Rita Rola, membros do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

    Perante este estado de coisas, o PÁGINA UM continuará a fazer aquilo que sempre fez, mesmo com as limitações inerentes ao nosso modelo de negócio (acesso livre com donativos): cumprir a lei, defender o jornalismo independente e expor o que muitos preferem esconder. E, nesta linha, não fingiremos respeito por quem não o merece. O PÁGINA UM é transparente, autónomo e responsável perante os seus leitores – não perante um conselho capturado pela mediocridade e pela conveniência política.

    No meio do caos, um desejo e uma esperança: Portugal precisa de uma ERC diferente. Uma entidade que defenda a liberdade de imprensa, e não que a subverta. Uma entidade que puna a promiscuidade, e não que a legitime, porque acha que, no curto prazo, salva os ‘amigos’ aflitos, mesmop que traia e aniquile a credibilidade do jornalismo. Mais do que nunca, precisamos de uma entidade que regule com coragem e competência – não com compadrios e inépcia.

  • Poluição hídrica agravou: 39 concelhos sem ‘água de jeito’

    Poluição hídrica agravou: 39 concelhos sem ‘água de jeito’

    Num país onde a palavra Ambiente passou apenas a representar preocupações com as alterações climáticas e investimentos na chamada transição energética, a poluição hídrica mostra estar para durar — e a piorar. E nem é preciso ser cientista, ambientalista ou ecologista: basta saber ler e comparar os indicadores revelados esta semana pelo Instituto Nacional de Estatística, com base em informação da Agência Portuguesa do Ambiente (APA).

    Preto no branco — ou melhor, mais negro do que transparente —, a qualidade das águas superficiais — leia-se, rios e ribeiras — piorou globalmente na última década. De acordo com os dados agora divulgados — e que abrangem a totalidade dos 278 concelhos do Continente —, a proporção de massas de água com bom ou excelente estado ecológico baixou de 53,9% em 2015 para 46,6% em 2024. Um retrocesso de 7,3 pontos percentuais, com impactos particularmente devastadores nas zonas mais populosas e urbanizadas do país.

    white and brown duck on water

    Com excepção da Área Metropolitana de Lisboa (AML) — que registou uma ligeira melhoria, passando de 12,3% em 2015 para 16,4% —, todas as regiões pioraram neste intervalo de tempo. Em todo o caso, a AML mantém-se como a região portuguesa com maior degradação ecológica, muito atrás das restantes. No Alentejo, em 2024, apenas 36% das massas de água estão em boas ou excelentes condições; no Centro, 50%; no Norte, 55%; e no Algarve, 63%.

    Os dados da APA — recolhidos com uma periodicidade trienal, e que começou em 2012 — abrangem cursos de água naturais, como rios, ribeiros e regatos, bem como canais de rega, uso industrial, navegação, sistemas de drenagem, aluviões (águas sub-superficiais) e reservatórios naturais e artificiais. Estão excluídas a água do mar, massas de águas estagnadas permanentes e as águas das zonas de transição, como pântanos salobros, lagoas e estuários.

    A análise concelhia revela em 2024 uma degradação transversal, com 39 concelhos sem qualquer massa de água classificada como de bom ou excelente estado. Esta falência ecológica absoluta estende-se por concelhos urbanos e industrializados — como Amadora, Barreiro, Estarreja, Lisboa, Loures, Maia, Odivelas, Oliveira do Bairro, Santarém, São João da Madeira, Santo Tirso, Seixal, Trofa, Valongo, Vila Nova de Famalicão e Vizela —, mas também por concelhos mais agrícolas, onde a poluição difusa, ainda que menos visível, é igualmente perniciosa. São os casos, entre outros, de Almeirim, Alpiarça, Bombarral, Cadaval, Carregal do Sal, Cuba, Golegã, Santa Comba Dão e Santa Marta de Penaguião. Zonas esquecidas e negligenciadas, que revelam uma governação ambientalmente falida e um alheamento político gritante.

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    Lisboa, um dos 39 concelhos do país sem qualquer massa de água em boas ou excelentes condições.

    Em 2015, a situação nacional já era má: 30 concelhos apresentavam 0% de massas de água em bom estado. Destes, 20 concelhos mantêm-se hoje na mesma condição, sem qualquer melhoria: Alenquer, Alpiarça, Amadora, Arruda dos Vinhos, Azambuja, Barreiro, Bombarral, Cadaval, Cartaxo, Golegã, Moita, Odivelas, Rio Maior, Santa Comba Dão, Santarém, São João da Madeira, Seixal, Sobral de Monte Agraço, Trofa, Valongo, Vila Nova de Famalicão. Ou seja, se em 2015 já estavam muito mal, em 2024 continuam exactamente no mesmo estado — ou pior.

    A Área Metropolitana de Lisboa, com os seus 18 municípios, apresenta o pior cenário nacional. A capital do país, Lisboa, surge agora com 0% de massas de água em bom ou excelente estado ecológico, descendo face aos 20% registados em 2015. A esmagadora maioria dos concelhos da AML mantém-se abaixo dos 25%, com excepção de Setúbal (50%) e Cascais (40%). O caso de Setúbal, que regista melhorias, esconde a estagnação geral da região — ou até o agravamento. A indústria da narrativa ambiental, sempre generosa em relatórios, brochuras e eventos, omite sistematicamente este colapso ecológico urbano.

    A Área Metropolitana do Porto também não escapa à indigência hídrica. A média dos seus 17 concelhos é de 35,2%, ligeiramente acima dos 34,7% registados em 2015. O Porto permanece nos 25%, Vila Nova de Gaia nos 40%, e Espinho nos 20%. Municípios como Maia, Santo Tirso, São João da Madeira, Trofa e Valongo continuam com 0% de massas de água em boas ou excelentes condições. Os números globais da região são apenas sustentados pela boa qualidade hídrica em Arouca (77%) e Vale de Cambra (90%).

    No quadro nacional, apenas sete concelhos apresentam 100% das massas de água com boa ou excelente qualidade em 2024: Arcos de Valdevez, Castanheira de Pêra, Manteigas, Montalegre, Pedrógão Grande, Ponte da Barca e Vila de Rei. Desses, apenas dois — Castanheira de Pêra e Vila de Rei — já ostentavam essa classificação em 2015. Por outro lado, concelhos como Lousã, Vila Nova de Poiares e Miranda do Corvo, que em 2015 estavam no patamar máximo de qualidade, sofreram quedas abruptas.

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    Rios der boa qualidade: uma miragem em muitas regiões do país.

    No cômputo geral, a degradação superou as melhorias. Comparando os dados de 2015 e 2024, identificam-se 80 concelhos que melhoraram, 128 que pioraram e 70 que mantiveram o seu desempenho — entre os quais os 20 que se mantiveram a 0% e os dois que mantiveram os 100%. Em termos de progressos mais expressivos, Belmonte, Pedrógão Grande, Rio Maior, Vila Flor, Fronteira e Castelo de Paiva registaram aumentos superiores a 40 pontos percentuais. Já em sentido inverso, concelhos como Anadia, Entroncamento, Estarreja, Mealhada, Nelas, Oliveira do Bairro e Vizela sofreram quedas superiores a 50 pontos percentuais.

    As causas para esta regressão da qualidade das águas superficiais são múltiplas: descargas poluentes não tratadas, redes de saneamento degradadas, expansão descontrolada da agricultura intensiva, ausência de investimentos estruturais em despoluição e, sobretudo, inacção política e mediática. O país mergulhou num discurso ambiental dominado pelas alterações climáticas e pela energia verde, esquecendo o essencial para a saúde pública e ecológica: a qualidade da água. Porque, como se sabe, o que está longe da vista está também longe do coração — e da acção.

  • Contrato de publicidade exige que jornal faça fretes a autarquia socialista

    Contrato de publicidade exige que jornal faça fretes a autarquia socialista

    Nem sequer foi um simbólico “puxão de orelhas”. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) decidiu deixar passar completamente incólume um caso gravíssimo de promiscuidade entre um órgão de comunicação social do Algarve e uma autarquia daquela região – Lagoa – que envolvia um contrato de publicidade com contrapartida de cobertura mediática das actividades da vereação. Para agravar, o gerente e sócio único da empresa de media – a Pressroma – é um jornalista, Rui Pires Santos, que acumula a direcçºao editorial de três publicações (Lagoa Informa, Algarve Vivo e Portimão Jornal), mas que tem assinado contratos comerciais, em violação do Estatuto do Jornalista. O contrato analisado pela ERC, no valor de quase 112 mil euros (com IVA), vigorou durante 2023 e 2024.

    Apesar de a Lei da Imprensa impedir a ingerência de entidades externas na linha editorial de órgãos de comunicação social, o regulador dos media, em deliberaçºao publicada este mês mas aprovada no passado dia 24 de Março, apenas recomendou (usando o verbo instar) que a Pressroma observasse “a necessidade de garantir a independência editorial das publicações de que é detentora, bem como a identificabilidade dos conteúdos de natureza comercial e a respectiva separação face aos conteúdos editoriais.” A recomendação caiu em saco roto: apenas 10 dias depois, Rui Pires Santos (com a sua Pressroma) marimbou-se para a ERC e assinou um novo contrato, após concurso público, que ainda agrava a promiscuidade. Neste caso, também se candidatou para fazer ‘fretes’ à autarquia algarvia uma outra empresa de media, a Minius Publicações, proprietárida do semanário AltoMinho.

    Luís Encarnação celebrou dois contratos de mais de 200 mil euros em quatro anos com o jornal Lagoa Informa, que não pára de lhe conceder destaque.

    Com efeito, tal como já sucedia com o contrato de 2023 alvo da análise da ERC – que demorou quase dois anos a tomar uma deliberação após uma queixa de pessoa não identificada –, a Câmara de Lagoa exige agora, na adjudicação celebrada no dia 4 do presente mês, no valor de 121 mil euros, que a Pressroma, através do Lagoa Informa, se comprometesse a uma tiragem mínima de 3.000 exemplares de distribuição gratuita, devendo “garantir que pelo menos 70% dos conteúdos” sejam dedicados à actualidade e às figuras do concelho de Lagoa, com um mínimo de 16 páginas por edição.

    Mas o pior surge nas cláusulas seguintes.. Segundo o contrato, por imposição da autarquia de Lagoa, o jornal da Pressroma está ainda obrigado a prestar informação de proximidade, que inclui acompanhar a actividade da autarquia com “presença no terreno”, através de “reportagens, entrevistas e cobertura de eventos, não só os de maior dimensão, como os de menor visibilidade, mas com importância informativa para a população e comunidade local, com qualidade e profissionalismo”. E para isso tem de dispor de pelo menos “dois jornalistas com carteira profissional”. Para aumentar o controlo, a Pressroma deve apresentar relatórios quinzenais de distribuição e reunir quinzenalmente com responsáveis da Câmara Municipal..

    Embora as ilegalidades serem mais do que evidentes – por ser proibida a ingerência de entidades externas, como autarquias, na direcção editorial de um órgão de comunicação social, e de estar vedado aos jornalistas exercerem funções de promoção –, a ERC não viu ou não quis ver qualquer ilegalidade neste contrato de 2023.

    Aliás, o regulador dos media foi bastante ‘benevolente’ na análise a esse contrato de 2023, agora repetido, até aceitando as desculpas da Pressroma, que quis fazer crer que a autarquia utilizara por lapso um modelo contratual usualmente empregue nas suas publicações internas. Ora, a ERC nem sequer reparou – ou quis reparar – que a Pressroma assinara um contrato após um concurso público, em que, para o vencer, teve de assumir que cumpriria as exigências detalhadas do caderno de encargos.

    Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social deixou impune um caso evidente de promiscuidade entre uma autarquia socialista e um jornal através de contratos de publicidade com contrapartidas de cobertura mediática.

    Na prática, a Lagoa Informa, através da Pressroma, aceitou ser um boletim municipal da autarquia de Lagoa travestido de jornal de informação registado na ERC e com jornalistas com título profissional. E a ERC acreditou na versão da empresa de media de que os únicos conteúdos pagos eram os espaços publicitários e editais municipais devidamente assinalados com a sigla “PUB”, e que os conteúdos informativos não eram encomendados.

    Certo é que, numa análise ao conteúdo do Lagoa Informa, com periodicidade quinzenal, o presidente socialista sai quase sempre na primeira página com direito a fotografia,. Nas quatro últimas edições aparece na primeira página em três, e é notícia em todas. A edição da primeira quinzena de Março integra, aliás, um autêntico encómio sobre o seu percurso de vida.

    Numa longa peça assinado por José Garrancho (com cartão de colaborador da CCPJ), Luís Encarnação é apresentado como “um trabalhador dedicado e eficiente, educado, de bom trato e muito preocupado com as necessidades da sua terra natal, o Parchal, local onde nasceu em 1968”. E faz um percurso sempre elogioso, desde o trabalho na hotelaria até à sua dedicação ao estudo e ascensão política. E coloca-o como um homem culto, desprendido do poder e com paixão pela leitura, “devorador de livros”, embora ‘traído’ pelo discurso directo. “Quando deixar de ser presidente de Câmara, vou abraçar a minha grande paixão, que é ler e não quero cargos nenhuns. Quando tinha nove ou dez anos já lia livros da maior complexidade. Toda a vida fui um devorador de livros. A 1 de novembro de 2013, quando iniciei funções como vereador, estava a ler um livro que ainda hoje está a meio. A primeira coisa que vou fazer é acabar de o ler e começar de novo, pois já perdi o fio à meada, ao fim de todos estes anos”, diz o autarca socialista ao jornal que ‘patrocina’.

    Prwesidente socialista é preseça constante no jornal Lagoa Informa.

    Mas estas ‘ligações intimas’, ou promíscuas, entre o edil e o jornal nem sequer mereceram uma linha de análise por parte da ERCl. No decurso da instrução, que demporou quase dois anos, a ERC apenas detectou incumprimentos da Lei da Transparência por parte da Pressroma, nomeadamente na omissão de informação sobre clientes relevantes e dados financeiros de vários anos, mas nada mais fez do que insistir para que fossem preenchidas, ficando-se a saber que, em alguns anos, mais de 40% dos rendimentos provêm do Município de Lagoa – que, aliás, nem se dignou responder aos pedidos de esclarecimento da ERC sobre o conteúdo do contrato nem forneceu os relatórios de acompanhamento solicitados. A ERC, na verdade, nem sequer se consegue impor para fazer uma regulação decente.

    Assim, mesmo com a Lei da Imprensa, o Estatuto do Jornalista, a Lei da Transparência e os Estatutos da ERC, o regulador mais não fez do que constatar o óbvio: a Pressroma aceitou cláusulas que põem em causa a autonomia editorial do Lagoa Informa; não salvaguardou devidamente a separação entre conteúdos editoriais e comerciais e colocou em risco a liberdade de imprensa.

    Consequência disto? Nenhuma. Nem um processo de contra-ordenação – que deveria abranger também a autarquia –, nem uma ameaça de suspensão do título, nem uma comunicação à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) por uso de “jornalismo comercial”.

    Quer dizer, há uma consequência que se extrapola. Com esta deliberação sobre a impunidade da promiscuidade – em que se mercantiliza o jornalismo num contrato de inserção publicitária – a ERC indica expressamente que qualquer órgão de comunicação social, desde os de maior dimensão até aos regionais, pode livremente celebrar contratos publicitários onde possam expressamente surgir como contrapartidas a elaboração de entrevistas e artigos promocionais feitos por jornalistas – e, quiçá, mesmo a garantia de que não serão publicadas notícias “desagradáveis”.

    Trecho do contrato de Abril deste ano, onde a autarquia exige à Pressroma que faça “cobertura “acompanhamento da actividade da autarquia com presença no terreno, com reportagens, entrevistas e cobertura de eventos”, independentemente da sua dimensão.

    Confrontada a ERC sobre este novo contrato, dias depois de uma deliberação ‘fofinha’, o regulador afirma que, perante este novo contrato, foi decidido “abrir um procedimento de averiguações para aferir da existência de eventuais irregularidades” já identificadas na deliberação de Março, mas que deram em nada.

    O PÁGINA UM também contactou a CCPJ, que adiou uma posição para a próxima semana. Também foram colocadas questões ao gerente da Pressroma e também director do Lagoa Informa, Rui Pires Santos, mas não houve qualquer resposta. De acordo com o Portal Base, desde 2019 sucedem-se os contratos envolvendo publicidade, e não só, entre a Pressroma e três municípios algarvios, onde Lagoa surge em destaque com 490.518 euros. Os montantes dos contratos com Albufeira e Portimão são mais ‘modestos’: 52.716 e 20.018 euros, respectivamente.

  • Mario Vargas Llosa: o último liberal literário

    Mario Vargas Llosa: o último liberal literário


    Partiu Jorge Mario Pedro Vargas Llosa.

    Fê-lo com a mesma elegância estoica com que enfrentava os seus detractores e as suas próprias contradições. Tinha 89 anos e uma obra que atravessa o século, como se apenas a pena lhe bastasse para esculpir a História, os vícios do poder e as misérias da alma humana. Com ele, o romance ibero-americano perdeu o seu último Príncipe das Letras – um que, ao contrário de outros, não cedeu à tentação fácil do populismo, nem literário, nem político.

    Nascido no Peru, em 1936, ainda sob o peso colonial da alma espanhola, foi cosmopolita desde sempre – e, por isso, universal. Viveu em Lima, Madrid, Londres, Paris e até em barricadas ideológicas que não raro se desfaziam à força da lucidez. Começou esquerdista, apaixonado por Castro e pelas utopias da revolução. Mas cedo se desiludiu. Denunciou a tirania cubana quando tantos preferiam ainda cantar loas à igualdade das fardas. Desistiu das promessas da esquerda autoritária e caminhou, sem pedir desculpa, para um liberalismo firme, racional, incómodo. A sua coerência, como toda a coerência verdadeira, pagou-se cara – e ele nunca pediu troco.

    Vargas Llosa (1936-2025)

    Na Literatura, foi monumental. A Cidade e os Cães, a sua estreia em 1963, explodiu como granada na paisagem literária sul-americana. Rompia com o realismo mágico, que ele admirava mas recusava imitar. Os seus romances não tinham mariposas cor-de-rosa nem coronéis centenários: tinham soldados brutos, burocratas corruptos, mulheres inteligentes e trágicas, paixões ferozes e uma imensa desilusão com a humanidade. A seguir vieram obras-primas: Conversa na Catedral, A Guerra do Fim do Mundo, Tia Júlia e o Escrevedor, O Peixe na Água, Travessuras da Menina Má – para mim, o seu mais deslumbrante romance. Uma galeria de vidas e fracassos, revoluções e exílios, narrada com a precisão de um historiador e a volúpia de um esteta.

    Ganhou o Nobel em 2010, tarde – como quase sempre acontece aos que não alinham pelas capelas literárias do politicamente correcto. Mas o prémio foi apenas confirmação do que já era evidente: Vargas Llosa estava entre os maiores, mesmo entre os que o invejavam em silêncio. Nenhum outro autor do “boom” latino-americano se expôs tanto – política e esteticamente. Nenhum outro escreveu com tanta clareza sobre o embuste das ideologias totalitárias, sobre a decadência moral do autoritarismo populista e sobre a fragilidade da liberdade quando não se cultiva a responsabilidade.

    Também tentou a política activa: foi candidato à presidência do Peru em 1990 e perdeu para Fujimori. Talvez tenha sido melhor assim. Vargas Llosa não era um político disfarçado de escritor, mas um escritor que compreendia o poder melhor do que muitos políticos. A derrota presidencial salvou-o da corrupção do Estado e devolveu-o à pureza da Literatura e do pensamento livre. Nunca deixou de intervir. Escreveu ensaios brilhantes, colunas provocadoras, discursos memoráveis. Fez inimigos, mas manteve o respeito dos que preferem a frontalidade à subserviência.

    Único escritor peruano a ser galardoado com o Prémio Nobel da Literatura.

    Era homem de paixões: teve amores, escândalos, divórcios, reconciliações. Amou a liberdade como se ama uma mulher difícil: com fervor, ciúmes e uma fidelidade tumultuosa. Nunca pediu licença para pensar e, por isso, nunca foi cúmplice da indigência moral que hoje tanto se tolera em nome da virtude pública.

    Vargas Llosa deixa-nos órfãos de um certo humanismo viril, de uma tradição literária que não tinha medo de ser grandiosa nem vergonha de ser elitista quando a mediocridade se fazia norma. Era culto, sem pedir desculpas. Escrevia bem, com orgulho. E pensava com clareza, sem receio de desagradar.

    No seu túmulo, se houver justiça, não se escreverá apenas “Prémio Nobel”, mas sim: “Aqui jaz um escritor livre.”

  • Ainda de olho ao peito

    Ainda de olho ao peito


    Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, dizia Camões — e, valha a verdade, se o nosso épico não tivesse perdido um olho, talvez visse com mais nitidez o que esta crónica, de visão ainda turva, tem vindo a confirmar: a tradição já não é o que era, e quem de costume observa a bola da Varanda da Luz, anda mais dado a filosofias e quejandos do que à redondinha propriamente dita, aqui o garante.

    De facto, nos últimos jogos do Benfica na Liga, este vosso cronista habitual fez gazeta, primeiro porque foi lourear a pevide para Espanha, depois porque um bisturi decidiu meter-se em campo e substituí-lo sem aviso prévio. Ou seja, perdeu dois jogos no conforto da Luz, mas vá-se lá saber como, no último mês e meio, apareceu em Montjuic, foi a Alvalade ver a selecção e ainda teve a ousadia de ir ao antro do Dragão, onde o Benfica deu uma coça ao Porto.

    E tudo isto, nas últimas duas semanas, com um olho que vê mal ao perto e só agora começa a distinguir camisolas ao longe. E o outro está como estava: mal. Ja consigo ver os números nas costas dos jogadores, o que é um progresso — antes disso, via os jogos como quem lê prescrições médicas: de longe, com desconfiança e a torcer para não me enganar.

    Mas como o bom filho à casa retorna (ainda que tropeçando nos degraus e piscando os olhos ao ecrã como quem faz sinal à torre de controlo), eis que esta crónica volta à vida. Ou melhor, ressuscita com ajuda: o relato de hoje é da pena do Tiago Franco, que além de ver bem (ao que consta) ainda escreve com propriedade sobre futebol. Ficam mais bem servidos, não duvidem — porque se fosse eu a escrever, acabava-se a falar da teoria do caos, da filosofia dos penáltis, ou da geopolítica dos fora-de-jogo.

  • Montenegro e as ‘fake news’: a construção da impunidade

    Montenegro e as ‘fake news’: a construção da impunidade


    Luís Montenegro continua a esforçar-se, com notável insistência, por alimentar os piores tiques do trumpismo — mas sem o folclore nem o carisma. A cada nova revelação de dúvidas sobre questões essenciais das suas finanças e das finanças do PSD, atira-se à imprensa como quem cospe no espelho, acusando jornalistas de espalharem falsidades e exigindo-lhes “rigor”, ao mesmo tempo que tropeça em contradições e se esquece de que a verdade factual é sempre a primeira vítima da arrogância política. E usa a própria imprensa para lançar essas acusações — que as divulga, caindo no engodo.

    Desde que o caso Spinumviva — nome digno de um thriller político, mas enraizado nas práticas rotineiras do compadrio à portuguesa — fez cair o Governo, e Montenegro (e o PSD) se manteve disponível para ir novamente a eleições, torna-se evidente o que está em causa: deslegitimar a crítica e normalizar a impunidade.

    Quando Montenegro acusa jornais como o Expresso e o Correio da Manhã de difundirem “manipulações” e “mentiras”, não está apenas a defender-se. Está a lançar as bases para um novo modelo de governação em Portugal: aquele em que um governante se transformará em vítima perpétua, em mártir da verdade, em paladino de uma integridade assente na ocultação de relações, interesses e amizades bem posicionadas. Montenegro não é ingénuo — pelo contrário, é hábil. E aquilo que se tem visto nesta campanha é a preparação subtil de um escudo contra o escrutínio, onde qualquer denúncia de favorecimento, qualquer ligação embaraçosa, qualquer conta bancária mal esclarecida será imediatamente rotulada de “fake news”, ao estilo de Donald Trump, mas com sotaque de Vila Real e residência em Espinho.

    Estes episódios não podem ser vistos como um fait-divers de campanha. É um aviso, e dos fortes. Se Montenegro conseguir transformar a sua condição de suspeito recorrente em trunfo eleitoral, se for recompensado nas urnas não apesar das suspeitas, mas precisamente por se apresentar como o homem que enfrenta “a comunicação social”, então teremos dado um passo decisivo na erosão do jornalismo como instância de vigilância do poder. O primeiro-ministro que se queixa de perseguição não é novo, mas aquilo que é novo — e inquietante — é o grau de naturalidade com que o faz, ao mesmo tempo que se mostra incapaz de responder objectivamente às questões que lhe são colocadas.

    Na democracia, o escrutínio não é perseguição. A imprensa livre não é inimiga do povo. E uma democracia adulta não aceita que o chefe do Governo insinue que só ele é alvo, que só ele é injustiçado, que tudo à sua volta é “simplesmente falso”. Essa pose de santidade laica é, na verdade, a máscara da opacidade.

    É também revelador — e grave — que Montenegro tenha desvalorizado o pedido de esclarecimentos sobre as suas contas bancárias, afirmando tratar-se de “uma prestação de esclarecimentos banal”. Banal? Quando um candidato a primeiro-ministro é instado a explicar-se sobre movimentos bancários e possíveis conflitos de interesse, isso nunca pode ser banal. Só num país habituado à opacidade, onde os favores e as avenças se confundem com “relações familiares”, é que um político pode declarar, com impunidade, que essas ligações nada têm que ver consigo. E ainda ter a audácia de inverter os papéis: transformar-se de arguido mediático em acusador dos media.

    O padrão é claro: descredibilizar o mensageiro para desviar do conteúdo. A fórmula resulta — e Montenegro sabe-o. É por isso que insiste em falar de uma “pressão especial” sobre si. Ora, essa pressão não é mais do que o funcionamento normal de uma imprensa que ainda não perdeu por completo a vergonha.

    Mas, se Montenegro conseguir traduzir o seu vitimismo em votos, se vier a chefiar um novo Governo, então essa “pressão” passará a ser um incómodo a eliminar. E não tenhamos ilusões: será com uma sucessão de pequenas mudanças, com nomeações cirúrgicas, orçamentos cortados, pressões discretas sobre directores de redacção e legislação com nomes pomposos como “transparência da informação” que a liberdade de imprensa será laminada.

    Estamos perante uma verdadeira ameaça: não será a gritaria pontual contra um jornalista ou uma reportagem, mas a construção de um ecossistema de governação onde só há uma verdade — a do primeiro-ministro — e tudo o resto é ruído. O caso Spinumviva foi o primeiro sinal. O ataque aos jornais foi o segundo. O terceiro será o silêncio, se os eleitores não perceberem o que está em causa.

    Neste Portugal cada vez mais habituado à amnésia e ao medo de desagradar, Montenegro, o ainda primeiro-ministro português, aparece como o rosto sereno de um futuro inquietante. O seu sorriso é educado, o seu tom é moderado, mas o seu projecto é claro: fazer da impunidade um direito adquirido pelo voto. E isso, se acontecer, será a maior derrota da democracia portuguesa desde que temos memória.

  • VAR: 3 centímetros medidos por um engenheiro cartógrafo em cima de um touro mecânico

    VAR: 3 centímetros medidos por um engenheiro cartógrafo em cima de um touro mecânico


    Sou benfiquista, como se sabe — e no momento, no calor do momento, posso até ficar satisfeito com um erro de arbitragem que benefica o meu clube, mas a sensação de injustiça não me agrada depois da espuma dos dias.

    Porém, já me irrita deveras, e logo no momento, que, para se eliminar ou reduzir os erros dos árbitros de futebol. se tenha introduzido o VAR [Video Assistant Referee] para decidir foras-de-jogos de poucos centímetros.

    Pela segunda vez em poucos meses, o Sporting esteve envolvido em dois foras-dejogo por três centímetros, detectado com o rigor de um cirurgião oftalmologista a operar num sismo. Primeiro, em finais de Fevereiro, saiu beneficiado por um golo invalidado ao Gil Vicente ao minuto 88, que daria o empate numa elimimnatória da Taça de Portugal. Na passada segunda feira, saiu-lhe a fava contra o Braga, com um golo invalidado ao avançado Gyokeres por um milímetro fora de-jogo de três centímetros.

    Aquilo que um incrédulo como eu pensa, sem pestanejar — e, já agora, informa-se que o acto de pestanejar dura 100 a 400 milissegundos, ou seja, 0,1 a 0,4 segundos —, é que o universo VAR rege-se por uma física muito própria, onde a justiça se mede à régua de costureira e a verdade desportiva é desenhada a lápis óptico.

    Não sendo a arbitragem de futebol o meu forte — fui um sofrível árbitro de basquetebol algures nos finais dos anos 80 e princípios de 90, não passando da terceira divisão —, uma pergunta física se impõe: com os meios actuais, pode o VAR detectar um fora-de-jogo real de três centímetros? A resposta, para desgosto dos crentes na santidade da tecnologia, é não — a menos que se confunda precisão com ilusão. E é aqui que a ironia entra em campo.

    O sistema VAR trabalha com imagens captadas a 50 ou 60 fotogramas por segundo — o que significa que a cada 16 a 20 milissegundos temos uma nova imagem. Agora façamos um pequeno exercício de física primária (sim, aquela que não cabe na ficha técnica da Liga): um jogador a correr a 30 km/h percorre cerca de 17 centímetros entre dois frames. O Cristiano Ronaldo, no seu auge, sprintava a 34 lm/h. Ou seja, a incerteza temporal, só por si, pode ser bem superior a 15 cm. Mas eis que o VAR — como se fosse um oráculo digital com vista de falcão e paciência de relojoeiro — afirma com convicção que o jogador estava três centímetros adiantado. Exactamente três. Não dois, nem quatro. Três. Uma precisão que faz corar os fabricantes de microscópios.

    Mas o problema não é só o tempo. É também o espaço. Para desenhar a linha de fora-de-jogo, é preciso saber exactamente em que milésimo de segundo a bola foi tocada (com um frame que pode ter variância de 20 ms), identificar a parte mais avançada do corpo do jogador atacante que pode legalmente jogar a bola (ombro? joelho? cotovelo com intenção?) e alinhar isso com o penúltimo defensor, que por acaso também está a correr, a saltar, ou a escorregar. É uma coreografia de erros sistemáticos mascarada de infalibilidade digital.

    No fundo, o VAR tornou-se uma espécie de engenheiro cartógrafo em cima de um touro mecânico. Traça linhas rectas sobre jogadores curvos, determina momentos exactos em acções fluidas, e depois oferece-nos o resultado como se fosse uma epifania científica. O futebol, esse, vai aceitando. Com fé. Porque, como se sabe, três centímetros é um escândalo quando se trata de um dedo do Goykeres, mas uma irrelevância estatística quando se trata do orçamento do Benfica.

    Ironia das ironias: se a Liga (e os senhores da FIFA e UEFA) tivesse vergonha, já teria assumido que um fora-de-jogo inferior a 10 ou 15 centímetros é, na prática, uma ficção óptica com pretensões de exactidão matemática. E introduzia uma margem de erro, validando as jogadas em que essa distância (10 a 15 centímetros) se aplicasse. Mas não. Prefere-se manter o teatro da infalibilidade, como se o VAR fosse um algoritmo sacrossanto e não um operário de consola a clicar num ombro mal ampliado.

    No fim, sobra uma certeza: o VAR está para o futebol como a fita métrica está para a poesia. Não resolve, não encanta, e raramente acerta no espírito do jogo. Mas continua lá, à espera de outro golo de três centímetros para anular — e outro clube para “prejudicar” hoje e “beneficiar” amanhã. Com milimétrica imparcialidade. E eu só queria ver o Benfica campeão sem ser por causa do VAR… ou à custa de empurrar dívida, que um dia pode estoirar, com a barriga, através de sucessivas emissões de obrigações de milhões e milhões.

  • Março de 2025 foi o mais mortífero desde 2005. É uma má notícia? Não

    Março de 2025 foi o mais mortífero desde 2005. É uma má notícia? Não

    Foram 11.058 óbitos registados no passado mês de Março. Em termos absolutos, o valor impressiona: neste século, apenas foi superado uma vez, no ano de 2005, e tem de se recuar a 1951 para se encontrar outro Março acima da fasquia das 11 mil mortes neste mês de transição entre o Inverno e a Primavera. O valor deste ano até ultrapassa inclusivamente o de Março de 2020, quando a pandemia de covid-19 começava a ganhar expressão e inquietação pública, e durante o qual faleceram 10.582 pessoas em território nacional.

    Porém, por mais inquietante seja esse ‘flash’ temporal de 31 dias, o número de óbitos não pode ser interpretado como sinal inequívoco de anomalia. Na verdade, no contexto mais alargado do último Inverno – aqui definido como o quadrimestre que vai de Dezembro de 2024 a Março de 2025 – se se quiser apntar alguma anormalidade, então é à pouco usual ‘estabilidade letal’ do Inverno de 2024-2025, o período do ano em regra mais mortífero em Portugal.

    selective focus photo of brown and blue hourglass on stones

    Ao contrário do que é habitual em muitos anos anteriores, em que se registam picos abruptos num ou dois meses — muitas vezes em Dezembro e Janeiro ou em Janeiro e Fevereiro — seguidos de quebras marcantes em Março, o mais recente quadrimestre apresentou uma mortalidade notavelmente uniforme, com todos os meses a ultrapassarem os 10 mil óbitos e com uma diferença de apenas 857 mortes entre o mês mais e o menos mortífero.

    Esta variação interna é a sexta mais baixa dos últimos cinquenta invernos, o que demonstra não apenas a ausência de surtos concentrados, mas também uma persistência de risco distribuída ao longo de todo o Inverno. Esta regularidade é rara e pode ocultar o verdadeiro impacto da estação fria: quando não há um pico, há menos alarme — mas a mortalidade, diluída e silenciosa, soma-se com o mesmo peso.

    Esta uniformidade explica a razão para Março de 2025, apesar de ter uma mortalidade historicamente elevada, não representar aquilo que se chama um ‘outlier’ estatístico com preocupantes sinais epidemiológicos. Em linguagem comum, isto significa que o número de mortes, embora superior à média, não ultrapassa aquilo que seria previsível à luz da evolução demográfica e da sazonalidade das últimas décadas.

    Mortalidade no Inverno (quadrimestre Dezembro do ano N a Março do ano N+1) nos últimos 50 anos (LINHA AMARELA) e linha de tendência (TRACEJADO VERMELHO). Fonte: INE e SICO. Análise; PÁGINA UM.

    Para se perceber a relevância desta avaliação, o PÁGINA UM analisou os dados de uma forma mais sistemática. Considerando todos os períodos Dezembro-Março desde 1974, a mortalidade média situou-se em cerca de 40.745 mortes por quadrimestre. O total observado entre Dezembro de 2024 e Março de 2025 – as tais 44.107 mortes – fica cerca de 0,91 desvios-padrão acima da média, o que, numa leitura estatística convencional, é sinal de um valor elevado, mas não invulgar, e nem fugindo à tendência das últimas décadas.

    De facto, os dados das últimas cinco décadas apontam para um crescimento consistente da mortalidade no quadrimestre Dezembro-Março, com uma subida média anual de cerca de 160 mortes, mesmo considerando os picos de mortalidade entre 2020 e 2022, decorrentes tanto da mortalidade por covid-19 como pela gestão da pandemia. Esta evolução tem raízes sobretudo na alteração da estrutura etária da população portuguesa, cada vez mais envelhecida, e nas condições de saúde associadas a essa realidade.

    Assim, um Inverno com mais de 44 mil mortes já não surpreende – é, antes, o ‘novo normal’. Aliás, tem ultrapassado essa fasquia em todos os últimos seis Invernos. E desde o Inverno de 2011-2012, inclusive, contam-se nove anos a superarem esse valor, embora apenas um (2020-2021) subindo acima de 46 mil. Nesse Inverno, a mortalidade ascendeu a quase 55 mil óbitos, coincidindo com o pico da pandemia, uma vaga de frio em Janeiro de 2021 e com o colapso do Serviço Nacional de Saúde.

    angel figurine

    Curiosamente, a estabilidade intermensal da mortalidade do recente Inverno pode ser explicada por um fenómeno conhecido como “efeito harvesting” (literalmente, colheita), muito estudado em demografia e Saúde Pública. Quando os meses de Dezembro e Janeiro são especialmente severos em termos de mortalidade – como acontece com surtos fortes de gripe ou vagas de frio – é comum que os meses seguintes apresentem valores inferiores à média, porque uma parte da população mais vulnerável já sucumbiu antes.

    No Inverno de 2024-2025, pelo contrário, os meses de Dezembro (11.905 mortes) e Janeiro (10.201 mortes) não atingiram níveis extremos, o que terá deixado um maior número de pessoas vulneráveis vivas até Março – mês em que, por razões naturais, ou por agravamentos clínicos cumulativos, acabaram por falecer.

    Neste contexto, pode-se afirmar que, embora Março de 2025 tenha sido historicamente elevado, ele não foi anormal – mas sim o reflexo de um Inverno prolongadamente suave, sem grandes picos nem grandes quebras, como aliás se confirma pela ausência de descidas abruptas em Fevereiro.

    person walking on hallway in blue scrub suit near incubator

    Ainda assim, há um dado que deve merecer atenção redobrada dos responsáveis pela Saúde Pública. Quando se analisa o valor global do quadrimestre em função da tendência linear esperada, constata-se que a mortalidade até ficou ligeiramente abaixo do valor previsto para o ano de 2024 – cerca de 644 mortes abaixo da linha de tendência.

    Este desvio, ainda que pequeno, pode indiciar uma acumulação de vulnerabilidades que não se expressaram durante o Inverno, mas que poderão tornar-se críticas nos meses seguintes. Ou seja, as ondas de calor mais intensas podem ser particularmente letais para os mais idosos e doentes crónicos.

  • Tribunal manda repetir eleições da Ordem dos Psicólogos por irregularidades graves

    Tribunal manda repetir eleições da Ordem dos Psicólogos por irregularidades graves

    O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa considerou admissível a acção intentada por quatro candidatos da lista derrotada nas eleições da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), realizadas em finais de Novembro do ano passado. Sofia Ramalho, a actual bastonária, que tomou posse poucos dias depois do mais recente Natal, deverá ter de ir novamente a votos, sanando as «irregularidades graves» apontadas pelo juiz António Gomes da Silva na sentença de hoje, à qual o PÁGINA UM teve acesso.

    Na origem da acção estavam denúncias de falhas graves no processo eleitoral, promovida pela direcção da qual Soficaa Ramalho fizera parte – no mandato de Francisco Miranda Rodrigues –, com destaque para a gestão caótica da votação electrónica, que impediu muitos psicólogos de votarem. Segundo ficou provado, a empresa Multicert, contratada para gerir o sistema de votação, reenviou códigos de acesso (PINs) a 199 eleitores no próprio dia das eleições, mas apenas 12 destes conseguiram votar. Além disso, os critérios para esse reenvio foram alterados no decurso do acto eleitoral e aplicados de forma opaca.

    a man holds his head while sitting on a sofa

    O tribunal considerou que os autores – todos candidatos pela ‘Lista A’ e também eleitores – tinham legitimidade para impugnar o acto, frisando que a acção era tempestiva e juridicamente válida. Relevou igualmente que a Mesa Eleitoral integrava membros com vínculos directos a listas candidatas, o que levantava «sérias dúvidas sobre a imparcialidade» do órgão responsável pela condução do processo.

    Entre os episódios relatados consta ainda a violação do período de campanha eleitoral, com um candidato da lista vencedora a enviar mensagens de apelo ao voto no próprio dia da votação. O tribunal sublinhou que as eleições numa ordem profissional regem-se pelos princípios constitucionais do sufrágio universal, secreto, directo e livre, sendo exigida à OPP uma conduta administrativa irrepreensível.

    A decisão judicial do Tribunal Administrativo não invalida de imediato os resultados eleitorais, sendo passível de recurso, embora a análise do juiz António Gomes da Silva se mostre bem sustentada ao longo das 40 páginas da sentença.

    Sofia Ramalho, bastonária da Ordem dos Psicólogos, viu o Tribunal Administrativo anular o acto eleitoral por irregularidades graves.

    O juiz salienta que a acção de impugnação é «totalmente procedente, por fundada e provada», designadamente pela incapacidade de “pelo menos 218 eleitores” exercerem “o direito de voto com o código de acesso”. Registaran-se também casos de pedidos de reenvio do PIN por requerentes que nem sequer constavam da base de dados. E houve mesmo quem recebeu os códigos apenas dois minutos antes do encerramento do acto eleitoral.

    O até agora curto mandato de Sofia Ramalho tem sido pautado por outras polémicas, a última das quais a elaboração de um guia sobre desinformação, em estilo de catecismo, onde até se apontam consequências mentais. A bastonária, que antes ocupara o cargo de vice-presidente do Conselho Geral, vencera as eleições de Novembro com uma margem curta: obteve 2.834 votos contra os 2.704 da lista liderada por Ana Conduto e os 1.634 votos de Eduardo Carqueija. Ao contrário daquilo que sucede com as Ordens dos Médicos e dos Advogados, no caso dos psicólogos não é necessária segunda volta se o candidato mais votado obtiver a maioria no escrutínio.

  • O Dragão e o Lobo

    O Dragão e o Lobo


    Já percorri muitas varandas futebolísticas nos últimos dois anos, mais como um turista excêntrico — daquele tipo que percorre mosteiros barrocos — do que como jornalista. Escrevo crónicas que, em certa medida, compensem os meus poucos atributos sobre tácticas e estilos. Daí que houve, neste ínterim, dezenas de Varandas da Luz, umas Varandas do Varandas (com e sem Carlos Enes), uma do Jamor, outra em Montjuic — com vista para a nostalgia catalã — e até uma Varanda das Cinco Quinas, que soa mais a chá com bolinhos e um fora-de-jogo. Começava, pois, a ambientar-me à doce vida de cronista da bola: ver sem ver, escrever sem ver muito, e opinar com aquele à-vontade próprio de quem nunca treinou sequer um grupo de escuteiros e nunca calçou chuteiras, apesar de, como jornalista, dar muitas caneladas.

    Foto: PÁGINA UM

    Até que, no esplendor de uma convalescença ocular, desembarquei no Dragão. Não num cavalo branco, mas com a garantia de o Tiago Franco — benfiquista militante e erudito da táctica invertida com carapaus — me escrever a crónica, e assim, de smartphone em punho, dispus-me apenas a fazer o que qualquer jornalista faz quando não tem de escrever: tirar fotografias.

    Eis senão quando, surge uma senhora. Não uma senhora qualquer, mas uma zelosa representante da FC Porto Média, que em vez de um crachá trazia, presume-se, um faro treinado para detectar crimes audiovisuais. “Está a filmar o jogo?”, pergunta-me com a doçura de um fiscal tributário. “Deixe-me ver o seu crachá”, remata. Pasmo. Não estava a filmar. E digo-o. E repito. E entro, vá, numa altercação ligeiramente furibunda (com a suavidade de um cronista que só vê com um olho e mesmo assim vê demais) sobre que raio de coisa era aquela de estar a querer saber o que um jornalista em funções estava a fazer ou deixava de fazer. Não gravo a conversa, mas tirei fotografia ao seu crachá para memória futura…

    Foto: PÁGINA UM

    É verdade, confesso, dei demasiado nas vistas: quase gritei golo do Benfica ao primeiro minuto. Mea culpa. Não bati palmas a jurar fidelidade ao dragão nem entoei o hino com reverência litúrgica antes do apito inicial. Mas daí até ser tratado como um espião de bancada vai um salto… de vara.

    Enfim, se querem afastar o mito de que o FCP é um clube dado a tiques inquisitoriais, talvez não seja má ideia dispensarem o papel de Santo Ofício às suas zeladoras. Afinal, quem não quer parecer lobo talvez devesse reconsiderar o uso insistente de pele lupina.