Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Pandemia em Cascais: Conheça os felizes contemplados com o ‘rico bodo’ de 24,6 milhões de euros

    Pandemia em Cascais: Conheça os felizes contemplados com o ‘rico bodo’ de 24,6 milhões de euros

    Durante a pandemia, a Câmara de Cascais não fez apenas estranhos negócios com uma empresária chinesa que envolveu a produção de máscaras e transação de propriedades. Destacou-se também como a autarquia que mais contratos celebrou para comprar máscaras e testes, pagar pessoal de enfermagem e reabilitar edifícios e o mais que houvesse associado à pandemia. Dinheiro não faltou e 58 empresas esfregaram as mãos com a distribuição de mais de 24,6 milhões de euros, sobretudo uma, a Enerre, cujo dono lucrou tanto com a pandemia que até foi correr o Rally Dakar. No meio deste ‘bodo’, mas para ricos, até uma cidadã da Letónia conseguiu impingir equipamento para alegadamente eliminar o SARS-CoV-2 por 277 mil euros, através de uma empresa criada poucos meses antes e que se ‘esfumou’ entretanto.


    Além de ter encetado um estranho negócio para a produção de máscaras de protecção facial – que também envolveu transação de propriedades, alvo ontem de buscas pela Polícia Judiciária –, a autarquia de Cascais destacou-se durante a pandemia a nunca olha a custos. Quase sempre através de ajustes directos.

    De acordo com um levantamento exaustivo do PÁGINA UM no Portal Base, a Câmara Municipal de Cascais, liderada por Carlos Carreira – que era ‘coadjuvado’ por Miguel Pinto Luz, actual ministro das Infraestruturas –, gastou em pouco mais de dois anos cerca de 24,6 milhões de euros em equipamentos e serviços associados ao combate à pandemia, envolvendo um total de 98 contratos que beneficiaram 58 empresas. Apenas cinco contratos, de pequena dimensão, foram realizados após consulta prévia. A autarquia usou e abusou da faculdade de escolher a dedo os fornecedores.

    E há uma em especial que não se pode jamais queixar: a Enerre. Para esta empresa lisboeta, que antes da pandemia fazia brindes e estampagem de t-shirts, a covid-19 foi a sorte grande. Tanto assim que o seu proprietário deu-se logo em finais de 2020 em fazer o Rally Dakar. Pudera: nesse ano registou lucros de quase 18,2 milhões de euros, cerca de 60 vezes mais do que no ano anterior à pandemia.

    Carlos Carreiras tornou-se, como edil de Cascais, o principal ‘cliente pandémico’ da Enerre, que ainda criaria em 2021 a Enerre Pharma. Antes do surgimento do SARS-CoV-2, a Enerre apenas tivera um contrato com a autarquia cascalense de cerca de 59 mil euros em 2019 para a produção de brindes. Mas depois, foi um fartote. Incluindo a sua subsidiária, a Enerre facturou mais de 14,8 milhões de euros, dos quais quase 12 milhões logo no primeiro da pandemia. Sempre sem competição.

    Os cinco maiores contratos associados à pandemia celebrados por Carlos Carreiras foram todos para a Enerre, sendo que o maior foi assinado em 7 de Abril de 2020. Pela ‘módica quantia’ de 4.857.500 euros foram adquiridas 1,2 milhões de luvas, 2 milhões de máscaras cirúrgicas, 250 mil máscaras FFP2, 200 mil batas e 50 mil viseiras. No caderno de encargos não foi sequer discriminado o preço unitário, sendo certo que o preço médio por cada item adquirido chega a quase 1,3 euros. Foi o tempo da especulação. Mas esse contrato até foi apenas um ‘reforço’ de um outro ajuste directo em 20 de Março, pelo preço de quase 1,2 milhões de euros para adquirir 1,7 milhões de máscaras cirúrgicas, 50 termómetros, dois mil viseiras e dois fatos macacos.

    Não foi apenas a vender equipamentos de protecção individual que a Enerre ganhou dinheiro. De entre os contratos desta empresa, dos quais 12 acima dos 400 mil euros (ou de valor igual), sempre por ajuste directo, estão também vendas de testes e de máquinas dispensadoras de máscaras, bem como de consumíveis para a produção de máscaras. Os dispensadores de máscaras, que acabaram vandalizados, custaram 800 mil euros.

    Carlos Carreiras, edil de Cascais, ostentando um galardão entregue pelo ISCTE como reconhecimento pelo Programa Máscaras Acessíveis e Fábrica de Máscaras em Novembro de 2020.

    Bastante afastada da Enerre, o segundo maior beneficiário das compras de Carlos Carreiras foi uma empresa de segurança, a PSG. Entre 2020 e 2022, esta empresa obteve sete ajustes directos no valor total de mais de 1,4 milhões de euros, o primeiro dos quais em Abril de 2020. O grosso da facturação foi para vigilância dos centros de rastreio e de apoio à vacinação. O último foi assinado em Setembro de 2022, no valor de 212 mil euros, embora fosse também para vigilância de centros de acolhimento.

    Também com facturação acima de um milhão de euros associados à pandemia encontram-se mais duas empresas, a Briticasa (com quase 1,2 milhões de euros) e a Blue Ocean Medical (com 1,15 milhões de euros). A primeira empresa foi escolhida por Carreiras para quatro empreitadas por ajuste directa. Em Junho de 2020 pelas obras de reconversão de um armazém pagou-se mais de 342 mil euros; depois em Janeiro do ano seguinte foi mais uma empreitada para criação de sete gabinetes médicos no Centro de Congressos do Estoril (com um custo de 72 mil euros) e até ao meio de 2021 dois ajustes directos para empreitadas de reabilitação destinadas a centros de vacinação, que totalizaram 780 mil euros.

    Quanto à segunda empresa, trata-se de uma prestadora de trabalho temporária, neste caso de pessoal de enfermagem para os centros de vacinação. Por quatro ajustes directos, a autarquia de Cascais celebrou sem pestanejar – ou seja, nem sequer fez consulta de mercado – quatro contratos por ajuste directo entre Março de 2021 e Março de 2022. O primeiro contrato, no valor de 150 mil euros, celebrado em Março de 2021 deveria ter tido uma duração de 304 dias, mas acabaria por ser ‘reforçado’ por mais três, dois de 350 mil euros e outro de 300 mil.

    A pandemia permitiu ao dono da Enerre, Lourenço Rosa, aumentar em 60 vezes o lucro de 2020 face ao ano anterior. Como ‘prémio pessoal’, foi participar no Rally Dakar. A autarquia de Cascais foi o seu melhor cliente, facturando 14,8 milhões de euros.

    Excluindo um ‘contrato interno’ – em Julho de 2020, a autarquia pagou 540 mil euros à sua empresa municipal Cascais Dinâmica pelo aluguer de 60 dias do Centro de Congressos do Estoril –, também se destaca nesta distribuição de dinheiros públicos a celebração de dois contratos no valor de um milhão de euros com dois importantes laboratórios de análises: os de Joaquim Chaves e os de Germano de Sousa. O primeiro contrato, porém, só resultou no pagamento de pouco mais de 28 mil euros, enquanto o segundo acabou por dar uma despesa de pouco mais de 65 mil euros. Estes testes serviam para detectar a presença de anticorpos após a infecção pelo SARS-CoV-2, mas a autarquia não se mostrou interessada em monitorizar a eficácia protectora da vacina e da imunidade natural.

    No meio dos contratos com valor mais elevado destaca-se ainda um completamente estapafúrdio. A empresa municipal Cascais Próxima decidiu comprar a uma empresária da Letónia, a morar no Porto, de seu nome Liene Strode, um “equipamento de purificação e desinfecção de ar com eficácia contra o SARS-COVID 19 [sic], incluindo o transporte, descarga e entrega”. O caderno de encargos está ausente no Portal Base, sabendo-se apenas que foi pago 277.200 euros em Fevereiro de 2021.

    A empresa, denominada Real Amplitude, foi criada apenas em 2 de Junho de 2020, mas só conseguiu convencer mais uma entidade pública dos seus ‘magníficos’ equipamentos, que a Agência de Protecção Ambiental norte-americana (EPA) diz “não ser suficiente para proteger as pessoas da covid-19” –, tendo vendido em Março de 2021 por 4.466 euros um outro equipamento de purificação e desinfecção para a covid-19 ao município de Torre de Moncorvo. Como foi celebrado por ajuste directo simplificado nem sequer houve contrato escrito.

    Miguel Pinto Luz, actual ministro das Infraestruras e Habitação, ocupou até Janeiro deste ano a vice-presidência da autarquia de Cascais.

    A empresa da cidadã letã não apresentou contas em 2022 e não tem sequer um site se encontra qualquer site, o que é estranho para quem, no objecto social, se apresenta como “agentes do comércio por grosso de máquinas, equipamento industrial, embarcações e aeronaves; agentes do comércio por grosso misto sem predominância como por exemplo, produtos médicos e de higiene; comércio por grosso de produtos químicos; comércio por grosso de outros bens intermédios”.

    Mas, afinal, a venda deste ‘equipamento’ a Cascais só custou 277.200 euros, pouco mais de 1% daquilo que o município de Carlos Carreiras distribuiu a dezenas de empresas sem qualquer controlo.

    Saliente-se ainda que, ao contrário do que disse Carlos Carreiras, o actual ministro das Infraestruturas, Miguel Pinto Luz, não esteve alheado dos contratos associados à pandemia. Foi ele que em Junho de 2020 se destacou na promoção da unidade de produção de máscaras na tal unidade com equipamentos vindos da China, e que prometiam tornar o município auto-suficiente e até vender para outras autarquias. Acabou tudo em logro, até porque a sua maquinaria rapidamente avariou.


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  • Tribunal Administrativo ‘mostra’ ao Governo como fugir à transparência

    Tribunal Administrativo ‘mostra’ ao Governo como fugir à transparência

    Se um Governo quiser impedir o acesso a documentos da sua função político-administrativa tem agora um bom argumento ‘fornecido’ por um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS): basta que diga que possuem natureza política. No decurso de uma intimação do PÁGINA UM para acesso ao inquérito sobre incompatibilidades preenchido por Caleia Rodrigues antes de assumir funções de secretário de Estado da Agricultura em Fevereiro do ano passado – o único que o fez ainda durante o Governo Costa –, três desembargadores do TCAS, entre os quais um ex-inspector-geral da Administração Interna, vieram agora confirmar uma sentença de há um ano do Tribunal Administrativo de Lisboa. Para os desembargadores, aqueles inquéritos – que terão sido agora também preenchidos pelos membros do Governo Montenegro – são de natureza política, o que implica o seu imediato secretismo. Como a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, criada em 1993, se mostra ambígua sobre os documentos que não são administrativos, significa que esta tese do TCAS, a fazer jurisprudência, concede o direito a qualquer membro do Governo alegar que todos os ofícios, estudos, relatórios e pareceres têm um cunho político, evitando assim a sua divugação. E mesmo o acesso a jornalistas.


    Um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), aprovado no final do mês passado, concede, de forma indirecta, a receita para qualquer Governo, no contexto da actual Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), fugir à transparência: alegar que relatórios, inquéritos ou outras quaisquer decisões escritas ou em formato digital são documentos políticos. Esse ‘truque’ transforma-os em documentos secretos, independentemente de qualquer classificação.

    Em causa estava um processo de intimação do PÁGINA UM para o acesso aos inquéritos dos convidados a integrarem os Governos, designadamente ministros e secretários de Estado, uma prática introduzida por uma Resolução de Conselho de Ministros no início do ano passado, mas que foi apenas usada no Governo de António Costa uma única vez. Gonçalo Caleia Rodrigues, antes de assumir funções de secretário de Estado da Agricultura em 15 de Fevereiro de 2023, foi o único que preencheu o inquérito, ao qual o PÁGINA UM pedira o acesso, que foi recusado pelo Governo de António Costa. Com a entrada em funções dos novos ministros e secretários de Estado do Governo de Luís Montenegro, terão sido, eventualmente, preenchidos novos inquéritos, embora com este acórdão não seja possível sequer conseguir confirmar documentalmente a sua existência.

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    Aprovado por unanimidade, o acórdão do TCAS assinado por três desembargadores, o primeiro dos quais é Pedro Figueiredo, inspector-geral da Administração Interna entre 2015 e 2019, tendo recebido um louvor do então ministro Eduardo Cabrita aquando da sua saída daquelas funções. Os outros dois desembargadores foram Marcelo Mendonça e Carlos Araújo.

    A decisão do tribunal é muito lacónica e nem se perde sequer em grandes considerações. Ocupa pouco mais de duas páginas e confirma uma sentença de Abril do ano passado do Tribunal Administrativo de Lisboa com 10 páginas. O PÁGINA UM alegara que, embora se estivesse perante acto preparatório de uma decisão política – a posterior nomeação de governantes –, o inquérito (o documento em si) constituía o cumprimento de um requisito administrativo, emanado de uma lei, tanto mais que era preenchido por alguém que não exercia ainda funções governativas, sendo antes um pré-requisito de um cidadão para ser nomeado pelo primeiro-ministro ou por um ministro. Além disso, o PÁGINA UM salientava que, tendo a dita Resolução do Conselho de Ministros, justificado o inquérito pela “importância de assegurar a transparência e o controlo da integridade do sistema democrático”, o secretismo em redor do seu conteúdo era incongruente para esse propósito.

    Recorde-se que a Resolução do Conselho de Ministros estipula que “uma vez preenchido, o questionário [pelos candidatos a membros do Governo] tem a classificação de Nacional Secreto”, e que haverá lugar à sua destruição “caso a personalidade que o preencheu não seja nomeado membro do Governo ou no momento em que cesse funções.” A classificação especial de documentos administrativos – que são todos aqueles que caem na esfera da Administração Pública – carece, na maioria dos casos, de leis da Assembleia da República, além de que a restrição de acesso a estes inquéritos, colocando-os como “Nacional Secreto”, se mostra completamente abusiva, porque os equipara a “segredo de Estado”.

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    Contudo, de acordo com a Lei Orgânica nº 2/2014, o regime do segredo de Estado abrange somente “os documentos e as informações cujo conhecimento por pessoas não autorizadas é suscetível de pôr em risco interesses fundamentais do Estado”, sendo que esses se encontram explicitamente explanados, a saber: “interesses fundamentais do Estado os relativos à independência nacional, à unidade e à integridade do Estado ou à sua segurança interna ou externa, à preservação das instituições constitucionais, bem como os recursos afetos à defesa e à diplomacia, à salvaguarda da população em território nacional, à preservação e segurança dos recursos económicos e energéticos estratégicos e à preservação do potencial científico nacional.”

    Na mesma linha seguem também até as instruções para a segurança nacional, a salvaguarda e a defesa das matérias classificadas, designadamente as credenciações do Gabinete Nacional de Segurança, onde melhor se explicita que a classificação de Nacional Secreto abrange apenas “as informações, documentos e materiais cuja divulgação ou conhecimento por pessoas não autorizadas possa ter consequências graves para a Nação ou nações aliadas ou para qualquer organização de que Portugal faça parte”.

    Em concreto, diz-se que essa classificação de Nacional Secreto – que implica fortes restrições de acesso – só se verificam se fizerem “perigar a concretização de empreendimentos importantes para a Nação ou nações aliadas ou para organizações de que Portugal faça parte”, ou ainda se “comprometerem a segurança de planos civis e militares e de melhoramentos científicos ou técnicos de importância para o País ou seus aliados ou para organizações de que Portugal faça parte”, ou ainda se “revelarem procedimentos em curso relacionados com assuntos civis e militares de alta importância.”

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    Em todo o caso, esta justificação nem sequer seria necessária, na interpretação dos juízes e desembargadores do Tribunal Administrativo. No acórdão, que confirma a linha de uma primeira sentença, conclui-se que “o preenchimento do dito ‘questionário de apreciação prévia’ insere-se no processo de escolha dos membros do Governo, pelo Primeiro-Ministro, tal actividade é política, não administrativa e visará salvaguardar o prestígio do Governo”. E dizem ainda os desembargadores que “as restantes preocupações referidas pelo recorrente [PÁGINA UM], nomeadamente o desejo de averiguar se o Governo deu cumprimento à Resolução Fundamentada referida nos autos, não são susceptíveis de alterar o decidido, porquanto a LADA [Lei do Acesso aos Documentos Administrativos] não o permite”.

    Este acórdão abre, deste modo, uma panóplia de possibilidades a qualquer Governo em considerar político todos os pareceres, relatórios ou mesmo troca de comunicações elaborados para a posterior tomada de uma decisão ministerial ou do Conselho de Ministros, prejudicando assim a transparência tão propagandeada na teoria mas pouco evidente na prática. Aliás, ao contrário do que sucede em diversos países europeus, a legislação portuguesa na transparência nas decisões políticas é pouca.

    Nesse âmbito, a LADA é, intencionalmente ambígua, permitindo interpretações à la carte como as do acórdão do TCAS, na definição do que não é documento administrativo. Nesse diploma, cuja primeira versão tem 31 anos, salienta-se que estão excluído do acesso “as notas pessoais, esboços, apontamentos, comunicações eletrónicas pessoais e outros registos de natureza semelhante, qualquer que seja o seu suporte” – ou seja, não são, em princípios, acessivos mensagem de e-mail ou de WhatsApp –, ainda “os documentos produzidos no âmbito das relações diplomáticas do Estado português” e também “os documentos cuja elaboração não releve da atividade administrativa, designadamente aqueles referentes à reunião do Conselho de Ministros e ou à reunião de Secretários de Estado, bem como à sua preparação”.

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    Ora, este “designadamente” permite ambiguidades, porque não exclui outras actividades para além das que se referem às reuniões formais de governantes. No limite, se um qualquer governante assim desejar pode, a partir de agora, se a interpretação dos desembargadores fizer jurisprudência, alegar que todos os documentos, mesmo que aparentem ser de índole administrativa, constituem actividade política, até porque um Governo tanto administra como exerce funções políticas sendo a fronteiras entre estas funções bastante ténue ou mesmo inexistente.

    Saliente-se que o PÁGINA UM, conhecendo à partida a possibilidade de insucesso desta intimação, avançou mesmo assim para que, em caso de indeferimento – como se confirmou agora –, pelo menos ficasse patente a hipocrisia de uma medida política de evidente populismo: decretou-se um inquérito prévio, em prol da transparência, para averiguar da idoneidade de futuros governantes, mas depois publicamente fica tudo secreto. No limite, pode nem sequer haver inquéritos preenchidos. E mesmo que existam, no fim das funções dos governantes, ou se os candidatos não forem aceites, a Resolução do Conselho de Ministros determina a sua destruição. Nem para os historiadores ficam. Na verdade, existirem ou não existirem os ditos inquéritos é ‘igual ao litro’. Nem servem ‘para inglês ver’.


    As iniciativas do PÁGINA UM junto do Tribunal Administrativo são financiadas pelo FUNDO JURÍDICO, com apoios dos nossos leitores. Em situações como a desta intimação, desfavorável ao PÁGINA UM, os encargos acabam por ser maiores por ser impostas as custas. Para manter a possibilidade de continuar as iniciativas em prol de uma maior transparência administrativa e política, apoie o FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM. Neste momento, está em preparação a entrada de mais três intimações por recusa de documentação administrativa.


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  • Elon Musk em ‘pé de guerra’ contra a censura judicial no Brasil

    Elon Musk em ‘pé de guerra’ contra a censura judicial no Brasil

    Tantas foram as exigências de bloqueio de contas no X, que o ‘cântaro’ se quebrou. Depois de ontem a empresa proprietária do X (ex-Twitter) ter denunciado que as autoridades judiciais brasileiras, lideradas pelo juiz Alexandre de Moraes, nem sequer identificam os motivos para as ordens de bloqueio contas na rede social, Elon Musk prometeu hoje não acatar mais as ordens e exigiu mesmo a demissão der Alexandre de Moraes. No braço de ferro com a Justiça, que ameaça com multas à rede social, Musk garante que, por uma questão de princípio, não pode apoiar a censura e até admite já perder as receitas no mercado brasileiro.


    Elon Musk, o proprietário da rede social X (ex-Twitter), promete que não vai mais respeitar as exigências de Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil, para bloquear contas de utilizadores, e acusa aquele magistrado de trair “descaradamente a Constituição” daquele país, acrescentando que “deveria renunciar ou ser demitido”. Musk diz ainda que, em breve, divulgará as exigências de Alexandre de Moraes, que no Brasil tem um poder que extravasa o ciclo judiciário.

    Ontem, de um modo formal, a X Corporation – a empresa dona da rede social – informou que “foi forçada por decisões judiciais a bloquear determinadas contas no Brasil”, mas que nem sequer sabem “os motivos pelos quais essas ordens de bloqueio foram emitidas” nem sequer “quais postagens [que] supostamente violaram a lei”. Além disso, a rede social está também proibida de informar “qual tribunal ou juiz [que] emitiu a ordem, ou em qual contexto”, e nem sequer podem listar publicamente as contas afectadas.

    Elon Musk abriu ‘guerra’ contra a Justiça brasileira por exigirem bloqueio contas sem sequer informar quais os posts que violaram as leis.

    A empresa diz ainda que foram ameaçados com multas diárias se não cumprirem as ordens. Apesar de prometer agir legalmente, por tais medidas judiciais serem contrárias ao Marco Civil da Internet e à Constituição do Brasil, hoje em diversos posts Elon Musk manifestou que não vai mais acatar ordens de Alexandre de Moraes que tem usado de forma arbitrária bloqueios de contas alegando que estas apoiam movimentos subversivos ou discurso de ódio. Mas, na verdade, acabam por ser casos de censura de opinião.

    Não acreditamos que tais ordens estejam de acordo com o Marco Civil da Internet ou com a Constituição Federal do Brasil e contestaremos legalmente as ordens no que for possível.

    Hoje, Musk denunciou a “censura agressiva [que] parece violar a lei e a vontade do povo do Brasil”, aproveitando para compartilhar publicações do jornalista norte-americano Michael Shellenberger. Tendo já escrito sobre os Twitter Files, relacionadas com práticas de censura durante a pandemia, este jornalista norte-americano é um conhecido activista climático, co-fundador do Breakthrough Institute e fundador da organização ambiental Environmental Progress, tendo sido foi nomeado um dos Heróis Ambientais pela revista Time e foi ainda vencedor do Green Book Award de 2008.

    Conhecedor da realidade brasileira, por ter vivido no Brasil nos anos 90, Shellenberger fez hoje um longo depoimento em português alertando que “não é um exagero dizer que o Brasil está à beira da ditadura nas mãos de um ministro totalitário do Supremo Tribunal Federal chamado Alexandre de Moraes”, acrescendo que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa neste suposto “impulso em direção ao totalitarismo”. O jornalista acrescenta ainda que “o Brasil está envolvido num caso de ampla repressão da liberdade de expressão” liderada por Moraes.

    Ontem, num simples post, Elon Musk escreveu que “sem liberdade de expressão, nós somos apenas uns escravos na matrix”, e aparenta querer levar o braço de ferro até ao fim com as autoridades judiciais do Brasil, mesmo que tal implique a sua saída daquele país. A imprensa brasileira, apesar de estar em causa sobretudo questões de liberdade de expressão, tem dado forte destaque a esta polémica, mas dando um cunho ideológico, destacando os apoios de bolsonaristas à postura de Elon Musk.


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  • Secretário de Estado da Presidência ‘meteu’ empresa de media em falência técnica

    Secretário de Estado da Presidência ‘meteu’ empresa de media em falência técnica

    Nos últimos seis anos, além de gestor em empresas do sector têxtil, o vimaranense Rui Armindo Freitas, empossado ontem como secretário de Estado-adjunto e da Presidência, tem estado ligado a empresas de media. Teve mesmo de abandonar agora a administração da Media Capital, dona da TVI. Mas foi na Swipe News, dona do jornal digital ECO, que Rui Freitas pôde mostrar o seus dotes por mais tempo, integrando a administração desde 2018 e a presidência entre 2020 e Setembro de 2023. Não se pode dizer que se saiu bem: a Swipe News nunca teve qualquer ano com lucros e acumula prejuízos que deverão atingir, com as contas de 2023, os cinco milhões de euros. No seu mandato, a empresa passou mesmo a estar em falência técnica, algo que se manterá mesmo com um aumento de capital de 1,3 milhões de euros no mês passado assumido pelas três dezenas de accionistas, onde se destacam o Grupo Mota-Engil e também Mário Ferreira.


    Luís Montenegro estará a partir desta semana, se não estava antes, bastante sensível às dificuldades financeiras dos grupos de media portugueses. O novo secretário de Estado-adjunto e da Presidência, Rui Armindo Freitas tem larga experiência em empresas de media deficitárias.

    Saindo directamente da administração da Media Capital (o seu nome ainda constava ontem à noite no site da empresa liderada por Mário Ferreira), este licenciado em Economia e gestor no secter têxtil esteve também desde 2018 como vogal e desde 2020 até Setembro do ano passado como presidente da administração da Swipe News, a empresa proprietária do jornal ECO e de outras publicações online centradas em branded content, como a Capital Verde, a ECOseguros, a Fundos Europeus, a Local Online, a +M e a Trabalho by ECO.

    Rui Armindo Freitas é o novo secretário de Estado adjunto e da Presidência no ministério liderado por António Leitão Amaro.

    E o ‘melhor’ que Rui Freitas conseguiu foi durante esse triénio foi transformar uma empresa de media que nunca apresentara lucros numa empresa em falência técnica, ou seja, com capitais próprios negativos, que significa que o dinheiro metido pelos accionistas se ‘esfumou’ e quem a sustenta são os bancos ou os ‘calotes’ aos fornecedores. A situação financeira insustentável deixada pela administração presidida por Rui Armindo Freitas – substituído em Setembro do ano passado por Luís Lopes Guimarães –, obrigou os accionistas a injectarem, há duas semanas, 1,3 milhões de euros para suprir necessidades de tesouraria, através de um aumento de capital.

    Criada em 2016, a Swipe News – que lançaria o jornal Eco em meados desse ano – é um daqueles casos paradigmáticos da imprensa portuguesa que faz jus ao adágio popular: “quem nasce torto, tarda ou nunca se endireita” – neste caso aplicando-se à parte económica, ou seja, os prejuízos são a norma, que se acumulam sem que ninguém, aparentemente, questione a sustentabilidade.

    No primeiro ano completo em funcionais, no exercício de 2017 a Swipe News – que tinha Rui Freitas como vogal – apresentava-se com um capital social de 1,2 milhões de euros, mas os prejuízos desse período (mais de 800 mil euros) ‘comeram-lhe’ logo dois terços do investimento inicial dos accionistas. Resultado: em 2018 houve dois aumentos de capital, o primeiro em Abril de 250 mil euros e o segundo em Novembro de 453.750 euros.

    Jornal digital ECO nasceu em meados de 2016, sendo, desde sempre, dirigido por António Costa.

    Nesse ano, contudo, os lucros foram ‘coisa’ arredada desta empresa de media que noticiava sobretudo os sucessos empresariais dos outros. No final de 2018, por mor de resultados líquidos negativos de mais de 691 mil euros, restava como capitais próprios uns meros 91.071 euros (arredondado para cima). Ou seja, um pouco mais de 95% do investimento dos accionistas tinha-se ‘esfumado’ sem se vislumbrar indicadores de sustentabilidade, até porque os activos se cifravam então em 636 mil euros, apenas um terço do investimento.

    Em 2019, um ano antes da passagem de Rui Freitas para a presidência da Swipe News, a empresa até superou, pela primeira vez, a fasquia de um milhão de euros, mas os gastos também dispararam, acabando o ano com um prejuízo de mais de 847 mil euros. Foi esse o último ano com os capitais próprios positivos, de acordo com a informação constante no Portal da Transparência dos Media.

    No primeiro ano da pandemia, com Rui Freitas como presidente do Conselho de Administração, a Swipe News até aumentou a facturação (cerca de 1,22 milhões de euros), mas também os encargos, o que resultou num prejuízo de mais de 656 mil euros. Em resultado, todo o investimento dos accionistas se ‘esfumou’ – os capitais próprios passaram a negativos em 314 mil euros – e o passivo mais do que duplicou, passando de 486 mil euros para 1,14 milhões de euros.

    O segundo ano de presidência de Rui Freitas à frente deste grupo de media não foi melhor: em 2021, a Swipe News registou o mesmo diapasão, com um significativo aumento dos rendimentos (acima de 1,5 milhões de euros), mas com prejuízos de 456 mil euros. Deste modo, os capitais próprios negativos subiram para 893 mil euros e a dívida a terceiros superava então os 1,55 milhões de euros.

    O terceiro ano da presidência de Rui Freitas teve mais do mesmo, agravado pelos capitais próprios negativos a duplicarem, passando a 1,64 milhões de euros, fruto de mais um prejuízo, desta vez de quase 749 mil euros. Nas contas de 2022, analisadas pelo PÁGINA UM, mostra-se notório que a Swipe News ‘vive’ de sucessivas injecões de financiamento bancário sofre de uma falta de liquidez confrangedora. Só em 2022, contabilizou financiamentos externos de quase 800 mil euros, mas toda essa verba foi ‘sugada até ao tutano’ para conseguir suportar pagamentos de salários e a alguns fornecedores. Tanto assim que a caixa (contas bancárias e o ‘mealheiro’ para a redacção apresentava no final desse ano uns míseros 350 euros menos oito cêntimos.

    Tudo somado – e numa altura em que ainda não são conhecidos os resultados do ano de 2023, mas que deverão confirmar um prejuízo acima de meio milhão de euros, como tem sucedido –, a Swipe News já acumulou prejuízos de mais de 4,6 milhões de euros. Ou seja, mostra-se expectável que os capitais próprios negativos nas contas de 2023 superem largamente os 2 milhões de euros.

    Por esse motivo, o aumento de capital de 1.302.647 euros determinado no passado dia 21 de Março apenas aliviará um pouco a situação de falência técnica. E desse modo, alegremente, o ano de 2024 perspectiva-se como o quinto sucessivo em falência técnica.

    Tomada de posse dos secretários de Estado do Governo Montenegro decorreu ontem. Foto: Mário Lopes Figueiredo / Presidência da República.

    Tendo 34 accionistas individuais e empresariais – com destaque para a Mota Gestão e Participações (23,4%), a Palopique (13,0%) e a Valens Private Equitity integralmente detida pelo principal accionista da TVI, Mário Ferreira (8,2%) –, a Swipe News encontra-se assim no rol de grupos de media em fortes dificuldades financeiras, das quais se destacam a Global Media, a Trust in News, a Impresa e as rádios do universo de Luís Montez.

    Mas agora, por certo, o Governo social-democrata – que integra Rui Armindo Freitas e também o ministro Pedro Reis (que presidiu o conselho editorial do jornal Eco) e ainda a secretária de Estado da Gestão da Saúde, Cristina Vaz Tomé (que tinha entrado em Janeiro para directora financeira da Swipe News) –, se renovará o debate para eventualmente salvar com dinheiros públicos (leia-se dinheiro dos contribuintes) modelos de negócio de empresas de comunicação social com resultados económicos desastrosos.


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  • Das forças e das fraquezas da imprensa mastodôntica

    Das forças e das fraquezas da imprensa mastodôntica


    A grande força da imprensa sempre esteve nas pessoas que alcança, e com a credibilidade da informação que lhes transmite e as induz a reagir perante um evento. Pode esse evento ser político, e daí que tenha surgido, no século XIX, por Thomas Carlyle, o conceito de Quarto Poder, ou seja, o Jornalismo como entidade próxima do povo, que por ele vigia e controla os outros três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário.

    Em teoria, a grande virtude e vantagem do Quarto Poder – um poder de facto – é a sua independência perante os outros três poderes, que são de jure. Nestas circunstâncias, o Jornalismo só se justifica se for independente – e, por isso, um dos lemas do PÁGINA UM teria de soar a uma lapalissada ridícula se, efectivamente, não vivêssemos tempos de crise de valores na imprensa nacional e internacional.

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    Numa contínua fuga para o abismo, onde o próprio regulador se mostra complacente com as maiores tropelias das direcções editoriais e de marketing, o modelo de negócio da endividada e desnorteada imprensa portuguesa transformou meios de comunicação social tradicionalmente assente em jornalismo credível em máquinas de fabricação de branded contents – conteúdos para promoção de marcas, que podem ir até ao marketing político e pessoal. E, nessa linha, mais do que dar notícias favoráveis ou fofinhas – ou incisivas contra os ‘inimigos’ –, o Jornalismo de hoje também se ‘mede’ pelas notícias de que não dá.

    Hoje, com honrosas excepções, não há quase nenhum jornalismo de investigação em Portugal, porque, por inerência, a investigação causa rupturas – e a pouca que há encontra-se enviesadamente direccionada para a dita extrema-direita, eleita em Portugal como o principal perigo para a democracia. Na verdade,se a extrema-direira cresce, mais pela via do populismo, deve-se ao fracasso das políticas dos partidos ditos democráticos. E sobretudo à esquerda.

    Em resultado da pouquíssima investigação rareiam as notícias sobre casos de corrupção. E quando falo de corrupção não estou aqui a referir-me a ‘malas de dinheiro’ – isso já não se faz assim, ou quem faz assim é por ser tolo. Hoje, a corrupção é do jaez da que se revelou no caso das gémeas luso-brasileiras – que, hélas, surgiu de uma das poucas jornalistas de investigação em Portugal com ‘alguma’ liberdade, a Sandra Felgueiras. Quem diz que não há corrupção em Portugal é como garantir que não haveria transgressões do Código da Estrada se não houvesse fiscalização policial. E se não há mais ‘casos’ de corrupção detectados é exactamente por a Imprensa mainstream em Portugal, completamente dependente dos humores financeiros do Estado e do mundo dos negócios, achar agora por bem não inquietar o status quo. E o mal de uma sociedade democrático começa a ruir pelo Quarto Poder.

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    Nos últimos anos, apesar das evidências de corrupção na sociedade política e empresarial, a Imprensa mainstream aceitou os mais deboches antidemocráticos, a começar com as negociatas em redor da pandemia. Os acordos secretos da Comissão Europeia – que se transformou numa entidade antidemocrática e que nos está a impor uma Economia de Guerra – são um ultraje aos princípios que que herdámos dos pais da Comunidade Económica Europeia. A perda de valores em Portugal veio por arrasto: em duas décadas, a Administração Pública ficou completamente obscura, e hoje um jornalista pedir informação ou requerer documentos é visto como uma ofensa.

    Recordem que é na perda de princípios éticos que reside a corrupção e aí cresce – e vejam como o bispo de Leiria veio ‘benzer’ os envolvidos no caso das gémeas luso-brasileiras, argumentando que “cunhas que salvam crianças não fazem mal a ninguém”, como se os quatro milhões de euros que se gastaram num caso absurdo (as crianças estavam em tratamento no Brasil com outro fármaco) não viessem a salvar outras vidas.

    A corrupção de valores é a antecâmara de todas as corrupções. Da simpatia se passa para o favorzinho, do favorzinho se passa para o favorecimento, do favorecimento se passa para a camaradagem, da camaradagem se passa para o compadrio, do compadrio se passa para a compensação, sob a forma de prebendas, sinecuras ou vil metal, sempre a receber a prazo. Quem dá hoje, por estar no poder, recebe amanhã, de quem beneficiou. A Imprensa deve estar atenta para, algures, evitar que os elos para a corrupção se liguem. É essa uma das suas funções primordiais do Jornalismo – a mais nobre. O resto é Comunicação, função nobre, mas que pode ser feita por meros comunicadores.

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    A perda de valores éticos não grassa nem desgraça somente os três Poderes tradicionais – tem vindo a desgraçar o Quarto Poder. Hoje, a corrupção medra, ou tem condições de medrar, quase sem ‘policiamento’ jornalístico. Basta verificar como, com pouquíssimos meios, o PÁGINA UM já revelou um sem-número de casos  suspeitos em contratos públicos. Não há mais jornalistas com capacidade de fazer o mesmo, ou até muito melhor, nem que seja por mais meios e potenciais fontes? Claro que há. E então como é possível que a pouca-vergonha da campanha solidária ‘Todos por Quem Cuida’, sobre os quais ontem recuperámos apresentando mais evidências, tenham um eco nulo na Imprensa mainstream.

    Sou jornalista desde 1995, passei pelo Expresso e pela Grande Reportagem, e por outros periódicos sobretudo até ao final da primeira década deste século. Sei o que é jornalismo de investigação, sei o que são casos suficientemente graves para fazer cair um governante. Aliás, em dois ou três meses, na transição de 2022 para 2023, tendo querido, o Correio da Manhã causou uma ‘razia’ no Governo de António Costa.

    Mas sei sobretudo, porque também já não caminho para novo, que o grau de exigência da Imprensa mainstream se modificou. Os timings, neste momento, são tudo. Há políticos que podem estar nas graças, porque sim; outros ficaram sempre nas desgraças, porque sim. Perdeu-se, repito, em muitos jornalistas a noção daquilo que são os seus deveres. E um deles, como watchdog, é estar atentento aos poderosos; nunca ser amigo, ou cultivar uma amizade, de alguém que está no Poder.

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    Por isso, como jornalista, sei quais deveriam ser, em circunstâncias normais, as implicações de pessoas como Ana Paula Martins, ministra da Saúde, e o agora deputado social-democrata Miguel Guimarães depois das evidências sobre o atropelamento de tantas normas éticas e legais a pretexto de uma suposta campanha de ‘bondade’ numa pandemia onde algo que nunca faltou foi dinheiro.

    Nem quero aqui reflectir sobre a postura de líderes de duas ordens profissionais, como a dos Médicos e dos Farmacêuticos, que se predispuseram a receber mais de 1,3 milhões de euros da indústria farmacêutica para se promoverem como pessoas de bem durante uma desgraça. Mas, por tutatis, eles não receberam apenas dinheiro de farmacêuticas – um dos sectores que, com o beneplácito do Infarmed, mais tem financiado a Imprensa mainstream. A campanha que eles orquestraram registou casos de evasão fiscal, de contabilidade paralela, de facturas falsas de quase um milhão de euros (entrada de facturas sem saída de dinheiro da Ordem dos Médicos) e ainda centenas de declarações falsas de IPSS, associações e até hospitais públicos para que as farmacêuticas tivessem indevidos benefícios fiscais. Porém, ninguém do Quarto Poder reagiu às notícias do PÁGINA UM. Porquê?

    Bem sei que os directores (e muitos jornalistas) encontrarão argumentos, para descanso das suas consciências, que justifiquem ignorar a investigação do PÁGINA UM – uma investigação que já me obrigou a apresentar (e ganhar) duas intimações no Tribunal Administrativo de Lisboa, mas recebendo em troca ‘censuras’ absurdas de um ‘regulador fantoche’ (ERC), um processo disciplinar da CCPJ (cujos membros já deveriam ter-se demitido por ‘triste figura’) e processos judiciais (em curso), um dos quais do almirante Gouveia e Melo, cujo julgamento anseio para que se revele a verdade.

    Grayscale of a Horse Lying on the Field

    Mas também bem sei que, apesar dos incómodos que estas notícias do PÁGINA UM lhes causam, Ana Paula Martins e Miguel Guimarães estarão confiantes de que a Imprensa mainstream os continuará a proteger, não fazendo eco das suas tropelias passadas. Pedra no assunto. E tudo assim lhes parecerá bem, porque, neste momento, o Quarto Poder em Portugal mostra-se mais pelo que não escreve, pelo que não revela, do que pelo que escreve, pelo que denuncia.

    Os tempos, contudo, são de mudança, mas não muito favoráveis para quem atraiçoou os princípios do Jornalismo. Já nas recentes eleições se confirmou a tendência de perda de influência da Imprensa mainstream; e se esta continuar a ignorar intencionalmente casos de patente corrupção e/ ou perda de valores éticos – e foi sobretudo isso que sucedeu na queda do Governo de António Costa, de má memória (oito anos de estagnação e compadrio) –, se esta continuar a intencionalmente desinvestir na investigação; e se esta continuar a ostracizar projectos de jornalismo independente, bem podem almejar pouco mais do que sobreviver à conta de branded contents e de endividamentos, incluindo ao Estado.

    Continuando assim, como até agora, e pior ainda com soberba, o seu modelo de negócio se finará, porque até os promotores de branded contents se cansarão de dar dinheiro a quem nem sequer lhes dará retorno. E quanto ao Poder, sobre o qual a Imprensa mainstream deixou ser o watchdog ao serviço do povo, também fraco préstimo lhes dará à medida que constarem a perda de influência.

    Por isso, talvez para consolo do PÁGINA UM – e meu também, que cada vez mais desiludido estou com a Imprensa mainstream, que eu julgava ter tido apenas uma ‘má fase’ durante a pandemia –, cada vez mais os canais alternativa de difusão de informação estão a dominar. A Imprensa mainstream está a tornar-se irrelevante. Aliás, nesta medida, basta verificar, por exemplo, o eco que a notícia do PÁGINA UM sobre o caso da ministra da Saúde, ignorada pela totalidade da imprensa nacional, teve na rede social X. Em apenas 24 horas contabiliza mais de 54 mil visualizações. Por exemplo, Expresso – que é o Expresso, que conta com 643.86 seguidores (o PÁGINA UM tem um pouco menos de 10 mil) – não conseguiu em qualquer uma das dezenas de notícias e artigos de opinião de hoje ultrapassar essa fasquia.

    A fraqueza da Imprensa mastodôntica é pensar que a sua força será eterna, faça o que fizer. Não é. E já agora, por favor, quando as falências estiverem iminentes, não sigam o caminho mais fácil: não peçam dinheiro ao Estado, porque esse dinheiro é dos contribuintes, esses que, como leitores, vos abandonaram por fraca qualidade.


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  • Ministra da Saúde geriu em conta pessoal 1,3 milhões de euros dados por farmacêuticas sem pagar imposto de selo

    Ministra da Saúde geriu em conta pessoal 1,3 milhões de euros dados por farmacêuticas sem pagar imposto de selo

    Ana Paula Martins, a nova ministra da Saúde, teve um papel determinante numa campanha solidária durante a pandemia em parceria com a Ordem dos Médicos e o seu bastonário Miguel Guimarães, actual deputado do PSD, que angariou mais de 1,4 milhões de euros; destes cerca de 1,3 milhões vieram de farmacêuticas. Mas apesar das boas intenções, as irregularidades e ilegalidades marcaram a gestão dos dinheiros. Em vez de uma conta institucional, foi criada uma conta pessoal, tendo Ana Paula Martins como um dos três co-titulares, e não foi pago um imposto de selo devido de mais de 125 mil euros. Além disso, embora os pagamentos de géneros se realizassem através dessa conta pessoal, as facturas foram emitidas em nome da Ordem dos Médicos, podendo dar azo a um ‘saco azul’. Para as farmacêuticas terem benefícios fiscais, também foram promovidas centenas de falsas declarações, incluindo até de hospitais e da Associação Nacional de Farmácias e da Liga dos Bombeiros. Esta é uma investigação do PÁGINA UM iniciada ainda em 2022, e ainda não concluída; tal como não concluída parece estar uma auditoria externa prometida há dois anos.


    A nova ministra da Saúde vai entrar em funções com um ‘elefante na sala’ que muitos tentam negar a existência, apesar do seu volume. Durante a pandemia, em colaboração com a Ordem dos Médicos, Ana Paula Martins foi, enquanto bastonária da Ordem dos Farmacêuticos, co-gestora de uma campanha de solidariedade que amealhou, entre outros pequenos donativos, mais de 1,3 milhões de euros da indústria farmacêuticas, mas a contrário daquilo que seria expectável, a entrada e saída de dinheiro vivo foi feita através de uma conta por si titulada, em nome pessoal, em parceria com Miguel Guimarães – antigo bastonário dos médicos e actual deputado do PSD – e Eurico Castro Alves, ex-secretário de Estado da Saúde no curto segundo mandato de Passos Coelho.

    Apesar da suposta bondade desta campanha – atribuir sobretudo material e equipamentos de protecção contra a covid-19 a instituições de solidariedade social e unidades hospitalares –, de entre as irregularidades e ilegalidades detectadas pelo PÁGINA UM – que investiga a gestão do fundo “Todos por uma causa” desde 2022, estando ainda a aguardar-se o cumprimento de uma sentença do Tribunal Administrativo por parte da Ordem dos Médicos –  incluem-se contabilidade paralela, fuga ao fisco e falsas declarações para obtenção de benefícios fiscais e facturas falsas.

    Ana Paula Martins e Miguel Guimarães foram protagonistas de uma campanha solidária cheia de irregularidades e ilegalidades (D.R./Ordem dos Médicos)

    Criada logo no início da pandemia em Portugal, a campanha “Todos por Quem Cuida” teve por base um protocolo assinado em 26 de Março de 2020 entre as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos e a Apifarma, que apresentava toda a aparência de um fundo solidário com bons propósitos, e que serviria numa primeira fase apenas para canalizar “contributos monetários (…) ou em espécie” de farmacêuticas para “o apoio à aquisição de equipamentos hospitalares, equipamentos de protecção individual e outros materiais necessários aos profissionais de saúde que se encontra[ssem] a trabalhar nas instituições de saúde”.

    Porém, no início do mês de Abril de 2020 – e também por via de um despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que alargava a possibilidade de benefícios fiscais por donativos aos hospitais –, as três entidades decidiram alargar o âmbito da campanha para um “fundo solidário” público, nomeando, de acordo com os documentos consultados pelo PÁGINA UM, Manuel Luís Goucha como “embaixador da iniciativa”.

    E foi aqui que começaram as irregularidades. Ao invés da conta solidária ser assumida pelas duas ordens profissionais – ou apenas por aquela com maior protagonismo, a Ordem dos Médicos – foi decidido que a conta com o NIB 003506460001766293021, aberta no balcão da Caixa Geral de Depósitos na Portela de Sacavém seria titulada por três pessoas: José Miguel Castro Guimarães, Ana Paula Martins Silvestre Correia e Eurico Castro Alves.

    Ana Paula Martins, ontem, na tomada de posse como ministra da Saúde.

    A partir daqui as irregularidades surgiram em catadupa. Sendo que a conta não era institucional – mas sim de três pessoas, independentemente dos cargos ocupados –, o pedido de autorização ao Ministério da Administração Interna para a angariação de fundo omite o facto de que o NIB em causa não era das entidades promotoras: a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticas. Aliás, são indicadas no final do pedido duas contas que nunca foram usadas na angariação. Ou seja, os donativos em vez de segurem para uma conta institucional das entidades anunciadas como promotoras destinaram-se afinal para uma conta de três pessoas.

    Por outro lado, o pedido de autorização apenas foi feito em 27 de Julho de 2020, quando a angariação de donativos se iniciou em 6 de Abril daquele ano, ou seja, mais de três meses antes. À data do pedido de autorização ao Ministério da Administração Interna já a conta titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves tinha um saldo de 716.501,51 euros. Por lei, a angariação deve ser precedida da autorização ministerial.

    Por outro lado, nessas circunstâncias jamais se poderia aplicar a lei do mecenato ou outro tipo de benefício na obtenção de donativos, porque em termos formais estava-se perante uma recolha de donativos para uma conta de três pessoas. Nessa medida, Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves deveriam ter pago solidariamente o imposto de selo no valor de 10% de todos os donativos recebidos acima dos 500 euros.

    Pedido de autorização para angariação de donativos omite que a conta solidária não era titulada pela Ordem dos Médicos e Ordem dos Farmacêuticos.

    Ora, face aos montantes das diversas transferências da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma), todas individualmente acima dos 500 euros, a actual ministra da Saúde e os seus parceiros deveriam ter declarado à Autoridade Tributária e Aduaneira o recebimento de 1.2561.251 euros, o que implicaria o pagamento de 125.125,10 euros de imposto de selo. Na documentação consultada pelo PÁGINA UM, nomeadamente extractos bancários, não existe qualquer saída de dinheiro para esse cumprimento fiscal.

    Existiram pelo menos mais 13 transferências bem acima de 500 euros que também não terão sido declaradas às Finanças nem pago o imposto de selo, a saber: ASPAC (35.000 euros), Bial (20.000 euros), Bene (20.000 euros). Ipsen (12.000 euros), Atral (10.000 euros), Falinhas Mansas (10.000 euros), Angelini (10.000 euros), Apormed (5.000 euros), Rial Engenharia (5.000 euros), Medicina G Medeiros Marques (1.500 euros), Forex ACI (1.500 euros), Gin Lovers (1.080 euros) e Multiclínicas Far (1.000 euros).

    Contas feitas, segundo os cálculos do PÁGINA UM com base nos extractos bancários, Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves receberam 41 donativos superiores a 500 euros e deveriam ter pagado 138.333,10 euros de imposto de selo. E nunca o fizeram.

    Confirmação de que a conta solidária tinha como titulares Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, ou seja, não era uma conta institucional.

    Além desta grave falha fiscal – independentemente dos objectivos da da campanha –, os três titulares da conta solidária deveriam ter declarado no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed, por serem profissionais de saúde, todos os donativos de farmacêuticas, incluindo da Apifarma, que ultrapassaram mais de 1,3 milhões de euros. Ana Paula Martins – que, depois de abandonar a liderança da Ordem dos Farmacêuticos, ainda passou vários meses na Gilead –, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves nunca fizeram essa declaração obrigatória. Saliente-se que Ana Paula Martins terá a partir de agora a tutela do Infarmed.

    Além destas irregularidades e incumprimentos fiscais, o uso da conta solidária em nome de três pessoas permitiu uma estranha e ilegal contabilidade paralela de todas as operações de aquisição, designadamente de facturação e pagamentos, dos equipamentos e materiais a serem doados.

    Na consulta à documentação contabilística da campanha “Todos por Quem Cuida”, o PÁGINA UM identificou 34 facturas no valor total de 978.167,15 euros que entraram na contabilidade da Ordem dos Médicos (pela aquisição de equipamento de protecção individual, câmaras de entubamento e ventiladores), mas sem que esta entidade tenha alguma vez feito qualquer pagamento. Na verdade, quem pagou foi a conta titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves. As facturas assumidas pela Ordem dos Médicos, mas que foram afinal pagas com a conta solidária (à margem da Ordem dos Médicos) podem ser consultadas AQUI.

    Uma das ordem de pagamento assinadas por Ana Paula Martins foi para transferir 27.365,20 euros ao Hospital das Forças Armadas como contrapartida pela disponibilização de locais e pessoal de enfermagem para vacinar, contra as regras da Direcção-Geral da Saúde, médicos considerados não-prioritários em Fevereiro de 2021, uma iniciativa pessoal de Miguel. Esta decisão, com a concordância do então coordenador da task force Gouveia e Melo, após diversas reuniões, continua a ser analisada (há mais de um ano) pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS). A factura das Forças Armadas foi, contudo, emitida em nome da Ordem dos Médicos. E a Ordem dos Médicos viria depois a emitir declaração (falsas) de recepção de donativos por parte de quatro farmacêuticas. Uma dessas falsas declarações de donativo, no valor de 3.725,20 foi passada em Março de 2022 à Gilead. Nesta altura, Ana Paula Martins – que terminara o mandato em Fevereiro na Ordem dos Farmacêuticos – já ocupava o cargo de directora dos negócios governamentais desta farmacêutica norte-americana.

    Sendo legal que um terceiro possa proceder ao pagamento de facturas de uma determinada entidade – ou seja, era legítimo que Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves usassem a sua conta solidária para saldar as compras dos géneros a doar –, essa informação teria, porém, de constar na contabilidade da Ordem dos Médicos. Como tal não sucedeu – ou pelo menos, nunca foi apresentado ao PÁGINA UM qualquer documento comprovativo –, na prática significa que a Ordem dos Médicos foi acumulando despesas – até chegar aos 978.167,15 euros – sem ter saído qualquer verba dos seus cofres.

    Esse ‘crédito informal’ criou condições, pelo menos em teoria, para se formar um ‘saco azul, ou mesmo um desvio de verbas. Para tal, bastaria que responsáveis da Ordem dos Médicos com acesso às contas oficiais fossem retirando os valores exactos das facturas que iam recebendo dos fornecedores dos bens comprados no âmbito da campanha “Todos por Quem Cuida”.

    Através da conta pessoal de que era co-titular, Ana Paula Martins assinou uma ordem de transferência bancária ao Hospital das Forças Armadas num acordo com a task force liderada por Gouveia e Melo para pagar a vacinação contra a covid-19 de médicos não-prioritários numa altura de escassez de vacinas. Mas a factura das Forças Armadas foi emitida em nome da Ordem dos Médicos.

    Vejamos um exemplo. A factura nº 551 passada pela Clotheup em 2 de Outubro de 2020 pela aquisição de batas descartáveis no valor de 110.700 euros foi emitida à Ordem dos Médicos. Tendo sido uma aquisição a pronto de pagamento, não houve saída de dinheiro da Ordem dos Médicos, porque quem a pagou foi a conta solidária de Ana Paula Martins e dos outros dois co-titulares. Ora, nesse dia, poderia ter sido “desviada” a verba de 110.700 euros da conta bancária oficial da Ordem dos Médicos, não havendo assim o mínimo sinal de qualquer desfalque, uma vez que existia uma factura a suportar essa saída. Esse expediente pode aplicar-se a qualquer outra das 31 aquisições identificadas pelo PÁGINA UM.

    Houve, porém, mais irregularidades fiscais. Apesar de todos os donativos terem tido como destinatário a conta solidária – titulada, repita-se, por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves –, as farmacêuticas quiseram aproveitar os benefícios fiscais da Lei do Mecenato, que um despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais alargou, em Abril de 2020, também para os hospitais públicos.

    Nessa medida, os serviços operacionais da Ordem dos Médicos instruíram as largas dezenas de IPSS e outras entidades – que incluíram mesmo a PSP, a Liga dos Bombeiros, a Associação Nacional de Farmácias e até hospitais públicos e privados – a passarem declarações atestando que, afinal, receberam donativos em géneros das farmacêuticas, que lhe eram especificamente indicadas.

    Deste modo, um dos trabalhos (mais meticulosos) da equipa da Ordem dos Médicos, que Miguel Guimarães colocou na gestão operacional da “sua campanha”, passou por preencher intrincados “puzzles” entre os donativos em dinheiro fornecidos à conta solidária e os valores dos géneros recebidos pelas instituições. Assim, em vez das declarações de recepção dos donativos pelas diversas entidades beneficiadas serem passadas à conta solidária – em termos formais, aos três titulares da conta – ou à Ordem dos Médicos, foram encaminhadas para determinadas farmacêuticas.

    Ana Paula Martins, actual ministra da Saúde, e Miguel Guimarães, actual deputado do PSD, ganharam protagonismo com a pandemia. A gestão de um ‘bolo’ de 1,4 milhões de euros numa campanha solidária, financiada sobretudo pelas farmacêuticas, deu uma ajuda.

    Logo, a título de exemplo – e é mesmo um só exemplo, porque existem largas centenas de casos, reportados e fotografados pelo PÁGINA UM durante a consulta dos dossiers contabilísticos e operacionais da campanha “Todos por Quem Cuida” –, é falsa a declaração de 23 de Março de 2021 da Liga dos Bombeiros Portugueses, bem como a competente carta de agradecimento do então presidente Jaime Marta Soares, de que foi a farmacêutica Gilead que lhes entregou 4.984 batas cirúrgicas, 1.661 litros de álcool gel, 831 máscaras cirúrgicas, 2.492 óculos reutilizáveis, 664 fatos integrais tamanho M e 664 tamanho L, e ainda 4.153 viseiras, tudo no valor de 103.400,60 euros.

    Neste caso particular – que é extensível a todas as outras farmacêuticas envolvidas nesta campanha –, a Gilead terá sim apenas entregado, através da Apifarma, um donativo de valor desconhecido, para uma campanha solidária, titulada por três pessoas. Formalmente, teriam de ser as três titulares dessa conta (Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves), e não as entidades beneficiadas com os géneros doados, a passar uma declaração de recepção desse donativo à Gilead (e às outras farmacêuticas). Porém, se assim fosse, as farmacêuticas não teriam hipóteses de usufruir de qualquer benefício fiscal, uma vez que o Estatuto do Mecenato não abrange donativos a pessoas singulares – e nem a Ordens profissionais, acrescente-se.

    Outro caso paradigmático passou-se com a Associação Nacional de Farmácias que em 10 de Fevereiro de 2021 declarou que a Merck Sharpe & Dohme lhe doou 107.574 máscaras cirúrgicas no valor total de 50.000 euros. Nada poderia ser mais falso. Aquilo que sucedeu foi a Merck Sharpe & Dohme ter doado 50.000 euros a Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves que, depois aproveitaram para usar esse dinheiro para pagar máscaras a uma empresa – que emitira uma factura à Ordem dos Médicos –, sendo esses equipamentos de protecção individual entregues então à Associação Nacional de Farmácias.

    Documento na posse da Ordem dos Médicos, consultado pelo PÁGINA UM após uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, com a lista de entidade que concederam donativos à conta solidária titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves.

    A emissão de centenas de declarações falsas – trata-se mesmo de centenas, que englobam muitas pequenas IPSS – configura até fraude fiscal, porque as entidades beneficiadas assumiram que os donativos em géneros vieram directamente de farmacêuticas, algo que não é verdade, nem as farmacêuticas conseguirão comprovar qualquer compra através de facturas. Certo é que, com este estratagema, as farmacêuticas conseguiram enquadrar os seus donativos no mecenato social – e, em casos específicos, no mecenato ao Estado – para levar a custos um valor correspondente a 130% ou 140% do valor entregue. Algo que não sucederia se tivesse sido tudo feito como sucedeu: os donativos foram entregues a três pessoas (Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves), foram feitas compras e entregues os géneros às IPSS, associações e unidades hospitalares.

    Assim, com este esquema falso as farmacêuticas terão conseguido declarações num montante total de cerca de 1,3 milhões de euros, e terão acabado por assumir, em termos contabilísticos, custos da ordem dos 1,82 milhões de euros, Em conclusão, este expediente – a utilização abusiva de um benefício fiscal – terá lesado o Estado, segundo estimativas do PÁGINA UM, em cerca de 145 mil euros. Note-se que este esquema, profundamente à margem da lei, envolveu também hospitais públicos, conforme o PÁGINA UM revelou detalhadamente no final de 2022.

    Apesar da logística desta campanha ter sido protagonizada sobretudo pela Ordem dos Médicos, e pelo então seu bastonário Miguel Guimarães, a actual ministra teve um papel bastante activo, e não apenas como co-titular da conta. Ana Paula Martins procedeu a várias ordens de pagamento de géneros – cujas facturas foram encaminhadas para a Ordem dos Médicos – e também participou em diversas reuniões específicas da campanha. De acordo com as actas consultadas pelo PÁGINA UM, a actual ministra da Saúde participou em pelo menos oito reuniões da comissão de acompanhamento entre 11 Maio de 2020 e 5 de Maio de 2021. Mesmo depois da sua saída da liderança da Ordem dos Farmacêuticos em Fevereiro de 2022, manteve-se como titular da polémica conta solidária.

    Além de ser co-titular e co-gestora da conta solidária, e autorizar transferências de dinheiro para pagamento de facturas que, afinal, eram emitidas à Ordem dos Médicos, Ana Paula Martins acompanhou pelo menos durante um anos as operações logísticas da campanha ‘Todos por Quem Cuida’.

    Aquando da primeira notícia desta investigação do PÁGINA UM, em Dezembro de 2022 – após uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa que obrigou as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos a disponibilizar os documentos integrais da campanha solidária –, Ana Paula Martins não responder a um conjunto de 11 perguntas a si dirigidas, optando por uma resposta conjunta com Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves através de advogada.

    Nessa resposta são omissas quaisquer justificações para a não abertura de uma conta institucional nem qualquer argumento para o não-pagamento de impostos de selo nem sobre as declarações falsas nem sobre as facturas assumidas pela Ordem dos Médicos quando não foi esta a entidade que pagou os géneros.


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  • O ‘império das rádios’ de Luís Montez está em colapso e com contas escondidas

    O ‘império das rádios’ de Luís Montez está em colapso e com contas escondidas

    As duas principais empresas de rádio e de promoção de festivais de Verão de Luís Montez estarão em falência técnica com capitais próprios negativos de 12 milhões de euros. E usa-se o verbo ‘estar’ na forma condicional porque esse montante ser o último passível se conhecer, pois a Música no Coração e a Rede A não registaram as demonstrações financeiras de 2022 na Base de Dados das Contas Anuais, como é obrigatório por lei. Em todo o caso, a evolução dos últimos anos mostram uma crescente descapitalização e um aumento dos passivos que indiciam que o conhecido genro de Cavaco Silva transformou as suas empresas em ‘fábricas de calotes’.


    O outrora pujante ‘império de rádios’ do empresário Luiz Montez, também conhecido por ser genro de Cavaco Silva, está a desmoronar-se por completo, com indícios de gestão danosa, com descapitalização das suas empresas e um assombrosa acumulação de dívidas aos fornecedores e até ao Estado, em especial da Música no Coração (também promotora de espectáculos) e da Rede A – Emissora Regional do Sul, que detém a Rádio Sudoeste, associado ao festival na Zambujeira do Mar.

    A gravidade da situação financeira atinge tamanha dimensão, segundo apurou o PÁGINA UM, que Luiz Montez – que criou o seu ‘império, assente no sucesso das promoções de festivais de música como o Super Bock Super Rock e o Festival Sudoeste – nem sequer inseriu até agora a Informação Empresarial Simplificada do ano de 2022 daquelas duas empresas na Base de Dados das Contas Anuais (BDCA). As contas de 2023 ainda estão em fase de elaboração.

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    Conforme ontem foi noticiado pelo PÁGINA UM a pretexto da venda de duas rádios de Luís Montez à Medialivre (a dona do Correio da Manhã e da CMTV), quase todas as sete empresas radiofónicas detidas pela ‘holding’ Música do Coração estão em situação de falência técnica. No caso da Sociedade Franco Portuguesa de Comunicação – que será uma das adquiridas pela Medialivre – está em falência técnica pelo menos desde 2017, consultando os registos do Portal da Transparência dos Media. No mais recente exercício com contas fechadas, a empresa que tem a filha e a neta de Cavaco Silva na administração apresentava capitais próprios negativos de quase 200 mil euros e um passivo total de mais de 2,3 milhões de euros.

    Este último montante inclui 407.273,99 euros de dívidas o Estado e outros entes públicos, que serão dívidas à Autoridade Tributária e Aduaneira, ainda por cima não declaradas no Portal da Transparência dos Media, uma vez que ultrapassa os 10% do passivo.

    A segunda empresa que vai ser vendida à Medialivre tem uma a situação financeira bastante similar, apesar dos capitais próprios negativos serem menos baixos (-8.777 euros). Em todo o caso, o passivo ultrapassa a fasquia de um milhão de euros, dos quais quase 482 mil euros será empréstimos (com juros) do próprio Luís Montez e 319 mil euros são dívidas ao Estado. 

    Luís Montez vai livrar-se de duas empresas de rádios que são ‘máquinas de fazer calotes’.

    Contudo, apesar de Luís Montez esconder intencionalmente as contas de 2022, a situação da ‘holding’ Música do Coração ainda é mais problemática do que as suas subsidiárias. No final de 2021, a ‘holding’ estava com capitais próprios negativos de quase 6,2 milhões de euros, registando, nesse ano, um pouco mais de um milhão de euros de prejuízos. Saliente-se que as contas da Música no Coração não estão consolidadas.

    Na verdade, somente por via de alguma engenharia financeira, o colapso da Música no Coração não se mostrava mais patente, pois existem sinais de exagero na avaliação dos activos financeiros e excedentes de revalorização. Além disso, em 2021, esta ‘holding’ de Luís Montez tinha uma liquidez praticamente nula, inconcebível numa empresa promotora de espectáculos: em caixa apenas se registaram 3.099 euros. Grande parte dos activos (cerca de 11,2 milhões de euros) estavam então contabilizados em participações financeiras através do método da equivalência patrimonial, mas, na verdade, esse montante poderá estará fortemente inflacionado face à actual situação financeiras das subsidiárias.

    Além disso, o endividamento da Música no Coração era, já em 2021, asfixiante, com empréstimos bancários de longa duração de 14,6 milhões de euros, mais quase 2,8 milhões de euros de contas a pagar a fornecedores, mais 1,4 milhões de euros de dívidas ao Estado e mais cerca de 6,3 milhões de euros em outros compromissos. Neste caso, não deixa de ser curioso que, apesar de ter uma empresa em falência técnica, com capitais próprios negativos de quase 6,2 milhões de euros, Luís Montez ainda tinha 786 mil euros emprestados a juros. A ‘sangria’ á sua própria empresa ‘moribunda’.

    Também promotora de festivais de Verão, a Música no Coração está em falência técnica e acumula ‘calotes’.

    No caso da Rede A, a situação financeira mostra-se em tudo similar. Apesar de Luís Montez não ter entregado as contas de 2022 no BDCA, enviou, porém, alguns indicadores financeiros mais básicos para o Portal da Transparência dos Media. E a situação é, efectivamente, de pasmar: nesse ano, os capitais próprios eram negativos em quase 5,4 milhões de euros e o passivo seguia nos 5,6 mihões de euros. Significa isto que o activo (‘património’) da Rede A era já somente de um pouco menos de 240 mil euros.

    Será de um optimismo desmesurado ter a esperança de, entretanto, ter ocorrido uma inversão da situação financeira da Rede A – que contabilizou em 2022 apenas rendimento de 14 mil euros e prejuízos de 184 mil euros. Pelo contrário, pela análise das contas de 2017 e 2021 (o último ano com contas disponíveis), feita pelo PÁGINA UM, esta empresa de Luís Montez está em franco processo de descapitalização e é um caso patológico de ‘maquina de fazer calotes’.

    Com efeito, em 2017 a Rede A ainda deu lucro (44.688 euros) e tinha uma situação financeira equilibrada com capital próprios positivos (251 mil euros), activos não correntes de um pouco mais de 2 milhões de euros. O único indicador que destoava era uma dívida ao Estado de 467 mil euros. A partir de 2018 começaram os prejuízos e, sobretudo, a descapitalização da empresa, com uma diminuição absurda de activos que acabaram por fazer resvalar a empresa para um abrupto estado de falência técnica. Assim, se em 2019, a Rede A apresentava activos da ordem dos 3,8 milhões de euros com o capital próprio já no vermelho (-171.373 euros), no ano seguinte registou-se um ‘terramoto’ financeiro: os activos para apenas 182 mil eeros (um ‘rombo’ de mais de 3,2 milhões de euros) e os capitais próprios despencaram para arrepiantes valores negativos (5.016.762 euros).

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    Nas contas de 2021 da Rede A que constam na BDCA, analisadas pelo PÁGINA UM, torna-se evidente o desaparecimento completo dos activos não correntes da Rede A (que ultrapassavam os 2 milhões em 2017), e um aumento colossal da rubrica ‘Outras contas a pagar’ (5,3 milhões de euros) – que não se referem a dívidas a fornecedores nem ao Estado (neste caso, o valor situava-se então nos 91 mil euros).

    Contas feitas, e descontando as contas escondidas de 2022 e também de mais um ‘ano de vida’ – que não terá, pela tendência histórica, sido muito favorável -, o ‘império das rádios’ e dos espectáculos de Luís Montez só existe ainda porque as empresas mesmo quando são ‘fábricas de calotes’ perduram enquanto houver alguém – leia-se, Governo e reguladores – que lhes permita docemente continuar a ‘safra’. Ou seja, a acumular dívidas indefinidamente ao estilo Ponzi. Alguém um dia ficará a ‘arder’. Pelo andar da carruagem, Luís Montez – que não se mostrou disponível para responder ao PÁGINA UM – ficará a salvo. As empresas são de responsabilidade limitada.


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  • Grupo do Correio da Manhã compra rádios falidas e com dívidas fiscais a familiares de Cavaco Silva

    Grupo do Correio da Manhã compra rádios falidas e com dívidas fiscais a familiares de Cavaco Silva

    O segredo é a alma do negócio, mas há negócios que, desvendando-se alguns pormenores, custa a acreditar que se concretizem. A Medialivre – que detém o Correio da Manhã e a CMTV, tendo Cristiano Ronaldo como principal accionista – vai adquirir, para ficar com estações de rádio em Lisboa e no Porto, duas empresas de Luís Montez, uma das quais tem como administradoras a filha e a neta de Cavaco Silva. Os montantes do negócio são desconhecidos, mas as contas públicas destas empresas do genro do ex-presidente da República mostram que têm sido ‘máquinas de fazer calotes’ sem ninguém as incomodar: capitais próprios negativos, prejuízos sucessivos, faltas de liquidez crónicas e existem mesmo indicadores de fluxos de caixa que indiciam atrasos em salários e fornecedores à míngua. E, claro, há dívidas ao Fisco, que parece ter-se tornado um ‘ponto de honra’ de certas empresas de media com o beneplácito do regulador (que nada vê) e do Estado (que fecha os olhos).


    A Medialivre – o grupo de media que detém o Correio da Manhã e que tem Cristiano Ronaldo como principal accionista – está em processo de aquisição de duas rádios detidas por empresas em falência técnica de Luís Montez, genro de Cavaco Silva. Numa das empresas, as vogais do Conselho de Administração são a filha (Patrícia) e a neta (Mariana) do ex-presidente da República e ex-primeiro-ministro.

    Os montantes envolvidos não são revelados – o PÁGINA UM aguardou uma semana por comentários oficiais da Medialivre –, mas, na verdade, se este fosse um ‘puro negócio’ ao estilo capitalista, na verdade deveria ser Luís Montez – que detém a Sociedade Franco Portuguesa de Comunicação (tendo a mulher e a filha na administração) e a Rádio Festival do Norte – a dar dinheiro ao comprador, porque as duas empresas deram prejuízo nos últimos anos, estão com capitais próprios negativos e estão inundadas de dívidas, incluindo ao Estado.

    Luís Montez vai livrar-se de duas empresas de rádios que são ‘máquinas de fazer calotes’.

    O único activo apetecível destas duas empresas de Montez – que através da sociedade unipessoal Música no Coração detém sete empresas radiofónicas – encontra-se nas suas licenças radiofónicas, um ‘bem restrito’ a poucos e que podem ser mantidas mesmo por empresas que devem dinheiro ao Fisco. Para concretizar a sua estratégia de expansão, a Medialivre não se importou assim de manifestar interesse em comprar empresas falidas para obter as licenças da Rádio SBSR (que emite a partir de Lisboa) e da Rádio Festival do Norte, mesmo que tenha agora de assumir, em passivo, um passivo elevado.

    As autorizações para a transmissão das licenças para a Medialivre, por aquisição das duas empresas de Montez, já foram concedidas pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social no final de Fevereiro, embora o negócio ainda não se tenha concretizado.

    Embora seja expectável que a Medialivre tenha capacidade financeira para encaixar na sua estrutura o passivo das empresas das duas rádios que vai adquirir, não deixa de causar espanto a situação financeira do universo empresarial da família de Luís Montez. A Sociedade Franco Portuguesa de Comunicação está em falência técnica pelo menos desde 2017, consultando os registos do Portal da Transparência dos Media. No mais recente exercício com contas fechadas, a empresa que tem a filha e a neta de Cavaco Silva na administração apresentava capitais próprios negativos de quase 200 mil euros e um passivo total de mais de 2,3 milhões de euros, que vai assim passar, em princípio, a ser assumido pela Medialivre.

    Este último montante inclui 407.273,99 euros de dívidas o Estado e outros entes públicos, que serão dívidas à Autoridade Tributária e Aduaneira, ainda por cima não declaradas no Portal da Transparência dos Media, uma vez que ultrapassa os 10% do passivo. As omissões e falsas declarações dos media perante a ERC é uma situação que se tem vindo a tornar banal.

    Neta do ex-presidente da República, agora com 27 anos, já tem experiência de administração de uma empresa… em falência técnica e com dívidas ao Estado.

    Mas o mais absurdo da contabilidade da Sociedade Franco Portuguesa de Comunicação – e que causa estranheza não ter sido motivo de preocupação por parte da Medialivre – é ter terminado o ano de 2022 com a rubrica Caixa e depósitos bancários literalmente a zeros. Ou seja, a conta bancária estava a zeros e nem sequer havia um mealheiro na sede da empresa com meia dúzia de tostões para o café da manhã de Janeiro de 2023. A ausência absoluta de liquidez desta empresa é de pasmar: apesar de ter declarado vendas e serviços prestados de 209.443,47 euros, no fluxo de caixa – que ‘mede’ a entrada e saída de ‘dinheiro vivo’ –, só entraram 11.841,53 euros.

    No caso de saídas de dinheiro, está apenas contabilizado o pagamento ao pessoal de 31.654,69 euros, apesar de ter sido contabilizado gastos com pessoal de mais de 286 mil euros, o que denuncia salários em atraso. Também a empresa está a deixar fornecedores a ver navios. Apesar de contabilizar gastos de quase 33 mil euros em fornecimentos e serviços externos, os fornecedores só viram ser-lhe pagos 115,86 euros, o que, sabendo-se tratar de uma empresa de comunicação, até em electricidade se deu calote em 2022.

    Quanto à Rádio Festival Norte – a empresa que detém rádio com o mesmo nome –, a situação financeira é bastante similar, apesar dos capitais próprios negativos serem menos baixos (-8.777 euros). Em todo o caso, o passivo ultrapassa a fasquia de um milhão de euros, dos quais quase 482 mil euros será empréstimos (com juros) do próprio Luís Montez e 319 mil euros são dívidas ao Estado. Também com esta empresa a ERC anda a ‘ver navios’, porque todos os detentores de mais de 10% do passivo de um órgão de comunicação social têm de ser identificados. Ora, Luís Montez detém 41% do passivo e o Estado 27,2% do total do passivo., mas nenhuma dessa informação se encontra registada no Portal da Transparência, incumprindo a mesma lei que determinou a suspensão dos direitos de voto de um obscuro fundo das Bahamas que controlava a Global Media.

    Ao contrário da sua ‘irmã’ Sociedade Franco Portuguesa de Comunicação, a Rádio Festival Norte terminou o ano de 2022 com dinheiro em caixa, mas apenas 66,96 euros – dariam apenas para três espartanos almoços, talvez sem sobremesa, mas com café, seguramente. A falta de liquidez é, aliás, apanágio das empresas de Luiz Montez. Também a Rádio Festival Norte anuncia valores de vendas e serviços prestados que acabam por dar em pouco. Em 2022, a empresa declarou rendimentos de quase 315 mil euros, mas só foram efectivamente pagos nesse ano pouco mais de um terço (113 mil euros). Quanto aos pagamentos a fornecedores e ao pessoal foram custos que depois não se reflectiram em saídas de dinheiro, até porque a empresa não o tem, até porque já nem possui crédito junto da banca, como se intui do balanço e da demonstração dos fluxos de caixa.

    Cristiano Ronaldo é, actualmente, o principal accionista da Medialivre, dona do Correio da Manhã e da CMTV, que agora está a apostar na rádio.

    Com efeito, apesar de em 2022, esta empresa de Luís Montez – em que este surge como administrador único – ter contabilizado gastos de quase 132 mil euros em fornecimentos e serviços externos e cerca de 194 mil euros em gastos de pessoal, apenas assumiu pagamentos de 2,3% e 4,8% do total. Ou seja, comporta-se como uma ‘máquina de fazer calotes’.

    Numa análise a partir do Portal da Transparência dos Media, gerido pela ERC – o que coloca sempre algumas dúvidas da completa veracidade da informação –, pode-se dizer que as outras cinco empresas do grupo da Música no Coração estão também em dificuldades financeiras ou apresentam indicadores ou pouco risonhos ou estapadúrdios.

    A Radiodifusão – Publicidade e Espectáculos tem capitais próprios negativos (-83.182 euros), um passivo de quase 868 mil euros em 2022 e pelo menos desde 2017 nunca teve lucros. A Rádio Clube de Gondomar – que detém a rádio Meo Sudoeste – estava em 2022 com capitais próprios negativos de 90 mil euros e é uma empresa (se assim se pode chamar) muito sui generis: em 2017 o seu activo (‘património’) era de 23.017,11 euros; em 2022 era de 270 euros, sendo que teve um rendimento declarado de 1 euro e prejuízos de 4.025 euros.

    Quanto à Rádio Voz de Setúbal – que detém a Rádio Amália –, está em pouco melhor estado do que a diva do fado que pretende homenagear. Apesar de recentemente ter realizado uma gala para comemorar os seus 14 anos, a empresa declarou no Portal da Transparência dos Media – e a ERC achou razoável suceder – um rendimento de apenas 2 euros e resultados líquidos de 1,50 euros. Esta estranha empresa tinha nesse ano, no entanto, capitais próprios negativos de 103.736 euros. E nos registos geridos pela ERC não há sombras de actividade, isto é, rendimentos entre 2017 e 2021.

    A SBSR FM, actualmente detida pela Sociedade Franco Portuguesa de Comunicação, em falência técnica, estará em breve nas mãos do grupo de media do Correio da Manhã.

    A Rádio Nova Loures tem, por sua vez, um capital próprio ainda positivo (158 mil euros), mas aumentou o passivo de 431 mil euros em 2017 para quase 1,5 milhões de euros em 2022.

    A Rádio Nova Era é a única das empresas de Luiz Montez no sector da comunicação social com rendimentos em 2022 acima de um milhão de euros (1,7 milhões), e em até teve lucros nesse ano, apesar de magros (um pouco menos de 26 mil euros). Porém, em cinco anos, o passivo disparou de 1,2 milhões para 1,6 milhões de euros, e os capitais próprios baixaram de 114 mil euros para 95 mil.

    O PÁGINA UM enviou há mais de uma semana diversas questões a Luís Montez, que não respondeu.


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  • Chaves 1.0

    Chaves 1.0


    Depois de uma crónica em dia de eleições, outra em ‘dia da crucificação’ de Jesus, não o JJ. O futebol, sabido está, é quando os homens (e mulheres) querem, e portanto o que vale um sufrágio democrático ou a quadra pascal quando há tantos golos a marcar e frustrações a terminar. Ou a falhar e a criar.

    Hoje, declaro já, só um 15 a zero me deixará satisfeito. Ou menos irritado. Quer dizer, menos abespinhado, porque agastadiço já estou. Neste momento, preciso, para ser exacto. Então não é que chega este vosso escriba às imediações da Varanda da Luz, e uma sádica amiga lhe envia um magote de fotografias de rangos sem fins na bancada VIP do estádio, a saber: sandes de leitão, caril de galinha e legumes, arroz de cardamomo (que, confesso, fui ver o que era), bacalhau à lagareiro, massas, pães, bolos, mais bebidas à discrição – e eu, enfim, levo com o farnel costumeiro, mudando-se apenas a baguete para o recheio de atum, se calhar por causa da quadra pascal.

    (o jogo entrentanto começou, já vai em cinco minutos, uma oportunidade de golo, mas nada…)

    Em todo o caso, sabem já bem os meus (poucos) leitores que, em questões essenciais, como sejam jogos de bola, tento sempre encontrar, para prever resultados, sinais racionais, onde as leis da probabilidade funcionam, e também outros sinais mais esotéricos, como sejam fezadas. Por vezes, misturam-se.

    Do ponto de vista objectivo, o 15 a zero é possível, atendendo que o Desportivo das Chaves é o último, com a pior defesa, tendo já empratado 56 golos. Bem, isto dá ‘só’ uma média de 2,15 golos sofridos por jogo, longe dos 15 que merece hoje levar terras transmontanas, mas convenhamos que se o Farense e o Arouca já lhe meteram cinco cada, e o Boavista e o Estoril quatro cada, então não é impossível para o Glorioso. Basta jogar um bocadinho melhor do que o Porto… que só lhes ganhou 1-0 nas Antas, no final de Dezembro.

    Talvez a contribuir para aumentar as chances do 15-0 estará o João Mário, porque hoje, pelo menos até aos 65 minutos – altura em que o Roger Schmidt costuma fazer as substituições – em grande parte do tempo de jogo ocupará a posição de extremo quieto… no banco. Acho que o nosso colunista Tiago Franco, que o ‘adora’, estará, por estas alturas, particularmente feliz.

    (penalty… é mesmo penalty! caramba, estava difícil o árbitro descortinar uma cotovelada de um defesa do Chaves na cara do Bah, nem com o VAR o homem se decidia… Anda lá, Angelito, o 15 a zero já é mais uma miragem, que quimera se mostra, pois já vamos no minuto 25, mas pelo menos faz o gosto ao pé e descansa a malta… mas que merda foi esta? Porra: até eu não faria pior; um chutezo para o lado direito do guarda-redes que nem sequer teve de se esforçar muito)

    Como isto vai, temos então em perspectiva mais um jogo de caca, passe a expressão – que passará, que eu não censuro palavras –, pelo que nem sei bem se vale já a pena elencar os supostos alegados eventuais esotéricos sinais que me esperançaram, antes do apito inicial, a ver um 15 a zero. Bem, não perco nada, até porque são coisas parvas referem-se ao número da minha acreditação de hoje ser o 55 e o número da senha do ‘farnel do Benfica’ ser o 10…

    Bem, nem eu sei bem que lógica (ou ilógico raciocinio) me poderia servir para fazer que um 55 e um 10 fosse dar, por artes de haríolo, num 15 a zero. Podia juntar um dos 5 ao 1 e ficava com o 0 do outro lado, mas o que faria com o outro 5? Escafedia-se.

    (e nestas andanças se fez uma miserável primeira parte, condizente com um tempo de porcaria, para não dizer de merda, ao qual responde, ou corresponde, bancadas a meio gás)

    Com o intervalo morno, se calhar caía-me bem agora era uma sandocha de leitão, mas tinha de ser da minha Bairrada… Enfim, mas também não me posso vender. Ou assim por tão pouco…

    Bem, como isto se escrevinha em tempo real, sempre terei agora um tempinho, que esta crónica – a última em que falarei do meu desejo de ver um 15 a zero – está uma bosta e já nem sei bem que dizer, para divulgar nas redes sociais a ‘nossa’ (do PÁGINA UM) análise sobre as duas dezenas de Resolução de Conselho de Ministros de António Costa que condicionam o Governo de Luís Montenegro. Escrito esta tarde, antes de vir para esta malfadada Varanda.

    (a segunda parte recomeçou… tudo como dantes no Quartel de Abrantes, ou seja, segue parca ou porcamente mal)

    Isto está tão fraco que, na verdade, acho que houve um sinal, sim, mas aziago, que é a poça de água ao fim das escadas de acesso aos elevadores da comunicação social aqui do estádio. E eu até fotografei o aviso de piso escorregadio…

    Passa o tempo e vem a desesperança. Eu sei que não deveria dizer isto numa crónica ‘comprometida’, que não é jornalística: o Benfica este ano só ganha o campeonato por milagre! E isto aplica-se também a este jogo, parece-me.

    (olha, outro penalty, e indicado pelo VAR, que ainda por cima agora anuncia a ‘coisa’ pelos altifalantes… vamos lá, Arthur Cabral, não faças o mesmo que o Di Maria, chuta mellhor… mas que merda é esta?… falhou; está tudo doido)

    Ainda por cima, envergonho-me perante o sportinguista Bruno Cecílio – com quem estava ao telefone, quando o Arthur Cabral se preparava para rematar, de sorte a combinarmos a hora para amanhã continuarmos a montagem de estantes na nova redacção do PÁGINA UM na rua… –, que ainda por cima teve o desplante de dizer que, e cito, “isso deve ser tudo uma roubalheira”.

    (bom, não sei é ou não, houve, é certo, um jogador do Chaves a invadir ligeiramente a área entes de o Arthur Cabral ter rematado, e, enfim, o VAR assinala repetição da grande penalidade… vá, segunda chance, Arthur Cabral: não nos lixes! Fornicou-nos! Falhou outra vez! Inacreditável. Cepos!)

    Vou desistir da crónica. Há dias da manhã que um cronista à tarde não pode pensar escrever à noite.

    E, sendo eu cada vez menos crente, apesar de baptizado e com comunhão, vou dedicar estes últimos 25 minutos a rezar, não pelo Benfica, que assim não tem remissão possível, mas por mim, para que venha um qualquer golito, um à Vata contra o Marselha há mais de três décadas, e dessa sorte não ser, como benfiquista, gozado por lagartos e tripeiros…

    (olha, golooooooooo…. do baixote João Neves [quer dizer, é mais alto uns seis centímetros do que eu], que ‘penteia’ ligeiramente um centro do Di Maria, e enfia a bola mesmo no cantinho da baliza)

    Pronto, se não houver mais nenhuma surpresa, fico-me por aqui. Daqui a nada de certeza que entra o João Mário e, assim, com probabilidade elevadíssima, manteremos a vitória… por 1 a zero… Foi você que pediu mesmo um 15 a zero?

    (dito e feito, entrou o João Mário ao minuto 82, e tudo ficou como estava, com ele a fazer cerimónia e a falhar novo golo)

    Temo, ou lamento, ter sido uma fortuna a minha decisão de somente escrever as crónicas da Varanda da Luz em dias de jogo da Liga. Terça-feira, a jogar assim na segunda-mão das meias-finais, contra o Sporting, não me parece que fosse ver milagres como o sucedido aqui em Novembro passado.


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  • Governo Costa condiciona Governo Montenegro com 20 resoluções de ‘última hora’

    Governo Costa condiciona Governo Montenegro com 20 resoluções de ‘última hora’

    Luís Montenegro ganhou as eleições legislativas e já formou Governo. Mas, antes disso, António Costa teve uma derradeira palavra a dizer e resolveu ‘queimar os últimos cartuchos’ sob a forma de 20 Resoluções de Conselho de Ministros (RCM) nos dias 21 e 24, que ontem foram publicados em Diário da República. Não foi coisa pouca: envolvem um volume de despesas públicas da ordem dos 1,7 mil milhões de euros. Segundo um levantamento do PÁGINA UM, de entre as duas dezenas de RCM – que se tornaram uma forma corriqueira de governar por parte de António Costa –, 12 constituem autorizações para realização de despesa em institutos, empresas públicas e também universidades, sendo que as restantes são reprogramações, embora em grande parte dos casos com definição em concreto de gastos acrescidos e das entidades beneficiadas. Como o próximo Governo de Luís Montenegro não terá a mesma facilidade do de António Costa em gerir a ‘máquina de despesa do Estado’ com simples RCM – por não ter maioria parlamentar –, a ‘impressão digital’ do Partido Socialista vai, assim, manter-se em muitos sectores nos próximos anos.


    Foi uma semana bastante produtiva a última em acção do Governo socialista cessante. Em quatro dias somente António Costa compôs, entre outros diplomas, um total de 21 Resoluções de Conselho de Ministros, praticamente todos com forte impacte financeiro e, em muitos casos, até condicionando da acção do novo Governo de Luís Montenegro, porque têm incidência em programas plurianuais. A sofreguidão do Governo Costa foi tal que alguns dos diplomas saíram de um Conselho de Ministros extraordinário em regime electrónico no passado domingo.

    Tamanho afã governamental, levaram mesmo os serviços da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, que produzem o Diário da República, a trabalho redobrado. Uma parte das Resoluções de Conselho de Ministros tiveram de passar para dois suplementos da 1ª série da ‘edição’ de ontem. O ‘tomo’ principal ficou cm 93 páginas, enquanto um dos suplementos ocupou 27 páginas e o outro mais 51, embora neste caso quase todo ocupado por uma portaria que estabeleceu as normas do regime de incentivo à produção cinematográfica e audiovisual.

    António Costa e Luís Montenegro.
    (Foto: D.R./ Foto oficial de António Costa)

    De acordo com o levantamento do PÁGINA UM, de entre as 20 Resolução com impacte financeiro e até orçamental, 12 constituem autorizações de realização de despesa por parte de institutos e empresas públicas e também universidades, sendo que as restantes são reprogramações, embora em grande parte dos casos também com definição em concreto de gastos acrescidos e das entidades beneficiadas.

    Embora com alguma (pequena) margem de erro, porque algumas reprogramações podem não ter um impacte financeiro por se tratar de reajustamentos plurianuais, as derradeiras medidas do Governo Costa ‘mexem’ num impressionante montante: mais de 1,7 mil milhões de euros. E como o próximo Governo de Luís Montenegro não terá a mesma facilidade do de António Costa em gerir a ‘máquina de despesa do Estado’ com simples Resoluções de Conselho de Ministros – por não ter maioria parlamentar –, a ‘impressão digital’ do Partido Socialista vai manter-se em muitos sectores nos próximos anos.

    Dois dos sectores onde tal será mais evidente são os investimentos na ferrovia e na habitação. O novo ministro das Infraestruturas e Habitação, Miguel Pinto Luz, estará ‘agarrado’ a três decisões do Governo de António Costa sobre a afectação de verbas específicas do Fundo Ambiental e do Orçamento do Estado para o Plano de Investimento em Material Circulante por parte da CP.

    (Foto: D.R./Foto oficial de António Costa)

    Um dos diplomas concede, desde já, autorização à empresa pública para proceder á repartição de encargos plurianuais, até 2032, num montante total de cerca de 746 milhões de euros. Por exemplo, para o Orçamento do Estado do próximo ano, o Governo de Luís Montenegro será já obrigado a incluir uma verba específica de 50 milhões de euros para dar cumprimento a esta Resolução.

    Também é o Governo de António Costa que, em ‘fim de festa’ determinou a repartição em concreto das verbas que o Fundo Ambiental, que será tutelado pela nova ministra Maria da Graça Carvalho, deverá entregar à CP. A título de exemplo, este ano serão 78,5 milhões de euros e no próximo mais 82,6 milhões.

    Ainda no sector dos transportes, mas neste caso em benefício do Metropolitano de Lisboa, foi também António Costa – que, desde Novembro acumulava a tutela das Infraestruturas – que decidiu já as compensações financeiras anuais a atribuir até 2030 pelo Estado no âmbito das obrigações de serviço público. Por ordem do Governo socialista, o Governo da Aliança Democrática terá de entregar este ano ao Metropolitano de Lisboa um total de 4.259.786 euros, e se continuar a durar em 2025 serão mais cerca de 18,3 milhões de euros. Nos próximos sete anos, a Resolução de Conselho de Ministros de 21 de Março, apenas assinada por Mariana Vieira da Silva, fixou pagamentos à empresa pública de 73,7 milhões de euros.

    (Foto: PÁGINA UM)

    No caso do sector da habitação, Miguel Pinto Luz vai, em termos práticos, ser obrigado a cumprir a estratégia do Governo socialista. A Resolução de Conselho de Ministros autorizou o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) a realizar a despesa e a assumir os encargos plurianuais de mais 390,5 milhões de euros no âmbito da contratualização do Programa de Apoio ao Acesso à Habitação, e que visa, em princípio, a construção das 26 mil habitações. Para 2025 e 2026, Luís Montenegro terá de garantir 190,25 milhões de euros em cada um destes anos para este programa habitacional, assim o determinou António Costa nos seus últimos dias como primeiro-ministro.

    Acresce ainda, no sector da habitação, mas neste caso para residências de estudantes universitários, duas autorizações de despesa concedidas à Construções Públicas (ex-Parque Escolar).  A primeira para se gastar quase 17 milhões de euros num edifício na lisboeta Avenida 5 de Outubtro. A segunda para se gastar um pouco menos de 6,6 milhões de euros na reabilitação de um edifício em Seia. Os prédios pertencias ao Subfundo ImoResidências, da Estamo, dissolvido recentemente.

    O sector da Saúde também teve decisões de última hora por parte do Governo Costa. Além da confirmação de mais compras de vacinas contra a covid-19 até 2026, no valor de 210 milhões de euros – que terão, em grande parte, o lixo como destino, por ser já escassa a procura face aos compromissos assumidos pela Comissão Europeia –, houve muitas decisões para obras em hospitais.

    A última reunião de Conselho de Ministros ordinária do anterior Governo contou a presença do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. (Foto: D.R./Foto oficial de António Costa)

    No caso da reprogramação dos encargos plurianuais do Programa de Investimentos na Área da Saúde, foram incluídas autorizações de despesas para o alargamento e remodelação das instalações da urgência polivalente da Unidade Local de Saúde de Viseu Dão-Lafões (8,06 milhões de euros), aquisição de acelerador linear para o Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro (4,9 milhões de euros), a requalificação das instalações do Hospital de Conde de São Bento, em Santo Tirso (6,45 milhões de euros), o projeto de eficiência energética no Centro Hospitalar do Baixo Vouga (2,41 milhões de euros), a construção de uma central térmica no Hospital de Santa Maria (8,95 milhões de euros), a reabilitação dos sistemas energéticos do Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro (4,26 milhões de euros) e a requalificação do edifício de cirurgia do Instituto Português de Oncologia de Coimbra (38,3 milhões de euros).

    Ainda no sector hospitalar, o Governo Costa aprovou a realização, ainda para este ano, de gastos por parte da Administração Central do Sistema de Saúde no valor de cerca de 16,1 milhões de euros, no quadro de um acordo de prestação de cuidados de saúde com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa em duas unidades de saúde: o centro de reabilitação de Alcoitão e o Hospital Ortopédico de Sant’Ana.

    Por fim, ainda houve mais três Resoluções relacionadas com a logística e aquisição de fármacos, um dos quais a próxima ministra da Saúde, Ana Paula Martins, até ‘agradecerá’ por não ser ela a tomar. Trata-se de uma aquisição de compra, ao longo deste ano, de cerca de 1,6 milhões de euros do polémico antiviral remdevisir, para tratamento da covid-19, que é comercializado sob a marca Veklury, pela Gilead. Ana Paula Martins foi um quadro de topo desta farmacêutica entre Fevereiro de 2022 e Janeiro de 2023. Nesta Resolução integra-se também a compra de outros “medicamentos contra a covid-19” não especificados, mas feito no âmbito de acordos celebrados, e mantidos em segredo, que atingiram os 22,7 milhões de euros desde 2022.

    Ana Paula Martins (Foto: Captura a partir de vídeo da AR-TV)

    No sector da segurança, o Governo de António Costa já ‘avançou’ com o trabalho da nova ministra da Administração Interna, Margarida Blasco já não se terá de preocupar demasiado com a aquisição de serviços de suporte à Rede Nacional de Segurança Interna. Ou, pelo menos, ficará a saber que o Governo socialista determinou já vai tudo vai ficar em cerca de 63 milhões de euros, sendo que este ano se gastará apenas 5,2 milhões de euros, mas depois 12,8 milhões de euros em cada ano do quadriénio 2025-2028, terminando em 2029 com um gasto final de 6,4 milhões de euros.

    Além de autorizações para gastos em campanhas de sensibilização na área dos resíduos – onde o Governo Costa determinou ‘autorizar’ que o Governo Montenegro venha a gastar cerca de 10,7 milhões de euros, através do Fundo Ambiental e da Agência Portuguesa do Ambiente – e de autorizações para a aquisição de computadores por escolas e de aquisição de serviços de gestão do centro de contacto do Instituto de Segurança Social, houve também lugar, nesta recta final do Governo socialista, em garantir despesa para obras em duas universidades.

    Para uma residência de estudantes, a Universidade de Lisboa obteve autorização para avançar com uma empreitada de 6 milhões de euros, cujas obras deverão estar concluídas no próximo ano.

    Já a Universidade de Coimbra recebeu duas benesses na recta final do Governo socialista: a primeira para avançar com a empreitada de edificação da nova biblioteca da Faculdade de Direito, no valor de 28,1 milhões de euros; e a segunda para reprogramar a despesa de outra empreitada, dessa vez de quase 22,3 milhões de euros, no decurso da construção do Centro de Excelência em Investigação do Envelhecimento.


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