Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Introdução: A suave tirania dos nossos tempos

    Introdução: A suave tirania dos nossos tempos


    Há momentos na História em que o discurso político, o pensamento público e até a consciência individual parecem mergulhados num torpor feito de palavras repetidas, de ideias ocas, de rituais sem alma. Vivemos um desses tempos. Um tempo em que as ideologias, outrora projectos estruturantes de mundo, caíram no descrédito ou na irrelevância, sendo substituídas por etiquetas vagas, por alinhamentos circunstanciais e por automatismos discursivos que já não mobilizam consciências nem iluminam caminhos.

    A política deixou, em larga medida, de ser a arte da escolha entre visões de sociedade para se converter num mercado de slogans, numa arena de reacções instintivas, numa sequência de performances ajustadas ao algoritmo ou ao inquérito de opinião. Por isso, mostra-se cada vez mais urgente recentrar o debate nos valores — não nos rótulos, não nos programas, não nos partidos, mas nos valores perenes que dão sentido à liberdade, à verdade, à responsabilidade e à soberania do indivíduo e da comunidade.


    1. O colapso das ideologias tradicionais e a ascensão do dogmatismo funcional

    Durante grande parte do século XX, os confrontos ideológicos não eram apenas jogos de poder: eram confrontos de visões do mundo. O liberalismo clássico, o socialismo democrático, o conservadorismo nacional — com todas as suas variantes e degenerescências — disputavam entre si não apenas votos, mas sentidos, princípios e horizontes. Discutia-se o papel do Estado, o valor da propriedade, a relação entre liberdade e igualdade, o lugar da tradição e da inovação.

    Discutia-se, de facto, política — com paixão, com erro, com demagogia por vezes, mas com substância. Havia, para o bem e para o mal, uma batalha de ideias. A própria luta contra as formas totalitárias — o nazismo, o comunismo, o fascismo — exigia posicionamento e coragem intelectual. Ser de direita ou de esquerda implicava, até certo ponto, uma coerência moral, um conjunto de referências, um mapa do mundo.

    Essa arquitectura ruiu. Não de forma repentina, mas por erosão lenta. O liberalismo económico divorciou-se do liberalismo político, convertendo-se numa técnica de gestão de mercados. O socialismo sucumbiu entre a burocracia estatal e a sedução do consumo. O conservadorismo deixou de conservar seja o que for — perdeu o sentido de pertença e rendeu-se ao marketing político. Aquilo que sobra das ideologias do século XX são versões anémicas de si mesmas: a esquerda que defende bancos e vacinações compulsórias; a direita que aceita défices, censura e dissolução da soberania nacional; os centristas que vegetam entre um simulacro de consenso e a rendição à tecnocracia.

    As ideologias perderam conteúdo porque foram cooptadas pelos aparelhos institucionais, pelos interesses económicos, pela lógica da comunicação instantânea. Como defendeu o recém-falecido filósofo britânico Alasdair MacIntyre, vivemos um tempo de “fragmentação moral”: já não há um quadro partilhado de sentido, mas apenas segmentos dispersos de valores instrumentais, sem hierarquia nem finalidade comum.

    O resultado não tem sido a emancipação do cidadão, mas a sua reprogramação funcional. O vazio deixado pelas ideologias não foi ocupado por um renascimento do pensamento, mas por um novo dogmatismo: mais discreto, mais eficaz, mais domesticador. Não se apresenta como ideologia, mas como inevitabilidade. Não propõe um projecto político, mas uma engenharia social. Este novo dogmatismo é funcional, não doutrinário: não tem como missão formar convicções, mas produzir comportamentos. Apresenta-se sobretudo como tecnocracia apostada na neutralidade, na moral institucionalizada que se confunde com virtude, no higienismo que se impõe como salvação, na burocracia da igualdade que desumaniza em nome da inclusão — é o poder sem rosto, sem narrativa, sem contestação visível; é um poder que normaliza o anormal e rotula como extremista quem apenas ousa pensar fora da grelha predefinida.

    Estamos perante uma nova forma de tirania da maioria, como já antecipava Alexis de Tocqueville no século XIX: uma maioria não necessariamente numérica, mas mediática, algorítmica, institucional — uma maioria fabricada e legitimada não pelo debate, mas pela repetição. Este novo consenso moral-operativo não precisa de censura formal: basta-lhe a difamação mediática, o cancelamento digital, o controlo subtil da linguagem, o medo socialmente inculcado. O triunfo da tirania da maioria surge com a instalação da uniformidade do pensamento, da obediência voluntária, da infantilização do juízo. Embora numa outra perspectiva, Hannah Arendt alertou para a banalidade do mal — e esse mal implanta-se agora não pelo fanatismo ideológico, mas pela normalização da passividade, pela rotinização da mentira, pela aceitação preguiçosa da ordem estabelecida.

    Esse novo dogmatismo apresentou-se, sobretudo na última década, e particularmente desde 2020, com múltiplas máscaras: sanitária, climática (não ambiental), identitária, digital. Mas por trás de todas essas máscaras está o mesmo impulso: manter o indivíduo sob vigilância e a sociedade sob tutela, convencer-nos de que a liberdade é perigosa, a dúvida é ofensiva, a responsabilidade é opressiva, a verdade é relativa. Tudo é reconfigurado ao serviço da funcionalidade: a Ciência como validação de políticas, a Educação como engenharia comportamental, a Cultura como entretenimento subvencionado, o Jornalismo como extensão do poder. E o mais grave é esse processo muitas vezes ser aceite pelos próprios agentes sociais — médicos, professores, jornalistas, juristas — que, em vez de resistirem, adaptam-se, integram-se, reproduzem as lógicas institucionais sob o pretexto de servirem o bem comum.

    Estamos, pois, num tempo em que os partidos e os políticos já não pensam, apenas reagem; em que os parlamentos já não deliberam, apenas carimbam; em que os cidadãos já não escolhem, apenas consentem. A democracia formal mantém-se — com eleições livres, debates condicionados, liberdades reguladas —, mas a substância do regime democrático esvaziou-se: sem ideologias com conteúdo e sem valores em disputa, a política degenerou numa luta de máquinas, de narrativas e de ressentimentos. Restam alguns focos de lucidez, por vezes na periferia, por vezes fora do sistema político, mas são tratados como excentricidades ou ameaças, nunca como interlocutores legítimos.

    É neste cenário que este conjunto de crónicas se inscreve — não como manifesto partidário, nem como catecismo ideológico, mas como exercício de resgate do essencial. Não proponho substituir uma ortodoxia por outra, mas recentrar o debate no que verdadeiramente importa: os valores que permitem pensar e agir com liberdade, integridade e responsabilidade. Contra a lógica das etiquetas e das fidelidades tribais, sugiro aqui uma grelha de princípios que, sendo antigos, se tornam hoje revolucionários. Por exemplo, o simples acto de afirmar que a liberdade é um valor superior à segurança, que a soberania é um direito democrático e não uma relíquia nacionalista, que a verdade importa mesmo quando é incómoda, que o Jornalismo deve vigiar o poder e não servi-lo — tudo isso, que há poucas décadas seria senso comum liberal ou republicano, tornou-se subversivo.

    Estas crónicas, por isso, não servem para crentes, mas para pensantes. Não ofereço soluções mágicas nem convido à adesão automática. Convido, sim, ao exame crítico, à recusa do automatismo, à recuperação do juízo moral. Inicio a partir de um diagnóstico duro — o colapso das ideologias e a ascensão de um dogmatismo funcional e anónimo — para propor um caminho exigente: o da reconstrução do espaço público com base em valores sólidos, não em alinhamentos convenientes. Um caminho que não se faz com indignações epidérmicas nem com palavras de ordem, mas com coragem intelectual, memória histórica e sentido de responsabilidade.

    Aquilo que proponho, portanto, não é o regresso a um passado idealizado, mas a recuperação daquilo que foi abandonado por preguiça, por medo ou por conveniência. A liberdade, a verdade, a responsabilidade, a soberania, a integridade, a crítica, a expressão livre — não como bandeiras identitárias, mas como fundamentos de uma vida cívica digna. Dizer isto é, hoje, um acto político — e, talvez, um acto de resistência.


    2. A necessidade de um novo referencial baseado em valores perenes

    A erosão das grandes ideologias não deu lugar ao pensamento, mas ao vazio. E esse vazio, incapaz de suportar a exigência do juízo crítico, foi rapidamente preenchido por sucedâneos discursivos que prometem tudo e significam quase nada.

    O mais insidioso destes sucedâneos é o centrismo, essa palavra cómoda que disfarça a abdicação do pensamento sob a aparência de equilíbrio. O centro político, que poderia ser um espaço de síntese ou de ponderação, converteu-se num refúgio para os que recusam escolher, os que temem afirmar, os que preferem a gestão à visão. O mesmo se aplica à chamada moderação, termo que nos tempos actuais deixou de significar prudência ou contenção para se tornar sinónimo de capitulação moral. Já não é o radicalismo que assusta: é a possibilidade de ter convicções claras, de afirmar valores como inegociáveis, de recusar as zonas cinzentas que anestesiam o juízo.

    A consciência social, por sua vez, tornou-se uma fórmula piedosa para justificar políticas contraditórias, assistencialismos estruturais e moralismos públicos. Com ela, legitima-se tudo: da restrição de liberdades à imposição de comportamentos, desde que embrulhado numa linguagem de inclusão e compaixão institucionalizada. Trata-se, no fundo, de uma operação de ocultação: esvaziar o conteúdo político do debate, neutralizar os conflitos de valor e transformar a deliberação democrática num ritual de consenso forçado, onde discordar é ser extremista e questionar é ser perigoso.

    Estas soluções fáceis não são apenas intelectualmente pobres: são mecanismos activos de erosão da cidadania, pois promovem a obediência revestida de virtude e a conformidade disfarçada de ponderação.

    Neste cenário, torna-se fulcral um novo referencial, mas não um referencial ideológico — já vimos como as ideologias se tornaram cascas vazias, instrumentos de marketing ou de sobrevivência partidária. Aquilo que se impõe é a substituição das etiquetas por uma arquitectura de valores, que sirvam de critério normativo e de fundamento ético para a acção pública e individual. Esta arquitectura não é um sistema fechado, mas uma grelha de referência; não impõe conclusões, mas fornece critérios de orientação, que permitem distinguir entre o essencial e o acessório, entre aquilo que pode ser negociado e o que deve ser preservado, entre o que é opinião e aquilo que é princípio.

    A proposta destas crónicas assenta precisamente nesse resgate dos valores estruturantes, que não dependem de programas eleitorais, de conveniências partidárias ou de consensos fugazes. Falo de valores que não mudam com o ciclo noticioso nem oscilam ao sabor das redes sociais. Falo da liberdade, da verdade, da responsabilidade, da soberania, da expressão crítica, da integridade — valores que moldam o carácter de uma sociedade e a dignidade de um cidadão. Não são fórmulas — são fundamentos. Não são sentimentos — são compromissos. E é essa distinção que urge recuperar, pois a confusão também se mostra quando se acredita que “valores” são apenas slogans ou posturas públicas.

    Mas, afinal, o que são valores perenes? A resposta deveria ser simples: são aqueles princípios que resistem ao tempo, à moda e à manipulação, que exigem constância, coragem e clareza — precisamente por não serem adaptáveis ao gosto do dia. São aqueles que, como dizia Simone Weil, nos enraízam: não nos prendem ao passado, mas impedem que sejamos levados pela corrente de cada presente. A liberdade, por exemplo, não é uma política — é um princípio. A verdade não é um ponto de vista — é uma exigência. A responsabilidade não é uma função — é uma escolha pessoal. A soberania não é um capricho nacionalista ou patriótico — é o direito a decidir o próprio destino. Estes valores não são acessórios: são a gramática da dignidade.

    Já os valores acessórios — como a eficiência, a inovação, a sustentabilidade ou a competitividade —, embora possam ser desejáveis, não fundam nada por si mesmos. São instrumentais, não estruturantes. Podem servir a liberdade ou a tirania, a responsabilidade ou o servilismo, consoante o fim que os enquadra. A confusão entre uns e outros é, aliás, um dos grandes perigos do tempo presente: tomam-se meios por fins, virtudes técnicas por virtudes morais, consensos operacionais por princípios políticos. E assim, pouco a pouco, perde-se o sentido do essencial — como quem, em nome de conduzir mais depressa, se esquece do destino.

    Proponho, assim, um acto de ordenação — não no sentido autoritário, mas no sentido aristotélico: recolocar cada coisa no seu lugar, distinguir os planos, hierarquizar os critérios. Vivemos agora, como advertiu no século passado Isaiah Berlin, num mundo de conflitos trágicos entre valores; mas o pluralismo de valores não é relativismo. Saber que há valores em tensão não significa que todos valham o mesmo. A liberdade pode entrar em tensão com a segurança, mas não é por isso que se pode abolir uma em nome da outra. A verdade pode colidir com a conveniência, mas não é por isso que se pode renunciar à sua busca como se fosse um luxo. A responsabilidade pode ser dura, mas não é por isso que se deve infantilizar o cidadão sob o pretexto da protecção.

    Neste contexto, os valores perenes funcionam como âncoras num tempo líquido, para usar a célebre metáfora do sociólogo polaco Zygmunt Bauman. São antídotos contra a manipulação emocional, contra a oscilação retórica, contra a volatilidade programática. Permitem, sobretudo, resgatar a autonomia do juízo, que é o verdadeiro fundamento de uma democracia viva. Quando tudo é opinião e tudo é sensibilidade, os valores fornecem uma base para o discernimento. Quando tudo é ruído e reacção, os valores permitem distinguir o necessário do acessório, o essencial do conjuntural.

    Talvez seja esse, afinal, o maior desafio contemporâneo: reaprender a distinguir. Distinguir entre liberdade e permissividade, entre verdade e narrativa, entre responsabilidade e delegação, entre soberania e isolamento, entre expressão e propaganda. Só essa capacidade de discriminar, de julgar, de hierarquizar — e de agir em conformidade — permite que o indivíduo se afirme como sujeito cívico, e não como peça funcional de uma engrenagem social ou económica. E é essa distinção, esse juízo, essa coragem que os valores perenes exigem e oferecem.

    Estas crónicas serão, pois, um convite para essa reconstrução. Não com arrogância moral, nem com nostalgia restauradora, mas com a serenidade crítica de quem acredita que há coisas que não passam — e que, por isso, nos podem orientar quando tudo parece disperso. Valores em vez de ideologias; critérios em vez de slogans; consciência em vez de reflexo. Essa é a proposta. E também a provocação.


    3. Uma crítica à infantilização da cidadania e à política performativa

    Entre os efeitos mais perversos do esvaziamento ideológico e do colapso valorativo está a lenta, mas eficaz, infantilização da cidadania. O cidadão emancipado, consciente dos seus direitos, mas também dos seus deveres, informado e capaz de deliberar, deu lugar a uma figura tutelada — um menor cívico perpétuo, que não pensa, mas consome; que não questiona, mas subscreve; que não age, mas espera que alguém o represente, o proteja, o salve.

    O Estado, outrora pensado como expressão da vontade política do povo soberano, converteu-se numa entidade paternalista, uma espécie de tutor universal que administra riscos, distribui subsídios e regula comportamentos, sempre em nome do bem, da segurança, da inclusão ou da saúde pública. E o cidadão, por sua vez, já não é um sujeito político, mas um cliente de direitos, sempre pronto a reclamar, mas pouco disposto a participar; sempre ávido de garantias, mas alérgico à responsabilidade.

    Esta cultura da tutela, alimentada por décadas de pedagogia estatal, de retórica protectora e de engenharia social, produziu um modelo de cidadania que já não é autónomo, mas dependente por design — dependente do Estado, das instituições, dos especialistas, das plataformas. A autonomia tornou-se suspeita; a dúvida, subversiva; a exigência de coerência, um luxo burguês. Promoveu-se a ideia de que o cidadão precisa de ser guiado, esclarecido, conduzido — como se a maturidade política fosse uma meta inalcançável e a liberdade, uma ameaça à ordem. Esta concepção tutelaresca do poder reduziu o espaço público a uma espécie de sala de aula infantilizada, onde os “bons alunos” recebem prémios e os “mal-comportados” são punidos com censura, marginalização ou rotulagem.

    Paralelamente, a política tornou-se espectáculo. Não no sentido clássico de representação — que pressupunha uma ligação simbólica com a vontade colectiva —, mas no sentido contemporâneo de simulação. O Parlamento deixou de ser um fórum de debate para ser um palco de encenação. As redes sociais converteram-se no verdadeiro hemiciclo do presente: é ali que se ganha ou perde o dia, que se define a agenda, que se forjam reputações.

    O político performativo não tem ideias, mas frases; não tem visão, mas pose; não tem projecto, mas indignações rotativas. A acção política resume-se a hashtags, a vídeos de 15 segundos, a indignações de serviço, a gestos simbólicos que nada mudam, mas servem para manter a coreografia do envolvimento cívico. Estamos perante o império da estética sobre a ética, da forma sobre o conteúdo, da visibilidade sobre a substância.

    No século passado, Guy Debord já proclamara a “sociedade do espectáculo” — mas hoje o espectáculo político ainda é mais perverso do que aquele que este teórico francês descreveu nos anos 1960: é interactivo, personalizado, algorítmico. Sobretudo por via das redes sociais, o cidadão já não é apenas espectador: é convidado a participar — desde que dentro dos limites do guião. Pode reagir, pode comentar, pode partilhar, mas não pode mudar nada. A ilusão da participação substituiu a prática da cidadania. A emoção substituiu o juízo. A reacção substituiu a deliberação. O debate real desapareceu — e com ele a possibilidade de conflito produtivo, de divergência estruturada, de construção comum. Finge-se que há debate onde só há marketing. Finge-se que há diversidade onde só há variações sobre o mesmo tom. Finge-se que há democracia onde só há gestão da percepção pública.

    Este ambiente favorece, naturalmente, a docilidade política. Um cidadão infantilizado é mais fácil de mobilizar — ou de desmobilizar. Basta-lhe um susto, um escândalo, um escudo fiscal. Não exige princípios, apenas resultados. Não quer verdade, apenas conforto. E, acima de tudo, não quer responsabilidades. O preço da autonomia torna-se demasiado alto para quem foi educado na lógica da tutela e da promessa: é mais cómodo seguir o fluxo, alinhar com o “lado certo da História”, repetir as palavras permitidas, partilhar os slogans da moda. A liberdade, neste contexto, é não ter de decidir; a cidadania, não ter de pensar. Por isso, os poderes instalados — sejam políticos, mediáticos ou económicos — fomentam esta infantilização: não por malícia, mas por conveniência. Um cidadão que pensa, questiona. Um cidadão que duvida, atrasa. Um cidadão que exige, complica. Melhor, então, mantê-lo entretido, indignado, emocionado — mas nunca desperto.

    Este processo de adormecimento da cidadania seria, porventura, reversível se existissem instâncias de formação crítica capazes de operar uma contra-narrativa. Mas aquilo a que outrora chamávamos Escola, Imprensa e Cultura deixou, em larga medida, de cumprir essa função. A Escola, rendida ao utilitarismo e ao relativismo, já não forma para o juízo, mas para a adaptação — ensina competências, não pensamento. A Imprensa, em vez de questionar o poder, tornou-se seu apêndice — ora laudatório, ora servil, ora simplesmente ausente. O Jornalismo transformou-se numa extensão do marketing institucional ou numa tradução apressada de agências noticiosas. E a Cultura, cada vez mais reduzida ao entretenimento, deixou de ser um espaço de elevação para ser um palco de identidades ou um produto de consumo rápido.

    O norte-americano Neil Postman advertia, com lucidez profética, que nos poderíamos “divertir até à morte” — não pela censura explícita, mas pelo colapso da relevância. Quando tudo é espectáculo, nada importa. Quando tudo é indignação, nada permanece. Quando tudo é emoção, nada se transforma. E é precisamente esta lógica de ruído, de dispersão e de excitação permanente que impede a emergência de um espaço público maduro, onde a política seja mais do que um teatro e a cidadania mais do que um contrato de prestação de serviços.

    Muito a propósito, o filósofo grego Cornelius Castoriadis falava, no século passado, da “cidadania autónoma” como a capacidade de auto-instituição colectiva: não apenas participar nas regras, mas pensar as regras, questioná-las, recriá-las. Ora, essa cidadania autónoma é hoje o maior desafio — e o maior tabu.

    A proposta destas crónicas é, também aqui, clara: recusar a tutela e o espectáculo, e reivindicar o juízo e a responsabilidade. Não se trata de idealizar um cidadão perfeito ou um modelo abstracto de participação. Trata-se, antes, de defender a ideia de que a cidadania é uma exigência, não uma concessão; que a liberdade não se delega, a verdade não se terceiriza, a responsabilidade não se subcontrata. Trata-se de recordar que viver em democracia não é apenas votar ou opinar, mas agir com consciência, com risco, com consequência. E que sem essa atitude, sem essa disposição, sem essa vigilância, a democracia degenera em administração, e a cidadania em obediência decorada.


    4. O papel da integridade e do Jornalismo vigilante como balizas da democracia

    Nenhuma democracia sobrevive sem vigilância. E nenhuma vigilância é eficaz sem Jornalismo independente, corajoso, íntegro — um Jornalismo que não se limite a relatar o que convém, mas que ouse investigar o que incomoda, que não se deixe enredar em protocolos de obediência, mas que conserve a capacidade de perturbar, de revelar, de acusar.

    O Jornalismo, quando é digno do nome, não é neutral — é leal à verdade, à liberdade e ao interesse público, mesmo quando esses colidem com o poder instituído. O problema é que, na prática, nas décadas mais recentes, a imprensa transformou-se no contrário do que proclama: deixou de ser um contra-poder para se tornar um reprodutor de discursos oficiais, um braço comunicacional de instituições públicas ou privadas, um gestor de narrativas em vez de um escrutinador de factos.

    Esta mutação tem causas múltiplas: económicas, políticas, culturais. A progressiva dependência da publicidade institucional e empresarial, os projectos editoriais subsidiados pelo Estado ou pela União Europeia, a promiscuidade entre redacções e gabinetes ministeriais, os conselhos reguladores capturados por interesses partidários, o declínio da leitura crítica e a ascensão do infotainment digital — tudo isso corroeu a base ética do Jornalismo, substituindo a vigilância pela reverência, a interrogação pelo eco, a independência pela conveniência. O jornalista, que deveria ser incómodo, tornou-se afável; que deveria ser desconfiado, tornou-se confidente; que deveria ser livre, tornou-se alinhado. Não por censura imposta, mas por domesticação progressiva.

    A chamada neutralidade, nesse contexto, é uma das ficções mais perigosas, porque não há neutralidade possível quando se trata da verdade. Fingir imparcialidade enquanto se escolhe sistematicamente o ângulo favorável ao poder, ou se omitem vozes dissonantes, ou se reverberam comunicados como se fossem investigações, é uma forma de traição ao princípio fundacional do Jornalismo. Alguém atribuiu a George Orwell a frase: “Dizer a verdade é um acto revolucionário”, mas independentemente de ser apócrifa, representa aquilo que o Jornalismo perdeu: o sentido de missão, o compromisso com a verdade como valor e não como produto.

    Em vez disso, temos narrativas construídas por conveniência, indignações selectivas, fact-checkings de conveniência, silêncios cúmplices e uma ausência ensurdecedora de investigação real sobre temas sensíveis, incómodos ou politicamente desconfortáveis.

    É neste vazio que o poder tem prosperado. E um poder sem Jornalismo vigilante é um poder sem freios — porque a primeira fronteira da liberdade não é a urna, é a palavra livre. Quando o discurso público é condicionado, tutelado, homogeneizado, a democracia torna-se uma farsa elegante, com aparência de pluralismo, mas sem substância deliberativa. Cabe ao jornalista perguntar aquilo que não se deve perguntar, escavar onde ninguém quer que se escave, expor o que se quer esconder — é esse jornalista que mantém vivo o espaço democrático. E quando ele desaparece, desaparece com ele o oxigénio da República.

    Por isso, não me dirijo apenas ao leitor enquanto cidadão, mas também enquanto potencial jornalista — no sentido mais nobre da palavra. Porque, em tempos de silêncio coreografado, todo cidadão pensante é um jornalista em potência. Aquele que observa, que confronta, que recolhe factos e os analisa, que se recusa a repetir palavras alheias sem passar pelo crivo do juízo — esse é irmão do jornalista vigilante. Ambos são expressões de uma democracia viva, não domesticada. Ambos recusam o papel de papagaio, de técnico de comunicação, de reprodutor de slogans. Ambos sabem que a liberdade não é compatível com a preguiça intelectual nem com a cedência ao conforto institucional.

    O também jornalista franco-argelino Albert Camus defendeu que o Jornalismo, para ser digno, deve ser um combatente ético — contra a mentira, contra a injustiça, contra a indiferença. E é esse combate que importa recuperar: não como heroísmo retórico, mas como prática quotidiana de vigilância, de integridade e de independência. A integridade, aliás, é aqui palavra-chave: integridade como coerência entre aquilo que se pensa, aquilo que se diz e aquilo que se faz; como recusa da duplicidade e da omissão; como fidelidade à consciência e não ao alinhamento; como base moral de qualquer crítica que se queira legítima.

    É essa integridade que está em causa quando se permitiu — ou se legitimou — que os media fossem instrumentos de propaganda sanitária, educativa, climática ou financeira, ou se silenciaram denúncias de promiscuidade entre reguladores e regulados, entre anunciantes e redacções, entre governos e comentadores. E é essa integridade que se deve exigir, sem concessões, aos que se dizem jornalistas, mas preferem o conforto da obediência ao desconforto da exposição. Não há Jornalismo sem risco. E, sobretudo, não há democracia sem jornalistas que aceitem correr riscos — por vezes profissionais, outras vezes apenas morais, mas sempre necessários.

    Este conjunto de crónicas, ao propor uma arquitectura de valores, coloca o Jornalismo onde ele pertence: no centro da vigilância cívica, como sentinela da verdade, da liberdade e da dignidade pública. Não como profissão reservada a uma classe, mas como atitude intelectual acessível a qualquer cidadão que se recuse a ser espectador passivo da mentira ou cúmplice voluntário do silêncio. E é por isso que não se fala de imprensa, fala-se de Jornalismo. Não se fala de media, fala-se de integridade. Porque o que está em causa não é a sobrevivência de um sector, mas a possibilidade de existir ainda um espaço público onde se pense, se discuta, se resista.

    E se a resistência hoje se faz mais com palavras do que com barricadas, mais com arquivos do que com slogans, mais com investigação do que com indignação, então que seja essa a missão: resistir dizendo, pensando, denunciando. Sem concessões, sem reverências, sem receio. Até porque, como nos ensinou o jornalista norte-americano Isidor Feinstein Stone, se “todos os governos mentem”, só quem ousa desconfiar com método e publicar com coragem poderá merecer ainda o nome de jornalista.


    Fecho da Introdução — Convite ao leitor

    Esta primeira crónica é, acima de tudo, um gesto de compromisso. Compromisso com a liberdade como valor inegociável, com a verdade como dever público, com a responsabilidade como condição da cidadania, com a soberania como expressão da dignidade democrática. Não é uma convocatória à militância, nem um apelo sentimental ao reformismo bem-pensante, e muito menos um catecismo doutrinário — é sobretudo uma proposta de reencontro com fundamentos esquecidos, numa época em que pensar por conta própria se tornou acto de ousadia e em que recusar alinhar se tornou suspeita de deslealdade.

    Recusemos, pois, o niilismo de quem já não acredita em nada, mas também o partidarismo de quem tudo reduz à luta tribal entre etiquetas. Nenhum dos dois serve a democracia. Ambos servem, aliás, os poderes instalados: o niilismo, porque paralisa; o partidarismo, porque divide. Entre a apatia e o automatismo, proponho outra via: a da consciência — a consciência de quem decide pensar com clareza, agir com coerência, resistir com responsabilidade. Não se trata de propor utopias — mas de recuperar aquilo que foi abandonado: o valor da palavra, o peso do juízo, o sentido da liberdade, a nobreza da responsabilidade cívica.

    Por isso, deixo um convite exigente ao leitor: não peço adesão, mas atenção; não solicito concordância, mas presença, porque não escrevo para os que procuram pertença, mas para os que procuram critério. Escrevo para aqueles que se cansaram de slogans e desconfiam das unanimidades. Escrevo para os que suspeitam que a política não se reduz a campanhas, que o Jornalismo não se esgota em soundbites, que a cidadania não pode viver de indignações partilhadas. Escrevo para aqueles que ainda acreditam que viver livre é mais do que ter direitos — é ter deveres, critérios, memória, responsabilidade.

    Vivemos tempos em que a ambiguidade é premiada, a coragem punida, a lucidez silenciada. Por isso, não proponho consolo, mas discernimento. É esse o convite. E é também o desafio.

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    Estado laico mas pouco: Autarquias gastam mais de 11 milhões de euros em igrejas católicas desde 2020


    Portugal orgulha-se, na sua Constituição, de ser um Estado laico e de garantir a separação entre as diferentes religiões e o Estado, mas quando se mergulha nos contratos públicos das autarquias, descobre-se que os municípios e freguesias continuam a ser dos maiores mecenas da Igreja Católica, sem qualquer polémica visível, mesmo quando os montantes são elevados.

    De acordo com um levantamento exaustivo realizado pelo PÁGINA UM sobre contratos inseridos no Portal Base desde 2020 foram identificados, em obras superiores a 100 mil euros, um total de 63 contratos públicos, celebrados por 45 autarquias (Câmaras Municipais e Juntas de Freguesia) e entidades intermunicipais, para reabilitação, conservação, restauro ou valorização de igrejas e conventos, atingindo um valor global superior a 11 milhões de euros.

    Obras na igreja de São Francisco em Tomar foram pagas pela autarquia local. Foto: CMT.

    Este número é ainda mais expressivo quando se considera que não se incluíram inúmeras intervenções exclusivamente em espaços exteriores (como adros) ou arranjos urbanísticos em redor de lugares de culto, nem as obras promovidas por irmandades, fábricas paroquiais ou misericórdias, nem as empreitadas conduzidas pelas Direcções Regionais de Cultura ou outras entidades do Estado central, que tenham também uma componente patrimonial e turísticas.

    Também não se entrou em conta as intervenções em igrejas desafectadas ao culto e convertidas em salas de espectáculo ou museus, como sucedeu recentemente em Coimbra com a Igreja de São Francisco. Ou seja, o levantamento diz apenas respeito a obras de património religioso activo, onde se celebram missas e rituais, pagas directamente com verbas dos contribuintes.

    O maior contrato identificado foi celebrado em Lisboa, a 24 de Janeiro de 2023, quando a empresa municipal Lisboa Ocidental adjudicou à Tecnorém uma empreitada no valor de 3,5 milhões de euros para construir de raiz a nova Igreja do Bairro da Boavista, embora neste caso esteja também incluído um centro social e paroquial, bem como a praça central do bairro. É um caso singular porque não se trata apenas de reabilitar o que existe, mas de edificar do nada uma nova igreja e um centro paroquial.

    Maquete da igreja de São José no Bairro da Boavista, construída por uma empresa municipal de Lisboa.

    Seguem-se, no ranking, a requalificação integral da Igreja de São João Baptista, em Tomar, contratada à Signinum em 15 de Janeiro de 2021 por 1,5 milhões de euros, e duas empreitadas sucessivas em Melgaço — em 2022 e em Agosto de 2025 — para a reabilitação do Convento de São Salvador de Paderna, que somam mais de 1,85 milhões de euros. Amares figura logo a seguir, com 946.707 euros para restaurar a Igreja de Bouro e revitalizar a casa paroquial para instalação de um núcleo interpretativo do mosteiro.

    Mais abaixo na tabela, mas ainda com valores significativos, surgem Loulé (890.146 euros para a Igreja Matriz), Santarém (849.934 euros para estabilização da Igreja de Santa Iria da Ribeira de Santarém), Moura (duas obras que totalizam 1,16 milhões de euros), Baião (570.338 euros para a terceira fase de restauro do Mosteiro de Santo André de Ancede), Sardoal (657.325 euros para a sua igreja paroquial) e Cabeceiras de Basto (559.348 euros para a reabilitação do mosteiro de São Miguel de Refojos).

    O levantamento do PÁGINA UM permitiu ainda perceber a evolução temporal destes investimentos: 2020 e 2021 foram os anos particularmente intensos, com 3,15 milhões e 4,12 milhões de euros em adjudicações respectivamente, coincidindo com o período da pandemia em que muitas autarquias aproveitaram fundos comunitários e planos de recuperação para lançar empreitadas.

    Igreja de Paderne, em Melgaço. Foto: D.R,

    Em 2022 registaram-se 3,02 milhões de euros em adjudicações associadas a reabilitações de igrejas, enquanto 2023, impulsionado pelo contrato da Boavista, foi o ano mais dispendioso, com 4,14 milhões de euros. O ano de 2024 apresenta uma quebra (1,69 milhões), mas 2025 volta a evidenciar crescimento, com 2,23 milhões contratados até Setembro.

    Se os grandes municípios têm um papel de relevo, também as pequenas autarquias não ficam atrás. Em Tavira, a Câmara investiu 259.949 euros na Igreja Matriz de Santa Maria do Castelo. Em Tabuço, uma única empreitada de 263.900 euros permitiu restaurar simultaneamente três igrejas paroquiais (Granja do Tedo, Longa e Sendim). Em Pedrógão Grande, a intervenção na Igreja Matriz custou 385.797 euros. E até pequenas juntas de freguesias, como Tancos, investiram mais de 160 mil euros na valorização da sua igreja matriz.

    No extremo oposto da escala, o contrato de menor valor encontrado foi em Sátão, onde a autarquia pagou 117.617 euros para conservar e restaurar a Igreja de Santa Maria, seguido da intervenção de 118.995 euros na Igreja das Carvalhiças (União de Freguesias de Vila e Roussas, no município de Melgaço). Estes números mostram que mesmo obras modestas — reparação de telhados, retábulos, pavimentos — têm custos significativos e absorvem recursos municipais.

    Igreja matriz de Loulé, Foto: CML.

    Além da dimensão financeira, este levantamento revela uma lista recorrente de empresas especializadas que dominam este mercado, como a Signinum, a Lusocol e a Monumenta, com contratos repetidos em vários pontos do país. Para estas empresas, o património religioso é uma fonte estável de encomendas, sustentada por financiamento público.

    No final, a grande questão é política e não técnica: até que ponto é legítimo que autarquias, em nome da preservação patrimonial, financiem afinal a manutenção de templos de culto, beneficiando de forma desproporcionada a Igreja Católica face a outras confissões ou usos comunitários. Se o Estado – e por extensão as autarquias – é laico, olhando para as suas obras não aparenta.

  • Santa Clara 1.1

    Santa Clara 1.1


    Cheguei atrasado mais uma vez, confesso. Não foi, como alguns poderiam suspeitar, por desleixo, mas antes por uma espécie de cálculo tácito: há jogos para os quais se vai com espírito de peregrinação, há jogos que exigem pontualidade de relógio suíço, há jogos em que se chega cedo para beber o ambiente, como se o estádio fosse templo e o aquecimento liturgia. E depois há estes jogos, os burocráticos, que mais parecem formulários do campeonato: é preciso preenchê-los, carimbar e entregar, mas sem alma.

    Este Benfica-Santa Clara, empurrado no calendário para uma sexta-feira pela avidez das competições europeias, tinha precisamente esse ar de expediente, de nota de rodapé. Entrei, portanto, tarde e resignado, sem a vertigem das noites grandes, convencido de que seriam noventa minutos mornos, um resultado previsível, apenas a decidir a margem da vitória.

    E o jogo, generoso na sua mediania, confirmou as expectativas. O Benfica rodava a bola como quem lava-loiça ao fim do jantar: movimentos repetidos, gestos mecânicos, nenhum prazer. O Santa Clara, obediente até à caricatura, defendia-se com disciplina açoriana, fechado como quem enfrenta um temporal no canal da ilha. Uns ossos de jogada aqui, uma tentativa ali, mas sem chama.

    Parecia um treino puxado, desses em que os músculos sofrem mais do que o coração vibra. Até que, no meio da pasmaceira, um gesto desastrado trouxe a primeira variação: o lateral esquerdo do Santa Clara, Paulo Victor, tão certinho na postura, acertou certeiro na cara de Tomás Araújo. Amarelo, revisão do VAR, cartão vermelho, onze contra dez.

    A monotonia parecia abrir-se para a lógica inevitável: mais de uma hora para transformar a superioridade numérica em golo. A Luz suspirou, convencida de que a vitória estava sendo inscrita nas estrelas, mas afinal estava apenas rabiscada no acaso.

    Mas o futebol, esse grande mestre de ironias, não se deixa domesticar por estatísticas nem por aritméticas simplórias. Chegou o intervalo e nada. E a segunda parte prolongou a mesma ladainha: passes falhados, cruzamentos sem nexo, remates desinspirados, circulação de bola digna de um colóquio sobre burocracia.

    O Santa Clara, em inferioridade, parecia até mais inteiro do que antes, como se o vermelho o tivesse purificado. Só num canto o destino se dignou aparecer: Otamendi, num rasgo de autoridade, cabeceou com violência; o guarda-redes defendeu para a frente; Pavlidis, carniceiro de área, empurrou para dentro. A Luz respirou, aliviada. A ordem natural parecia restaurada.

    Só que, como sempre, a ordem natural do Benfica é o caos. Vieram minutos de posse inócua, de ataques em piloto automático, de remates que não lembram a ninguém. A sensação era a de que o jogo caminhava para a vitória magra, daquelas que envergonham pouco sem inspiram ninguém.

    E foi então que se cumpriu a lição amarga. Noventa minutos no relógio, mais quatro de compensação, e muitos já a levantar-se para fugir ao trânsito e regressar às suas vidas. É nesse instante de confiança, nesse segundo de abandono, que o futebol escolhe cravar a sua punhalada.

    Numa bola para a frente, Otamendi, em vez de pontapear a bola para onde calhasse, decidiu ser artista: quis recuar de cabeça para Trubin, gesto de elegância que o destino tratou de ridicularizar. Falhou o cálculo, ofereceu o presente, e um avançado do Santa Clara, do qual não quero aqui perpetuar o nome – e com a frieza de quem sabe que é nos instantes roubados que se fazem as grandes memórias – empatou.

    Um a um. Silêncio. Um estádio gelado, reduzido a murmúrios. E depois a aumentar em assobios quando o árbitro deu o apito final. Um banho de água fria que nos lembra que a confiança, quando excessiva, é arrogância. O colapso da certeza é sempre repentino.

    Há quem insista que isto é apenas futebol. Mas basta estar na Luz, nesse instante, para perceber que não é. Quando estas fífias surgem não se sente apenas a perda de dois pontos – é um reencontro com a fragilidade, com a precariedade das coisas humanas. É a pedagogia cruel de certos jogos do Benfica que mostra que nada é inevitável, que o destino não se cumpre por decreto, que até a superioridade numérica é apenas uma ilusão.

    No fundo, um golo contra o Benfica nos momentos finais, aqui na Luz, nunca e apenas azar, mas também aselhice. . E, nestes momentos, resta-nos a amarga resignação.

    número três t

  • E se a esquerda fizesse Ventura Presidente? Isso seria… o fim do Chega

    E se a esquerda fizesse Ventura Presidente? Isso seria… o fim do Chega


    Portugal gosta de se apresentar como uma democracia semi-presidencialista. Mas, se formos rigorosos, talvez a melhor designação fosse um “pseudo-semi-presidencialismo” porque o Presidente da República – um órgão uninominal, ou seja, representado apoenas por si –, somente no papel tem poderes que impressionam: pode dissolver a Assembleia da República, demitir o Governo, vetar decretos e fiscalizar a constitucionalidade, nomeia os primeiros-ministros e chefes militares, pode convocar referendos.

    Porém, na prática, quase tudo isto se esgota em raros momentos de crise – e raramente o seu papel se mostra determinante – , o poder não passa de um exercício de rotineira e delicada parcimónia, a famosa magistratura de influência, sabendo que, se ousar transgredir demasiado, se arrisca a transformar-se num pária institucional, isolado numa redoma de cristal com honras de figura decorativa, respeitado apenas pelo protocolo e tolerado pelo cerimonial. O peso político do Presidente português não se mede, pois, pelos decretos promulgados ou vetados, mas pelo equilíbrio que consegue manter entre a deferência e a invisibilidade.

    Ora, é neste palco de poderes latentes, mas raramente usados, que André Ventura resolveu encenar a sua oitava candidatura em seis anos. É, convenhamos, um recorde para os manuais de ciência política e para os almanaques da estatística eleitoral: ninguém, no Portugal democrático, que me lembre, se candidatou tantas vezes em tão pouco tempo. Mas Ventura não é um político de manuais – é um homem de um partido que, com 60 deputados, vive na dependência absoluta da sua voz e do seu ego. O Chega, de facto, parece menos uma estrutura partidária do que um prolongamento do líder, uma corporação unipessoal travestida de movimento político.

    A decisão de Ventura avançar para as presidenciais explica-se, paradoxalmente, pela sua força e pela sua fraqueza.

    Força, porque recentes sondagens — as primeiras da história a colocarem o Chega como força maioritária — lhe dão um palco onde pode dançar à vontade, e ele nos últimos meses conseguiu assumir-se verdadeiramente como o líder de oposição, até face ao cinzentismo de José Luís Carneiro, incapaz de renovar um Partido Socialista à deriva e com os mesmos do costume.

    Fraqueza, porque, justamente por estar no auge, Ventura não tem ninguém a quem delegar qualquer protagonismo para as Presidenciais. Gouveia e Melo, outrora visto como o almirante salvador, tornou-se indigesto: demasiado vaidoso para piscar o olho a um partido populista, demasiado enredado em anticorpos para uma coligação sequer tácita. Por seu lado, Marques Mendes e Cotrim de Figueiredo até seriam hipóteses aceitáveis para uma direita “respeitável”, mas jamais poderiam sê-lo à custa de o Chega admitir que não tinha candidatos seus – e isso seria uma derrota com o sabor amargo da irrelevância.

    Restaria a André Ventura inventar uma figura interna, uma espécie de homúnculo político, desprovido de carisma e destinado a uma derrota sem glória. Mas isso já se viu com Tânger Corrêa nas eleições europeias que se quedou pelos 10%, demasiado pouco para um partido que se quer habituar agora a estar sempre acima dos 20%. E não há, em redor das primeiras linhas do Chega, ninguém com estatura institucional ‘presidenciável’ para não causar vergonha ou calafrios a Ventura.

    Assim, Ventura escolheu o caminho mais arriscado, mas também o mais tentador: ser candidato ele próprio. A jogada tem lógica: Ventura não acredita que vá ganhar, pela taxa de rejeição que tem, mas acredita, com razão, que pode alcançar a segunda volta face à fragmentação ideológica dos candidatos. E alcançar a segunda volta já seria, para o seu eleitorado, um feito de glória, a consagração do homem que enfrentou o “sistema”.

    Mas, paradoxalmente, há um cenário, pouco improvável, mas politicamente delicioso: imaginemos que a esquerda, no seu zelo punitivo, se unia para castigá-lo… elegendo-o Presidente. Seria uma vingança com travo hegeliano: a história a pregar uma rasteira dialéctica, transformando o triunfo em derrota.

    Imaginemos o cenário: Ventura eleito Presidente da República. Um Presidente limitado, refém do dever institucional de ponderação, obrigado a pronunciar discursos mornos no 25 de Abril e a receber em Belém embaixadores de países longínquos. Um Presidente a quem o povo, por mais que o tenha (falsamente) amado na hora da escolha (concedendo-lhe um presente envenenado), rapidamente começaria a ignorar. E, sobretudo, um Presidente que deixaria vago o trono do Chega, esse partido de um só homem, para o qual não há sucessor, não há delfim, não há sequer sombra. Quem substituiria Ventura como líder do Chega? Pois, aí reside a tragédia — ninguém.

    A filosofia tem, como sempre, imagens que nos ajudam a entender a ironia desta situação. Recordemos a parábola de Epimeteu, irmão de Prometeu. Epimeteu recebeu dos deuses a tarefa de distribuir qualidades aos animais: força, velocidade, astúcia. E foi gastando as dádivas sem pensar no futuro, até chegar ao homem — para o qual já não sobrava nada. Desesperado, teve de pedir ao irmão que roubasse o fogo dos deuses para compensar a falta.

    Ventura, neste caso, é simultaneamente Epimeteu e Prometeu: distribuiu todas as qualidades políticas a si mesmo, deixando o partido sem reserva de talento; e roubou o fogo mediático para manter viva a chama do seu protagonismo. Mas, se fosse eleito Presidente, não poderia usar esse fogo — ficará sentado em Belém, com as mãos atadas, um Prometeu acorrentado não a uma rocha mas à liturgia constitucional.

    Há também em Maquiavel um eco útil para compreender este dilema. O florentino aconselhava o príncipe a evitar o desprezo e o ódio, e a manter sempre a imagem de poder mesmo quando não o podia exercer. Porém, constitucionalmente, o cargo de Presidente da República Portuguesa é precisamente o contrário: obriga a renunciar ao exercício para preservar a imagem, obriga a não governar para não perder autoridade. Ventura, habituado a viver do choque, do insulto e do excesso, teria de se converter em guardião da compostura. Seria, nesse momento, como Sansão a cortar o cabelo: manteria a figura, mas perderia a força.

    Quem quiser, de facto, neutralizar Ventura e enfraquecer o Chega, não tem já de o combater nas arenas parlamentares ou nos palcos televisivos. Basta elegê-lo Presidente da República. Conseguir isso seria a apoteose e a derrota, o clímax e a decadência numa mesma eleição. O homem que grita contra o sistema ficaria condenado a presidir ao sistema; o agitador tornar-se-ia figura de cortesia; o gladiador acabaria num trono cerimonial. O Chega, sem Ventura, tornar-se-ia irrelevante, um partido em estado vegetativo, reduzido a resmungos parlamentares e a intrigas de segunda linha.

    É esta a ironia maior: Ventura corre à Presidência não para ganhar, mas para perder com estilo. Só não percebe que, se ganhar, perde de vez. E perder de vez, para quem construiu um partido à imagem do seu ego, é perder não apenas o poder, mas o próprio sentido de existir.

    Talvez seja por isso que a melhor forma de travar o avanço do Chega seja não combatê-lo — mas aplaudir Ventura até à cadeira de Belém, onde se tornará o mais inútil dos presidentes e, por isso mesmo, o mais letal para o seu próprio partido.

  • Fumar mata? Dar ‘jobs’ a ‘boys’ também

    Fumar mata? Dar ‘jobs’ a ‘boys’ também


    Há tristes e trágicas ironias do destino que dispensam legendas e moral da história: bastam-se a si próprias, num enredo de que só a realidade é capaz. A composição do Conselho de Administração da Carris é um belo exemplo de como o Estado português, geridos por Governos de quadrantes indistintos, quando decide ser patrão, o faz com aquela fleuma paternalista que nos leva a acreditar que o mérito é uma moeda fora de circulação.

    Vejamos, neste contexto, quem são os cinco administradores da Carris, a empresa municipal que gere os ascensores históricos de Lisboa. Pedro Bogas, presidente, é advogado e passou grande parte da sua vida profissional entre gabinetes ministeriais, assessorias jurídicas e cargos de administração em empresas públicas. Não é alguém que se tenha distinguido por dirigir frotas de autocarros ou garantir a segurança de funiculares, mas sim por conhecer os meandros dos corredores do poder.

    Conselho de Administração da Carris (da esquerda para a direita): Ema Favila Vieira, Maria Albuquerque, Pedro Bogas, Ana Coelho e Fernando Pedro Moutinho.

    A sua vice, Ana Coelho, licenciada em Economia, fez praticamente toda a carreira na CP — mas não na operação ferroviária, onde se respiram horários, acidentes e redundâncias de segurança, mas antes na contabilidade e controlo orçamental. Era na CP, podia ser noutra qualquer empresa pública: números são números, folhas de Excel não distinguem se o activo é um comboio ou um autocarro ou um parafuso. Ou um cabo que pode colapsar.

    A outra vice, Maria Albuquerque, engenheira civil com mestrado em planeamento territorial e ambiente, é um produto típico da tecnocracia ministerial: carreira feita em gabinetes, programas comunitários e, mais recentemente, na estrutura de gestão do IFRRU 2020 — o Instrumento Financeiro para a Reabilitação e Revitalização Urbanas —, onde se gere dinheiro, não se gerem equipamentos que transportam pessoas em carris de ferro.

    Ema Favila Vieira, promovida este ano a vogal, tem um percurso sui generis: advogada de formação, era desde 2018 secretária-geral da Carris e, depois, directora jurídica, mas antes tinha feito carreira no que se poderia chamar cultura política — foi chefe de gabinete da vereadora da Cultura da Câmara de Lisboa, passou pelo Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimédia (ICAM) e também por gabinetes ministeriais na Defesa.

    Por fim, Fernando Pedro Moutinho, vogal não executivo, é arquitecto paisagista e, sobretudo, um homem político: foi deputado do PSD nos períodos 1995-1999 e 2002-2005, e desde então foi vivendo à sombra de cargos públicos de nomeação política, incluindo vice-presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (2013-2019) e, actualmente, é director municipal da Higiene Urbana de Lisboa, responsável pela frota municipal e recolha de resíduos.

    Olhando para este ramalhete, percebemos o que em Portugal se institucionalizou como “boys” e “girls” para “jobs” públicos. São tachos, no sentido mais cru do termo, ou se quisermos recorrer a um léxico mais arcaico e erudito: sinecuras — esses cargos que, na velha acepção latina, eram remunerados mas dispensavam trabalho árduo ou risco. Há quem passe a vida aos saltos de gabinete em gabinete, de nomeação em nomeação, até que lá pelos cinquenta e poucos anos se encontra uma cadeira mais confortável, com salário generoso, viatura de serviço, cartão de combustível e direito a convites para inaugurações. É a vida, dirão alguns: a política sempre foi o palco onde se distribuem recompensas aos fiéis.

    Mas há áreas onde o preço das sinecuras é demasiado alto. Há funções públicas e empresas públicas que não podem ser transformadas em prateleiras douradas para quem foi leal ao partido certo ou esteve no gabinete certo na hora certa. A tragédia recente do Elevador da Glória prova-o de forma dolorosa.

    Não estamos apenas perante um acidente: estamos perante o paradigma de uma tragédia anunciada. O desastre não foi o rompimento do cabo, nem a morte e ferimento dos passageiros: o verdadeiro desastre foi político, começou anos antes, quando alguém na Câmara Municipal de Lisboa decidiu nomear para a administração da Carris uma equipa de cinco pessoas sem conhecimento operacional nem sensibilidade para a segurança de ascensores centenários.

    Ao longo dos anos, ninguém — sublinho, ninguém — pareceu ter o discernimento para abrir o caderno de encargos da manutenção e questionar se aquelas exigências minimalistas eram suficientes para proteger a vida dos passageiros. Ninguém achou estranho que a poupança em custos de manutenção fosse esmagada até ao osso. Ninguém se deu ao trabalho de ler a legislação com atenção e perceber que a substituição de um cabo num equipamento histórico necessitava de autorização prévia do Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), de ensaios, de testes, de documentação formal.

    E ninguém, sobretudo, fez a pergunta fundamental: estamos a gerir património histórico, a assegurar a segurança das passageiros ou estamos apenas a fechar orçamentos?

    O resultado está à vista: um equipamento que deveria ser símbolo de Lisboa transformou-se em notícia internacional pelos piores motivos. E com 16 mortes e duas dezenas de feridos. Foi no dia 3 de Setembro de 2025, mas poderia ter sido em qualquer altura – quando qualquer um dos leitores estivesse à hora errada no local errado para um acidente certo.

    A responsabilidade do desastre do Elevador da Glória não se dilui no nevoeiro burocrático: está na escolha das pessoas. Escolher administradores que nunca respiraram manutenção, operação ou segurança para gerir uma empresa de transporte é como pôr um poeta a pilotar um avião: pode até ser uma viagem inspiradora, mas o risco de cair é real.

    O acidente do Elevador da Glória é, por isso, mais do que um acidente: é o corolário de uma cadeia de decisões políticas e administrativas. E deve ser lido como aviso sério: dar “jobs” a “boys” e “girls” pode ser tão perigoso quanto fumar. Tal como o cigarro, pode dar algum prazer no momento, o conforto de satisfazer clientelas políticas ou de recompensar carreiras de fidelidade. Mas tal como o cigarro, tem efeitos secundários fatais. Porém, neste caso, mata inocentes, não o próprio fumador.

    Por isso, aquilo que está em causa não é apenas a responsabilidade civil ou criminal de quem falhou — é a responsabilidade política de quem escolheu estas pessoas para estes lugares. Quando a incompetência institucional se alia à indiferença operacional, o resultado é sempre o mesmo: tragédia.

    Concluindo, é tempo de compreender que há lugares na administração pública que não podem ser ocupados por profissionais de carreira política, mas sim por quem detenha competência técnica para assegurar o funcionamento dos equipamentos e infraestruturas, garantir a integridade das pessoas e impedir que os erros do passado se repitam. Caso contrário, preparemo-nos: depois do Elevador da Glória, a próxima tragédia estará ao virar da esquina — e quando ela acontecer, não haverá desculpa, apenas mais uma lápide a lembrar que o vício de distribuir cargos aos apaniguados mata.

  • Carris vs. STCP: manutenção pela MNTC é uma ‘balda’ em Lisboa mas rigorosíssima no Porto

    Carris vs. STCP: manutenção pela MNTC é uma ‘balda’ em Lisboa mas rigorosíssima no Porto


    O contraste não podia ser mais brutal. Em Novembro de 2022, a Sociedade de Transportes Colectivos do Porto (STCP) adjudicou à MNTC — a mesma empresa que desde 2019 assegura para a Carris a manutenção dos ascensores da Bica, Lavra e Glória e do Elevador de Santa Justa — um contrato de quase 1,9 milhões de euros para garantir, durante 1826 dias (exactamente cinco anos), a manutenção de oito eléctricos históricos.

    O contrato termina no final de Novembro de 2027, e a exigência imposta no caderno de encargos da STCP ao nível da manutenção e da segurança é de uma minúcia que faria inveja a qualquer operador ferroviário europeu. Bem diferente do que a Carris exigia à mesma MNTC: vistorias a “olhómetro”, lubrificação e pouco mais, com indicação de tarefas a desempenhar estranhamente ambíguas e tecnicamente vagas.

    Eléctrico do Porto…

    O plano de manutenção preventiva da STCP, analisado pelo PÁGINA UM, é um verdadeiro manual de engenharia: 136 itens, treze secções abrangendo carroçaria, chassis, bogies, rodados, motores de tracção, sistemas de suspensão, travagem, circuitos pneumáticos, comandos, circuitos eléctricos, areeiros e ensaios finais.

    Neste último caso, estão previstos, quinzenalmente e após reparações de maior monta, ensaios completos ao carro: colocam-se pontos no controller e utiliza-se o freio de parque para confirmar, em condições reais, que o eléctrico acelera, trava e se imobiliza de forma segura, garantindo que os sistemas de tracção e de travagem funcionam correctamente antes de regressar ao serviço.

    Está igualmente prevista, em base anual, a realização do ensaio de freio estático para medir os parâmetros dos cilindros de freio, do depósito e das válvulas do sistema, assegurando que a travagem cumpre as normas da UIC – União Internacional dos Caminhos-de-Ferro, entidade que estabelece padrões técnicos internacionais para garantir segurança e interoperabilidade no transporte ferroviário.

    Yellow tram ascends a steep cobblestone street.
    … e ascensores de Lisboa: mesma empresa de manutenção; exigências avassaladoramente distintas.

    As tarefas de manutenção dos eléctricos da STCP estão distribuídas por sete periodicidades — diária, quinzenal, mensal, semestral, anual, intermédia (cinco anos) e geral (dez anos) — e são descritas com rigor quase cirúrgico: lubrificação de cavilhas e rodas de troley, verificação de estores, ensaios de magnetoscopia e ultrassons nos eixos, medições de esquadria de bogies segundo normas UIC, reapertos com torque controlado, equilibragem dinâmica de motores de tracção de acordo com a norma ISO 1940 G 2.5, ensaios estáticos e dinâmicos de travagem com registo de valores, purgas programadas do sistema pneumático, desmontagem e montagem de rodados, pintura com especificações RAL predefinidas, etc, etc.. Tudo tem de ser registado em fichas normalizadas, permitindo rastreabilidade, identificação de tendências de desgaste e planeamento de substituições antes da falha.

    Agora desçamos para Lisboa — e, ironicamente, desçamos mesmo pela Calçada da Glória. Desde 2019 — e não desde 2022, como erradamente se escreveu inicialmente — , a MNTC ficou também responsável pela manutenção dos ascensores lisboetas. Mas aqui, por opção da Carris, o cenário é radicalmente diferente. O caderno de encargos imposto pela empresa municipal de Lisboa — que vigorou até 31 de Agosto e foi prorrogado por ajuste directo por mais cinco meses — parece mais uma lista de verificação do que um plano de engenharia.

    Aquilo que exige — se se pode dizer que se trata de exigências — é, na generelidade dos casos, genérico e vago: verificar pantógrafos, baterias, cabos de tracção, purgar compressores, lubrificar roldanas. Não há referências nem explícitas, nem implícitas a ensaios não destrutivos, a medições calibradas ou a periodicidades diferenciadas de controlo que permitam detectar falhas latentes. Nada que garanta testes de segurança e de travagem.

    Páginas 1 e 4 das cinco páginas do caderno de encargos da STCP que detalha as manutenções a executar pela MNTC nos eléctricos do Porto.

    O caso do Elevador da Glória é paradigmático — e trágico. Os serviços de manutenção e segurança do funicular mais icónico de Lisboa, classificado como Monumento Nacional, não previam a realização de quaisquer ensaios mecânicos ou ensaios não destrutivos ao cabo de tracção que cedeu na passada semana, provocando o descarrilamento da cabina que descia a Calçada da Glória, causando a morte de 16 pessoas e ferimentos em mais de duas dezenas.

    Era tudo feito visualmente — ou, para usar a ironia que a tragédia quase não consente, com recurso à avançadíssima tecnologia do “olhómetro”. Apesar de a lei exigir ensaios após alterações de sistemas de segurança e comunicação ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), como o PÁGINA UM já salientou com base na lei, aparentemente nada disto alguma vez foi feito.

    Pior ainda: aparentemente nunca ninguém se apercebeu de que os sistemas de freio dos ascensores eram incapazes de travar caso houvesse, como houve, colapso do encaixe do cabo no trambolho.

    Especificações do caderno de encargos da Carris são omissas sobre as normas técnicas das verificações em função da periodicidade. Podiam ser todas visuais, como a manutenção diária estava a ser feita?

    De acordo com a consulta efectuada pelo PÁGINA UM ao caderno de encargos da Carris, apenas para a Bica e para o Elevador de Santa Justa existia referência expressa à contagem de arames partidos como critério de substituição de cabos. No caso da Glória e do Lavra, a exigência era apenas uma vaga “verificação”, sem norma técnica, sem especificação de método, sem obrigatoriedade de desmontagem ou uso de instrumentos de medição. Se a inspecção diária, semanal e mensal era apenas visual — como confirmam os registos da própria Carris — nada obrigava a que as inspecções semestrais fossem diferentes.

    O PÁGINA UM ouviu especialistas que foram claros: existem hoje métodos de detecção precoce de falhas que são standard internacional em sistemas de transporte por cabo — ensaios de magneto-indução, capazes de detectar fios partidos no interior do cabo; correntes de Foucault e ultrassons localizados, particularmente importantes na verificação da integridade da zona de ancoragem no trambolho, onde precisamente se deu a ruptura; medições de extensão sob carga para avaliar a elasticidade residual e identificar alongamentos anómalos, procedimento previsto em normas como a EN 12927-6, usada em países como a Suíça ou a Áustria.

    Nada disto estava previsto no caderno de encargos, que, como parte integrante do contrato, foi aprovado pelo Conselho de Administração da Carris, presidido por Pedro Bogas. O contrato deixava ao critério da MNTC a decisão de realizar ou não ensaios complementares. Resultado: se a empresa não os fazia por iniciativa própria, nada a obrigava.

    Manutenção em Lisboa: uma autêntica e trágica ‘balda’.

    Esta omissão poderá ser determinante na atribuição de responsabilidades civis e criminais: o município de Lisboa, através da Carris, optou por um modelo contratual minimalista para um sistema que transporta milhares de pessoas por dia num declive acentuado, expondo os passageiros a um risco inconcebível.

    Perante isto, o contraste entre Carris e STCP é avassalador e demonstra que o problema é de gestão e de exigência. No Porto, os eléctricos históricos têm direito a centenas de operações programadas, medições rigorosas, registos de torque, ensaios não destrutivos e análises de tendências de desgaste; em Lisboa, os ascensores tinham direito apenas a um olhar de relance e a um visto de conformidade. A mesma empresa, dois contratos, dois mundos.

  • Obesidade já ultrapassou subnutrição entre crianças e adolescentes

    Obesidade já ultrapassou subnutrição entre crianças e adolescentes


    Pela primeira vez na História da Humanidade, a obesidade ultrapassou a subnutrição entre crianças e adolescentes em idade escolar, alertou ontem o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Ao invés de ser uma boa notícia, este é um preocupante alerta, porque é um sinal de má nutrição sobretudo por se dever a hábitos alimentares assentes em alimentos ultraprocessados.

    Num relatório intitulado Feeding Profit: How Food Environments are Failing Children, divulgado no final desta semana, a UNICEF traça um retrato inquietante: já uma em cada 10 crianças entre os 5 e os 19 anos — cerca de 188 milhões em todo o Mundo — vive já com obesidade, enfrentando riscos acrescidos de doenças potencialmente fatais, como diabetes tipo 2, hipertensão, problemas cardiovasculares e certos tipos de cancro. Para crianças, a obesidade é definida como ter um índice de massa corporal (IMC) igual ou superior ao percentil 95 para idade e sexo.

    a person holding a plate with a sandwich on it

    Os números mostram uma inversão completa da tendência dos últimos 25 anos. Se, no ano 2000, quase 13% das crianças em idade escolar estavam abaixo do peso e apenas 3% eram obesas, hoje a proporção de crianças subnutridas caiu para 9,2%, enquanto a obesidade disparou para 9,4% — ultrapassando pela primeira vez a prevalência do baixo peso em quase todas as regiões do Mundo. Ou seja, a prevalência da obesidade nestas faixas etárias triplicou em pouco mais de duas décadas.

    O relatório dedica particular atenção à África do Sul, onde a situação é descrita como “profundamente preocupante”: entre as crianças com menos de 5 anos, a taxa de excesso de peso e obesidade passou de 13% em 2016 para 23% em 2024. No grupo etário dos 5 aos 19 anos, os números também são alarmantes: de 9% em 2000, a prevalência de excesso de peso subiu para 21% em 2022, com a obesidade a mais que triplicar no mesmo período, de 2% para 7%.

    Segundo a UNICEF, este fenómeno está intimamente ligado à substituição crescente de frutas, legumes e proteínas por produtos ultraprocessados e refeições rápidas, cada vez mais presentes em escolas, supermercados e na dieta diária das famílias. “As crianças não escolhem este ambiente alimentar: ele é-lhes imposto”, denuncia o relatório, que responsabiliza a indústria alimentar pelo papel dominante na modelação das preferências infantis, recorrendo a estratégias de marketing agressivas, muitas vezes direccionadas para o público mais jovem.

    a woman holding a burger

    Num inquérito global conduzido pela plataforma U-Report em 2024, três em cada quatro jovens entre os 13 e os 24 anos declararam ter visto publicidade de refrigerantes, snacks ou fast-food na semana anterior, e 60% reconheceram que estas campanhas aumentaram a sua vontade de consumir tais produtos.

    Nos Estados Unidos, segundo a autoridade de saúde (CDC), a prevalência de obesidade entre crianças e adolescentes aproxima-se dos 20%, significando que 14,7 milhões de jovens americanos com idades entre 2 e 19 anos têm excesso de pessoa.

    A prevalência deste problema atinge mais as populações pobres, mostrando que as famílias com menos recursos são forçadas a recorrer a mais alimentos utraprocessados. A questão da melhoria dos hábitos alimentares dos norte-americanos, incluindo a retirada de ingredientes e aditivos sem padrões de segurança, tem sido uma das batalhas de Robert Kennedy Jr, secretario de Estado da Saúde, mas que tem tido uma contestação da influente indústria alimentar que se aproveitou de brechas legais.

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    Se nada for feito para deter a nível mundial a ‘epidemia da obesidade’ assente na chamada ‘junk food’, a UNICEF prevê impacto futuro poderá ser devastador, tanto para os sistemas de saúde como para as economias nacionais. Estima-se que o custo global da obesidade e do excesso de peso poderá ultrapassar os 4 mil milhões de dólares anuais até 2035.

    Para inverter esta trajectória, a UNICEF propõe um pacote de medidas robustas: proibição de venda e marketing de ultraprocessados em ambiente escolar, implementação de políticas obrigatórias de rotulagem clara e restrição da publicidade alimentar dirigida a menores, além de programas de apoio social que assegurem o acesso das famílias mais vulneráveis a dietas nutritivas. O relatório insiste ainda na necessidade de blindar a formulação das políticas públicas contra a interferência das grandes indústrias alimentares, de forma a colocar o interesse das crianças acima dos lucros corporativos.

  • Os erros de Pedro Henriques: anatomia de uma negligência médica recorrente

    Os erros de Pedro Henriques: anatomia de uma negligência médica recorrente


    Os graves erros e más práticas de Pedro Cavaco Henriques, cirurgião do Hospital de Faro, alvo de uma proposta de suspensão de apenas 40 dias por parte da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS), são considerados inqualificáveis por médicos consultados pelo PÁGINA UM, ainda mais por terem sido cometidos em tão curto espaço de tempo (três meses) por um clínico com prática de mais de duas décadas em operações.

    O PÁGINA UM, que teve acesso, em exclusivo, ao relatório da IGAS — enviado para a Unidade Local de Saúde do Algarve, para a Polícia Judiciária e para o Ministério Público —, analisou em detalhe os quatro casos clínicos destacados no processo disciplinar, onde apenas estão referidos alguns dos episódios denunciados pela médica Diana Pereira, então a fazer internato no Hospital de Faro e que ficou chocada com o modus operandi de Pedro Henriques, o seu próprio orientador.

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    Apesar da gravidade dos quatro casos, estranhamente a IGAS não analisou o passado de intervenções deste médico, que ao longo dos anos mais recentes também colaborou com a ULS do Médio Tejo. Num relatório exaustivo e minucioso, destacam-se sobretudo execuções cirúrgicas tecnicamente incorrectas, imprudentes e contrárias às boas práticas, confirmando a violação das chamadas leges artis. E se, para o cidadão comum, a terminologia pode parecer distante, o que ali se lê é inequívoco: houve doentes que sofreram lesões, internamentos prolongados e riscos graves de vida que poderiam ter sido evitados.

    O primeiro caso analisado remonta a 5 de Janeiro de 2023 e envolveu uma cirurgia complexa a um doente do sexo masculino realizada em dois tempos. No denominado tempo abdominal, realizado por outra equipa, não se registaram complicações, mas no tempo perineal — o que envolve o recto e o canal anal — o cirurgião Pedro Cavaco Henriques foi acusado de utilizar um dispositivo eléctrico para dissecar tecidos de forma “brutal”.

    Não se tratou apenas de um testemunho isolado: os exames histológicos confirmaram lacerações e dissecções realizadas fora dos planos anatómicos adequados, e o relatório anatomo-patológico descreveu mesmo uma lesão iatrogénica, ou seja, causada pela própria cirurgia.

    Relatório do processo disciplinar contra Pedro Cavaco Henriques analisou apenas a prática cirúrgica em três meses de 2023.

    Já no segundo caso, envolvendo também um doente do sexo masculino, embora os autos não descrevam de forma detalhada o dia ou a sequência da intervenção, o processo foi sustentado quase exclusivamente em prova documental e pericial. Pareceres técnicos da Ordem dos Médicos e da IGAS convergiram no diagnóstico de que a cirurgia não respeitou as boas práticas e que as lesões sofridas pelo doente não foram complicações inevitáveis, mas sim consequência de execução técnica inadequada.

    A defesa tentou desvalorizar o caso alegando que se tratava de um risco cirúrgico inerente, mas não conseguiu rebater as conclusões periciais. Uma das testemunhas arroladas não chegou a ser ouvida e outra optou por não comentar quando confrontada com os pareceres. O instrutor concluiu que nada abalava a acusação e manteve a nota de culpa.

    O terceiro episódio disciplinar é particularmente sensível porque se tratou de uma emergência médica. A 31 de Março de 2023, Pedro Cavaco Henriques tentou colocar dois cateteres torácicos num doente com pneumotórax — situação em que o ar invade a cavidade torácica e provoca o colapso de um pulmão.

    black and white abstract painting

    As duas tentativas falharam e o doente entrou em insuficiência respiratória, tendo de ser rapidamente transferido para o serviço de urgência, onde acabou estabilizado com drenagem torácica. A médica presente confirmou então a sequência de acontecimentos – e os erros de Pedro Cavaco Henriques – e a perícia médica apontou falha técnica do cirurgião, ainda que reconhecendo que o ambulatório tinha então falta de equipamentos, facto que terá dificultado o procedimento.

    A defesa de Pedro Henriques ainda sustentou que não houve violação das leges artis e que a decisão de não insistir após as tentativas falhadas foi prudente, mas o perito da IGAS sublinhou que deveria ter sido pedido um raio-X logo após a primeira tentativa para confirmar a evolução da situação — algo que não foi feito. Também aqui a nota de culpa foi considerada procedente, ainda que com atenuação, dado que a carência de meios foi considerada um factor contribuinte.

    O caso mais grave, porém, envolveu uma doente irlandesa, que deu entrada no Hospital de Faro no dia 2 de Abril de 2023 com apendicite aguda perfurada e peritonite. Pedro Cavaco Henriques decidiu fazer uma apendicectomia laparoscópica, isto é, a remoção do apêndice feita através de pequenas incisões no abdómen e com auxílio de uma câmara. Trata-se de um método menos invasivo e, em condições normais, mais rápido na recuperação.

    Trecho do processo disciplinar contra Pedro Cavaco Henriques.

    Porém, no caso desta doente, a situação era de elevada gravidade: o apêndice estava perfurado e havia peritonite, ou seja, infecção disseminada na cavidade abdominal, o que torna a cirurgia muito mais difícil e arriscada. Nestas circunstâncias, é prática recomendada — e ensinada nas escolas de cirurgia — que o cirurgião converta o procedimento para cirurgia aberta (laparotomia), abrindo o abdómen para ter melhor acesso e visão directa dos órgãos.

    Essa conversão não é sinal de erro técnico, mas sim de prudência clínica: permite reduzir o risco de lesões acidentais, limpar adequadamente a cavidade abdominal e tratar de forma mais segura o foco de infecção.

    Ora, Pedro Cavaco Henriques decidiu manter a cirurgia por via laparoscópica, mesmo perante a dificuldade de visualização e o risco acrescido de complicações. Essa decisão — de continuar “às cegas” com instrumentos laparoscópicos — foi justamente o ponto mais criticado no relatório da IGAS, que concluiu que a manutenção desta via contribuiu de forma decisiva para as lacerações do intestino delgado.

    Em fase de instrução do processo disciplinar, Pedro Henriques chegou a mostrar arrependimento, mas as consequências foram enormes: no dia seguinte, já com um quadro clínico preocupante, a doente teve de ser reoperada por outra equipa cirúrgica, que encontrou abundante pus na cavidade abdominal e múltiplas lacerações do intestino delgado. Foram necessárias suturas e a ressecção (remoção) de cerca de 20 centímetros de ansa intestinal (parte do intestino delgado) para reparar os danos. Estas lesões foram confirmadas como iatrogénicas, ou seja, causadas pela primeira cirurgia.

    Página das conclusões do processo disciplinar contra o médico Pedro Cavaco Henriques. O PÁGINA UM expurgou os nomes dos cinco doentes referenciados por razões de legítima privacidade e por não ter relevância pública.

    O perito de cirurgia geral foi taxativo ao referir que o protocolo operatório não mencionava manobras que poderiam ter prevenido as perfurações. A doente permaneceu internada cerca de um mês, recebendo alta apenas a 12 de Maio de 2023. Apesar de o arrependimento do cirurgião ter sido tido em conta como atenuante, o relatório final da IGAS concluiu pela violação grave das normas técnicas e reforçou que a decisão de manter a cirurgia por laparoscopia foi errada face ao elevado risco presente.

    Lidos em conjunto, os quatro casos compõem um retrato inquietante da prática clínica de Pedro Cavaco Henriques, com erros repetidos e lesões evitáveis em doentes, alguns em situações de risco de vida. A suspensão de apenas 40 dias, aplicada como sanção disciplinar, aparenta assim ser curta face à gravidade dos factos e à convergência das conclusões periciais. Mas mostra também uma intervenção burocrática da IGAS: perante um médico que em apenas três meses cometeu quatro infracções desta gravidade, como as descritas, não seria prudente analisar o seu histórico?

  • Lei exigia que a substituição do cabo do elevador da Glória tivesse autorização e concordância do Instituto da Mobilidade e dos Transportes

    Lei exigia que a substituição do cabo do elevador da Glória tivesse autorização e concordância do Instituto da Mobilidade e dos Transportes


    Mesmo tratando-se de verdadeiras relíquias do património urbano, como o Elevador da Glória, a lei nunca desresponsabilizou a Carris nem a dispensou de submeter ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) um vasto conjunto de elementos sempre que realiza intervenções estruturais. Ao contrário daquilo que o IMT tentou fazer passar numa primeira fase do acidente, antes de se saber da ruptura do cabo, uma leitura atenta do diploma legal que regula o regime especial para instalações de interesse histórico, cultural ou patrimonial é, na verdade, apenas uma flexibilização documental, e não uma dispensa de obrigações de segurança ou de fiscalização.

    O cabo é o coração do sistema dos ascensores históricos: sem ele, os elevadores não sobem nem descem — e se falham, como falhou na semana passada, a viagem transforma-se em tragédia. Por isso, a lei trata-o como componente de segurança crítica, exigindo homologação, ensaios e autorização antes de transportar passageiros.

    Com efeito, o regulamento em vigor desde 2020, e que revogou um decreto-lei de 2002, estabelece que as chamadas “instalações por cabo classificadas como instalações de interesse histórico, cultural ou patrimonial” — como os elevadores da Glória, Bica e Lavra — apenas beneficiam de dispensa da marcação CE ou da apresentação de declarações europeias de conformidade para componentes especialmente concebidos para elas.

    Porém, a regra de fundo mantém-se: qualquer alteração significativa que inclua “os subsistemas e componentes de segurança das instalações” carece de autorização prévia do IMT, e só pode ser executada após a apresentação de projecto, plano de ensaios e uma análise de segurança por organismo independente, escolhido pelo dono da obra (no caso, a Carris) mas aceite pela entidade reguladora.

    Isto significa que a substituição do cabo tractor, efectuada no ano passado no Elevador da Glória pela MNTC – e que a Carris ainda não quis disponibilizar ao PÁGINA UM –, não poderia ter sido tratada como uma mera operação de manutenção rotineira. Por lei, mesmo para elevadores históricos, a Carris deveria ter instruído um processo administrativo prévio junto do IMT, contendo “análise de segurança para a fase de entrada em serviço e relatório de segurança” e posteriormente uma declaração que a alteração fora terminada acompanhada de “documentos que demonstrem a conformidade da instalação com os requisitos essenciais do regulamento”. Nessa linha, teria de ser enviado um “dossier técnico contendo o relatório final dos ensaios e verificações realizadas”.

    A yellow tram travels uphill on its tracks.

    Se este procedimento não foi cumprido na íntegra, o elevador poderá ter estado a operar de forma irregular, sem cobertura legal para transportar passageiros. E esta não é uma mera formalidade: trata-se do coração do sistema de segurança pública, destinado a prevenir acidentes graves e a responsabilizar as entidades exploradoras por todas as etapas do ciclo de vida do equipamento.

    Mas as obrigações da Carris não se esgotam nesta fase em que houve uma alteração de uma componente do funcionamento e da segurança do elevador da Glória. E nem o IMT pode lavar as mãos por se tratar de infraestruturas de transporte histórico. Com efeito, em nenhum aspecto da legislação se isenta a empresa transportadora da obrigatoriedade de manter um sistema de manutenção documentado e um sistema de gestão da segurança capaz de lidar com situações normais e excepcionais.

    Além disso, a lei impõe ainda que, de três em três anos, o IMT realize uma inspecção completa e emita autorização de continuação em serviço, após análise de um relatório intercalar de segurança que a Carris tem de enviar, acompanhado da prova de que dispõe de quadro técnico adequado, contratos de subcontratação aceites pelo IMT e seguro de responsabilidade civil válido.

    Mesmo em regime patrimonial, a lei é clara: cópias do relatório de segurança, declarações de conformidade, documentação técnica dos componentes e registos de restrições de utilização teriam de estar disponíveis nas próprias instalações para que a fiscalização pudesse, a qualquer momento, auditar o histórico da infraestrutura. Caso se verificasse falhas graves, o IMT tem competência para determinar a suspensão da exploração, com um prazo máximo de seis meses para reposição das condições de segurança, sob pena de revogação da autorização.

    E mais: mesmo em elevadores históricos seria inadmissível que fossem colocados cabos que não estivessem homologados. A legislação refere que caso o IMT verificasse que “um componente de segurança provido de marcação CE de conformidade” pudesse colocar “em risco a segurança e a saúde de pessoas ou a segurança de bens” tinha a competência para determinar “a proibição da sua utilização ou a restrição ao seu campo de aplicação”. Ora, a Carris nem sequer quis informar ainda o PÁGINA UM quem foi o fornecedor do cabo e qual foi o custo.

    Em suma, o discurso de que o estatuto patrimonial dos elevadores justificaria uma espécie de auto-regulação artesanal é, assim, insustentável. A responsabilidade continua a ser da Carris, que responde perante os utentes, trabalhadores e terceiros pelos riscos de exploração e pelos contratos de fornecimento de produtos e serviços. A subcontratação de técnicos ou de empresas para realizar inspecções e manutenções não transfere essa responsabilidade: apenas é admitida se os contratos forem previamente aceites pelo IMT e se for assegurado que os trabalhadores cumprem os requisitos de qualificação e que permanecem sob a direcção funcional da entidade exploradora.

    Conselho de Administração da Carris.

    A pergunta que agora se impõe, perante o desastre do Elevador da Glória, é simples: cumpriu a Carris todos estes passos? Foram submetidos ao IMT o projecto de substituição do cabo, a análise de segurança e o plano de ensaios? Existe relatório final de ensaios assinado por entidade independente? Foi emitida autorização de entrada em serviço antes de o elevador retomar a operação?

    Questões para as quais não há resposta da Carris, até porque a empresa municipal, em relação às questões anteriores do PÁGINA UM, respondeu ontem a dizer que “está a receber inúmeras solicitações de entidades e de órgãos de comunicação social”, prometendo apenas que será “dada resposta com prioridade e a maior brevidade possível”. Foram endereçadas mais questões, que serão incluídas quando e se houver resposta.

  • Assim, a Justiça no Brasil não tem jeito

    Assim, a Justiça no Brasil não tem jeito


    Há um momento em que um observador estrangeiro, mesmo o mais benevolente, deixa de suspender o juízo e começa a franzir o sobrolho: a justiça no Brasil não tem jeito. Não é apenas um lugar-comum; é uma constatação empírica de quem conhece, com algum detalhe, a génese desse grande país unificado artificial e miraculosamente (sabem quantos países saíram das colónias espanholas na América?) e acompanha, há anos, os desdobramentos de um sistema judicial que se tornou, simultaneamente, protagonista e encenador da vida política.

    Aquilo que por cá, em Portugal, ainda chamamos de sistema de Justiça – mesmo assim com demasiados defeitos e falhas –, lá assume um figurino peculiar, quase barroco, em que os magistrados do topo não se limitam a interpretar leis e julgar litígios: são eles próprios personagens centrais da narrativa pública. E o pior é que parecem saborear esse estatuto de protagonistas.

    Alexandre de Moraes

    Não se trata aqui de uma denúncia ideológica, nem de uma defesa de qualquer corrente política, seja a esquerda lulista ou a direita bolsonarista. A questão é outra e bem mais séria: é o Estado brasileiro enquanto tal, é a credibilidade das instituições, é o pacto social que se fragiliza cada vez que um julgamento se transforma num reality show televisivo, com ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) a darem entrevistas, a trocarem farpas em plenário, a medirem a popularidade nas redes sociais e a decidirem o destino de candidatos que polarizam o país. É certo que as democracias precisam de tribunais constitucionais fortes. Mas não precisam de tribunais-vedeta.

    O STF é, em teoria, o guardião último da Constituição. Na prática, tornou-se um actor político de primeiro plano. Cada ministro detém um poder quase imperial sobre os processos que relata: decide quebras de sigilo, prisões preventivas, diligências de busca e apreensão, medidas cautelares de grande impacto, e depois, no julgamento, apresenta o seu voto – o qual serve de guia para os demais ministros, que o acompanham na maioria dos casos. É um sistema que mistura investigação e julgamento numa única pessoa, criando o risco óbvio de pré-julgamento. Em democracias maduras, essas funções estão separadas: quem investiga ou supervisiona a legalidade da investigação não deve ser quem julga o mérito. Mas isso não se circunscreve ao STF – é visível noutros níveis.

    O exemplo paradigmático é o de Sérgio Moro e da Operação Lava Jato. Há quase uma década, Moro conduziu a investigação, determinou prisões, autorizou escutas e, no fim, sentenciou Lula da Silva. Mais tarde, o próprio STF reconheceu a sua parcialidade e anulou o processo. Mas o mal estava feito: Lula ficou inelegível em 2018, passou quase dois anos preso e a eleição presidencial decorreu sem a sua participação.

    Sérgio Moro

    E depois ficou indelével um rasto de dúvida: será que houve justiça ou apenas uma coreografia judicial com efeitos políticos? E depois sabemos o que sucedeu com Sérgio Moro: integrou em finais de 2018 o Governo Bolsonaro, como ministro da Justiça, ‘aventura’ que durou cerca de um ano e meio, tendo depois saltitado por dos partidos. E hoje é senador da União Brasil pelo estado do Paraná. Temos, portanto, um magistrado com vaidades e pretensões políticas a conduzir um julgamento enviesado, independentemente dos actos e culpas do arguido.

    Hoje, repete-se um enredo semelhante, desta vez com Jair Bolsonaro. Os inquéritos multiplicam-se, as decisões monocráticas sucedem-se, e já houve consequências políticas paralelas: o ex-presidente está impedido de concorrer durante oito anos e arrisca-se agora a ter prisão declarada se o STF assim o decidir (neste momento, está um ‘resultado’ de 2 a 1). Não se trata aqui de absolver Bolsonaro das acusações – é evidente que ele terá responsabilidades políticas, talvez até criminais, no ambiente de contestação e na invasão dos edifícios dos Três Poderes a 8 de Janeiro de 2023. Mas o problema é outro: a Justiça parece ter pressa em dar uma resposta exemplar, uma espécie de purga política que tem tanto de punitivo como de pedagógico. Ora, Justiça não deve ser vingança nem pedagogia; deve ser justiça.

    E, pior, assiste-se a uma celebração mediática dessa punição como espectáculo. As televisões e os portais de notícias transmitem cada voto, cada frase sonora, cada ironia lançada no plenário. O processo judicial torna-se entretenimento, combustível para as bolhas de ódio nas redes sociais. É o ‘circo mediático’ que transforma um julgamento em espectáculo, que transforma magistrados em celebridades e réus em vilões ou mártires, conforme o lado do espectador. O resultado é um reforço da polarização, não a sua superação.

    Lula da Silva

    A Justiça brasileira precisa urgentemente de mecanismos que a resguardem dessa tentação de protagonismo. O juiz de garantias, figura prevista mas não implementada, é um desses mecanismos. Num sistema verdadeiramente acusatório, a investigação é conduzida pelo Ministério Público e supervisionada por um juiz de garantias, que decide sobre a legalidade das provas, mas não julga o mérito.

    Depois disto, outro juiz, ou um colegiado, faz o julgamento final. Isso reduz drasticamente o risco de parcialidade e aumenta a confiança de que o arguido está a ser julgado por alguém que não se comprometeu previamente com a sua condenação, algo que não sucedeu com Lula e não sucede agora com Bolsonaro.

    Mostra-se também fundamental limitar o poder monocrático dos ministros do STF. Um único juiz não pode ter nas mãos a possibilidade de suspender leis, interditar políticos ou bloquear redes sociais inteiras sem um debate colegiado prévio, como já se observou com Alexandre de Moraes. O Brasil precisa de recuperar a noção de que tribunais são árbitros, não jogadores – e que o seu papel é aplicar a Constituição, não moldar o tabuleiro político ao sabor de convicções pessoais.

    Jair Bolsonaro

    Não se trata aqui de criar uma agenda para beneficiar Bolsonaro – sobre quem não tenho a mínima simpatia pessoal, e ainda menor afinidade de valores e princípios – ou qualquer outro arguido célebre. Trata-se de evitar que, no próximo ciclo, outro nome seja sacrificado no altar do justicialismo, talvez alguém da esquerda, talvez um líder social, talvez um jornalista incómodo. Quando a Justiça se torna uma arma política, cedo ou tarde será usada contra todos.

    E há ainda uma dimensão moral que não pode ser esquecida. Justiça não é apenas punição, é também redenção. Uma democracia precisa de encontrar caminhos para reintegrar aqueles que erraram, desde que cumpram a pena que lhes foi imposta. Impedir um político de se candidatar durante quase uma década pode ser uma medida legítima, mas será a mais inteligente para um país que precisa desesperadamente de reduzir a sua polarização?

    Não seria mais útil permitir que Bolsonaro e o bolsonarismo enfrentem o juízo das urnas, em vez de os transformar em vítimas e lhes dar o combustível da narrativa de perseguição?

    Luiz Fux, um dos cinco juízes do STF, que está a julgar Bolsonaro e mais sete arguidos, e que mostra um julgamento-espectáculo.

    O Brasil precisa de Justiça, não de justicialismo. Precisa de previsibilidade jurídica, não de decisões que parecem responder ao clamor das ruas ou às capas dos jornais. Precisa de magistrados que sejam respeitados pelo seu silêncio e pela sua sobriedade, não pelas suas tiradas de efeito. Precisa de um sistema que trate Lula, Bolsonaro ou qualquer cidadão comum segundo as mesmas regras, e que não permita que a história de um processo se confunda com a biografia de um ministro.

    Enquanto isso não acontecer, continuaremos a assistir a julgamentos históricos que, mais do que fortalecer a democracia, a corroem. Continuaremos a ver réus que se tornam heróis ou mártires, tribunais que se tornam palcos e ministros que se tornam estrelas. Continuaremos, em suma, a dizer que a justiça no Brasil não tem jeito. Mas tem de ter: porque sem ela não haverá redenção possível para um país que precisa desesperadamente de paz institucional.