Autor: Pedro Almeida Vieira

  • 35 horas: centrais nucleares de Espanha estão inactivas desde o apagão

    35 horas: centrais nucleares de Espanha estão inactivas desde o apagão

    Às 22h30 desta terça-feira, hora de Lisboa, trinta e cinco horas após o colapso eléctrico que mergulhou grande parte da Península Ibérica na escuridão, as centrais nucleares espanholas continuam sem produzir energia.

    O cenário, confirmado pela análise do PÁGINA UM dos despachos da Red Eléctrica de España, é inédito: as cinco centrais nucleares operacionais permanecem desligadas, deixando os seus sete reactores fora da rede.

    Central nuclear de Almaraz, a mais próxima da fronteira portuguesa.

    Embora fosse de aguardar uma maior lentidão no restabelecimento complexo de uma central nuclear ‘desligada’ num contextio de ‘blackout’, não é normal um tão longo período de inactividade absoluta e escasseiam as explicações do Conselho de Segurança Nuclear (CSN) de Espanha. A última comunicação desta entidade espanhola surgiu na na madrugada desta terça-feira, às 3h15 (hora local), informando que fora levantado o estado de pré-alerta de emergência em todas as centrais nucleares do país, após o restabelecimento estável do fornecimento de electricidade do exterior. A central de Cofrentes, em Valência, foi a última a sair do estado de pré-alerta, depois de já o terem feito Almaraz (Cáceres) e Trillo (Guadalajara), esta última desligada para operações de reabastecimento.

    Espanha conta actualmente com cinco centrais nucleares em operação: Almaraz, Ascó, Cofrentes, Vandellós II e Trillo. As centrais de Almaraz e Ascó têm unidades gémeas, o que eleva o total de reactores em funcionamento para sete. Existe ainda uma sexta central, Santa María de Garoña, actualmente desactivada. Estas sete unidades de produção de energia utilizam dois tipos diferentes de tecnologia: água leve pressurizada (PWR) e água leve fervente (BWR). No grupo PWR, a lista inclui Almaraz, com duas unidades (1980 e 1983), Ascó também com duas unidades (1982 e 1985), Vandellós II (1987) e Trillo (1987), a mais recente do parque nuclear espanhol.

    Durante o apagão de grandes dimensões que afectou Espanha nesta segunda-feira, o CSN garantiu que os sistemas de segurança das instalações nucleares funcionaram como previsto, e em nenhum momento esteve em causa a segurança de trabalhadores, da população ou do ambiente. A Organização de Resposta a Emergências (ORE) do CSN esteve activa em modo de monitorização. Com o fim do pré-alerta, a ORE foi desactivada e o organismo regulador regressou ao seu funcionamento normal, mas certo é que não havia ‘sinais de vida’, isto é, de início de produção até à hora de publicação da notícia do PÁGINA UM, pelas 22h30 desta terça-feira, dia 29 de Abril.

    Geralmente, os tempos de reposição demoram menos de 24 horas, excepto se a causa sistémica ainda não esteja plenamente resolvida, ou decorram procedimentos de verificação. Apenas se não for restabelcida a produção ao fim de 72 horas se poderá desconfiar de o apagão ter causado danos relevantes.

    green trees near snow covered mountain during daytime

    No momento do apagão, ocorrido às 12h35 de segunda-feira, hora local de Espanha, as centrais nucleares espanholas estavam a produzir cerca de 3.387 MW, um contributo de apenas 10% no total naquele momento, mas essencial para a estabilidade do sistema. A súbita interrupção desta produção revela a gravidade do incidente e sugere a ocorrência de falhas sistémicas graves na rede eléctrica espanhola.

    Uma das questões mais intrigantes — e decisivas — para compreender o evento de ontem é saber se a paragem abrupta das centrais nucleares foi a causa do apagão, ou se foi uma instabilidade prévia do sistema que forçou a sua paragem. À luz da análise detalhada dos dados reais, registados a cada cinco minutos, a resposta é inequívoca: a activação dos sistemas de emergência dos reactores — o chamado SCRAM — foi uma consequência da instabilidade da rede, e não a causa inicial do colapso.

    O SCRAM é um mecanismo automático de protecção que desliga instantaneamente a reacção nuclear através da inserção súbita de barras de controlo no núcleo do reactor. Não é uma falha técnica: é um sistema rígido, extremamente sensível a perturbações externas, como variações bruscas da frequência (normalmente abaixo dos 49,5 Hz), quedas de tensão significativas ou perda de sincronismo com a rede.

    Central nuclear de Cofrentes, na Comunidade Valenciana.

    No caso espanhol, o facto de todos os reactores se terem desligado em simultâneo reforça a tese de que se tratou de uma reacção defensiva perante uma instabilidade já em curso.

    Apesar de Pedro Sánchez, primeiro-ministro espanhol, ter criticado as centrais nucleares pelo facto de não permitirem “uma recuperação tão rápida” do sistema, e de que alguns reactores estavam desligados porque as empresas dizem que “não são competitivas, comparadas com as renováveis”, os dados técnicos mostram que as centrais foram vítimas, e não culpadas, de um colapso eléctrico generalizado.

    Os dados, confirmados técnicos contactados pelo PÁGINA UM, mostram que o apagão teve um carácter transversal, afectando de forma sincronizada outras fontes de geração — solar, eólica, hidroeléctrica e cogeração —, o que aponta para causas sistémicas, como um erro grave de despacho, um colapso de tensão de grande escala ou uma falha de controlo algorítmico na gestão do equilíbrio produção-consumo, num sistema cada vez mais dependente de energias renováveis voláteis.

    a close up of a control panel with knobs and gauges

    A análise do comportamento das interligações internacionais reforça esta conclusão. No momento da falha, as exportações espanholas para Portugal caíram abruptamente de 2.652 MW para apenas 7 MW, e depois para 1 MW às 12h40, provocando um blackout quase instantâneo em território português. As ligações para França e Marrocos registaram igualmente quedas súbitas para zero. Esta quebra massiva de fluxos agravou a perda de estabilidade do sistema espanhol, desencadeando os mecanismos automáticos de defesa que culminaram no SCRAM nuclear.

    Em suma, todos os elementos técnicos e cronológicos disponíveis indicam que o desligamento das centrais nucleares espanholas foi uma reacção defensiva perante uma grave falha sistémica da rede eléctrica. O apagão de 28 de Abril de 2025 deverá, assim, servir de lição para os decisores e operadores da Península Ibérica sobre os riscos de sistemas excessivamente dependentes de fontes renováveis intermitentes e da necessidade de garantir reservas de estabilidade robustas para evitar futuras catástrofes eléctricas.

  • Horas antes do apagão, Portugal andou a vender ao ‘desbarato’ electricidade a Espanha

    Horas antes do apagão, Portugal andou a vender ao ‘desbarato’ electricidade a Espanha

    Até às 9 horas da manhã de ontem, antes de o sistema eléctrico espanhol colapsar e arrastar consigo Portugal para um dos maiores apagões da história recente da Península Ibérica, o nosso país esteve a vender electricidade em larga escala ao seu vizinho. Segundo dados recolhidos pelo PÁGINA UM na plataforma gerida pela Red Eléctrica de España (Redeia), entre as 21h00 de domingo, dia 27 de Abril, e as 9h00 de segunda-feira, 28 de Abril – ou seja, até cerca de três horas e meia antes do blackout –, Portugal exportou um total de 22.118,25 megawatts-hora (MWh) para Espanha.

    Esta transferência de electricidade, contínua e robusta ao longo de toda a noite, e que se iniciou às 20h10 de domingo, teve o seu pico às 21h50, quando a exportação atingiu os 2.273 MW. Durante o período nocturno de domingo para segunda-feira, Portugal manteve uma média de exportação de cerca de 1.830 MW – valores registados a cada cinco minutos – correspondendo a uma produção constante que teve, cruzando com dados da Rede Eléctrica Nacional (REN), um contributo decisivo das centrais hidroeléctricas portuguesas, especialmente no Norte. Tendo em conta os preços típicos do mercado ibérico de electricidade (MIBEL), esta operação poderá ter rendido ao sistema eléctrico português entre 1,1 milhões e 2,6 milhões de euros de receita.

    two square blue LED lights

    Com o amanhecer de segunda-feira e a forte insolação matinal – traduzida numa produção em massa de energia fotovoltaica em território espanhol –, a situação inverteu-se radicalmente. Dados da Redeia mostram que, a partir das 9h00, Portugal deixou de exportar e passou a importar electricidade. Pelas 9h30, já estava a receber 1.137 MW da rede espanhola, valor que não parou de subir: às 10h55, a importação já roçava os 3.000 MW e, imediatamente antes do blackout – às 12h30 – Portugal estava a importar 2.652 MW.

    Durante essas cerca de três horas e meia em que Portugal esteve a importar energia, o volume total recebido ascendeu a 7.049 MWh, o que equivale, aos preços usuais do MIBEL, a um negócio entre 350 mil e 850 mil euros, desta vez a favor da parte espanhola. Tudo indicava normalidade, apesar da reversão dos fluxos de energia. No entanto, pouco depois das 12h30, a rede espanhola colapsou, apanhando desprevenido o sistema eléctrico português, altamente interligado com o espanhol.

    A quebra abrupta da interligação ibérica – sem qualquer capacidade de compensação interna imediata – precipitou o blackout nacional, que mergulhou o país numa situação caótica. As comunicações caíram em simultâneo com a energia, afectando a totalidade das redes móveis, os transportes, o funcionamento de instituições públicas e privadas e o próprio sistema de emergência nacional. O apagão durou mais de seis horas em várias zonas do país, evidenciando uma alarmante vulnerabilidade estrutural da rede eléctrica portuguesa perante perturbações exteriores.

    green trees near snow covered mountain during daytime

    Apesar de não existir, até ao momento, uma explicação oficial detalhada sobre a origem do colapso em Espanha, os dados analisados pelo PÁGINA UM evidenciam a forte dependência entre os dois sistemas eléctricos, mas mais para trocas comerciais do que para garantir segurança no abastecimento. Em geral, estas vendas sucedem-se sobretudo para ‘gastar’ excedentes de produção, para bombar água para montante nas barragens quando a energia é barata, ou então para desligar as centrais hidroeléctricas quando a produção das outras renováveis (eólica e fotovoltaica) é elevada.

    Mas existe um problema neste contexto: mesmo se a previsão meteorológica consegue estabelecer um padrão expectável de produção de electricidade por via eólica e solar, mostra-se mais falível do que em sistemas tradicionais. E, em sistemas exageradamente assentes em renováveis, a capacidade de reposição pode causar problemas drásticos.

    Ora, quando o apagão repentino em Espanha ocorreu, cortando de imediato quase 3.000 MW de electricidade, não houve ‘tempo de reacção’. E num sistema eléctrico nacional, não basta fazer como numa casa quando os fusíveis colapsam: repor a situação é muito mais moroso e complexo. O chamado black start pode demorar várias horas, mesmo havendo potência instalada suficiente.

    light bulb

    Assim, mais do que uma questão técnica, este episódio levanta sérias interrogações sobre a gestão estratégica da produção e do consumo de energia em Portugal, nomeadamente a aposta crescente na exportação nocturna e a ausência de garantias de abastecimento interno em cenários de emergência.

    O apagão revelou ainda outro problema crítico: a falta de capacidade de “ilha eléctrica” em Portugal. Na prática, isso significa que, uma vez interrompida a ligação com Espanha, o sistema nacional não foi capaz de se manter autonomamente a funcionar, nem mesmo com recurso a centrais térmicas ou hídricas de emergência. O blackout propagou-se quase instantaneamente, demonstrando que a tão propalada transição energética assente em fontes intermitentes – como a solar e a eólica – carece de mecanismos eficazes de estabilidade e resposta rápida.

  • O Estado desertou. A energia nacional é hoje um negócio estrangeiro. E pagámos o preço

    O Estado desertou. A energia nacional é hoje um negócio estrangeiro. E pagámos o preço


    O apagão de 28 de Abril não foi um incidente imprevisto. Foi a manifestação física de uma política energética leviana, de uma estratégia de privatizações cegas e da rendição sistemática do Estado português aos interesses financeiros internacionais.

    Portugal entregou, voluntariamente, uma das suas infraestruturas mais críticas — a gestão da rede eléctrica nacional — a entidades cujo único objectivo é maximizar lucros. A REN, concessionária da rede de transporte de electricidade, foi separada da produção no ano 2000 para cumpri um objectivo da União Europeia de liberalização do mercado energético com a separação jurídica de empresas para não existirem conflitos de interesses e haver maior transparência e competividade.

    transmission towers and wind turbines on the field

    De boas intenções estáo inferino chei. E em pouco anos, um sector vital para a Economia portuguesa não só sai do controlo do Estado português como de empresas nacionais. Hoje, a REN é detida em 25% pela State Grid do Governo da China, em 12% pela Pontegadea Inversiones do espanhol Amancio Ortega, em 7,7% pelo fundo norte-americano Lazard Asset Management, em 5,3% pela Fidelidade (também de capitais chineses), e em 5% pela Red Eléctrica de Espanha (Redeia). O resto dispersa-se entre fundos privados. Em termos de investidores institucionais somente 11% do capital está em mãos portuguesas, embora com parcelas disperas. E o Estado português? Um espectador impotente.

    Esta situação, criada e consolidada sobretudo sob o Governo de Pedro Passos Coelho, não apenas retirou capacidade soberana de decisão sobre o funcionamento da rede nacional — expôs o país a uma vulnerabilidade estrutural que ontem explodiu em toda a sua crueza.

    No final da manhã de ontem, Portugal operava com cerca de 30% da sua carga eléctrica abastecida através de importações de Espanha. Esta dependência diária, quase invisível para a maioria da população, é a herança directa do encerramento das centrais térmicas nacionais — primeiro as de carvão, depois o progressivo esvaziamento da capacidade de resposta das centrais a gás — em nome de uma “transição energética” feita sem cautela, sem reservas e sem responsabilidade.

    silver round accessory on black textile

    Mas a irresponsabilidade não parou aí. Aquilo que ontem aconteceu foi ainda mais grave, porque demonstra que a REN procura maximizar o lucro em detrimento da segurança, no sentido do fornecimento de electricidade sem riscos de apagão. Ontem, independentemente da causa, aquilo que poderia ser um mero incidente descambou num colapso de todo o sistena eléctrico nacional.

    Com efeito, ao amanhecer, num dia de previs+ivel forte incidência solar, as centrais hidroeléctricas nacionais — um dos poucos activos capazes de garantir flexibilidade e estabilidade ao sistema, agora cheias com as chuvas dos últimos meses — foram deliberadamente desligadas. Porquê? Para maximizar a importação de electricidade de Espanha a preços mais baixos e, em boa parte, canalizar essa electricidade para processos de armazenamento, como a bombagem hidroeléctrica.

    Mas o sistema eléctrico, importa sublinhar, não distingue consumo final de armazenamento. Para a rede, tudo é carga. Tudo consome energia em tempo real. Quando o somatório da procura — doméstica, industrial e de armazenamento — ultrapassa a geração disponível, a rede desestabiliza: a frequência baixa perigosamente e, sem resposta rápida, desencadeia-se o apagão geral. Foi exactamente isso que sucedeu.

    white windmill during daytime

    Portugal passou a operar o seu sistema eléctrico no fio da navalha: altamente dependente de importações, com a produção interna dominada por renováveis intermitentes (solar e eólica) e sem uma capacidade de resposta interna suficiente para lidar com falhas externas. Um modelo que qualquer manual de engenharia de sistemas eléctricos classificaria como imprudente — e que ontem demonstrou, sem misericórdia, a sua falência.

    Pior ainda: tratou-se de uma falência por opção consciente. Um Estado que não controla a sua infraestrutura energética; uma operadora que gere o sistema com critérios de maximização de margens financeiras; uma política energética que sacrificou a segurança pela cosmética da “transição verde” a qualquer custo.

    Ontem, não faltou apenas electricidade. Faltou soberania. Faltou competência. Faltou prudência. Faltou Estado.

    No sector energético há três S fundamentais que estão a falhar: segurança, soberania e sustentabilidade. A Segurança energética exige a existência de uma capacidade firme de produção nacional, uma gestão prudente e responsável das redes eléctricas, bem como a manutenção de reservas de contingência prontas a ser activadas em caso de necessidade.

    black solar panels on purple flower field during daytime

    A Soberania implica que um país preserve o controlo efectivo sobre os seus activos estratégicos, recusando a sua entrega a capitais estrangeiros cuja lógica é movida apenas pelo lucro e não pelo interesse nacional.

    Já a Sustentabilidade, se for verdadeira e madura, exige uma transição energética realizada com inteligência e prudência, respeitando o equilíbrio técnico do sistema e não sacrificando, em nome de modas políticas, as bases que garantem a sua estabilidade e resiliência.

    E a responsabilidade não é apenas da REN nem dos operadores privados, porque esses visam o lucro legítimo. Ela recai directamente sobre os decisores políticos que, com leviandade e voluntarismo, abdicaram de proteger o interesse nacional em nome de interesses económicos de curto prazo.

    Se nada for feito — se o Estado não recuperar instrumentos de controlo, se não se reconstruir uma capacidade de reserva energética interna robusta e independente —, o apagão de 28 de Abril não será recordado como um acidente isolado, mas como o prelúdio de colapsos futuros. Não é uma questão de “se”. É já apenas uma questão de “quando”.

    clear light bulb lot

    A energia de um país não é um bem comum qualquer. É o sangue que corre nas suas veias económicas e sociais. Entregá-la a lógicas puramente financeiras, sem responsabilidade, sem estratégia e sem soberania, é um acto de autodestruição.

    O Estado desertou. Os apagões, agora, são apenas a consequência natural.

  • Há dias felizes assim…

    Há dias felizes assim…


    Há domingos que começam com bom presságio. E não falo das promessas rotineiras de sol ou da esperança vaga de que as escadas rolantes do metro da Baixa-Chiado estivessem a funcionar — que não estavam. Não, falo de presságios a sério, daqueles que, se o mundo fosse mais honesto, fariam correr tinta nas páginas de astrologia e nas crónicas sérias, aquelas onde se desvendam as tramas tácticas que escapam ao comum dos mortais.

    Pois bem, o meu bom presságio começou — pasme-se! — com o relógio a anunciar um atraso de oito minutos. Dir-me-ão que isso é hábito, e é. Mas este atraso, meus caros, foi providencial. Ainda não me instalara na Varanda da Luz, ainda nem resfolegara com o farnel na mão, e já Tomás Araújo punha a bola lá dentro. Golos assim, com a emoção concentrada sem o prévio suplício das primeiras hesitações, são dádivas dos céus, e não fosse eu um homem de pouca fé, acreditaria em milagres.

    Mas vamos ao que interessa. Este texto, meus amigos, é um hino à liberdade. Mais uma vez, hoje não preciso de dissertar sobre as incidências e ‘conjunturas’ tácticas — sim, escrevo à antiga, como se deve —, porque para a ‘crónica da bola’, propriamente dita, há quem o faça com sapiência e com talento. O Tiago Franco decifra melhor do que ninguém as movimentações labirínticas do Aursnes, que para mim continua a ser um mistério nórdico, mas um mistério útil, daqueles que não se questionam, apenas se agradecem. Vê-lo ali, careca reluzente, varrendo o meio-campo com a elegância de quem passou a vida entre fiordes e relvados, é uma satisfação estética. Não entendo bem o que ele faz, mas sei que, sempre que joga, o meio-campo adversário se desfaz, como se tivesse sido devastado por uma tempestade escandinava.

    E se há coisa que também me deixa em paz com a minha ignorância táctica é saber que temos agora o Pavlidis. Um nome que soa a promessa de golos, e que, sem ofensa, se parece cada vez mais com um Goykeres grego — se é que me entendem. Há quem diga que os gregos nos deram a democracia, a filosofia e o drama, pois então nos deram também o Pavlidis, que marca com a consistência de quem sabe que, no futebol moderno, a beleza está no simples acto de mandar a bola para dentro da baliza. E com ele, meus caros, já não se deve sofrer daquela ansiedade benfiquista do “será que é hoje?”. Não. Com Pavlidis, o golo é uma inevitabilidade que me tranquiliza. Isto sou eu agora a dizer, que já me esqueci do empate a duas bolas contra o Arouca!

    Mas a razão maior desta crónica não está apenas nas quatro batatas bem aviadas ainda na primeira parte, e em mais duas na segunda – e deveram ter sido mais. A razão está num triplo contentamento que não posso deixar de partilhar. Primeiro, este prazer de escrever sem me perder em tácticas que me ultrapassam, num jornal onde a liberdade é mais sagrada do que qualquer VAR. Depois, a dita cuja cirurgia ao olho esquerdo, que finalmente me devolveu a capacidade de perceber que, afinal, daqui do alto, a diferença física mais visível entre o Prestianni e o Aursnes é que o primeiro tem cabelo. E, por fim, a cereja no topo da águia: tenho finalmente uma fotografia ao lado da Glória.

    Sim, senhoras e senhores, depois de tantos olhares furtivos, de tantas tentativas frustradas, consegui. Um instante imortalizado ao lado da rapina-mor, augúrio maior de vitórias e, quem sabe, de títulos. E, deixem-me dizer, com a Glória ao lado, até me senti mais benfiquista. É como se, por um momento, partilhasse com ela a visão sobre o estádio, sobre a equipa e sobre este destino glorioso que, todos os anos, tentamos agarrar com unhas e dentes.

    Enfim, há quem veja no futebol apenas um jogo. Outros vêem tácticas, números, percentagens. Eu, confesso, vejo mais. Vejo histórias. Vejo a liberdade de escrever sem as amarras da estatística. Vejo o Aursnes como um daqueles personagens de banda desenhada que resolve tudo com uma vassoura invisível. Vejo o Pavlidis agora como um semi-deus grego, que desceu à Luz para nos garantir domingos felizes. E vejo, com os meus olhos renovados, cada lance, cada corrida, cada golo, com a nitidez que antes só imaginava.

    O próximo jogo aqui não será, certamente, tão descontraído. Em todo o caso, ainda haverá, entretanto, com grande probabilidade, uma varanda especial, ali para os lados da Linha… do Estoril.

  • Brincar às sondagens: entre quotas, ponderações esdrúxulas e deprimentes taxas de resposta

    Brincar às sondagens: entre quotas, ponderações esdrúxulas e deprimentes taxas de resposta


    Vivemos num país onde a arte de brincar às sondagens se tornou, mais do que um passatempo estatístico, um ritual mediático. As redacções, sedentas de manchetes fáceis e previsões eleitoralistas, agarram-se a números que mais parecem tirados de um jogo de bingo do que resultantes de ciência rigorosa. E o exemplo que agora se serve à opinião pública, com pompa académica e chancela universitária, ilustra de forma cristalina como se pode mascarar fragilidade metodológica com o verniz das quotas e das ponderações pós-modernas.

    A recente sondagem para o Expresso e SIC, sob a égide do ICS-ULisboa e do Iscte-IUL, e operacionalizada pela GfK Metris, recolheu a intenção de voto dos portugueses através de entrevistas presenciais em lares, recorrendo ao sistema CAPI e com simulação de voto em urna. Até aqui, tudo parece denotar rigor, mas a substância revela-se bem mais volátil.

    Primeiro, a taxa de resposta: dos 2815 lares elegíveis contactados, apenas 803 entrevistas válidas foram obtidas – ou seja, um anémico 29% de adesão. Isto significa que mais de sete em cada dez portugueses recusaram participar ou não chegaram sequer a concluir a entrevista. E mesmo entre os que inicialmente mostraram disponibilidade, a taxa de cooperação foi de uns escassos 44%. Estes números deviam ser suficientes para qualquer jornalista ou editor colocar em dúvida a representatividade da amostra. Mas não: os dados são engolidos acriticamente, como se estivéssemos perante um oráculo infalível.

    Segundo, o método de selecção dos inquiridos recorreu a quotas, baseando-se numa matriz de Sexo, Idade, Instrução, Região e Habitat. Ora, as quotas, embora úteis em certas circunstâncias, não substituem o valor de uma amostra aleatória rigorosa. São, no fundo, uma forma artificial de impor proporcionalidade a um processo já condicionado pelas recusas massivas. Não se trata de amostragem probabilística, mas sim de uma engenharia demográfica, onde se tenta colar à força uma estrutura populacional a um grupo que, na realidade, é auto-seleccionado.

    Terceiro, e aqui reside o ponto mais alarmante, os resultados foram ponderados com base em frequência de prática religiosa e pertença a sindicatos ou associações profissionais, usando dados do European Social Survey (Ronda 11). Esta opção, que mais parece saída de uma tese académica ansiosa por originalidade, levanta sérias dúvidas. Desde quando a prática religiosa ou a filiação sindical são os eixos centrais da ponderação de intenções de voto em Portugal? E por que não ponderar, como é habitual, por critérios como voto anterior, escolaridade ou rendimentos?

    Este tipo de ponderação é um verdadeiro exercício de alquimia estatística, onde se tenta corrigir uma amostra fraca com factores que pouco ou nada têm a ver com a realidade eleitoral do país. É brincar à estatística com ares de ciência. Acresce que os dados do European Social Survey podem não reflectir com exactidão o estado actual da sociedade portuguesa, servindo como uma muleta desactualizada para sustentar números instáveis.

    Por fim, temos a proverbial margem de erro: anunciam, com ares de certeza, um valor de ±3,5% para a amostra de 803 inquiridos. Mas este valor pressupõe uma amostra aleatória simples, o que manifestamente não é o caso. Com as quotas, as recusas elevadas e as ponderações desviantes, a verdadeira margem de erro – se fosse honestamente calculada – seria substancialmente maior. Só que ninguém o diz. Nem a ficha técnica, nem os responsáveis pela sondagem, muito menos os jornalistas que a publicam com ar grave e títulos bombásticos.

    Tudo isto mostra, mais uma vez, que em Portugal se continua a brincar às sondagens, servindo números com pouca fiabilidade a um público cada vez mais descrente, mas ainda vulnerável à manipulação mediática. O rigor que se exige à ciência é aqui substituído por um jogo de aparências, onde se prefere manter a ficção de que tudo está controlado, tudo é medido, tudo é previsível.

    Enquanto não se fizer uma análise crítica séria e fundamentada a este estado de coisas, aceitando a passividade da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), continuaremos a assistir ao desfile de percentagens ilusórias, sem que ninguém se pergunte: quem é que realmente respondeu? E que valor têm estas respostas?

    Enfim, a brincar também se fazem eleições e se manipula o eleitorado. E depois, caso os resultados não batam certo, culpar-se-á, claro, os eleitores, repetindo-se a ‘brincadeira’ nas eleições seguintes: e vamos ter autárquicas e presidenciais nos próximos meses.

  • Director de jornal local diz que autarquia socialista de Lagoa aceitou contrato fictício

    Director de jornal local diz que autarquia socialista de Lagoa aceitou contrato fictício

    O director e proprietário do jornal ‘Lagoa Informa’, Rui Pires Santos, admitiu publicamente, num editorial publicado hoje, na página 13, que o contrato de cobertura mediática travestido de prestação de serviços de publicidade institucional, celebrado com a Câmara Municipal de Lagoa, no decurso de um concurso público, contém cláusulas que “não são cumpridas”.

    Nesta confissão, inserida num texto deste jornalista, que assinou o contrato comercial, é omitida a notícia do PÁGINA UM do passado dia 16, e o director do jornal local queixa-se de uma alegada ‘perseguição política’ por “elementos da Comissão Política do PSD Lagoa”. Contudo, acaba por confirmar os fortes indícios de falsidade contratual, colocando em dúvida a validade de um concurso público que atribuiu quase 100 mil euros ao jornal ‘Lagoa Informa’ para os anos de 2025 e 2026, em detrimento de outro candidato. E diz mesmo que a autarquia aceitou.

    Luís Encarnação celebrou dois contratos de mais de 200 mil euros em quatro anos com o jornal Lagoa Informa, que não pára de lhe conceder destaque.

    O contrato agora em causa, sob a capa de uma prestação de serviços de publicidade, inclui contrapartidas explícitas, impondo ao jornal uma cobertura sistemática e favorável das actividades da autarquia socialista. As cláusulas obrigam, por exemplo, que no mínimo 70% dos conteúdos sejam dedicados à “actualidade e figuras do concelho” e exigem ainda “presença no terreno” em eventos municipais, com a cobertura mediática por jornalistas acreditados, o que configura graves violações da Lei da Imprensa e do Estatuto do Jornalista, por se estar perante um ‘frete jornalístico’ institucionalizado.

    Segundo Rui Pires Santos, estas cláusulas não passam de letra morta, como o próprio confessa no seu editorial: “alguns responsáveis do PSD não devem conhecer, nem ler o ‘Lagoa Informa’ para compreenderem que as mesmas [cláusulas] não são cumpridas”. E avisa os seus supostos detractores: “Portanto, talvez devessem ter mais contenção, moderação e não ter esta postura de perseguição, que revela ignorância e replica maldade do texto partilhado. Mas isso dá-vos gozo, eu sei. Até porque, na verdade, este até já é um comportamento normal num conjunto de pessoas”.

    O director do ‘Lagoa Informa’ garante que, no passado, a ‘Gazeta de Lagoa’ – um jornal actualmente inactivo, embora ainda registado na ERC, em nome de Ana Maria Jesus Linha – teria recebido da autarquia local “valores médios de 120 mil euros por ano […] entre, por exemplo, 2003 e 2013.”, acrescentando que “há registos oficiais desses números”. E promete que “um dia até poderei publicá-los, para os recordar mais em pormenor e, quem sabe, reavivar a memória de alguns destes militantes do PSD mais distraídos sobre alguns mirabolantes e ‘épicos’ episódios de chantagem e pressão, de que vários políticos lagoenses têm conhecimento”.

    Editorial do ‘Lagoa Informa’ assume contrato com cláusulas proibidas mas que afinal não são para cumprir.

    Saliente-se que, no Portal Base, apenas constam diversos contratos de publicidade da autarquia local em 2008 e 2009 com Ana Maria Linha, a responsável da Gazeta de Lagoa, em valores diminutos (da ordem das centenas de euros, cada). A partir desse último ano, passaram a ser feitos contratos de assessoria de comunicação com Ana Maria Linha, que duraram até 2017, mas num período em que, segundo apurou o PÁGINA UM, a Gazeta de Lagoa já não publicava com regularidade.

    Independentemente da situação anterior, o editorial do director do ‘Lagoa Informa’ e gerente da empresa Pressroma constitui uma admissão inequívoca de incumprimento contratual, colocando em causa a legalidade do procedimento concursal e da execução do contrato. Em direito administrativo, um contrato público pode ser considerado nulo se for celebrado com base em declarações falsas ou intenções não genuínas de cumprimento. No seu editorial, Rui Pires Santos diz que “relativamente ao referido contrato [assinado este mês], constam cláusulas que, de facto, poderiam colocar em causa a liberdade de imprensa, se as cumpríssemos”, mas adianta que tal “não acontece e isso pode facilmente constatar-se e provar em cada edição do jornal”.

    Rui Pires Santos, que tem a carteira profissional de jornalista 3240, acrescenta ainda que “a discordância dessas cláusulas, demos a devida nota ao executivo camarário, que não soube explicar como as mesmas foram parar ao contrato, nem os serviços jurídicos da autarquia se mostraram disponíveis para as retirar do documento, alegando questões legais relacionadas com as regras de contratação pública”, manifestando ainda que “desde cedo, ficou explícito e vincado que não as íamos cumprir, tal como no passado, não tendo existido oposição a esse facto”.

    Trecho do contrato de Abril deste ano, onde a autarquia exige à Pressroma que faça “cobertura “acompanhamento da actividade da autarquia com presença no terreno, com reportagens, entrevistas e cobertura de eventos”, independentemente da sua dimensão.

    Do ponto de vista legal, se a autarquia de Lagoa adjudicou um contrato tendo por base um caderno de encargos cuja execução real é desconsiderada pela outra parte, com a sua concordância implícita, estar-se-á perante um contrato simulado, com o objectivo exclusivo de financiar um órgão de comunicação local próximo do poder político, quer em termos ideológicos quer regionais. Aliás, o recente contrato foi celebrado após concurso público, o que ainda agrava a promiscuidade, ao qual também se candidatou outra empresa de media, a Minius Publicações, proprietária do semanário AltoMinho.

    Esta tentativa de justificação histórica não só não iliba o actual contrato como evidencia que a prática de usar dinheiros públicos para sustentar jornais locais é recorrente e aceite como normal por sectores políticos diversos. O facto de Rui Pires Santos assumir que as cláusulas do contrato não são cumpridas, apesar de ter aceite formalmente as mesmas para vencer o concurso público, sugere que este procedimento poderá ter sido apenas uma formalidade para justificar legalmente um financiamento público previamente acordado. Se assim for, de acordo com juristas consultados pelo PÁGINA UM, além da eventual nulidade do contrato, poderá haver responsabilidade por viciação de concurso público, o que justifica a intervenção de entidades fiscalizadoras como o Tribunal de Contas e o Ministério Público.

    Perante esta confissão pública de incumprimento, que poderá configurar conivência com práticas contratuais fraudulentas e gestão danosa do erário público, o PÁGINA UM contactou hoje o gabinete do presidente da edilidade, o socialista Luís Encarnação, que se candidatará para um segundo mandato nas próximas autárquicas. O chefe de gabinete do edil, José Manuel Albino, respondeu que, tendo em conta “a matéria em causa”, as questões formuladas foram remetidas aos “serviços de contratação para melhor análise e apreciação”.

    Recorde-se que, na passada semana, depois de em Março ter aprovado uma deliberação menorizando a promiscuidade do anterior contrato de 2023, a ERC prometeu “abrir um procedimento de averiguações para aferir da existência de eventuais irregularidades”.

    Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social deixou impune o contrato de 2023 que já mostrava a promiscuidade entre uma autarquia socialista e a Pressroma com contrapartidas de cobertura mediática. Sob pressão da notícia do PÁGINA UM, já diz que vai reavaliar de novo a situação.

    Na semana passada, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) também prometeu pronunciar-se perante esta promiscuidade contratual, proibida por lei, mas a reunião do Secretariado foi adiada. Na semana passada também foram colocadas questões ao gerente da Pressroma e também director do Lagoa Informa, Rui Pires Santos, mas não houve ainda qualquer resposta.

    De acordo com o Portal Base, desde 2019 sucedem-se os contratos envolvendo publicidade, e não só, entre a Pressroma e três municípios algarvios, onde Lagoa surge em destaque com 490.518 euros. Os montantes dos contratos com Albufeira e Portimão são mais ‘modestos’: 52.716 e 20.018 euros, respectivamente.

  • Covid-19: quase metade das mortes na vaga Ómicron não foi causada pelo vírus, diz estudo

    Covid-19: quase metade das mortes na vaga Ómicron não foi causada pelo vírus, diz estudo

    Morte por ou com covid-19? Em plena pandemia, a simples colocação desta dúvida concedia o direito a rótulos depreciativos de relativista e negacionista. Mas agora que a ‘poeira’ do alarmismo e do medo se começa a assentar, e a Ciência, livre de paixões, recupera espaço sobre a propaganda, torna-se evidente que a distinção entre morrer por causa do vírus ou com a presença do vírus era – e continua a ser – essencial para compreender o verdadeiro impacto da pandemia. E um artigo científico publicado esta semana na Scientific Reports, do grupo editorial Nature, veio reforçar, com números concretos, que houve inflação da mortalidade atribuída ao SARS-CoV-2, mesmo se o vírus, detectado em testes de antigénio, não teve qualquer influência no desfecho fatal.

    O estudo agora apresentado foi realizado em sete hospitais de Atenas, onde foram analisadas em detalhe as verdadeiras causas de 530 óbitos classificados inicialmente como causados por covid-19. Mas afinal, cerca de 45% dessas mortes – ocorridas durante a vaga da variante Ómicron – não tiveram relação causal directa com a infecção pelo SARS-CoV-2. Estes resultados colocam assim em causa os critérios simplistas usados na contagem oficial de óbitos pandémicos, que frequentemente incluíram qualquer morte de pessoa com teste positivo, independentemente da causa clínica efectiva.

    black and white digital heart beat monitor at 97 display

    A equipa de investigadores gregos, composta por especialistas de diversas unidades hospitalares, fez uma revisão exaustiva dos dossiês clínicos, entrevistou os médicos assistentes e procedeu a uma avaliação independente por peritos experientes em tratamento de covid-19, assegurando, assim, uma abordagem rigorosa e abrangente.

    A principal conclusão do estudo apontou que apenas 290 das mortes – cerca de 54,7% – foram de facto causadas ou significativamente agravadas pela infecção. As restantes 240 mortes, correspondendo a 45,3% dos casos analisados, ocorreram em doentes que tinham teste positivo para SARS-CoV-2, mas cuja morte resultou de outras causas, como sépsis bacteriana, pneumonia por aspiração, insuficiência renal, acidentes vasculares cerebrais, insuficiência cardíaca ou neoplasias avançadas.

    A investigação demonstrou ainda que os doentes que faleceram “com” covid-19, mas não “devido a” covid-19, tendiam a ser mais jovens, com uma média de idade de 79,9 anos face aos 83,6 anos dos que morreram em resultado da infecção. Estes doentes apresentavam com mais frequência imunossupressão, doenças hepáticas avançadas e eram frequentemente infectados dentro do ambiente hospitalar, muitas vezes sem desenvolverem qualquer sintoma típico da doença.

    man in white scrub suit lying on hospital bed

    De facto, a ausência de sintomas de covid-19 foi um dos factores determinantes na reclassificação das causas de morte, evidenciando a limitação do critério baseado apenas na positividade do teste.

    A metodologia de contagem oficial de mortes por covid-19 na Grécia – semelhante à aplicada em muitos países europeus, como Portugal – considerava qualquer morte com teste positivo como um óbito pandémico, sem necessidade de estabelecer uma relação causal com a infecção. Este critério, segundo os autores, pode ter sido útil nas primeiras vagas pandémicas, com variantes mais letais como a Delta, mas tornou-se desajustado com a chegada da Ómicron, menos agressiva e coincidente com altos níveis de imunização populacional.

     Salientando que a questão da morte “com” ou “devido à” covid-19 continua a ser “uma questão central para entender o impacto da pandemia”, os investigadores gregos salientam que “essa questão não pode ser respondida com certeza apenas com o uso de atestados de óbito, principalmente dadas suas limitações inerentes”. Em muitos hospitais, destacam, há médicos ‘juniores’ que podem frequentemente ser encarregados de assinar atestados médicos de causa de morte, sem a disponibilidade de autópsias, ou em hospitais com ou sem determinadas podem os médicos ser “mais propensos a reconhecer complicações infecciosas de imunossupressores e menos propensos a atribuir causas de morte a complicações cirúrgicas”.

    white samsung charger on white textile

    Este estudo grego insere-se num contexto internacional de crescente escrutínio sobre a fiabilidade das estatísticas de mortalidade atribuídas à covid-19. Na Dinamarca, por exemplo, foi estimado que no início de 2022 cerca de 40% das mortes com teste positivo não estavam directamente relacionadas com a infecção, um aumento significativo face aos 10% a 20% registados nas vagas anteriores. No Reino Unido, estudos anteriores reportaram uma precisão de 92% a 97% na atribuição de mortes à covid-19 nas primeiras fases da pandemia, mas essa exactidão foi posta em causa com a evolução viral.

    Na Suécia, uma análise realizada no condado de Östergötland revelou que em 24% dos casos analisados como mortes por covid-19, a infecção não teve qualquer papel na morte. Por outro lado, a China ilustra o impacto directo das definições oficiais: em Dezembro de 2022, o país passou a considerar apenas mortes com doença respiratória associada, o que provocou uma descida abrupta dos números divulgados. O Peru é outro caso paradigmático, onde uma redefinição das causas de morte permitiu uma melhoria substancial na qualidade dos dados.

    Os autores gregos citam também o reputado epidemiologista John Ioannidis, que tem alertado para a existência simultânea de subnotificação, em países com fraca capacidade de testagem, e uma sobrestimação em países com políticas de testagem intensiva e sensibilização elevada. Ioannidis defende que, embora as estimativas de mortalidade em excesso ofereçam uma visão mais realista, também estas podem ser influenciadas por factores indirectos, como atrasos nos cuidados de saúde.

    person in white jacket wearing blue goggles

    Os autores gregos alertam que a definição imprecisa da causa de morte compromete a avaliação rigorosa do impacto pandémico, conduzindo a potenciais distorções nas políticas públicas e na percepção social do risco. Sublinhando que as certidões de óbito, muitas vezes preenchidas por médicos sem acesso completo ao historial clínico ou sem autópsias, não são instrumentos fiáveis, os investigadores defendem a necessidade de uma abordagem clínica mais cuidada e contextualizada, especialmente em fases pandémicas de menor letalidade.

    O estudo conclui que, para compreender devidamente o impacto da pandemia, é essencial eliminar enviesamentos nas contagens de mortes e adoptar critérios mais rigorosos e clínicos na definição de óbitos “devidos a” covid-19. Só assim será possível evitar interpretações inflacionadas da mortalidade e assegurar políticas de saúde pública proporcionais e baseadas na realidade epidemiológica.

    Recorde-se que, sobretudo ao longo de 2022, através do acesso a uma base de dados oficial de internados-covid, o PÁGINA UM foi alertando para vários casos absurdos de atribuição de mortes por covid-19. Em Janeiro de 2022, através dos registos de internamento até Maio de 2021, o PÁGINA UM estimou que, pelo menos, 2751 óbitos que a Direcção-Geral da Saúde (DGS) atribuiu à covid-19 foram de pessoas internadas em hospitais por outros motivos, e não por infecção do SARS-CoV-2.

    Identificam-se então 586 óbitos por covid-19 de pessoas que foram inicialmente internadas por doenças do aparelho circulatório (código iniciado pela letra I), das quais 41 com enfartes agudos do miocárdio, 160 com AVC isquémicos, 11 com AVC hemorrágicos e 140 com crises de hipertensão.

    O segundo grupo de doenças que justificaram o internamento inicial de pacientes-covid (e assim sendo incluídos na base de dados), que acabaram por falecer, são as respiratórias (código J da CDI), mas sem estarem relacionadas com a infecção por SARS-CoV-2 (que recebe o código U071 da CDI, ou em casos muito específicos os códigos J1281 ou J1282).

    Para este grupo, contabilizaram-se 392 pessoas que ocorreram por ter o seu óbito indicado à covid-19, mas que entraram no hospital por causa de outras infecções ou problemas respiratórios, incluindo pneumonias não-covid, entre as quais 55 por pneumonias bacterianas identificadas (por exemplo, por Streptococcus pneumoniae, Klebsiella pneumoniae, Staphylococcus aureus e Escherichia coli, entre outras), além de 39 por doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC) e 65 por pneumonia por inalação de comida ou vómito. Este problema grave ocorre principalmente em idosos: a média de idade destes casos é de 84 anos.

    Casos de quedas de camas ou acidentes similares, e até um suicídio, também foram reportados como mortes por covid-19. E até situações de negligência ou problemas de pós-operatório. Noutros casos, mortes de doentes terminais com SIDA ou ainda com neoplasias foram parar às estatísticas da covid-19. E uma parte bastante substancial de mortes atribuídas à covid-19 em Portugal ocorreu fora do ambiente hospitalar, o que levanta sérias dúvidas de terem sido causadas pelo vírus.

    De facto, todo os casos graves e fatais de covid-19 estiveram associados a síndrome do desconforto respiratório agudo, a necessitar de assistência médica, não sendo crível que essas pessoas tenham falecido por covid-19 em casa ou em lares sem suporte ventilatório em asfixia progressiva.

  • A palhaçada, ou a ‘sondagem’ com um erro (escondido) de 9% que dá uma ‘vitória’ ao Chega

    A palhaçada, ou a ‘sondagem’ com um erro (escondido) de 9% que dá uma ‘vitória’ ao Chega


    Se uma empresa de sondagens, a Pitagórica, pode colocar 400 inquiridos a votar “de certeza” em 1.032 ocasiões, distribuindo a respectiva escolha (que deveria ser única) por vários proto-candidatos presidenciais, então qual o problema de uma outra empresa de sondagens, a Aximage, permitir que um inquérito com 116 inquiridos na Área Metropolitana de Lisboa (AML), num universo de 2,5 milhões de eleitores, possa ser usado pelo jornal de um partido (Chega) para dizer que vence a concorrência sem ‘avisar’ que a margem de erro ultrapassa os 9%?

    Num país de fraca numeracia, de má ética e de pior regulação, já tudo vale, mesmo se temos uma Lei das Sondagens, e se grita loas à democracia. A permissividade, que combina imprudência mediática com laxismo regulatório, está a transformar as sondagens de opinião em instrumentos de distorção da realidade política e de manipulação da opinião pública. E daqui a dias vão todos descer a Avenida da Liberdade de cravo na mão e na lapela – e a gritar ‘Fascismo nunca mais!”, em vez de lamentar ‘Democracia nunca mais chega, de verdade!”

    Não é função de um órgão de comunicação social fazer participações, vulgo queixas – mas também não era suposto de tivéssemos necessidade de recorrer mais de duas dezenas de vezes aos tribunais para aceder a documentos públicos. Por vezes, um jornal não serve apenas para dar notícias. E, por isso, perante mais do que passividade geral – eu já digo que é conluio –, apresentei hoje uma nova queixa formal na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) contra a Aximage e o jornal Folha Nacional por divulgarem resultados regionais com base numa amostra estatisticamente irrelevante, sem sequer qualquer nota de salvaguarda sobre a elevada margem de erro. Uma margem de erro de 9%, significa, por exemplo, que um partido com 2% das intenções de voto (ou seja, duas pessoas na tal amostra de 116) pode ter, afinal, entre 0% e 11%. Acham isto uma sondagem?

    A ‘notícia’ da Folha Nacional – que, apesar de contar com mais de 90% de ‘takes’ da Lusa, publicada ainda uns artigos não assinados, e é considerado pela ERC um jornal – dá o CHEGA como vencedor destacado na AML, com 28,8% das intenções de voto, apoiando-se em apenas 116 inquiridos. Com esta quantidade, uma oscilação de meia dúzia de respostas bastaria para alterar radicalmente esse cenário.

    Com uma margem de erro superior a 9%, os três partidos principais — CHEGA, AD e PS — estão tecnicamente empatados. No entanto, o jornal, omitindo este dado essencial, converteu uma incerteza estatística numa certeza política, sendo aproveitada por André Ventura e os seus correligionários para fazerem propaganda. Uma sondagem política não pode ser usada desta forma – nem deveria ser permitido que um órgão de comunicação social detido por um partido a pudesse encomendar e divulgar.

    Este caso não é único. Junta-se à sondagem presidencial da Pitagórica, difundida em Janeiro pela TVI, CNN Portugal, TSF, JN e O Jogo, e alvo de anterior queixa apresentada também pelo PÁGINA UM. Nessa sondagem, os 400 inquiridos manifestaram voto “de certeza” em múltiplos candidatos, resultando numa soma absurda de 1.032 intenções firmes. Cada pessoa votou, em média, em 2,58 candidatos — um cenário aritmeticamente impossível em eleições reais. E, apesar dessa aberração metodológica, a ERC optou por ilibar todos os envolvidos, não detectando qualquer violação legal ou deontológica. Uma indigência estatística e uma irresponsabilidade dos membros do Conselho Regulador da ERC.

     Esta decisão tem agora consequências directas. Se o caso da Pitagórica, bastante grave, passou sem censura, então como poderá a ERC justificar uma posição diferente relativamente à sondagem da Aximage? A entidade reguladora ficará presa ao seu próprio precedente? Ou reconhece que errou na primeira deliberação? Ou aceita como legítima a degradação progressiva das práticas estatísticas no espaço mediático português?

    Neste contexto, é fundamental alargar o foco da crítica. As empresas de
    sondagens não são simples prestadoras de serviços técnicos isentas de
    responsabilidade. Quando entregam os seus estudos a órgãos de
    comunicação social — seja a grandes grupos generalistas, seja a jornais ideologicamente associados a partidos — sabem perfeitamente qual será o uso mediático dos seus dados. Não podem, pois, lavar as mãos quanto às interpretações que facilitam ou silenciosamente legitimam. Ao permitirem extrapolações abusivas sem esclarecimentos públicos, participam na distorção informativa que dizem querer evitar.

    Mais preocupante ainda é o facto de não existirem, em Portugal,
    mecanismos reais de verificação independente das sondagens. A ERC não exige acesso aos microdados, não fiscaliza a realização efectiva das
    entrevistas, não valida a correspondência entre os métodos declarados e os processos seguidos. Uma empresa, na prática, pode construir uma
    sondagem apenas com folhas Excel, ajustar os valores a um cenário
    plausível, redigir uma ficha técnica formalmente correcta — e ninguém
    lhe pedirá provas.

    Neste quadro de opacidade e permissividade, as sondagens correm o risco de se tornarem peças ficcionais com aparência de ciência. Gráficos
    coloridos, percentagens com casas decimais e manchetes definitivas
    constroem realidades que nem sempre correspondem ao país que os
    eleitores conhecem — mas que influenciam percepções, moldam debates e até definem votos.

    Entendo que a seriedade democrática exige correcção urgente deste estado de coisas. As sondagens são ferramentas legítimas e importantes, mas a sua utilidade pública depende do rigor com que são feitas, da transparência com que são apresentadas e da responsabilidade com que são interpretadas. Se falharem nestes pontos, deixam de servir a democracia e passam a servir apenas as estratégias de quem quer dominar a narrativa sem passar pelo incómodo da verdade.

  • Mas afinal a empresa do pai de Pedro Nuno Santos vive mesmo à sombra do Estado?

    Mas afinal a empresa do pai de Pedro Nuno Santos vive mesmo à sombra do Estado?

    No meio das sucessivas dúvidas e polémicas envolvendo o actual secretário-geral do Partido Socialista e candidato a primeiro-ministro, Pedro Nuno Santos, a empresa do seu pai acaba sempre por surgir. Ainda esta semana, o jornal Nascer do Sol revelou que uma das denúncias em investigação pelo Ministério Público envolveria a Tecmacal, a empresa familiar criada há mais de quatro décadas por Américo Augusto dos Santos, e os contratos que foi estabelecendo com o Estado. E, desta forma, o PÁGINA UM foi esmiuçar a situação financeira da empresa e os seus contratos e apoios públicos, também para responder à questão: a família de Pedro Nuno Santos é desafogada e vive à sombra dos dinheiros públicos?

    Antes de mais, a Tecmacal é, na verdade, uma sociedade anónima, embora de accionistas individuais conhecidos, que pertencem a duas famílias. Com efeito, as participações distribuem-se, de forma similar, entre a família de Pedro Nuno Santos e a família de Fernandes Pires Laranjeiro, sendo estes os accionistas de referência que constam no Registo Central do Beneficiário Efectivo: Américo Augusto dos Santos conta com 44,53% das acções, porque recebeu os 0,5% detidos pelo seu filho Pedro Nuno Santos em 2019, havendo ainda pequenas participações da irmã e da mãe do antigo ministro das Infraestruturas do Governo Costa. Do lado da família Laranjeiro, o patriarca Fernando – actual presidente do Rotary Club de São João da Madeira – detém 44,03%, estando a restante parte (até 50%) nas mãos de familiares directos.

    Pai de Pedro Nuno Santos (ao centro) preside ao Conselho de Administração da Tecmacal, uma sociedade anónima que integra outra família (Laranjeira). Foto: DR

    Sediada em São João da Madeira e com filiais na Benedita e em Felgueiras, desenvolvendo actividades sobretudo em maquinaria para a indústria do calçado, uma das ‘acusações’ contra a Tecmacal é a de acumular contratos públicos. De acordo com o Portal Base, somam-se, desde 2007, um total de 26 contratos, envolvendo 894.680 euros. Deste montante, cerca de 554 mil euros (62%) dizem respeito a contratos no período dos Governos socialistas de António Costa, cerca de oito anos, o que dá uma média inferior a 70 mil euros por ano. Destes, dos dois maiores foram por concurso público, celebrados em 2016 com o Centro de Formação Profissional da Indústria de Calçado (cerca de 129 mil euros) e no ano seguinte com o Instituto Politécnico do Cávado e do Ave (cerca de 189 mil euros).

    De facto, os contratos públicos de maior montante que beneficiaram a Tecmacal referem-se a adjudicações por concurso público e, com excepção de um ajuste directo para a venda de material informático em 2012 – para a autarquia de Ponte de Sor, no valor de 50.743 euros – estão relacionados com maquinaria no sector do calçado destinada sobretudo a instituições de ensino e formação profissional financiadas pelo Estado.

    O maior contrato que surge referido no Portal Base foi com o Instituto Politécnico da Guarda, no montante de 362.377,20 euros, em 2014. Porém, este foi um valor global de diversos contratos relativos a oito lotes. Na verdade, à Tecmacal só coube um contrato de 18 mil euros. Deste modo, valor global atribuído no Portal Base em contratos da Tecmacal está ‘inflacionado’ em mais de 344 mil euros. Na verdade, o maior contrato foi celebrado em Outubro de 2017 com o Instituto Politécnico do Cávado e do Ave, no valor de 188.800 euros, após um concurso público em que participaram três empresas.

    Em termos globais, os principais clientes públicos da Tecmacal desde 2009 foram o Centro de Formação Profissional da Indústria de Calçado (222.660,00 euros) e o Instituto Politécnico do Cávado e do Ave (243.740,00 euros). A lista inclui ainda o Instituto Politécnico de Castelo Branco (53.725,00 €), o Agrupamento de Escolas Rafael Bordalo Pinheiro (78.580,00 €), o Centro de Formação da Indústria da Cortiça (64.500,00 €), o CEFPI – Centro de Educação e Formação Profissional Integrada (5.737,05 €), o Instituto Politécnico da Guarda (18.000,00 €) e a Associação para a Formação Profissional do Montijo (12.345,00 €). Entre as restantes entidades contratantes constam a Guarda Nacional Republicana (95.800,00 €), o Município de Ponte de Sor (50.743,30 €), o PCI – Parque de Ciência e Inovação, S.A. (35.000,00 €) e a NOVA.ID.FCT – Associação para a Inovação e Desenvolvimento da FCT (13.850,00 €).

    Apesar de serem montantes aparentemente relevantes, não se pode dizer, pelo contrário, que a Tecmacal seja uma empresa que necessita do Estado para sobreviver, mesmo tendo beneficiado de diversos apoios nos últimos anos, nomeadamente quase 600 mil euros do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR) e de um montante um pouco superior em subsídios à exploração entre 2010 e 2023, de acordo com as análises do PÁGINA UM aos relatórios da Informação Empresarial Simplificada.

    Com efeito, no quinquénio em causa, a Tecmacal facturou um total de 34,4 milhões de euros, com resultados líquidos sempre positivos – o que, no contexto português, já é por si notável –, acumulando assim 1.510.351,96 euros de lucro em cinco anos. A facturação tem-se mantido razoavemente estável em redor dos seis a sete milhões de euros por ano, significando que as adjudicações pelo Estado são bastante residuais. Por exemplo, em 2023 só houve uma facturação de 40 mil euros através de contratos públicos, reprsentando assim menos de 0,7% do total das receitas. Nos cinco anos analisados pelo PÁGINA UM, A Tecmacal celebrou apenas três contratos públicos no valor total de 64.110 euros, o que, atendendo à facturação (34,4 milhões de euros), representa somente 0,19% do total.

    Os resultados operacionais foram positivos em todos os exercícios do último quinquénio com contas aprovadcas, oscilando entre um máximo de 689 mil euros em 2022 e um mínimo de 153 mil euros em 2020, demonstrando uma capacidade sustentada. Por outro lado, entre 2019 e 2023, a Tecmacal pagou um total acumulado de cerca de 348 mil euros em impostos sobre o rendimento (IRC), com especial destaque para o ano de 2022, em que o valor atingiu os 118 mil euros. Se se considerar também os encargos sobre remunerações, especialmente pagamentos à Segurança Social, a Tecmacal fez entrar nos cofres do Estado quase 1,3 milhões de euros pelo trabalho dos seus cerca de seis dezenas de trabalhadores.

    Fotografia de ‘família’ dos funcionárioa da Tecmacal em 2022. Foto: DR

    Considerando as flutuações de mercado, e também a crise pandémica, com especial incidência no triénio 2020-2022, a Tecmacal tem mantido uma estrutura financeira forte. Em 2023, o capital próprio ultrapassava os 9,8 milhões de euros – próximo do dobro do registado em 2011 –, representando 76% do activo total, o que traduz uma autonomia financeira muito acima da média do sector industrial, onde os rácios rondam, em geral, os 40% a 60%. Ao longo dos cinco anos analisados, a autonomia nunca desceu dos 63%, e o passivo total caiu, entre 2022 e 2023, de 5,4 para apenas 3,08 milhões de euros. Nessa medida, os encargos financeiros são residuais: em 2023, os juros suportados totalizaram apenas 52 mil euros.

    Ao nível da liquidez, a empresa demonstra igualmente conforto. Com 1,4 milhões de euros em caixa e depósitos bancários no final de 2023, e um passivo corrente inferior a três milhões, o rácio de liquidez corrente supera os 3,4, muito acima do mínimo aceitável. E mesmo no pico das tensões pandémicas, em 2020, a empresa atingiu um rácio de 4,46. Esta folga de tesouraria permite à empresa operar sem dependência de linhas de crédito rotativo nem de financiamentos de curto prazo.

    Mas se a solidez é evidente, também se destaca alguma prudência da gestão. Entre 2019 e 2023, a empresa nunca distribuiu qualquer dividendo aos seus accionistas. Em vez disso, reteve cerca de 820 mil euros dos lucros, que se reflectem no crescimento das reservas e na recuperação dos resultados transitados que, em 2019, estavam negativos.

    Outro aspecto revelador da prudência e discrição da gestão familiar da Tecmacal é a política de remuneração dos seus órgãos sociais. Apesar de integrar seis membros no Conselho de Administração, presidido pelo pai de Pedro Nuno Santos, os relatórios identificam uma remuneração anual bastante baixa e estável, entre os 124 mil e os 127 mil euros. Significa, assim, uma remuneração mensal média de menos de nove mil euros para todos os administradores. Não há menções a prémios, gratificações, participações nos lucros ou outros benefícios extraordinários nos relatórios dos cinco anos. Trata-se, pois, de uma estrutura de compensação moderada e compatível com os padrões de PME familiar.

    Pedro Nuno Santos em campanha eleitoral. Foto: DR.

    Finalmente, importa referir que a Tecmacal tem investido de forma contida, mas contínua, nos seus activos. O activo fixo tangível mantinha-se, em 2023, em torno dos 380 mil euros, e as participações financeiras, que são uma parte substancial do activo não corrente, ultrapassam os 2,2 milhões de euros. A empresa não divulga, no IES, os nomes das entidades participadas, mas trata-se claramente de um portefólio significativo, e que contribui também para os resultados anuais – em 2022, os ganhos com subsidiárias atingiram os 173 mil euros.

    Em conclusão, a Tecmacal apresenta-se como uma empresa de sucesso discreto, sustentada em princípios de gestão conservadora, capitalização interna, baixos níveis de dívida e estabilidade de operação. Os lucros foram constantes, os apoios do Estado razoáveis e bem aproveitados – mas também ‘retribuiu’ para a Segurança Social – e a estrutura está financeira robusta. Mas não terá sido directamente através da Tecmacal que a vida financeira de Pedro Nuno Santos melhorou, porque a empresa familiar não distribuiu lucros no último quinquénio nem as remunerações dos administradores serão assim tão colossais.

  • Paulo Moreiras

    Paulo Moreiras

    Na vigésima sétima sessão da BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com a escritor (e amigo de longa data) Paulo Moreiras.



    Há escritores que impressionam pela vastidão do seu vocabulário ou pela erudição das suas referências. Outros, mais raros, conquistam os leitores pela autenticidade com que erguem uma obra onde forma e substância se entrelaçam como os aromas de um prato bem apurado. Paulo Moreiras pertence a este segundo grupo, mas bebe também no primeiro: é um escritor de corpo inteiro, daqueles que escrevem como vivem – com intensidade, com gosto, com ironia e com apurada consciência da língua como território de criação e de prazer.

    Mas Paulo Moreiras tem outras particularidades: não separa a literatura da vida, nem a vida da mesa – porque em ambas há uma celebração do humano. E é talvez por isso que o seu percurso literário, embora diverso nos géneros, revela uma coerência que só os verdadeiros artesãos da palavra conseguem manter. A sua escrita, depurada mas sensorial, combina a sofisticação estilística com um olhar agudo sobre a História e a natureza humana, frequentemente cruzando o riso e o desalento com uma elegância pouco comum no nosso panorama literário.

    Paulo Moreiras na Biblioteca do Página Um.

    Entre as suas obras mais emblemáticas, O Ouro dos Corcundas, Os Dias de Saturno e sobretudo A Demanda de D. Fuas Bragatela – talvez o mais exemplar da sua veia picaresca – são testemunhos de um autor que sabe percorrer os meandros da alma portuguesa com irreverência e ternura, evocando, por vezes, o espírito de Quevedo ou de Camilo, mas com uma voz inconfundivelmente própria. O pícaro de Paulo Moreiras – que atinge um apogeu (mas não o Apogeu) com A Vida Airada de Dom Perdigote, publicado em 2023, não é apenas o malandro que engana o mundo: é também o homem que, ao tropeçar na sua própria condição, revela os vícios e virtudes de todos nós.

    A escrita de Paulo Moreiras cheira a terra molhada, a tascas escuras, a pergaminhos esquecidos, e talvez meta peixe grelhado e ironia bem temperada. Esse mesmo requinte surge na construção das suas personagens e enredos, onde está à mesa a gastronomia, onde se revela igualmente exímio. Não é de espantar que seja presença regular no PÁGIINA UM, onde colabora com recensões que se movem entre a história dos alimentos, a crítica culinária e a memória gustativa — textos onde a erudição se mistura com o prazer do paladar, numa escrita que dá vontade de ler com os olhos e com o estômago.

    Paulo Moreiras não é apenas um autor: é um contador de histórias, um desenhador de sabores, um filósofo das pequenas coisas. E é com esse espírito — culto, mordaz, mas também afável e generoso — que chega hoje à BIBLIOTECA DO PÁGINA UM. A conversa com Pedro Almeida Vieira não é uma entrevista nem uma conferência: é um reencontro de amigos que cultivam alíngua que falamos e honram pão que comemos.

    Entre os romances patentes na Biblioteca do PÁGINA UM, Paulo Moreiras recomenda os romances ‘Eurico, o Presbítero’ (1844), de Alexandre Herculano; ‘Vida e Obras de Dom Gibão’, de João Palma-Ferreira (1987); ‘As Viúvas de Dom Rufia’ (2016), de Carlos Campaniço; e ‘O Feitiço da Índia’ (2012), de Miguel Real.

    Pormenor da biblioteca ‘caseira’ de Paulo Moreiras.