Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Assim vão ter de arranjar outro nome: INPI dá nega ao podcast dos Gato Fedorento

    Assim vão ter de arranjar outro nome: INPI dá nega ao podcast dos Gato Fedorento


    O Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) recusou aceitar a protecção da denominação do podcast do jornal Expresso da autoria de Ricardo Araújo Pereira, Miguel Góis e José Diogo Quintela, três dos quatro membros do Gato Fedorento. “Assim vamos ter de falar de outra maneira”, lançado em Março deste ano, não conseguiu que a entidade responsável pelo registo de marcas aceitasse a expressão escolhida pelos três humoristas, alegando “falta de capacidade distintiva”.

    De acordo com um documento explicativo das causas de recusa, o INPI considera que a falta de capacidade distintiva “engloba tanto os sinais descritivos como todos aqueles que, não sendo totalmente descritivos, não atingem o patamar mínimo da distintividade”, dando como exemplo a denominação “polvo assado no forno com arroz do mesmo“. O despacho definitivo foi publicado em meados de Agosto e tornar-se-á definitivo no próximo mês de Novembro, caso não haja recurso.

    Podcast do Expresso começou em Março deste ano, mas não tem protecção jurídica para a marca.

    Requerida em 11 de Fevereiro, a denominação escolhida pelos três humoristas pretendia protecção para a classe 41 da Classificação de Nice – que cobre serviços de educação, entretenimento, publicação e eventos culturais – e chegou a ser publicada provisoriamente no boletim do INPI. Contudo, em Junho surgiu a recusa provisória, invocando o artigo 23.º do Código da Propriedade Industrial, que impede o registo de expressões banais ou demasiado descritivas ou genéricas.

    A consequência desta decisão não implica que Ricardo Araújo Pereira, Miguel Góis e José Diogo Quintela deixem de usar a denominação no podcast do Expresso, mas ficam sem protecção legal exclusiva. Assim, em teoria, qualquer outra entidade ou pessoa pode lançar um programa com designação idêntica ou muito semelhante sem incorrer em infracção de marca. A única salvaguarda possível dos três Gato Fedorento reside nos direitos de autor sobre os conteúdos originais, mas não sobre o nome do programa.

    Este episódio evidencia a importância do registo de marca no sector mediático, onde a diferenciação não se joga apenas no conteúdo, mas também no título. E Ricardo Araújo Pereira esteve indirectamente envolvido num processo que mostra essa importância. Com efeito, o humorista integrou desde 2008, com Pedro Mexia e João Miguel Tavares, e com moderação de Carlos Vaz Marques, a equipa do programa satírico Governo Sombra, inicialmente apenas na TSF.

    Ricardo Araújo Pereira, Miguel Góis e José Diogo Quintela, três dos quatro membros dos Gato Fedorento.

    À época, os quatro autores do programa não registaram a marca em seu nome próprio, mas, no mesmo mês em que foi inaugurado, em Outubro de 2008, houve um particular (Ricardo Manuel das Neves Campos) que solicitou o registo. O INPI deferiu o pedido poucos meses mais tarde, mas aparentemente nunca houve conflitos entre o titular da marca e os autores do programa radiofónico, que foi consolidando a sua notoriedade, primeiro na rádio e depois na TVI24, antecessora da CNN Portugal.

    “No primeiro ano de programa recebemos queixas de uma banda rap da Margem Sul, dizendo que lhes tínhamos roubado o nome”, relembrou Carlos Vaz Marques ao PÁGINA UM. “Não ligámos, por duas razões: porque uma banda rap (ainda para mais desconhecida) e um programa de televisão são produtos totalmente distintos. Também nunca ninguém confundiu o grupo GNR com a Guarda Nacional Republicana”, acrescenta. Em todo o caso, mesmo que chegasse a litígio, não haveria qualquer problema porque os registos de marcas aceita denominações comuns desde que para actividades distintas.

    Em todo o caso, os autores do ‘Governo Sombra’ não se preocuparam com o registo e em 2012 aceitaram o convite da TVI para que o programa passasse a ter também transmissão televisiva, “com a anuência da TSF”, conforme salienta Carlos Vaz Marques. Mas essa anuência, em 2012, não incluía o uso da marca, porque a empresa da TSF ainda não a detinha.

    black and silver headphones on black and silver microphone

    Só quando o detentor da marca (Ricardo Manuel das Neves Campos) registada em 2008 não a renovou é que a Rádio Notícias, sociedade gestora da TSF (hoje nas mãos da empresa Notícias Ilimitadas) se aproveitou e solicitou a caducidade do registo. E em Setembro de 2017, a Rádio Notícias obteve despacho favorável e passou a deter o registo do título Governo Sombra.

    Somente quando, em 2021, o moderador Carlos Vaz Marques saiu em litígio da TSF e quis levar o programa com Ricardo Araújo Pereira, Pedro Mexia e João Miguel Tavares para a SIC Notícias é que foram confrontados com a nova realidade. “Por ingenuidade nunca registámos o título”, lamenta o moderador do programa e editor da Zigurate, afirmando que “foi para nós uma surpresa e um choque quando percebemos que a TSF tinha registado a marca à nossa revelia”. Ainda mais surpreendente porque, como diz o moderador do ex-Governo Sombra, a TSF “nunca mais pagou um cêntimo” a Ricardo Araújo Pereira, João Miguel Tavares e Pedro Mexia depois de o programa passar a ser transmitido pela TVI, a partir de 2012.

    Certo é que, por causa do registo da marca no INPI, o quarteto ficou impedido de usar a denominação Governo Sombra, apesar da notoriedade do formato estar a eles associada. E daí nasceu o Programa cujo nome estamos legalmente impedidos de dizer – uma ironia explícita à perda do título anterior, mas que curiosamente ficou registado no INPI não em nome dos autores, mas da SIC Notícias.

    Por razões de registo de marca, o ‘Governo Sombra’ – criado por Ricardo Araújo Pereira, Carlos Vaz Marques, Pedro Mexia e João Miguel Tavares – foi obrigado a mudar a sua denominação.

    Ou seja, se um dia o programa sair do Grupo Impresa, provavelmente os autores terão de registar uma denominação do estilo Programa cujo nome estamos pela segunda vez legalmente impedidos de dizer, o que pode parecer anedótico, mas é juridicamente incontornável.

    Até à presente recusa, todos os pedidos de marca ligados a Ricardo Araújo Pereira, mesmo com as denominações mais estapafúrdias, tinham sido bem-sucedidos. O INPI concedeu-lhe, em exclusivo, o uso das marcas para programas televisivos e podcasts como Isto é gozar com quem trabalha, Gente que não sabe estar e Coisa que não edifica nem destrói.

    Também o nome Gato Fedorento está protegido como marca desde 2006, e pelo menos até 2027, mas neste caso o registo está em nome do quarteto original: Ricardo Araújo Pereira, José Diogo Quintela, Miguel Góis e o ‘renegado’ Tiago Dores. Nestes casos, o INPI reconheceu carácter distintivo suficiente, permitindo que as expressões funcionassem como sinais identificadores de origem.

    Registo da recusa da denominação da marca ‘Assim vamos ter de falar de outra maneira’.

    No entanto, no caso do podcast do Expresso, a decisão foi diferente. Para o INPI, a expressão “Assim vamos ter de falar de outra maneira” aproxima-se demasiado de um slogan comum ou de uma frase de uso corrente, sem a originalidade necessária para funcionar como marca. A entidade que regista marcas e patentes tem sido consistente: slogans são aceitáveis como marcas apenas quando adquirem singularidade ou fantasia capaz de individualizar serviços ou produtos. Expressões genéricas, mesmo que criativas, devem permanecer de uso livre.

    Em todo o caso, este desfecho acaba por ser irónico: os três humoristas que construíram a carreira com engenho linguístico e capacidade de manipular a língua portuguesa de forma criativa viram-se barrados precisamente pelo carácter “banal” da frase escolhida, segundo o burocrático INPI. Se o título pretendia ser um comentário metalinguístico, a lei exige originalidade suficiente para o registo. Assim vão ter de arranjar outro nome…

    N.D. (20h08 de 27/9/2025) – O PÁGINA UM recebeu o seguinte esclarecimento do Departamento de Relações Externas do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), que comenta no final:

    Na sequência do artigo publicado na edição do jornal digital Página Um de 22 de setembro de 2025, com o título “Assim vão ter de arranjar outro nome: INPI dá nega ao podcast dos Gato Fedorento”, gostaríamos de esclarecer alguns aspetos essenciais, de forma a clarificar o verdadeiro motivo da recusa da marca em questão.

    Ao contrário do que é referido na peça jornalística, o indeferimento não se deveu à utilização de “expressões banais ou demasiado descritivas ou genéricas”, mas sim à ausência de elementos obrigatórios no pedido, designadamente:

    • A indicação do número de identificação fiscal dos três requerentes da marca;
    • O envio de documento que comprovasse a legitimidade da signatária do requerimento para apresentar e assinar o pedido de registo em nome dos requerentes (declaração ou procuração).

    O Instituto Nacional da Propriedade Industrial envidou todos os esforços para que a irregularidade fosse suprida, emitindo sucessivas notificações para o efeito. Contudo, a correspondência foi devolvida ou não obteve resposta. Perante esta situação, a decisão de recusa provisória foi convertida em definitiva, nos termos do n.º 5 do artigo 229.º do Código da Propriedade Industrial.

    Estamos naturalmente ao dispor para prestar quaisquer esclarecimentos adicionais. Sempre que surjam dúvidas relacionadas com este ou outros processos, não hesite em contactar-nos.

    Com os melhores cumprimentos,

    O PÁGINA UM indica na notícia que o INPI destaca, na fundamentação da recusa, a alínea c) do artigo 23.º do CPI, que se refere à “inobservância de formalidades ou procedimentos imprescindíveis para a concessão do direito”. Se a causa da recusa foi o não envio dos números de contribuintes e a legitimidade de quem solicitou a marcam então deveria ser invocada a alínea b), ou seja, “a não apresentação dos elementos necessários para uma completa instrução do processo”. O PÁGINA UM pediu esclarecimentos subsequentes sobre esta matéria ao INPI, mas ainda não chegaram.

  • Debate de Alexandra Leitão no clube de elite JNcQUOI ficou em ‘águas de bacalhau’

    Debate de Alexandra Leitão no clube de elite JNcQUOI ficou em ‘águas de bacalhau’


    Aquilo que ontem era dado como certo — um encontro privado com Alexandra Leitão, promovido pelo exclusivo JNcQUOI Club e moderado por António Costa, director do Eco —, hoje já não existe, e amanhã, dia previsto para o evento, muito menos: ficou tudo em ‘águas de bacalhau’.

    Sem qualquer aviso público, o evento que colocava a candidata do Partido Socialista, do Bloco de Esquerda e do Livre a debater os problemas da cidade de Lisboa com membros do selecto clube privado dinamizado por Paula Amorim, CEO da Galp Energia, foi cancelado discretamente e as referências apagadas do site oficial do clube, como se nunca tivesse sido anunciado. Apenas o registo feito pelo PÁGINA UM, ontem às 15h59m50s, através da plataforma Archive.ph, comprova a sua divulgação até ontem de um evento que estava previsto para as 19 horas desta terça-feira.

    Alexandra Leitão, candidata do Partido Socialista, do Livre (com Rui Tavares, ao fundo) e do Bloco de Esquerda.

    Intitulado “Lisbon Decides – Encontro com Alexandra Leitão”, o evento colocaria a ex-ministra e candidata da coligação “Viver Lisboa” — que junta PS, Bloco de Esquerda e Livre — perante os sócios de um dos clubes mais restritos e elitistas de Lisboa.

    A escolha do palco já levantava contradições políticas evidentes: uma candidata apoiada por partidos que se reivindicam da proximidade ao cidadão comum aceitava expor o seu programa perante uma plateia de acesso vedado à generalidade da população, mediante quotas anuais de 2.750 euros e regras de exclusividade que incluem dress code e proibição de fotografias.

    Agora, o súbito apagamento da agenda deixa novas interrogações. O PÁGINA UM tentou esclarecer os motivos deste repentino cancelamento, imediatamente após a nossa notícia deste domingo, junto da campanha de Alexandra Leitão, da direcção do JNcQUOI Club e do próprio jornal Eco, cujo director iria moderar e promover a sessão. Até ao momento, não houve qualquer resposta. Sabe-se, porém, que amanhã, pelas 22 horas, se realizará um debate entre Alexandra Leitão e Carlos Moedas na CNN Portugal, mas esse horário era compatível com o evento no clube que deveria terminar pelas 20 horas.

    Evento foi apagado do site do JNcQUOI, mas não da memória digital.

    A raridade de eventos políticos no clube de Paula Amorim reforça a estranheza. Para 2025, apenas se realizou um encontro desta natureza, em Abril, com o candidato presidencial Gouveia e Melo. A ausência de qualquer justificação pública para o cancelamento e a eliminação digital do registo da iniciativa — em contraste com outras actividades do clube, que permanecem visíveis na agenda — alimentam a suspeita de um recuo estratégico.

    Aquilo que agora que resta é o silêncio: de Alexandra Leitão, dos partidos que a apoiam, do clube de elites da Avenida da Liberdade e do jornal cujo director se preparava para moderar o encontro. A tentativa de aproximação à finança lisboeta, que ontem parecia clara, foi hoje riscada do mapa — mas não da memória digital.

  • Alexandra Leitão no JNcQUOI: candidata do PS, Bloco e Livre em encontro sobre Lisboa em versão ‘members only’

    Alexandra Leitão no JNcQUOI: candidata do PS, Bloco e Livre em encontro sobre Lisboa em versão ‘members only’


    Alexandra Leitão, candidata da coligação “Viver Lisboa” – que juntou o Bloco de Esquerda e o Livre ao Partido Socialista – vai ser a ‘convidada de honra’ de um encontro privado promovido pelo clube de elite JNcQUOI, em plena Avenida da Liberdade, na próxima terça-feira, apenas com acesso a membros seleccionados.

    O JNcQUOI Club, fundado em 2019 pela empresária Paula Amorim, chairman da Galp Energia, é conhecido como espaço de sociabilidade restrita para empresários e gestores de topo da finança portuguesa e africana. Para se ser membro, por norma, tem de se pagar uma anuidade de 2.750 euros.

    O regulamento do clube define um ambiente de luxo e exclusividade, aberto apenas a maiores de 18 anos, em que os membros respondem pelos consumos e comportamento dos seus convidados, que só podem aceder acompanhados. O uso de telemóveis é restrito a áreas designadas e sempre em silêncio, estando proibidas fotografias ou gravações sem autorização. Só é permitido fumar nos terraços e no DiscoLounge.

    Existe ainda um dress code formal: nada de calças rasgadas, roupa de ginásio, chinelos ou bonés; para senhoras é encorajado traje de cocktail. O número de convidados é limitado (três por membro anual, um por membro júnior), exigindo reservas adicionais para ultrapassar esse limite. Animais de estimação não são permitidos, e aconselha-se um equilíbrio entre presença masculina e feminina.

    A programação habitual privilegia jantares exclusivos, provas de vinho, concertos privados ou apresentações empresariais. Para as últimas duas semanas de Setembro, a agenda do JNcQUOI anuncia, além do encontro com Alexandra Leitão (23 de Setembro), uma prova de vinhos da Adega do Monte Branco com Luís Louro (no dia 24), um espectáculo de música com DJ RALØ (dia 25), o programa executivo “Future Frequency” (também no dia 25), um DJ Live Act com Mimanem (no dia 26), um jantar-concerto intitulado License to Sing – The Songs from 007 (também no dia 26), uma noite de rock dos anos 80 com DJ Jay Lion (no dia 27) e, já a 30, um almoço-conversa sob o mote Objectos de Culto: Como o design transforma as nossas vidas.

    Alexandra Leitão é a candidata do Partido Socialista, Bloco de Esquerda e Livre.

    O aparecimento de Alexandra Leitão no clube surge assim lado a lado com iniciativas de lazer e de carácter corporativo, mantendo o mesmo rótulo de exclusividade: members only, embora ainda seja exigida aos membros uma marcação prévia com “um valor associado”.

    Os eventos de natureza política são, na verdade, bastante raros no clube criado pela empresária Paula Amorim. Por exemplo, este ano, apenas em Abril ocorreu um encontro selecto do mesmo género, então com a participação do candidato presidencial Gouveia e Melo, numa sessão apresentada como conversa sobre “liderança ética e responsabilidade partilhada”.

    O evento com a ex-ministra socialista da Administração Pública – apoiada pelos partidos de Mariana Mortágua e de Rui Tavares, numa tentativa de ‘destronar’ Carlos Moedas – realiza-se na próxima terça-feira, pelas 19 horas, e será intermediado por António Costa, director do site informativo empresarial Eco, sendo intitulado “Lisbon Decides – Encontro com Alexandra Leitão”.

    De acordo com a divulgação feita pelo clube, Alexandra Leitão é apresentada como a “principal alternativa a Carlos Moedas” para a liderança da Câmara de Lisboa, comprometendo-se a defender uma cidade “mais justa, mais acessível e mais verde”, com o objectivo de atrair “talento, investimento e turismo de qualidade”.

    O debate terá previsivelmente uma hora de duração e anuncia-se que serão abordados temas como habitação, mobilidade, turismo, sustentabilidade, atractividade económica e governação da cidade.

    A candidata apoiada por partidos que se apresentam como voz dos cidadãos comuns – Bloco de Esquerda e Livre – escolhe assim um espaço vedado à generalidade da população, sendo um gesto político que pode ser lido como sinal de aproximação às elites empresariais.

    Paula Amorim, chairman da Galp Energia, criou o JNcQUOI como clube de elite.

    Até agora, não consta na agenda do JNcQUOI qualquer sessão semelhante com Carlos Moedas nem com outros candidatos à presidência da Câmara de Lisboa, o que torna a presença de Alexandra Leitão ainda mais singular no calendário selecto deste clube.

    Por outro lado, no site e nas redes sociais da coligação “Viver Lisboa”, e da própria Alexandre Leitão, este encontro com a elite financeira não consta ainda na agenda e, segundo apurou o PÁGINA UM, será também vedado à imprensa, uma vez que se trata de um evento de natureza privada.

  • O caso da vacina contra o sarampo nos Estados Unidos: a vergonhosa cobertura noticiosa

    O caso da vacina contra o sarampo nos Estados Unidos: a vergonhosa cobertura noticiosa


    Há notícias que, pela sua forma e conteúdo, se transformam em peças de estudo sobre a degradação do jornalismo. A notícia elaborada pela Lusa sobre a vacinação de crianças nos Estados Unidos – transmitida de imediato, acefalamente, pelo Público, pelo Observador, pelo Correio da Manhã, pelo Expresso e pela SIC Notícias – é um desses exemplos. Na generalidade, os títulos são similares ao do Público: “Governo dos Estados Unidos deixa de recomendar vacina contra sarampo”.

    A frase não deixa margem para segundas leituras – e não se trata de uma mera falha técnica ou de uma distração inocente; é antes uma amostra vergonhosa de desinformação, de enviesamento ideológico e de promoção de erros científicos intencionais, que envergonham a profissão e corroem a confiança pública no jornalismo.

    Comecemos pelo óbvio: o título é falso. Os Estados Unidos não deixaram de recomendar a vacina contra o sarampo. Aquilo que o Comité Consultivo sobre Práticas de Imunização (ACIP), ligado ao CDC, aprovou foi somente a substituição da vacina combinada MMRV – que reunia sarampo, papeira, rubéola e varicela numa só injeção – por duas formulações distintas: MMR (sarampo, papeira e rubéola) e uma vacina separada para a varicela.

    Ou seja, não houve qualquer recomendação para deixar de vacinar crianças contra o sarampo – e nem por via subtil, porque até foi a varicela que saiu da combinação, e não o sarampo. A proteção contra sarampo, rubéola e papeira continuará exactamente igual, administrada em conjunto. E em vez de uma injeção serão dadas duas – não houve qualquer orientação contrária.

    Porém, a Lusa, o Público, o Observador, o Correio da Manhã, a SIC e o Expresso preferiram transformar um detalhe técnico numa manchete explosiva, insinuando que as crianças norte-americanas ficariam subitamente desprotegidas. Isto não é apenas desleixo informativo: é pura manipulação.

    A gravidade aumenta porque todas as notícias – similares, ao péssimo estilo churnalism – omitiram o contexto científico. Desde 2008, passando por democratas e republicanos, estudos do Vaccine Safety Datalink e do próprio CDC demonstraram que a vacina MMRV em crianças pequenas aumentava o risco de convulsões febris. Em crianças dos 12 aos 23 meses, a taxa observada foi de cerca de oito casos em cada 10.000 vacinados com MMRV, contra quatro casos em cada 10.000 vacinados com MMR + varicela separadas. Estamos a falar de um risco real, mas raro, que, embora não deixe sequelas a longo prazo, assusta pais e faz sofrer crianças.

    Foi esse fundamento técnico – a duplicação estatística do risco, embora baixo – que justificou esta alteração técnica que em nada modificou a administração das quatro vacinas. Nada disto aparece explicado no artigo da Lusa e dos seus sucedâneos. O leitor foi intencionalmente deixado na ignorância, como se a mudança tivesse brotado da cabeça iluminada de Robert F. Kennedy Jr., atual secretário da Saúde dos Estados Unidos.

    E aqui está um ponto decisivo que a Lusa e seus “seguidores” intencionalmente distorcem ou omitem. Kennedy Jr. é sistematicamente rotulado como “anti-vacinas”, quando a realidade é mais complexa. O seu discurso, por mais polémico que seja, não se resume a rejeitar todas as vacinas. Ele critica há anos a segurança de certas formulações, questiona a toxicidade de aditivos como o timerosal ou os sais de alumínio, e denuncia alegadas falhas de transparência na farmacovigilância, como foi o caso das ditas “vacinas” contra a covid-19.

    a baby being examined by a doctor and nurse

    Pode-se discordar do tom ou do enquadramento político, mas confundir esta crítica – legítima ou não – com uma campanha para “banir vacinas” é um erro jornalístico grosseiro. Mas Lusa, Público, Observador, SIC Notícias e Expresso – pelo menos estes – escolheram a caricatura fácil, anulando nuances fundamentais e, desse modo, enganaram os leitores.

    A consequência é dupla. Por um lado, apagou-se o facto de a decisão do CDC ter base científica consolidada há mais de uma década: minimizou-se um risco raro mas documentado de convulsões febris. Por outro lado, transformou-se a medida numa “vitória pessoal” de Kennedy Jr., sugerindo que o novo secretário da Saúde teria inventado riscos. Este enviesamento reforçou uma lamentável narrativa política, ao mesmo tempo que obscurece a realidade – e, no entanto, o sarampo continua a ser alvo de vacinação e a única mudança concreta foi a separação da varicela.

    Do ponto de vista dos princípios jornalísticos, o resultado é devastador: um título falso – que até pode incutir (falsos) argumentos aos movimentos anti-vacinas radicais –, uma omissão deliberada do enquadramento científico, uma simplificação caricatural da figura política em jogo e uma redação preguiçosa, dependente de agências noticiosas, sem esforço mínimo de confrontar fontes primárias, documentos do CDC ou associações médicas. Este é o jornalismo de secretária ideológico e manipulador com consequências reais para a saúde pública.

    the word true is spray painted on a white wall

    Num país onde a confiança nas vacinas ainda é elevada, mas onde circulam já rumores e receios amplificados pelas redes sociais, uma manchete destas é gasolina atirada sobre brasas. Os órgãos de comunicação social, a começar pela Lusa, contribuíram activamente para semear a dúvida e a confusão. E quando se trata de vacinas contra o sarampo, não falamos de abstrações: falamos de uma doença altamente contagiosa, que exige mais de 95% de cobertura vacinal para garantir imunidade de grupo.

    Não, não é aceitável reduzir tudo isto a uma mera falha. Estes erros começam a ser sistemáticos, mostrando um triste padrão: um jornalismo cada vez mais desleixado, mais rendido à facilidade do copy-paste de agências, mais disposto a sacrificar a verdade factual em troca de títulos apelativos que gerem cliques. Mas aqui ultrapassa-se o limite: a saúde pública não pode ser tratada como carnada mediática.

    Jornalistas sérios teriam feito o oposto: explicariam ao leitor que a vacina contra o sarampo continua a ser considerada (ainda mais) segura e recomendável, mostrariam os números sobre convulsões febris, explicariam a diferença entre MMR e MMRV, e enquadrariam politicamente a decisão sob a tutela de um secretário da Saúde que, concorde-se ou não, levanta dúvidas sobre segurança e aditivos.

    Foto: PÁGINA UM

    Se o jornalismo serve para informar, esta peça serviu para desinformar. Se o jornalismo serve para esclarecer, aqui serviu para confundir. Se o jornalismo serve para proteger a cidadania, aqui serviu para fragilizá-la. É um caso de estudo sobre como não se deve fazer jornalismo científico e de saúde pública. E, mais grave ainda, é um exemplo de como o enviesamento ideológico e a preguiça redacional podem transformar um órgão de comunicação social respeitado num veículo de erro.

    E sobre a situação do sarampo este ano nos Estados Unidos, voltarei muito em breve para abordar este assunto – e demonstrar como o jornalismo português (e europeu), cego pela paixão ideológica (e comercial), recusa olhar para dentro da sua casa.

  • A imprensa em estado terminal e os ‘paninhos quentes’ da academia

    A imprensa em estado terminal e os ‘paninhos quentes’ da academia


    A leitura do mais recente relatório do Media Pluralism Monitor sobre Portugal não surpreende ninguém que acompanhe a realidade mediática portuguesa. O que surpreende, isso sim, é a forma como a academia – ou, mais precisamente, a visão exclusiva do Instituto de Comunicação da Universidade Nova de Lisboa (ICNOVA) – continua a insistir em cobrir com véus técnicos aquilo que já não passa de um cadáver político e económico em decomposição. A cada edição, o relatório adopta uma linguagem anestesiada, quase eufemística, que tenta reduzir a meros “riscos médios” aquilo que é, na verdade, uma implosão sistémica.

    O documento fala em “risco médio-alto” para a pluralidade de mercado, em “risco alto” para a inclusão social, e em “risco médio-baixo” para a protecção fundamental. Palavras medidas, pintadas em tons pastéis, como se a academia tivesse medo de nomear a falência. Falar em “risco médio-alto” é um eufemismo que se presta a maquilhar um colapso estrutural.

    Foto: PÁGINA UM

    Portugal tem hoje uma paisagem mediática em que o Estado é simultaneamente regulador, financiador e accionista de peso. É dono de 95,9% da Lusa, controla a RTP por via de contratos de concessão caducados que se arrastam sem escrutínio, e dita as regras orçamentais da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC). Esta última, na prática, fecha os olhos a promiscuidades, à publicidade encapotada, a irregularidades contabilísticas, mas nunca hesita em assumir uma sanha persecutória contra quem não se ajoelha perante o seu poder discricionário.

    Esta promiscuidade institucional recorda um ditado antigo: não se pode ser árbitro, jogador e dono da bola ao mesmo tempo. Em Portugal pode. E, o que é mais grave, a ICNOVA não só não denuncia o problema como aplaude discretamente, contribuindo para legitimar um Plano de Acção para os Media que, sob pretexto de apoiar o sector, mais não faz do que criar mecanismos de subjugação.

    O relatório, em todo o caso, não deixa de apontar que a criminalização da difamação continua a ser um dos problemas centrais: jornalistas podem, em pleno século XXI, ser condenados a prisão por “ofensas à honra”. Eis a democracia portuguesa: uma democracia que protege mais o decoro das elites do que a liberdade de informar. Pior ainda, continua a faltar legislação anti-SLAPP – normas destinadas a travar processos judiciais abusivos cujo único objectivo é silenciar jornalistas e investigadores. E aqui a omissão é gritante: se há algo que mina a liberdade de imprensa em Portugal são precisamente esses processos persecutórios, utilizados por elites políticas, médicas e empresariais como armas de intimidação.

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    Foto: D.R.

    Basta olhar para a realidade concreta. Na próxima semana inicia-se, no Porto, a primeira audiência de julgamento intentada pelo médico Gustavo Carona contra mim, em que me são imputados 31 crimes – pasme-se, incluindo críticas literárias satíricas que fiz a um dos seus poemas ou por lhe ter chamado “Braveheart de Leixões” durante a pandemia.

    Em Outubro, será a vez de eu enfrentar um processo ainda mais grandioso, intentado pelo Almirante Gouveia e Melo, pela Ordem dos Médicos, pelo ex-bastonário Miguel Guimarães (hoje deputado do PSD) e por médicos como Filipe Froes e Luís Varandas.

    A seguir, chegará outro processo em que, representados pela mesma sociedade de advogados, alinham a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, a Ordem dos Médicos, a Ordem dos Farmacêuticos, a APIFARMA e novamente Miguel Guimarães. Enquanto isso, a ERC entendeu impedir a análise em Conselho Regulador (que implicaria uma deliberação) a ameaça de processo judicial que um advogado me fez antes mesmo de eu ter publicado uma notícia, mas abriu prontamente um processo administrativo contra o PÁGINA UM depois de um jornalista da CNN Portugal ter ‘exigido’ que o jornal fosse encerrado.

    a close up of an open book with some writing on it
    Foto: D.R.

    Quantas linhas dedica o relatório do ICNOVA a esta realidade concreta? Nenhuma. Não há qualquer referência às sistemáticas recusas de entidades públicas em cederem informação e documentos administrativos, que, por exemplo, obrigam o PÁGINA UM a recorrer sistematicamente aos tribunais administrativos, sendo que entre as entidades pouco transparentes estão a própria ERC e a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ). Ah, e as intimações ou vegetam por anos a fio, ou, quando despachadas pelos tribunais administrativos, são amiúde pura e simplesmente ignoradas pelas entidades públicas visadas.

    Não há uma linha sobre este ‘cancro’ na liberdade de imprensa, porque a academia prefere medir riscos em escala abstracta, ignorando a prática quotidiana de bloqueio e intimidação.

    Na frente económica, a análise académica limita-se a repetir aquilo que qualquer redacção conhece de cor. A imprensa tradicional está à míngua, os freelancers sobrevivem com recibos verdes pagos a meses de atraso, e os grandes grupos navegam em águas turvas de concentração accionista. Impresa, Media Capital, Cofina e RTP dominam o mercado, enquanto a Global Media definha depois das aventuras com fundos sediados em paraísos fiscais.

    A close-up shot of a cameraman filming, focusing on the camera lens and equipment.
    Foto: D.R.

    E o tão celebrado Portal da Transparência da ERC, apresentado como uma conquista civilizacional, não passa de uma anedota, um arquivo incompleto, que serve mais para legitimar a opacidade do que para iluminá-la. Apesar disso, o relatório atreve-se a classificar este campo como de “baixo” ou “médio-baixo risco”. É uma anedota. Para os autores, numa democracia só seria grave se os jornalistas fossem presos em plena rua ou alvejados na redacção. O quotidiano de precariedade, manipulação e opacidade não entra no radar.

    Talvez, contudo, o maior embuste metodológico resida na avaliação da independência política como de “baixo risco”. É difícil encontrar afirmação mais absurda. A RTP consome mais de 200 milhões de euros anuais, com cerca de mil jornalistas em quadro; a Lusa funciona como agência noticiosa estatal; e a ERC permanece cativa do duopólio PS-PSD, que decide em jantares privados quem deve presidir ao regulador e que ordens deve ou não executar. Onde está aqui a independência? O que existe é um teatro de sombras: em palco recitam-se versos constitucionais sobre liberdade e pluralismo; nos bastidores, as cordas são puxadas por partidos e governos.

    E chegamos ao ponto mais devastador: a exclusão social e cultural. O relatório classifica este campo como de “alto risco”, o único onde parece acertar. É verdade que as mulheres continuam afastadas dos lugares de decisão editorial, que as minorias surgem nas páginas sobretudo como problemas policiais ou estatísticos, e que os media locais sobrevivem à conta de subsídios que apenas prolongam a agonia. Mas mesmo aqui, a leitura é superficial. Porque a exclusão não é apenas social ou cultural: é estrutural. A exclusão é consequência de um modelo falido que se recusa a assumir uma evidência: Portugal não tem condições para manter um parque mediático tão numeroso, deficitário e dependente de promiscuidades.

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    Foto: D.R.

    Este retrato, pintado com pinceladas suaves no relatório europeu, merecia traços fortes e carregados. A imprensa portuguesa encontra-se capturada, subfinanciada, dependente e desigual. Vive de subsídios pontuais, da publicidade encapotada das autarquias, de contratos de serviço público mal desenhados e da complacência de reguladores que se comportam como cúmplices. O resultado é um ecossistema em que jornalistas mal pagos competem com comentadores políticos generosamente remunerados, em que a notícia factual é substituída pela opinião, e em que a sobrevivência financeira depende mais do favor governamental do que da confiança dos leitores.

    Não surpreende, por isso, que os cidadãos desconfiem cada vez mais da imprensa. Não surpreende que as audiências fujam para o ruído digital, mesmo sabendo que aí a desinformação impera. O que surpreende é a passividade com que relatórios como este preferem suavizar problemas estruturais. Há anos que a precariedade, a promiscuidade, a exploração e a opacidade foram normalizadas. A academia prefere medir riscos em escalas técnicas, como se fosse possível graduar a decomposição de um cadáver.

    A verdade é simples e crua: a imprensa portuguesa não está apenas em risco. Está em estado terminal. E os paninhos quentes académicos não escondem o cheiro da decomposição.

  • Principal accionista da Global Notícias usa truques contabilísticos ilegais para esconder falência técnica

    Principal accionista da Global Notícias usa truques contabilísticos ilegais para esconder falência técnica


    As contas de 2024 da Páginas Civilizadas, principal accionista da Global Notícias controlada pelo empresário Marco Galinha – dona do Diário de Notícias e com participação na sociedade que detém o Jornal de Notícias e a TSF –, apresentam gravíssimas irregularidades e artifícios contabilísticos, transformando uma evidente falência técnica numa aparente robustez financeira.

    De acordo com a análise contabilística e financeira do PÁGINA UM à empresa liderada por Marco Galinha – que controla directa e indirectamente 45,87% da Global Notícias e detém ainda por via indirecta 13,8% da Notícias Ilimitadas (dona do JN e da TSF, entre outros títulos) –, a Páginas Civilizadas reportou lucros de cerca de 190 mil euros e capitais próprios superiores a 4,7 milhões de euros nas demonstrações financeiras do ano passado. Contudo, estes resultados só foram possíveis graças a expedientes contabilísticos dificilmente aceitáveis numa empresa com esta dimensão e relevância.

    Marco Galinha (à direita), accionista de referência da Global Notícias e gerente da Páginas Civilizadas, com a direcção do Diário de Notícias – Filipe Alves, Valentina Marcelino e Nuno Vinha – numa fotografia publicada pelo próprio director no Facebook, a assinalar o primeiro ano da actual liderança do jornal. Foto: D. R.

    Recorde-se que a Páginas Civilizadas foi o ‘veículo’ usado pelo enigmático fundo das Bahamas (World Opportunity Fund) para controlar, durante alguns meses de 2023 e 2024, a Global Notícias sob a égide de José Paulo Fafe, num episódio que gerou forte polémica e instabilidade e motivou mesmo a intervenção da ERC. No início de 2024, Marco Galinha retomou o controlo financeiro da Páginas Civilizadas – surgindo no registo de beneficiário efectivo com uma quota de 59,75% – antes de proceder à separação do Jornal de Notícias e da TSF (entre outros títulos) da Global Notícias, num negócio ainda envolto em falta de clareza.

    Um dos pontos mais polémicos nas contas de 2024 da Páginas Civilizadas está na rubrica “Investimentos financeiros”, onde inscreveu mais de 2,8 milhões de euros, correspondentes à participação na Global Notícias, mas sem aplicar o método da equivalência patrimonial que seria exigido pela dimensão da posição e pela influência exercida na gestão do grupo de media cujo principal activo é ainda o Diário de Notícias.

    Na própria Informação Empresarial Simplificada (IES), entregue na Base de Dados das Contas Anuais, a Páginas Civilizadas declara que os investimentos em subsidiárias, empresas conjuntamente controladas e associadas são registados pelo método da equivalência patrimonial.

    Demonstração de resultados de 2024 da Páginas Civilizadas ignoram a participação relevante (45,87% por via directa e indirecta) na Global Notícias, escondendo assim um descalabro financeiro.

    Ora, mas se tivesse aplicado essa regra, teria de reconhecer no seu balanço a parte proporcional dos resultados catastróficos da Global Notícias em 2024, divulgados no Portal da Transparência dos Media, mas ainda não enviados para a Base de Dados das Contas Anuais. O atraso atingirá amanhã os 55 dias.

    Como detém directamente 41,5% do capital da Global Notícias, a Páginas Civilizadas teria de assumir nas suas contas pelo menos cerca de 11 milhões de euros de perdas, correspondentes a uma parcela dos capitais próprios negativos de 19,3 milhões e dos prejuízos líquidos de 26,4 milhões registados em 2024. Assim, em vez de um activo de 2,86 milhões contabilizado como se fosse sólido, a empresa liderada por Marco Galinha através de três empresas (Páginas de Prestígio, Norma Erudita e Grupo Bel) teria de registar um valor líquido nulo ou praticamente nulo, entrando assim em falência técnica.

    O expediente da Páginas Civilizadas – que tem Marco Galinha como gerente – foi, pura e simplesmente, ignorar a participação relevante na Global Notícias. Esta opção não é um detalhe técnico nem é legalmente aceitável, porque não se trata de uma posição minoritária irrelevante. Aparentemente, a empresa ‘encosta-se’ ao regime das pequenas entidades (NCRF-PE), que permite o uso de rubricas simplificadas.

    Extracto do anexo à Informação Empresarial Simplificada (IES) da Páginas Civilizadas relativa a 2024, onde a empresa declara aplicar o método da equivalência patrimonial às suas participações em subsidiárias e associadas. Contudo, no balanço, a participação de 41,5% na Global Notícias surge registada como “investimentos financeiros” ao custo, sem reconhecimento da quota-parte nos prejuízos e capitais próprios negativos da dona do Diário de Notícias.

    Porém, mesmo neste regime, vigora o princípio fundamental do Código das Sociedades Comerciais: as contas devem dar uma imagem verdadeira e apropriada da realidade económica. Ao não reflectir os capitais próprios negativos e os prejuízos avultados da Global Notícias, a Páginas Civilizadas fabrica uma saúde financeira fictícia. Na verdade, em vez de lucros de 190 mil euros, deveria apresentar prejuízos de 10,8 milhões; e em vez de capitais próprios positivos de 4,7 milhões, deveria revelar capitais negativos de 6,3 milhões. Ou seja, falência técnica.

    Nesta linha, o expediente da Páginas Civilizadas é materialmente irregular e contrário ao espírito da lei. Mais do que uma interpretação contabilística, trata-se de uma manipulação para contornar um maior controlo financeiro, pois a aplicação da equivalência patrimonial obrigaria à nomeação de um Revisor Oficial de Contas (ROC), que nunca aceitaria semelhante manobra.

    Mas mesmo admitindo, por hipótese académica, que a Páginas Civilizadas pudesse registar a sua participação na Global Notícias ao custo, teria então de constituir em 2024 uma imparidade ou, pelo menos, uma provisão que reflectisse a perda quase total de valor económico desse investimento. Só assim o balanço daria uma imagem verdadeira, uma vez que a participação na Global Notícias (em falência técnica) já não representa um activo sólido, mas sim um encargo de elevado risco.

    O Código das Sociedades Comerciais é igualmente claro ao exigir que sociedades com participações relevantes em empresas com capitais próprios negativos reflictam tais factos nos seus balanços. Ao subvalorizar os rendimentos e inflacionar o valor do investimento na Global Notícias, Marco Galinha garante que a Páginas Civilizadas se mantém, no papel, saudável e sem necessidade de auditor externo – quando, na realidade, está numa situação de extrema fragilidade, perante a indiferença da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC).

    Há cerca de duas semanas, o PÁGINA UM colocou diversas questões a Marco Galinha sobre a situação da Global Notícias, mas o empresário escusou-se a fazer declarações em ‘on’. E o PÁGINA UM não aceitou declarações em ‘off’.

  • Carris: investimento real na manutenção de eléctricos caiu 21% entre o último ano de Medina e o terceiro de Moedas

    Carris: investimento real na manutenção de eléctricos caiu 21% entre o último ano de Medina e o terceiro de Moedas


    A Carris sob a tutela de Carlos Moedas, no período 2022-2024, reduziu de forma expressiva o investimento real na manutenção e reparação dos eléctricos e ascensores, quando comparado com os quatro anos anteriores, em que Fernando Medina liderava a autarquia (2018-2021). Comparar o investimento do último do mandato do socialista (2018) com o terceiro ano do mandato do social-democrata é constatar que o investimento em manutenção caiu 566 mil euros em termos práticos.

    De acordo com a análise detalhada do PÁGINA UM aos relatórios e contas da empresa municipal desde 2018, verifica-se que no último ano de Medina, em 2021, foram aplicados cerca de 2,68 milhões de euros em valores reais — já corrigidos pelo efeito da inflação. Em 2024, essa verba caiu para apenas 2,11 milhões de euros, o valor mais baixo da série e que representa um corte de 21% em termos efectivos. Embora os montantes nominais tenham permanecido aparentemente estáveis ao longo de todo o período de análise desde 2018 — na ordem dos 2,5 a 2,7 milhões de euros anuais —, o impacto da inflação no último triénio traduziu-se num desinvestimento inequívoco.

    Carlos Moedas, com a ministra do Ambiente e o presidente da Carris no anúncio da Carris da formalização da candidatura da empresa para fornecimento de 15 elétricos, em 28 de Junho de 2024.
    / Foto: CML/ D.R.

    O contraste entre os dois ciclos autárquicos é notório. Entre 2018 e 2021, sob Medina, o investimento real em manutenção e reparação dos eléctricos cresceu de 2,41 para 2,68 milhões de euros, traduzindo um aumento efectivo de 11%. Já entre 2022 e 2024, sob Moedas, o percurso foi inverso: os valores reais caíram consecutivamente, de 2,37 milhões em 2022 para 2,11 milhões no ano passado. Esta trajectória anulou os ganhos do ciclo anterior e mergulhou a cidade numa situação de subfinanciamento estrutural, precisamente numa fase em que a inflação acelerava e exigia maior esforço orçamental. O ano de 2024 foi mesmo aquele com valores reais, a preços de 2018, mais baixos nos últimos sete anos.

    Compreender esta evolução obriga a distinguir valores nominais de valores reais. Os primeiros correspondem às verbas inscritas em orçamento e efectivamente gastas; os segundos resultam da aplicação de deflatores baseados no Índice de Preços no Consumidor (IPC), que corrigem a perda de poder de compra causada pela inflação. Assim, um milhão de euros em 2018 não tem o mesmo peso económico que um milhão de euros em 2023 ou 2024: para assegurar o mesmo nível de bens e serviços, é necessário gastar mais.

    No caso concreto da manutenção dos eléctricos, o PÁGINA UM recorreu à série histórica do IPC publicada pelo Banco de Portugal, tomando 2018 como ano-base (100 pontos). A divisão dos valores nominais pelos deflatores anuais permitiu calcular as despesas em preços constantes de 2015, neutralizando o efeito da inflação e assegurando uma comparação precisa.

    Evolução do investimento da Carris na manutenção e reparação de eléctricos e ascensores (2018-2024), em valores nominais (amarelo) e reais (vermelho). FM correspondem aos anos de mandato de Fernando Medina e CM aos de Carlos Moedas, Usaram-se os seguintes deflatores: 100,00 (2018, ano base); 100,30 (2019); 100,20 (2020); 101,10 (2021); 109,29 (2022); 115,08 (2023) e 117,85 (2024), Fonte: Relatórios e Contas da Carris no período 2018-2024 e INE (deflatores), Análise: PÁGINA UM.

    Os resultados são claros: em 2022, apesar de estarem orçamentados 2,59 milhões de euros, o deflator de 109,29 pontos reduziu a despesa efectiva para 2,37 milhões. Em 2023, com 2,66 milhões de euros nominais, o deflator de 115,08 pontos — que reflecte já uma inflação acumulada de 15% face a 2018 — cortou o valor real para 2,31 milhões. Finalmente, em 2024, os 2,49 milhões de euros inscritos corresponderam, após aplicação do deflator de 117,85 pontos, a apenas 2,11 milhões de euros reais, o nível mais baixo desde 2018.

    Durante o mandato de Medina, o efeito da inflação foi praticamente irrelevante: os deflatores oscilaram entre 100 e 101 pontos, pelo que os aumentos nominais significaram, na prática, aumentos reais. Ou seja, Medina aplicou mais verbas e garantiu mais manutenção efectiva da rede. Já Moedas, mantendo valores nominais semelhantes, deixou que a inflação corroesse esses montantes, conduzindo a uma quebra substancial e prolongada.

    O problema não é apenas aritmético. Ao contrário do que aconteceu com a rede de autocarros — que entre 2018 e 2024 aumentou de 75 para 102 carreiras —, o número de carreiras de eléctricos (seis) e de ascensores (três), a que se soma o elevador de Santa Justa, manteve-se inalterado. Ou seja, não houve qualquer redução de equipamentos que pudesse justificar a descida do investimento real.

    O corte de recursos traduziu-se directamente em menor capacidade de manutenção preventiva e correctiva, em maior desgaste da frota e das infra-estruturas, em mais falhas operacionais e em riscos acrescidos de acidentes.

    É neste enquadramento que o desastre do Elevador da Glória adquire um significado mais do que simbólico: não se trata de um episódio isolado, mas da consequência previsível de três anos consecutivos de cortes efectivos na verba destinada à manutenção. Uma negligência que, longe de ser acidental, é estrutural e revela a falta de prioridade política dada à preservação e segurança de um dos ícones mais emblemáticos da cidade.

  • Dirigentes da Administração Central do Sistema de Saúde andam a fugir ao carteiro como o diabo da cruz

    Dirigentes da Administração Central do Sistema de Saúde andam a fugir ao carteiro como o diabo da cruz


    É um retrato grave mas trágico-cómico da degradação burlesca da Justiça e do próprio Estado de Direito: quatro dirigentes da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) recusam-se a receber notificações judiciais, obrigando um tribunal a sucessivas tentativas falhadas. Primeiro, por erros burocráticos da secretaria do Tribunal Administrativo de Lisboa. Depois, já com a morada certa, porque os administradores públicos se esconderam do carteiro, devolvendo as cartas com a menção “objecto não reclamado”.

    Desde Janeiro deste ano, o juiz Miguel Crespo procura notificar os quatro membros do Conselho Directivo da ACSS — André Trindade, Carlos Galamba, Sandra Brás e Paula Oliveira, todos já nomeados no ano passado pela ministra Ana Paula Martins — para responderem a um incidente de incumprimento apresentado pelo PÁGINA UM.

    Ao centro, Ana Paula Martins, ministra da Saúde; na ponta direita, André Trindade, actual presidente da ACSS e que conseguiu já fugir por duas vezes ao carteiro; e na ponta direita, Victor Herdeiro, ex-presidente da ACSS que durante mais de dois anos lutou para esconder e manipular uma base de dados,. Foto: ACSS.

    Em causa está a eventual aplicação de sanções compulsórias diárias (multas pessoais) pela recusa em entregar a base de dados integral dos internamentos hospitalares, denominada Grupos de Diagnósticos Homogéneos (GDH), ordenada por sentença em Novembro de 2022 e confirmada pelo Tribunal Central Administrativo do Sul em Março de 2023 e pelo Supremo Tribunal Administrativo em Junho de 2023.

    A disputa remonta a Julho de 2022, quando o PÁGINA UM pediu acesso à Base de Dados Central dos Grupos de Diagnóstico Homogéneos e à reposição da base de Morbilidade e Mortalidade Hospitalar no Portal da Transparência do SNS, retirada meses antes por decisão de Victor Herdeiro, então presidente da ACSS e próximo da ministra Marta Temido. Apesar das decisões judiciais favoráveis ao jornal, a ACSS optou depois por tentar entregar apenas uma versão mutilada da base de dados, eliminando variáveis e desagregações que inviabilizam o escrutínio sobre a evolução das doenças e o desempenho dos hospitais.

    Depois de tentativas de diálogo, que incluiu duas reuniões presenciais na ACSS, e também uma tentativa desta entidade de reiniciar o julgamento indicando peritos que tinham ligações a hospitais públicos, o PÁGINA UM, avançou então em Janeiro deste com um denominado “incidente de incumprimento“, que significa que os dirigentes podem ser pessoalmente multadas por cada dia de atraso no cumprimento da sentença transitada em julgado.

    Sede da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), junto ao Hospital Júlio de Matos: CTT não conseguiram entregar nenhuma das quatro notificações aos dirigentes desta entidade em duas ocasiões diferentes.

    O juiz deste processo determinou então que os administradores da ACSS fossem pessoalmente citados. Mas tudo começou a complicar-se, com incompetência à mistura. A oficial de justiça encarregue da diligência, Maria Lurdes Lamarão, enviou as notificações dos dirigentes da ACSS em Fevereiro deste ano para… a antiga morada do PÁGINA UM. E alertado o tribunal, a mesma funcionária judicial repetiu a dose, enviando novamente as cartas da ACSS erradamente para o Bairro Alto, em vez de as endereçar para o edifício 16 do Parque de Saúde de Lisboa, mesmo ao lado do Hospital Júlio de Matos.

    Só à terceira tentativa, em Abril deste ano, foram as notificações finalmente remetidas para a sede correcta da ACSS.

    E aí começou o jogo do gato e do rato – ou dos diabos a fugirem da cruz. Com efeito, apesar de a ACSS possui um edifício com recepção e serviços administrativos e de expediente abertos no horário de expediente, o carteiro não conseguir entregar qualquer uma das quatro cartas aos dirigentes desta entidade tutelada pelo Ministério da Saúde. As notificações regressaram ao tribunal com a indicação “objecto não reclamado”, facto que só se explica por ordem expressa dos destinatários.

    Foto dos quatro actuais dirigentes do Conselho Directivo da ACSS tirada em data incerta, mas certamente num dia em que o carteiro não bateu à porta para lhes entregar as notificações do tribunal que, por duas vezes, ostensivamente recusaram este ano. Foto: ACSS.

    O juiz insistiu em nova tentativa, a quarta, em Maio, e desta vez com advertência formal: o prazo contaria a partir da data de recepção, mesmo sem assinatura do próprio notificado. Mas em Julho os envelopes voltaram a ser devolvidos da mesma forma. André Trindade, Carlos Galamba, Sandra Brás e Paula Oliveira conseguiram furtar-se segunda vez à notificação de um tribunal impedindo a concretização de decisão com três selos judiciais (Tribunal Administrativo de Lisboa, Tribunal Central Administrativo do Sul e Supremo Tribunal Administrativo).

    Perante este bloqueio, a lei permite agora que o tribunal recorra a meios mais drásticos, como a intervenção policial ou de solicitadores, para garantir que os dirigentes não possam continuar a fugir. Mas isto expõe sobretudo uma condição lamentável.

    Num verdadeiro e efectivo Estado de Direito, seria impensável que dirigentes públicos se escondessem deliberadamente para não receber notificações judiciais, sobretudo quando está em causa o cumprimento de decisões transitadas em julgado. Mas em Portugal, os mesmos que exigem aos cidadãos rigor fiscal e legalidade não hesitam em contornar a Justiça.

    Primeira página do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 1 de Junho de 2023. Mais de dois anos depois, os dirigentes da ACSS borrifam-se impune e descaradamente até para ordens dos tribunais superiores.

    Enquanto isto durar, o PÁGINA UM – que, com este processo, já dispendeu alguns milhares de euros e horas infindáveis – n permanece impedido de aceder a uma base de dados fundamental para avaliar a qualidade dos hospitais públicos e dar transparência ao sistema de saúde.

    Mais do que um processo administrativo, a situação torna-se um símbolo de degradação institucional: um país em que se foge do carteiro para evitar cumprir decisões judiciais é, afinal, um país da bandalheira. E esta palavra é escrita numa notícia, porque objectivamente essa é a palavra adequada.

    N.D. Este e outros processos de intimação são suportados pelos leitores através do FUNDO JURÍDICO, na plataforma MIGHTYCAUSE. Pode encontrar mais elementos deste processo aqui.

  • Introdução: A suave tirania dos nossos tempos

    Introdução: A suave tirania dos nossos tempos


    Há momentos na História em que o discurso político, o pensamento público e até a consciência individual parecem mergulhados num torpor feito de palavras repetidas, de ideias ocas, de rituais sem alma. Vivemos um desses tempos. Um tempo em que as ideologias, outrora projectos estruturantes de mundo, caíram no descrédito ou na irrelevância, sendo substituídas por etiquetas vagas, por alinhamentos circunstanciais e por automatismos discursivos que já não mobilizam consciências nem iluminam caminhos.

    A política deixou, em larga medida, de ser a arte da escolha entre visões de sociedade para se converter num mercado de slogans, numa arena de reacções instintivas, numa sequência de performances ajustadas ao algoritmo ou ao inquérito de opinião. Por isso, mostra-se cada vez mais urgente recentrar o debate nos valores — não nos rótulos, não nos programas, não nos partidos, mas nos valores perenes que dão sentido à liberdade, à verdade, à responsabilidade e à soberania do indivíduo e da comunidade.


    1. O colapso das ideologias tradicionais e a ascensão do dogmatismo funcional

    Durante grande parte do século XX, os confrontos ideológicos não eram apenas jogos de poder: eram confrontos de visões do mundo. O liberalismo clássico, o socialismo democrático, o conservadorismo nacional — com todas as suas variantes e degenerescências — disputavam entre si não apenas votos, mas sentidos, princípios e horizontes. Discutia-se o papel do Estado, o valor da propriedade, a relação entre liberdade e igualdade, o lugar da tradição e da inovação.

    Discutia-se, de facto, política — com paixão, com erro, com demagogia por vezes, mas com substância. Havia, para o bem e para o mal, uma batalha de ideias. A própria luta contra as formas totalitárias — o nazismo, o comunismo, o fascismo — exigia posicionamento e coragem intelectual. Ser de direita ou de esquerda implicava, até certo ponto, uma coerência moral, um conjunto de referências, um mapa do mundo.

    Essa arquitectura ruiu. Não de forma repentina, mas por erosão lenta. O liberalismo económico divorciou-se do liberalismo político, convertendo-se numa técnica de gestão de mercados. O socialismo sucumbiu entre a burocracia estatal e a sedução do consumo. O conservadorismo deixou de conservar seja o que for — perdeu o sentido de pertença e rendeu-se ao marketing político. Aquilo que sobra das ideologias do século XX são versões anémicas de si mesmas: a esquerda que defende bancos e vacinações compulsórias; a direita que aceita défices, censura e dissolução da soberania nacional; os centristas que vegetam entre um simulacro de consenso e a rendição à tecnocracia.

    As ideologias perderam conteúdo porque foram cooptadas pelos aparelhos institucionais, pelos interesses económicos, pela lógica da comunicação instantânea. Como defendeu o recém-falecido filósofo britânico Alasdair MacIntyre, vivemos um tempo de “fragmentação moral”: já não há um quadro partilhado de sentido, mas apenas segmentos dispersos de valores instrumentais, sem hierarquia nem finalidade comum.

    O resultado não tem sido a emancipação do cidadão, mas a sua reprogramação funcional. O vazio deixado pelas ideologias não foi ocupado por um renascimento do pensamento, mas por um novo dogmatismo: mais discreto, mais eficaz, mais domesticador. Não se apresenta como ideologia, mas como inevitabilidade. Não propõe um projecto político, mas uma engenharia social. Este novo dogmatismo é funcional, não doutrinário: não tem como missão formar convicções, mas produzir comportamentos. Apresenta-se sobretudo como tecnocracia apostada na neutralidade, na moral institucionalizada que se confunde com virtude, no higienismo que se impõe como salvação, na burocracia da igualdade que desumaniza em nome da inclusão — é o poder sem rosto, sem narrativa, sem contestação visível; é um poder que normaliza o anormal e rotula como extremista quem apenas ousa pensar fora da grelha predefinida.

    Estamos perante uma nova forma de tirania da maioria, como já antecipava Alexis de Tocqueville no século XIX: uma maioria não necessariamente numérica, mas mediática, algorítmica, institucional — uma maioria fabricada e legitimada não pelo debate, mas pela repetição. Este novo consenso moral-operativo não precisa de censura formal: basta-lhe a difamação mediática, o cancelamento digital, o controlo subtil da linguagem, o medo socialmente inculcado. O triunfo da tirania da maioria surge com a instalação da uniformidade do pensamento, da obediência voluntária, da infantilização do juízo. Embora numa outra perspectiva, Hannah Arendt alertou para a banalidade do mal — e esse mal implanta-se agora não pelo fanatismo ideológico, mas pela normalização da passividade, pela rotinização da mentira, pela aceitação preguiçosa da ordem estabelecida.

    Esse novo dogmatismo apresentou-se, sobretudo na última década, e particularmente desde 2020, com múltiplas máscaras: sanitária, climática (não ambiental), identitária, digital. Mas por trás de todas essas máscaras está o mesmo impulso: manter o indivíduo sob vigilância e a sociedade sob tutela, convencer-nos de que a liberdade é perigosa, a dúvida é ofensiva, a responsabilidade é opressiva, a verdade é relativa. Tudo é reconfigurado ao serviço da funcionalidade: a Ciência como validação de políticas, a Educação como engenharia comportamental, a Cultura como entretenimento subvencionado, o Jornalismo como extensão do poder. E o mais grave é esse processo muitas vezes ser aceite pelos próprios agentes sociais — médicos, professores, jornalistas, juristas — que, em vez de resistirem, adaptam-se, integram-se, reproduzem as lógicas institucionais sob o pretexto de servirem o bem comum.

    Estamos, pois, num tempo em que os partidos e os políticos já não pensam, apenas reagem; em que os parlamentos já não deliberam, apenas carimbam; em que os cidadãos já não escolhem, apenas consentem. A democracia formal mantém-se — com eleições livres, debates condicionados, liberdades reguladas —, mas a substância do regime democrático esvaziou-se: sem ideologias com conteúdo e sem valores em disputa, a política degenerou numa luta de máquinas, de narrativas e de ressentimentos. Restam alguns focos de lucidez, por vezes na periferia, por vezes fora do sistema político, mas são tratados como excentricidades ou ameaças, nunca como interlocutores legítimos.

    É neste cenário que este conjunto de crónicas se inscreve — não como manifesto partidário, nem como catecismo ideológico, mas como exercício de resgate do essencial. Não proponho substituir uma ortodoxia por outra, mas recentrar o debate no que verdadeiramente importa: os valores que permitem pensar e agir com liberdade, integridade e responsabilidade. Contra a lógica das etiquetas e das fidelidades tribais, sugiro aqui uma grelha de princípios que, sendo antigos, se tornam hoje revolucionários. Por exemplo, o simples acto de afirmar que a liberdade é um valor superior à segurança, que a soberania é um direito democrático e não uma relíquia nacionalista, que a verdade importa mesmo quando é incómoda, que o Jornalismo deve vigiar o poder e não servi-lo — tudo isso, que há poucas décadas seria senso comum liberal ou republicano, tornou-se subversivo.

    Estas crónicas, por isso, não servem para crentes, mas para pensantes. Não ofereço soluções mágicas nem convido à adesão automática. Convido, sim, ao exame crítico, à recusa do automatismo, à recuperação do juízo moral. Inicio a partir de um diagnóstico duro — o colapso das ideologias e a ascensão de um dogmatismo funcional e anónimo — para propor um caminho exigente: o da reconstrução do espaço público com base em valores sólidos, não em alinhamentos convenientes. Um caminho que não se faz com indignações epidérmicas nem com palavras de ordem, mas com coragem intelectual, memória histórica e sentido de responsabilidade.

    Aquilo que proponho, portanto, não é o regresso a um passado idealizado, mas a recuperação daquilo que foi abandonado por preguiça, por medo ou por conveniência. A liberdade, a verdade, a responsabilidade, a soberania, a integridade, a crítica, a expressão livre — não como bandeiras identitárias, mas como fundamentos de uma vida cívica digna. Dizer isto é, hoje, um acto político — e, talvez, um acto de resistência.


    2. A necessidade de um novo referencial baseado em valores perenes

    A erosão das grandes ideologias não deu lugar ao pensamento, mas ao vazio. E esse vazio, incapaz de suportar a exigência do juízo crítico, foi rapidamente preenchido por sucedâneos discursivos que prometem tudo e significam quase nada.

    O mais insidioso destes sucedâneos é o centrismo, essa palavra cómoda que disfarça a abdicação do pensamento sob a aparência de equilíbrio. O centro político, que poderia ser um espaço de síntese ou de ponderação, converteu-se num refúgio para os que recusam escolher, os que temem afirmar, os que preferem a gestão à visão. O mesmo se aplica à chamada moderação, termo que nos tempos actuais deixou de significar prudência ou contenção para se tornar sinónimo de capitulação moral. Já não é o radicalismo que assusta: é a possibilidade de ter convicções claras, de afirmar valores como inegociáveis, de recusar as zonas cinzentas que anestesiam o juízo.

    A consciência social, por sua vez, tornou-se uma fórmula piedosa para justificar políticas contraditórias, assistencialismos estruturais e moralismos públicos. Com ela, legitima-se tudo: da restrição de liberdades à imposição de comportamentos, desde que embrulhado numa linguagem de inclusão e compaixão institucionalizada. Trata-se, no fundo, de uma operação de ocultação: esvaziar o conteúdo político do debate, neutralizar os conflitos de valor e transformar a deliberação democrática num ritual de consenso forçado, onde discordar é ser extremista e questionar é ser perigoso.

    Estas soluções fáceis não são apenas intelectualmente pobres: são mecanismos activos de erosão da cidadania, pois promovem a obediência revestida de virtude e a conformidade disfarçada de ponderação.

    Neste cenário, torna-se fulcral um novo referencial, mas não um referencial ideológico — já vimos como as ideologias se tornaram cascas vazias, instrumentos de marketing ou de sobrevivência partidária. Aquilo que se impõe é a substituição das etiquetas por uma arquitectura de valores, que sirvam de critério normativo e de fundamento ético para a acção pública e individual. Esta arquitectura não é um sistema fechado, mas uma grelha de referência; não impõe conclusões, mas fornece critérios de orientação, que permitem distinguir entre o essencial e o acessório, entre aquilo que pode ser negociado e o que deve ser preservado, entre o que é opinião e aquilo que é princípio.

    A proposta destas crónicas assenta precisamente nesse resgate dos valores estruturantes, que não dependem de programas eleitorais, de conveniências partidárias ou de consensos fugazes. Falo de valores que não mudam com o ciclo noticioso nem oscilam ao sabor das redes sociais. Falo da liberdade, da verdade, da responsabilidade, da soberania, da expressão crítica, da integridade — valores que moldam o carácter de uma sociedade e a dignidade de um cidadão. Não são fórmulas — são fundamentos. Não são sentimentos — são compromissos. E é essa distinção que urge recuperar, pois a confusão também se mostra quando se acredita que “valores” são apenas slogans ou posturas públicas.

    Mas, afinal, o que são valores perenes? A resposta deveria ser simples: são aqueles princípios que resistem ao tempo, à moda e à manipulação, que exigem constância, coragem e clareza — precisamente por não serem adaptáveis ao gosto do dia. São aqueles que, como dizia Simone Weil, nos enraízam: não nos prendem ao passado, mas impedem que sejamos levados pela corrente de cada presente. A liberdade, por exemplo, não é uma política — é um princípio. A verdade não é um ponto de vista — é uma exigência. A responsabilidade não é uma função — é uma escolha pessoal. A soberania não é um capricho nacionalista ou patriótico — é o direito a decidir o próprio destino. Estes valores não são acessórios: são a gramática da dignidade.

    Já os valores acessórios — como a eficiência, a inovação, a sustentabilidade ou a competitividade —, embora possam ser desejáveis, não fundam nada por si mesmos. São instrumentais, não estruturantes. Podem servir a liberdade ou a tirania, a responsabilidade ou o servilismo, consoante o fim que os enquadra. A confusão entre uns e outros é, aliás, um dos grandes perigos do tempo presente: tomam-se meios por fins, virtudes técnicas por virtudes morais, consensos operacionais por princípios políticos. E assim, pouco a pouco, perde-se o sentido do essencial — como quem, em nome de conduzir mais depressa, se esquece do destino.

    Proponho, assim, um acto de ordenação — não no sentido autoritário, mas no sentido aristotélico: recolocar cada coisa no seu lugar, distinguir os planos, hierarquizar os critérios. Vivemos agora, como advertiu no século passado Isaiah Berlin, num mundo de conflitos trágicos entre valores; mas o pluralismo de valores não é relativismo. Saber que há valores em tensão não significa que todos valham o mesmo. A liberdade pode entrar em tensão com a segurança, mas não é por isso que se pode abolir uma em nome da outra. A verdade pode colidir com a conveniência, mas não é por isso que se pode renunciar à sua busca como se fosse um luxo. A responsabilidade pode ser dura, mas não é por isso que se deve infantilizar o cidadão sob o pretexto da protecção.

    Neste contexto, os valores perenes funcionam como âncoras num tempo líquido, para usar a célebre metáfora do sociólogo polaco Zygmunt Bauman. São antídotos contra a manipulação emocional, contra a oscilação retórica, contra a volatilidade programática. Permitem, sobretudo, resgatar a autonomia do juízo, que é o verdadeiro fundamento de uma democracia viva. Quando tudo é opinião e tudo é sensibilidade, os valores fornecem uma base para o discernimento. Quando tudo é ruído e reacção, os valores permitem distinguir o necessário do acessório, o essencial do conjuntural.

    Talvez seja esse, afinal, o maior desafio contemporâneo: reaprender a distinguir. Distinguir entre liberdade e permissividade, entre verdade e narrativa, entre responsabilidade e delegação, entre soberania e isolamento, entre expressão e propaganda. Só essa capacidade de discriminar, de julgar, de hierarquizar — e de agir em conformidade — permite que o indivíduo se afirme como sujeito cívico, e não como peça funcional de uma engrenagem social ou económica. E é essa distinção, esse juízo, essa coragem que os valores perenes exigem e oferecem.

    Estas crónicas serão, pois, um convite para essa reconstrução. Não com arrogância moral, nem com nostalgia restauradora, mas com a serenidade crítica de quem acredita que há coisas que não passam — e que, por isso, nos podem orientar quando tudo parece disperso. Valores em vez de ideologias; critérios em vez de slogans; consciência em vez de reflexo. Essa é a proposta. E também a provocação.


    3. Uma crítica à infantilização da cidadania e à política performativa

    Entre os efeitos mais perversos do esvaziamento ideológico e do colapso valorativo está a lenta, mas eficaz, infantilização da cidadania. O cidadão emancipado, consciente dos seus direitos, mas também dos seus deveres, informado e capaz de deliberar, deu lugar a uma figura tutelada — um menor cívico perpétuo, que não pensa, mas consome; que não questiona, mas subscreve; que não age, mas espera que alguém o represente, o proteja, o salve.

    O Estado, outrora pensado como expressão da vontade política do povo soberano, converteu-se numa entidade paternalista, uma espécie de tutor universal que administra riscos, distribui subsídios e regula comportamentos, sempre em nome do bem, da segurança, da inclusão ou da saúde pública. E o cidadão, por sua vez, já não é um sujeito político, mas um cliente de direitos, sempre pronto a reclamar, mas pouco disposto a participar; sempre ávido de garantias, mas alérgico à responsabilidade.

    Esta cultura da tutela, alimentada por décadas de pedagogia estatal, de retórica protectora e de engenharia social, produziu um modelo de cidadania que já não é autónomo, mas dependente por design — dependente do Estado, das instituições, dos especialistas, das plataformas. A autonomia tornou-se suspeita; a dúvida, subversiva; a exigência de coerência, um luxo burguês. Promoveu-se a ideia de que o cidadão precisa de ser guiado, esclarecido, conduzido — como se a maturidade política fosse uma meta inalcançável e a liberdade, uma ameaça à ordem. Esta concepção tutelaresca do poder reduziu o espaço público a uma espécie de sala de aula infantilizada, onde os “bons alunos” recebem prémios e os “mal-comportados” são punidos com censura, marginalização ou rotulagem.

    Paralelamente, a política tornou-se espectáculo. Não no sentido clássico de representação — que pressupunha uma ligação simbólica com a vontade colectiva —, mas no sentido contemporâneo de simulação. O Parlamento deixou de ser um fórum de debate para ser um palco de encenação. As redes sociais converteram-se no verdadeiro hemiciclo do presente: é ali que se ganha ou perde o dia, que se define a agenda, que se forjam reputações.

    O político performativo não tem ideias, mas frases; não tem visão, mas pose; não tem projecto, mas indignações rotativas. A acção política resume-se a hashtags, a vídeos de 15 segundos, a indignações de serviço, a gestos simbólicos que nada mudam, mas servem para manter a coreografia do envolvimento cívico. Estamos perante o império da estética sobre a ética, da forma sobre o conteúdo, da visibilidade sobre a substância.

    No século passado, Guy Debord já proclamara a “sociedade do espectáculo” — mas hoje o espectáculo político ainda é mais perverso do que aquele que este teórico francês descreveu nos anos 1960: é interactivo, personalizado, algorítmico. Sobretudo por via das redes sociais, o cidadão já não é apenas espectador: é convidado a participar — desde que dentro dos limites do guião. Pode reagir, pode comentar, pode partilhar, mas não pode mudar nada. A ilusão da participação substituiu a prática da cidadania. A emoção substituiu o juízo. A reacção substituiu a deliberação. O debate real desapareceu — e com ele a possibilidade de conflito produtivo, de divergência estruturada, de construção comum. Finge-se que há debate onde só há marketing. Finge-se que há diversidade onde só há variações sobre o mesmo tom. Finge-se que há democracia onde só há gestão da percepção pública.

    Este ambiente favorece, naturalmente, a docilidade política. Um cidadão infantilizado é mais fácil de mobilizar — ou de desmobilizar. Basta-lhe um susto, um escândalo, um escudo fiscal. Não exige princípios, apenas resultados. Não quer verdade, apenas conforto. E, acima de tudo, não quer responsabilidades. O preço da autonomia torna-se demasiado alto para quem foi educado na lógica da tutela e da promessa: é mais cómodo seguir o fluxo, alinhar com o “lado certo da História”, repetir as palavras permitidas, partilhar os slogans da moda. A liberdade, neste contexto, é não ter de decidir; a cidadania, não ter de pensar. Por isso, os poderes instalados — sejam políticos, mediáticos ou económicos — fomentam esta infantilização: não por malícia, mas por conveniência. Um cidadão que pensa, questiona. Um cidadão que duvida, atrasa. Um cidadão que exige, complica. Melhor, então, mantê-lo entretido, indignado, emocionado — mas nunca desperto.

    Este processo de adormecimento da cidadania seria, porventura, reversível se existissem instâncias de formação crítica capazes de operar uma contra-narrativa. Mas aquilo a que outrora chamávamos Escola, Imprensa e Cultura deixou, em larga medida, de cumprir essa função. A Escola, rendida ao utilitarismo e ao relativismo, já não forma para o juízo, mas para a adaptação — ensina competências, não pensamento. A Imprensa, em vez de questionar o poder, tornou-se seu apêndice — ora laudatório, ora servil, ora simplesmente ausente. O Jornalismo transformou-se numa extensão do marketing institucional ou numa tradução apressada de agências noticiosas. E a Cultura, cada vez mais reduzida ao entretenimento, deixou de ser um espaço de elevação para ser um palco de identidades ou um produto de consumo rápido.

    O norte-americano Neil Postman advertia, com lucidez profética, que nos poderíamos “divertir até à morte” — não pela censura explícita, mas pelo colapso da relevância. Quando tudo é espectáculo, nada importa. Quando tudo é indignação, nada permanece. Quando tudo é emoção, nada se transforma. E é precisamente esta lógica de ruído, de dispersão e de excitação permanente que impede a emergência de um espaço público maduro, onde a política seja mais do que um teatro e a cidadania mais do que um contrato de prestação de serviços.

    Muito a propósito, o filósofo grego Cornelius Castoriadis falava, no século passado, da “cidadania autónoma” como a capacidade de auto-instituição colectiva: não apenas participar nas regras, mas pensar as regras, questioná-las, recriá-las. Ora, essa cidadania autónoma é hoje o maior desafio — e o maior tabu.

    A proposta destas crónicas é, também aqui, clara: recusar a tutela e o espectáculo, e reivindicar o juízo e a responsabilidade. Não se trata de idealizar um cidadão perfeito ou um modelo abstracto de participação. Trata-se, antes, de defender a ideia de que a cidadania é uma exigência, não uma concessão; que a liberdade não se delega, a verdade não se terceiriza, a responsabilidade não se subcontrata. Trata-se de recordar que viver em democracia não é apenas votar ou opinar, mas agir com consciência, com risco, com consequência. E que sem essa atitude, sem essa disposição, sem essa vigilância, a democracia degenera em administração, e a cidadania em obediência decorada.


    4. O papel da integridade e do Jornalismo vigilante como balizas da democracia

    Nenhuma democracia sobrevive sem vigilância. E nenhuma vigilância é eficaz sem Jornalismo independente, corajoso, íntegro — um Jornalismo que não se limite a relatar o que convém, mas que ouse investigar o que incomoda, que não se deixe enredar em protocolos de obediência, mas que conserve a capacidade de perturbar, de revelar, de acusar.

    O Jornalismo, quando é digno do nome, não é neutral — é leal à verdade, à liberdade e ao interesse público, mesmo quando esses colidem com o poder instituído. O problema é que, na prática, nas décadas mais recentes, a imprensa transformou-se no contrário do que proclama: deixou de ser um contra-poder para se tornar um reprodutor de discursos oficiais, um braço comunicacional de instituições públicas ou privadas, um gestor de narrativas em vez de um escrutinador de factos.

    Esta mutação tem causas múltiplas: económicas, políticas, culturais. A progressiva dependência da publicidade institucional e empresarial, os projectos editoriais subsidiados pelo Estado ou pela União Europeia, a promiscuidade entre redacções e gabinetes ministeriais, os conselhos reguladores capturados por interesses partidários, o declínio da leitura crítica e a ascensão do infotainment digital — tudo isso corroeu a base ética do Jornalismo, substituindo a vigilância pela reverência, a interrogação pelo eco, a independência pela conveniência. O jornalista, que deveria ser incómodo, tornou-se afável; que deveria ser desconfiado, tornou-se confidente; que deveria ser livre, tornou-se alinhado. Não por censura imposta, mas por domesticação progressiva.

    A chamada neutralidade, nesse contexto, é uma das ficções mais perigosas, porque não há neutralidade possível quando se trata da verdade. Fingir imparcialidade enquanto se escolhe sistematicamente o ângulo favorável ao poder, ou se omitem vozes dissonantes, ou se reverberam comunicados como se fossem investigações, é uma forma de traição ao princípio fundacional do Jornalismo. Alguém atribuiu a George Orwell a frase: “Dizer a verdade é um acto revolucionário”, mas independentemente de ser apócrifa, representa aquilo que o Jornalismo perdeu: o sentido de missão, o compromisso com a verdade como valor e não como produto.

    Em vez disso, temos narrativas construídas por conveniência, indignações selectivas, fact-checkings de conveniência, silêncios cúmplices e uma ausência ensurdecedora de investigação real sobre temas sensíveis, incómodos ou politicamente desconfortáveis.

    É neste vazio que o poder tem prosperado. E um poder sem Jornalismo vigilante é um poder sem freios — porque a primeira fronteira da liberdade não é a urna, é a palavra livre. Quando o discurso público é condicionado, tutelado, homogeneizado, a democracia torna-se uma farsa elegante, com aparência de pluralismo, mas sem substância deliberativa. Cabe ao jornalista perguntar aquilo que não se deve perguntar, escavar onde ninguém quer que se escave, expor o que se quer esconder — é esse jornalista que mantém vivo o espaço democrático. E quando ele desaparece, desaparece com ele o oxigénio da República.

    Por isso, não me dirijo apenas ao leitor enquanto cidadão, mas também enquanto potencial jornalista — no sentido mais nobre da palavra. Porque, em tempos de silêncio coreografado, todo cidadão pensante é um jornalista em potência. Aquele que observa, que confronta, que recolhe factos e os analisa, que se recusa a repetir palavras alheias sem passar pelo crivo do juízo — esse é irmão do jornalista vigilante. Ambos são expressões de uma democracia viva, não domesticada. Ambos recusam o papel de papagaio, de técnico de comunicação, de reprodutor de slogans. Ambos sabem que a liberdade não é compatível com a preguiça intelectual nem com a cedência ao conforto institucional.

    O também jornalista franco-argelino Albert Camus defendeu que o Jornalismo, para ser digno, deve ser um combatente ético — contra a mentira, contra a injustiça, contra a indiferença. E é esse combate que importa recuperar: não como heroísmo retórico, mas como prática quotidiana de vigilância, de integridade e de independência. A integridade, aliás, é aqui palavra-chave: integridade como coerência entre aquilo que se pensa, aquilo que se diz e aquilo que se faz; como recusa da duplicidade e da omissão; como fidelidade à consciência e não ao alinhamento; como base moral de qualquer crítica que se queira legítima.

    É essa integridade que está em causa quando se permitiu — ou se legitimou — que os media fossem instrumentos de propaganda sanitária, educativa, climática ou financeira, ou se silenciaram denúncias de promiscuidade entre reguladores e regulados, entre anunciantes e redacções, entre governos e comentadores. E é essa integridade que se deve exigir, sem concessões, aos que se dizem jornalistas, mas preferem o conforto da obediência ao desconforto da exposição. Não há Jornalismo sem risco. E, sobretudo, não há democracia sem jornalistas que aceitem correr riscos — por vezes profissionais, outras vezes apenas morais, mas sempre necessários.

    Este conjunto de crónicas, ao propor uma arquitectura de valores, coloca o Jornalismo onde ele pertence: no centro da vigilância cívica, como sentinela da verdade, da liberdade e da dignidade pública. Não como profissão reservada a uma classe, mas como atitude intelectual acessível a qualquer cidadão que se recuse a ser espectador passivo da mentira ou cúmplice voluntário do silêncio. E é por isso que não se fala de imprensa, fala-se de Jornalismo. Não se fala de media, fala-se de integridade. Porque o que está em causa não é a sobrevivência de um sector, mas a possibilidade de existir ainda um espaço público onde se pense, se discuta, se resista.

    E se a resistência hoje se faz mais com palavras do que com barricadas, mais com arquivos do que com slogans, mais com investigação do que com indignação, então que seja essa a missão: resistir dizendo, pensando, denunciando. Sem concessões, sem reverências, sem receio. Até porque, como nos ensinou o jornalista norte-americano Isidor Feinstein Stone, se “todos os governos mentem”, só quem ousa desconfiar com método e publicar com coragem poderá merecer ainda o nome de jornalista.


    Fecho da Introdução — Convite ao leitor

    Esta primeira crónica é, acima de tudo, um gesto de compromisso. Compromisso com a liberdade como valor inegociável, com a verdade como dever público, com a responsabilidade como condição da cidadania, com a soberania como expressão da dignidade democrática. Não é uma convocatória à militância, nem um apelo sentimental ao reformismo bem-pensante, e muito menos um catecismo doutrinário — é sobretudo uma proposta de reencontro com fundamentos esquecidos, numa época em que pensar por conta própria se tornou acto de ousadia e em que recusar alinhar se tornou suspeita de deslealdade.

    Recusemos, pois, o niilismo de quem já não acredita em nada, mas também o partidarismo de quem tudo reduz à luta tribal entre etiquetas. Nenhum dos dois serve a democracia. Ambos servem, aliás, os poderes instalados: o niilismo, porque paralisa; o partidarismo, porque divide. Entre a apatia e o automatismo, proponho outra via: a da consciência — a consciência de quem decide pensar com clareza, agir com coerência, resistir com responsabilidade. Não se trata de propor utopias — mas de recuperar aquilo que foi abandonado: o valor da palavra, o peso do juízo, o sentido da liberdade, a nobreza da responsabilidade cívica.

    Por isso, deixo um convite exigente ao leitor: não peço adesão, mas atenção; não solicito concordância, mas presença, porque não escrevo para os que procuram pertença, mas para os que procuram critério. Escrevo para aqueles que se cansaram de slogans e desconfiam das unanimidades. Escrevo para os que suspeitam que a política não se reduz a campanhas, que o Jornalismo não se esgota em soundbites, que a cidadania não pode viver de indignações partilhadas. Escrevo para aqueles que ainda acreditam que viver livre é mais do que ter direitos — é ter deveres, critérios, memória, responsabilidade.

    Vivemos tempos em que a ambiguidade é premiada, a coragem punida, a lucidez silenciada. Por isso, não proponho consolo, mas discernimento. É esse o convite. E é também o desafio.

  • Estado laico mas pouco: Autarquias gastam mais de 11 milhões de euros em igrejas católicas desde 2020

    Estado laico mas pouco: Autarquias gastam mais de 11 milhões de euros em igrejas católicas desde 2020


    Portugal orgulha-se, na sua Constituição, de ser um Estado laico e de garantir a separação entre as diferentes religiões e o Estado, mas quando se mergulha nos contratos públicos das autarquias, descobre-se que os municípios e freguesias continuam a ser dos maiores mecenas da Igreja Católica, sem qualquer polémica visível, mesmo quando os montantes são elevados.

    De acordo com um levantamento exaustivo realizado pelo PÁGINA UM sobre contratos inseridos no Portal Base desde 2020 foram identificados, em obras superiores a 100 mil euros, um total de 63 contratos públicos, celebrados por 45 autarquias (Câmaras Municipais e Juntas de Freguesia) e entidades intermunicipais, para reabilitação, conservação, restauro ou valorização de igrejas e conventos, atingindo um valor global superior a 11 milhões de euros.

    Obras na igreja de São Francisco em Tomar foram pagas pela autarquia local. Foto: CMT.

    Este número é ainda mais expressivo quando se considera que não se incluíram inúmeras intervenções exclusivamente em espaços exteriores (como adros) ou arranjos urbanísticos em redor de lugares de culto, nem as obras promovidas por irmandades, fábricas paroquiais ou misericórdias, nem as empreitadas conduzidas pelas Direcções Regionais de Cultura ou outras entidades do Estado central, que tenham também uma componente patrimonial e turísticas.

    Também não se entrou em conta as intervenções em igrejas desafectadas ao culto e convertidas em salas de espectáculo ou museus, como sucedeu recentemente em Coimbra com a Igreja de São Francisco. Ou seja, o levantamento diz apenas respeito a obras de património religioso activo, onde se celebram missas e rituais, pagas directamente com verbas dos contribuintes.

    O maior contrato identificado foi celebrado em Lisboa, a 24 de Janeiro de 2023, quando a empresa municipal Lisboa Ocidental adjudicou à Tecnorém uma empreitada no valor de 3,5 milhões de euros para construir de raiz a nova Igreja do Bairro da Boavista, embora neste caso esteja também incluído um centro social e paroquial, bem como a praça central do bairro. É um caso singular porque não se trata apenas de reabilitar o que existe, mas de edificar do nada uma nova igreja e um centro paroquial.

    Maquete da igreja de São José no Bairro da Boavista, construída por uma empresa municipal de Lisboa.

    Seguem-se, no ranking, a requalificação integral da Igreja de São João Baptista, em Tomar, contratada à Signinum em 15 de Janeiro de 2021 por 1,5 milhões de euros, e duas empreitadas sucessivas em Melgaço — em 2022 e em Agosto de 2025 — para a reabilitação do Convento de São Salvador de Paderna, que somam mais de 1,85 milhões de euros. Amares figura logo a seguir, com 946.707 euros para restaurar a Igreja de Bouro e revitalizar a casa paroquial para instalação de um núcleo interpretativo do mosteiro.

    Mais abaixo na tabela, mas ainda com valores significativos, surgem Loulé (890.146 euros para a Igreja Matriz), Santarém (849.934 euros para estabilização da Igreja de Santa Iria da Ribeira de Santarém), Moura (duas obras que totalizam 1,16 milhões de euros), Baião (570.338 euros para a terceira fase de restauro do Mosteiro de Santo André de Ancede), Sardoal (657.325 euros para a sua igreja paroquial) e Cabeceiras de Basto (559.348 euros para a reabilitação do mosteiro de São Miguel de Refojos).

    O levantamento do PÁGINA UM permitiu ainda perceber a evolução temporal destes investimentos: 2020 e 2021 foram os anos particularmente intensos, com 3,15 milhões e 4,12 milhões de euros em adjudicações respectivamente, coincidindo com o período da pandemia em que muitas autarquias aproveitaram fundos comunitários e planos de recuperação para lançar empreitadas.

    Igreja de Paderne, em Melgaço. Foto: D.R,

    Em 2022 registaram-se 3,02 milhões de euros em adjudicações associadas a reabilitações de igrejas, enquanto 2023, impulsionado pelo contrato da Boavista, foi o ano mais dispendioso, com 4,14 milhões de euros. O ano de 2024 apresenta uma quebra (1,69 milhões), mas 2025 volta a evidenciar crescimento, com 2,23 milhões contratados até Setembro.

    Se os grandes municípios têm um papel de relevo, também as pequenas autarquias não ficam atrás. Em Tavira, a Câmara investiu 259.949 euros na Igreja Matriz de Santa Maria do Castelo. Em Tabuço, uma única empreitada de 263.900 euros permitiu restaurar simultaneamente três igrejas paroquiais (Granja do Tedo, Longa e Sendim). Em Pedrógão Grande, a intervenção na Igreja Matriz custou 385.797 euros. E até pequenas juntas de freguesias, como Tancos, investiram mais de 160 mil euros na valorização da sua igreja matriz.

    No extremo oposto da escala, o contrato de menor valor encontrado foi em Sátão, onde a autarquia pagou 117.617 euros para conservar e restaurar a Igreja de Santa Maria, seguido da intervenção de 118.995 euros na Igreja das Carvalhiças (União de Freguesias de Vila e Roussas, no município de Melgaço). Estes números mostram que mesmo obras modestas — reparação de telhados, retábulos, pavimentos — têm custos significativos e absorvem recursos municipais.

    Igreja matriz de Loulé, Foto: CML.

    Além da dimensão financeira, este levantamento revela uma lista recorrente de empresas especializadas que dominam este mercado, como a Signinum, a Lusocol e a Monumenta, com contratos repetidos em vários pontos do país. Para estas empresas, o património religioso é uma fonte estável de encomendas, sustentada por financiamento público.

    No final, a grande questão é política e não técnica: até que ponto é legítimo que autarquias, em nome da preservação patrimonial, financiem afinal a manutenção de templos de culto, beneficiando de forma desproporcionada a Igreja Católica face a outras confissões ou usos comunitários. Se o Estado – e por extensão as autarquias – é laico, olhando para as suas obras não aparenta.