Na vigésima sessão da BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com a escritora Teolinda Gersão.
Reconhecida e consagrada como uma das grandes vozes da literatura contemporânea portuguesa, Teolinda Gersão tem construído uma obra marcada pela sensibilidade e pela capacidade de explorar os meandros mais profundos da experiência humana. A Literatura, em si, é mais do que um veículo de expressão pessoal; é uma ferramenta para dar forma às múltiplas dimensões da vida, onde memória, história e identidade convergem.
Embora oficialmente a sua estreia seja apontada ao ano de 1981 com “O Silêncio”, romance logo amplamente elogiado pela crítica, Teolinda Gersão teve uma juvenil incursão, aos 14 anos, com um livro de contos, ‘Liliana’, em 1954, cujo exemplar está patente na Biblioteca do PÁGINA UM, e que, embora não reconhecida na sua bibliografia, surge como um ponto de partida para esta longa, mas admirável conversa com Pedro Almeida Vieira.
Teolinda Gersão fotografada no PÁGINA UM.
Além de ser abordada uma carreira literária ímpar – que cruza fronteiras culturais e psicológicas, onde se destacam obras como ‘A Casa da Cabeça de Cavalo’, ‘Os Guarda-Chuvas Cintilantes’, A Cidade de Ulisses’ e o mais recente ‘Autobiografia não escrita de Martha Freud –, Teolinda Gersão fala do seu percurso de vida e da forma com a sua trajetória criativa se foi cruzando com o percurso académico, até lhe ter ganhado primazia.
Nesta conversa, Teolinda Gersão revisita também as influências que moldaram a sua visão literária e pessoal, desde os anos que viveu em Berlim até à sua incursão pela literatura africana, e a visão que foi moldando sobre Portugal e os portugueses. E mostra sobretudo ser uma mulher de paixões, que se desvendam na forma como fala de determinados temas ou assuntos. Entre os romances patentes na Biblioteca do PÁGINA UM, Teolinda Gersão decidiu escolher ‘Adoecer’, de Hélia Correia, publicado em 2010, ‘Fanny Owen’, de Agustina Bessa-Luís, publicado em 1979, e a chamada ‘trilogia da mão’, de Mário Cláudio constituída por ‘Amadeo’. ‘Guilhermina’ e ‘Rosa’, publicados originalmente entre 1984 e 1986.
Pormenor da biblioteca ‘caseira’ de Teolinda Gersão.
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Na vigésima primeira sessão da BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com a escritora Deana Barroqueiro.
Autora amplamente reconhecida pela sua habilidade em transformar episódios históricos em narrativas vibrantes, Deana Barroqueiro tem vindo a afirmar-se como uma das grandes vozes da literatura portuguesa no romance do género histórico. Para a escritora, a História não é apenas um registo do passado, mas uma fonte inesgotável de inspiração literária e um veículo poderoso para compreender as complexidades do presente.
Nascida nos Estados Unidos, mas assumindo-se como uma orgulhosa portuguesa a 100%, Deana Barroqueiro licenciou-se em Filologia Românica e foi durante várias décadas professora do ensino secundário, tendo feito a sua estreia ‘formal’ com um admirável conjunto de romances de aventuras (para todos os públicos) com ênfase, primeiro, nos Descobrimentos, mas centrando-se depois na figura de Pêro da Covilhã.
Mas após essas obras foi consolidando a sua carreira literária sobretudo através de romances de grande fôlego e detalhe, entre os quais se destacam ‘O espião de D. João II’, ‘D. Sebastião e o vidente’, ‘Fernão Mendes Pinto e a Peregrinação’, e ‘1640’.
À conversa com Pedro Almeida Vieira na Biblioteca do PÁGINA UM, Deana Barroqueiro reflecte sobre o seu percurso de vida e a sua abordagem ao romance histórico, partilhando como a pesquisa rigorosa e a escrita criativa se cruzam para dar vida às histórias que apaixonam os leitores.
Deana Barroqueiro fotografada no PÁGINA UM.
E também fala de uma outra das suas paixões, o mundo da gastronomia, que a fez escrever ‘História dos paladares’, com o qual foi galardoada com o Prix International de la Littérature Gastronomique 2021, pela Académie Internationale de la Gastronomie.
Entre os romances patentes na Biblioteca do PÁGINA UM, Deana Barroqueiro recomenda ‘O bobo’, de Alexandre Herculano – inicialmente publicado em 1843 na revista ‘O panorama’, e em volume em 1878 –, ‘O regicida’ e ‘A filha do regicida’, de Camilo Castelo Branco – publicados em 1874 e 1875, respectivamente –, ‘A casa do pó’, de Fernando Campos – publicado em 1987 – e ainda ‘Índias’, de João Morgado, publicado em 2016.
Pormenor da biblioteca ‘caseira’ de Deana Barroqueiro.
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Artur Matos ajeitou a gola da camisa pela terceira vez, como se o gesto pudesse aliviar uma ansiedade que insistia em instalá-lo na condição de réu. Não fazia calor; o nervosismo era mais interno, fruto de uma convocatória inesperada que chegara na véspera. Passara toda a tarde procrastinando a escrita de um ensaio ambicioso sobre os mistérios da Ordem de Cristo, projecto trazido de Lisboa, que ninguém pedira, que se destinaria, por certo, à prateleira dos esquecidos. Entretivera-se no YouTube, assistindo a cenas de gatos em situações hilariamente patéticas, como se aí encontrasse um reflexo de si mesmo, preso num ciclo de adiamento e auto-ironia.
Agora, caminhava pelas ruas de Benguela, com o aroma pesado da cidade a invadir-lhe os sentidos: um misto de maresia, poeira e carne grelhada. Por entre edifícios coloniais, que ainda guardavam ecos de um passado nunca completamente resolvido, abeirou-se de uma construção de linhas rígidas, um testemunho do pragmatismo da arquitetura lusa. Era apenas a fachada. Procurou pela placa que indicava a editora AfroHistórias. Quando a encontrou, hesitou por instantes, a cabeça cheia de imagens difusas de historiadores coloniais e o peso de vozes críticas que ele próprio evitava ouvir.
Enquanto subia a escadas reparou que o interior se modernizara, mesmo mantendo-se europeu, e tocou a uma campainha que trouxe o condão de lhe abrir a porta. O espaço da editora era uma síntese do pragmatismo contemporâneo: linhas limpas, decorações minimalistas e uma recepção dominada por cartazes coloridos com títulos como ‘Revoltas Submersas’ e ‘Nzinga: A História Não Contada’. O logotipo na porta de vidro fosco – o contorno de África coroado por uma águia imperial – parecia sugerir que aquele era um espaço para narrativas que alçavam voo sobre verdades negligenciadas.
Ao entrar, Artur encontrou uma secretária baixa, em madeira polida, onde uma jovem de cabelos entrançados falava ao telefone num tom de autoridade natural. Não precisou de palavras para ser ordenado a aguardar; o gesto seco da mão foi suficiente para deixá-lo com a sensação de estar numa sala de espera de um dentista ou de um julgamento iminente. Não passara dez minutos, e a secretária, mascando pastilha, e quase sem o olhar, apontou uma porta. Entrou.
Era uma sala de reuniões austera, quase monástica, com quadros de figuras históricas africanas que pendiam das paredes em poses heróicas. Amílcar Cabral, num canto, parecia olhar directamente para Artur, não com o desdém de quem despreza, mas com a severidade de quem espera. Quando Elias Mukuba entrou na sala, trouxe consigo uma aura de precisão e autoridade. Fácil se mostrou a Artur que era o editor – homem alto, de pele retinta e olhos penetrantes, que pareciam ter o poder de desarmar qualquer tentativa de dissimulação.
– Matos, agradeço por ter vindo. – A sua voz era quente, mas desprovida de desperdício.
Artur levantou-se, respondendo ao cumprimento com um aperto de mão. – O prazer é meu – disse, com a casualidade mal ensaiada de quem sabia que aquele não era o seu terreno.
Mukuba não perdeu tempo.
– Preciso mesmo de alguém para escrever ‘A História Verdadeira de Benguela’. Queremos uma narrativa que transcenda a tradição paternalista e colonial, mas que, ao mesmo tempo, respeite os factos. O seu nome foi-me recomendado, mas, confesso, hesitei quando soube que era… branco.
A observação caiu na sala como uma granada silenciosa. Artur piscou os olhos, tentando avaliar se aquilo era uma armadilha ou apenas um teste. Mukuba não desarmou, sustentando o olhar como quem aguardava uma reacção.
– Imagino que seja uma hesitação natural – respondeu, com um leve sorriso que escondia o desconforto. – Afinal, quando o assunto é História, todos preferem a voz de quem não tem culpa dos desastres.
Mukuba riu, mas um riso seco, como uma faca que encontra resistência.
– Não se trata de culpa, Matos. Trata-se de legitimidade.
Os olhos do editor mantinham-se fixos, inabaláveis, como quem esperava uma confissão. Artur hesitou, não por falta de argumentos, mas por saber que não havia resposta que fosse suficiente.
– Contudo – continuou Mukuba –, acredito que a legitimidade pode ser conquistada, desde que o trabalho seja feito com honestidade e rigor. Quero que escreva este livro, embora sem metáforas que disfarcem massacres como progresso. Sem paternalismos. Consegue fazer isso sendo português?
Houve um silêncio carregado. Artur sabia que a questão não era apenas sobre História. Era sobre um peso que ele, na verdade, nunca carregara. Ainda assim, a alternativa era retornar ao conforto desconfortável do seu escritório e ao vazio do manuscrito inacabado.
– Aceito – disse, sabendo que acabara de entrar numa arena onde o fracasso seria recebido com um júbilo silencioso.
—
A quantia prometida, acrescido de um bom adiantamento, choruda, era irrecusável para Artur, ainda mais paga em dólares e sem recibo. E com uma única condição: teria de enviar o manuscrito inicial de cada capítulo na véspera de cada reunião semanal.
Embrenhou-se, sem mais perda de tempo – os Templários foram engavetados – na complexidade dos documentos que foi vasculhando nas raquíticas bibliotecas de Benguela, nas pesquisas cibernéticas, páginas digitalizadas enviadas de Lisboa. Começou a escrever sobre as primeiras viagens de Diogo Cão, quando a costa africana era ainda um mistério habitado por monstros mitológicos, até à consolidação de São Filipe de Benguela como um pqueno posto avançado daquilo que nomeou ser a violência lusitana. Mas mesmo com esses detalhes linguísticos, cada momento se revelava um labirinto de interpretações possíveis como se a voz de Elias Mukuba lhe sussurasse nos neurónios. Artur sentia-se, por vezes, como Diogo Cão ao desembarcar pela primeira vez em terras africanas: perdido, vulnerável e consciente de que a sua presença não era bem-vinda.
A tarefa revelou-se assim uma odisseia de desafios históricos e psicológicos. Cada linha escrita se impunha como uma luta entre a tentação de perpetuar a narrativa heróica e a obrigação de expor a crueza dos factos. E viu logo na primeira reunião que, apesar dos seus escrúpulos na escrita, Mukuba não lhe iria facilitar a vida.
– “Os portugueses avançaram com temeridade”? – disparou Mukuba, logo à entrada desse primordial encontro entre autor e editor, impondo um tom que carregava o peso da crítica. – Temeridade? E o genocídio que acompanhava esses avanços, Matos?
– Não se pode simplificar assim – rebateu Artur, ainda nem sequer se sentara. – Esses homens enfrentaram mitos e monstros imaginários. Isso é temeridade, não acha?
Mukuba ergueu uma sobrancelha, impiedoso.
– Não, Matos. Isso é o poder a subjugar vidas humanas. São narrativas como essa que mascaram tragédias.
Artur sentiu-se numa corda bamba, tentando equilibrar a factualidade e a sensibilidade. Não ia correr nada bem esta aventura, cogitou. Manteve-se calado, enquanto o editor lhe foi fazendo comentários aqui e ali, mas a discussão atingiu o clímax quando sugeriu adicionar uma citação fictícia para dar voz a um soba local.
– Não posso fazer isso. Seria inventar História.
– História inventada, Matos? E o que acha que significa “descobrir”? Os seus antepassados “descobriram” uma costa que já tinha sido habitada por séculos.
—
Artur saiu da reunião desanimado, por um lado, animado, por outro. Mukuba acrescentara-lhe mais um pequeno adiantamento, que disse ser extra.
– Envie-me o manuscrito alterado, e dou-lhe uma resposta antes de avançar para o seguinte.
Mesmo deixando cicatrizes no ego, Artur refez o texto e o tom, desconstruindo o mito do Mar Tenebroso e mostrando como a História tinha sido, desde sempre, um jogo de manipulação. E deixou o manuscrito na editora. Dois dias mais tarde, recebeu um telefonema de Mukuba, aprovando a versão, mas acrescido de um comentário final que lhe pareceu mais uma adaga:
– Ficou aceitável, Matos. Para um escriba europeu, não está mal.
No momento em que desligou o telefone, Artur sentiu que acabara de sobreviver a uma batalha, mas não à guerra.
[continua…]
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A crise da imprensa nacional não é de hoje. Também não nasceu da ascensão das redes sociais, ou da desinformação, que muitas vezes servem de bode expiatório para esconder as verdadeiras falhas que corroem as redacções e as suas lideranças. Não, o verdadeiro problema da nossa imprensa é interno e, por vezes, personificado por aqueles que ocupam as direcções editoriais.
Directores que, sob o manto do jornalismo, colocam a promoção pessoal, o apadrinhamento político e as relações empresariais acima da integridade e da missão jornalística. O caso de Mafalda Anjos, directora da Visão e directora editorial (publisher) do grupo Trust in News durante vários anos – e que veio hoje ‘chorar lágrimas de crocodilo’ – é exemplar, mas está longe de ser único.
Mafalda Anjos fez, em Julho do ano passado, um exercício de indignação quando o PÁGINA UM abordou as dívidas colossais que a Trust in News foi acumulando desde 2018. Mafalda Anjos na sua prepotência escreveu que: “não me pronuncio sobre o conteúdo de artigos fantasiosos que versam as contas da TI nem permito que me citem em ON em qualquer artigo”.
Printscreen do Instagram de Mafalda Anjos onde se ‘lamentou’ da situação da Trust in News.
Mas hoje, com cerca de uma centena de jornalistas em risco de despedimento, a Trust in News está mergulhada numa insolvência que surpreende apenas os desatentos ou cúmplices. A recente publicação de Mafalda Anjos nas redes sociais pinta um retrato desconfortável da gestão editorial em Portugal. Escreveu ela que a Visão e as submarcas de nicho deram, até 2023, “uma margem de contribuição positiva para o grupo”. Isto é de uma incompetência; é de um ultraje, é de uma hipocrisia. Sem limites.
Ao demarcar-se dos actos de gestão da Trust in News, tentando apagar o seu papel no descalabro, Mafalda Anjos confia na ignorância ou boa-fé dos incautos leitores.
Não se pode esquecer – e Mafalda Anjos tem obrigação de saber, pelos seus lamentados largos anos em cargos de liderança em órgãos de comunicação social – que a Lei da Imprensa é clara, no seu artigo 20º: o director tem o direito de “ser ouvido pela entidade proprietária em tudo o que disser respeito à gestão dos recursos humanos na área jornalística, assim como à oneração ou alienação dos imóveis onde funcionem serviços da redacção que dirige” e ainda de “ser informado sobre a situação económica e financeira da entidade proprietária e sobre a sua estratégia em termos editoriais”.
Se Mafalda Anjos não quis exercer esse direito ou até teve mas nada entende de demonstrações de resultados, deveria, em qualquer dos casos, ter batido com a porta logo no primeiro ano de liderança da Visão. Mas ela esteve como directora desta revista entre 2016 (antes ainda da chegada de Luís Delgado) e final de 2023. Foi publisher de todas as revistas do grupo de Luís Delgado entre Janeiro de 2018 e Dezembro de 2022. Só saiu de tudo quando o barco estava a afundar, mas tratou antes de conseguir para si um acordo de rescisão de 54 mil euros, tendo o karma lhe concedido, em troca, (mais) um calote do Luís Delgado.
Statetement de Mafalda Anjos no Instagram sobre a manifestação de trabalhadores da Trust in News na Praça Luís de Camões, em Lisboa.
Portanto, posto isto, se a situação da Trust in News chegou ao ponto de implosão, onde estavam a vigilância e a responsabilidade de quem liderava uma das suas principais publicações? É possível que a ex-diretora da Visão tenha ignorado, durante anos, os sinais evidentes de insolvência, confiando cegamente numa administração que foi acumulando paulatinamente 32 milhões de euros de passivo e com as dívidas ao Estado a subirem ao ritmo de 3 milhões ao ano? Ou será que a narrativa de “vítima de má gestão” serve apenas para proteger a sua imagem, ao custo da verdade?
A verdade, por mais dura que seja, precisa ser dita: o problema maior do jornalismo nacional não está nas redes sociais, que funcionam como veículos de informação, desinformação e opinião. Está dentro das próprias redacções, onde direções editoriais, travestidas de jornalistas, abandonaram a missão de informar para se dedicarem à promoção de interesses privados, políticos ou empresariais.
A sobrevivência e a credibilidade da imprensa não se esfumam apenas com as quedas nas vendas de papel; esfumam-se, sobretudo, com a erosão da confiança do público. E como se pode confiar em directores que ignoram, ou fingem ignorar, os indicadores financeiros das suas publicações? Que, no silêncio ou na conveniência, contribuem para o desmoronamento das instituições que dizem defender?
O caso de Mafalda Anjos é paradigmático, mas não isolado. É impossível não lembrar Rosália Amorim, cujo desempenho à frente do Diário de Notícias num grupo que está a caminho da derrota (a Global Media, com a transmissão dos direitos do Jornal de Notícias para uma nova empresa jornalística, não vai durar nem um ano), resultou numa ainda maior perda de credibilidade do jornal. Hoje, veste-se de nova roupagem, trabalhando na Ernst&Young (EY), onde não hesita em promover eventos com a imprensa e com figuras que antes bajulava nas páginas do jornal, como sucedeu ainda esta semana com Gouveia e Melo.
E-mail de Mafalda Anjos de Julho de 2023 no seguimento das primeira notícias do PÁGINA UM, há mais de um ano, sobre a desastrosa situação financeira da Trust in News, muito antes da sua oficial ‘implosão’.
Esta reciclagem de protagonistas, entre a imprensa e os negócios, é o reflexo de um ecossistema podre, onde interesses cruzados e falta de escrutínio corroem a base de um jornalismo independente.
Os jornalistas nas redacções – que hoje são as principais vítimas em ‘parceria’ com os leitores que cresceram confiando na imprensa e hoje se sentem desiludidos –, em vez de lamentarem a perda dos empregos, o seu e o dos seus camaradas de profissão, devem sim reflectir sobre o verdadeiro papel das direcções editoriais na crise da imprensa portuguesa.
A democracia precisa de jornalismo destemido, rigoroso e credível, mas esse jornalismo só pode nascer de redacções lideradas por profissionais verdadeiramente comprometidos com a verdade e a ética. Enquanto as redacções se mantiverem reféns de directores mais interessados na autopromoção e em carreiras políticas ou empresariais, o futuro da imprensa continuará hipotecado.
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Os testemunhos sobre guerras configuram um estilo literário singular, situado na confluência entre a História e a literatura, e ainda por vezes o jornalismo. Este género caracteriza-se por apresentar narrativas pessoais, frequentemente na primeira pessoa, que procuram documentar eventos marcantes de conflitos armados, oferecendo perspectivas humanas e íntimas sobre acontecimentos de dimensão colectiva. Estes textos transcendem muitas vezes o mero relato de factos, explorando as emoções, os dilemas éticos e os traumas vividos pelas pessoas comuns, soldados, vítimas civis ou até líderes políticos.
Historicamente, os testemunhos de guerras têm servido como fontes primárias de valor inestimável para historiadores e leitores interessados nos conflitos que moldaram o mundo. No século XX, por exemplo, obras como o ‘Diário de Anne Frank’, que documenta o terror vivido durante a perseguição aos judeus na Segunda Guerra Mundial, tornaram-se ícones universais deste género. Outro exemplo é ‘Se isto é um homem’, de Primo Levi, que descreve com uma linguagem crua e profundamente reflexiva a sua experiência como prisioneiro em Auschwitz. Estes testemunhos não apenas relatam os factos, mas também humanizam as estatísticas de guerra, trazendo para o primeiro plano as vidas que se perderam ou foram irrevogavelmente alteradas.
A literatura testemunhal de guerra em Portugal também tem os seus expoentes. Durante a Primeira Guerra Mundial ficou o testemunho de Jaime Cortesão, com o seu ‘Memórias da Grande Guerra’, como médico voluntário do Corpo Expedicionário, ou ainda ‘Nas trincheiras da Flandres’ e ‘Calvários da Flandres’, de Augusto Casimiro. Na Guerra Colonial (1961-1974), o último conflito militar com participação portuguesa, abundam os relatos, mas nem sempre com grande divulgação. Talvez o mais marcante seja ‘D’este viver aqui neste papel descripto’, compilação de cartas que o médico e escritor António Lobo Antunes escreveu à família durante a sua estadia em Angola. Estas cartas oferecem uma visão mais pessoal e directa do impacto emocional da guerra, complementando os seus romances.
Podendo inserir-se neste género, o livro ‘Aventuras de um alferes em Angola’, que retrata a experiência de Pedro Beltrão, gestor e escritor – autor, por exemplo, dos romances do género histórico ‘Tempo de esperança’ e ‘O mordomo do rei’ -, em Angola entre 1963 e 1967, acaba por ser mesmo mais um livro de ‘aventuras’ do que um livro sobre a guerra, porque, ao longo das suas 190 páginas, há pouco de conflito (uns tiros e umas desmontagens de minas), e quando relatado, se faz sem grande emoção ou detalhe.
Já no caso das ‘aventuras’, estas vão-se sucedendo ao longo do livro, ao ponto de o macaquinho Felício, que Pedro Beltrão comprou a um soba e chegou a trazer para Portugal no fim da comissão, se tornar mesmo um quase-protagonista, ou o ponto mais interessante.
De leitura fácil, e num relato escorreito e bem escrito, o livro de Pedro Beltrão pode também servir como documento sobre um conflito que, pelo menos em Angola, aparenta não ter sido, pelo menos na zona onde Pedro Beltrão esteve, tão traumatizante. Mas, convenhamos, que lhe falta profundidade e substância. Grande história, sim, mesmo se ficcionada, daria a vida do macaquinho Felício que, depois de uma rocambolesca fuga na Estrada da Luz, acabou doado a um sanatório da Parede, onde foi mascote dos doentes durante muito tempo, mas sem que alguém lhe tenha dado testemunho. Essa sim seria uma grande história, a atender à ‘personalidade do bicho’ apenas aflorada por Pedro Beltrão nas suas ‘aventuras’ como alferes.
A recente edição portuguesa de ‘Viagem a Pé’, pela Tinta da China, é uma oportunidade de ouro para revisitar um dos nomes maiores da literatura catalã, Josep Pla (1897-1981), escritor prolífico e cronista perspicaz, conhecido pela sua capacidade em capturar o quotidiano com uma prosa simples, mas profundamente poética. Por isso mesmo, e pela quantidade assinalável de obras neste género, é considerado um dos mestres europeus da literatura de viagem.
Esta obra em concreto, que inicialmente se diluía no vasto universo de textos deste autor, foi publicada apenas em 1949, e mais do que um relato de itinerância, é um exercício de contemplação.
‘Viagem a Pé’ reporta ao passado do autor, abordando uma caminhada do jovem Pla, ainda estudante de Direito, pelas paisagens da Baixa Empordà, sua terra natal. A Catalunha rural dos anos 1910, com as suas quintas, aldeias e gentes simples, é o pano de fundo da sua narrativa, num período de tensões políticas em Espanha, mas também de relativa estagnação económica em regiões rurais. Contudo, na viagem de Pla, não há espaço para discursos épicos sobre nações ou progresso; há apenas a terra, o céu, o vento e conversa
No contexto da literatura de viagem, ‘Viagem a Pé’ não segue os moldes do aventureirismo em busca de espectáculo ou surpresas. Não há destinos exóticos nem episódios grandiosos. É, antes, um registo íntimo e descontraído, onde o acto de caminhar é uma forma de introspecção e de ligação à terra. Aliás, Pla tenta recuperar uma tradição literária que remonta ao filósofo Jean-Jacques Rousseau ou ao escritor Robert Louis Stevenson, para quem a caminhada não seria apenas um meio de locomoção, mas um exercício filosófico.
Nesta breve narrativa, Josep Pla oferece-nos assim uma janela para a paisagem catalã e, sobretudo, para os seus habitantes. O leitor caminha ao lado do narrador, sente o cheiro das pastagens, ouve o silêncio das estradas poeirentas e percebe a dureza (e beleza) de uma vida simples. As descrições são feitas num estilo curto mas preciso, através de uma prosa despretensiosa que, por vezes, se assemelha a um diário. A obra destaca-se sobretudo pela capacidade de transformar o vulgar em arte, e por oferecer uma experiência literária onde o ritmo da leitura se confunde com o compasso da caminhada.
Apesar de uma meteorologia favorável e de um programa massivo de imunização contra o vírus sincicial respiratório (VSR), o mês de Novembro confirmou uma tendência de crescimento dos óbitos de crianças com menos de um ano de idade em Portugal. O PÁGINA UM analisou os dados do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), contabilizando já 240 mortes de bebés entre Janeiro e Novembro deste ano, superando assim os números registados em todos os meses de 2020, 2021, 2022 e 2023. Os valores deste ano, que previsivelmente se aproximarão dos 260 óbitos, ainda não são alarmantes à escala mundial, mas depois de vários anos com taxa de mortalidade abaixo dos três óbitos por mil nascimentos, observa-se uma inversão, e Portugal deverá superar de novo aquela fasquia em 2024.
Ainda decorre 2024, mas já há uma infeliz garantia: este será o pior ano do último quinquénio em termos de mortalidade infantil. De acordo com a análise do PÁGINA UM aos dados do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), entre Janeiro e Novembro deste ano já perderam a vida 240 bebés com menos de um ano, sendo expectável que seja ultrapassa com o corrente mês de Dezembro a fasquia das 250 mortes, algo que não sucedia desde 2019, quando então perderam a vida 264 recém-nascidos que não completaram os 365 dias.
Apesar deste valor não ser anormalmente elevado à escalda mundial – pelo contrário, Portugal continuará a ser um dos países mundiais com mais baixa taxa de mortalidade infantil, pouco acima dos dois óbitos por mil nascimentos –, os números de 2024 quebram claramente uma tendência, que ‘puxava’ as mortes de bebés para baixo das 200. No ano de 2020, os óbitos de bebés tinham atingido os 214, então o valor histórico mais reduzido.
No ano seguinte ainda baixou mais para um valor inédito (195) abaixo dos 200. Contudo, estes foram anos anormalmente baixos em termos de nascimentos, por via do menor número de gravidezes concluídos como consequência da incerteza criada pela gestão da pandemia. Em 2022, o valor aumentaria para os 233, reduzindo para 219 no ano passado.
Apesar do número de óbitos mais elevado do que nos quatro anos anteriores, o ano de 2024 não apresenta nenhum mês claramente atípico, ou seja, com uma mortalidade acima dos 30 para os menores de um ano, apesar do se ter aproximado dessa fasquia em Março (27) e em Novembro (26). Recorde-se que a partir de 15 de Outubro começou um programa de imunização massiva contra o vírus sincicial respiratório (VSR). A mortalidade causada por este vírus sempre foi residual ou mesmo nula em Portugal. Aliás, o PÁGINA UM já perguntou várias vezes, sempre sem resposta, ao Ministério da Saúde o número de óbitos causados por VSR, mas sempre sem resposta. Contudo, se o valor não é de zero, estará próximo.
Com a melhoria das condições de vida, de acompanhamento médicos e de terapêuticas, a mortalidade infantil tem-se mantido relativamente estável, embora o valor de 2024 possa marcar uma inversão. Na última década, os meses de Verão (Junho, Julho e Agosto) tendiam a apresentar valores ligeiramente mais baixos de mortalidade infantil na maioria dos anos, observando-se aumentos moderados, em alguns anos, no Outono, especialmente em Outubro e Novembro.
Evolução da mortalidade por ano entre 2014 e 2024 (até Novembro). Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM. Evolução da mortalidade infantil por mês entre Janeiro de 2014 e Novembro de 2024. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.
Apesar deste aumento da mortalidade infantil em 2024, este tem sido um indicador de saúde que, além da questão humanitária, revela uma extraordinária evolução civilizacional. Há um século, um em cada quatro bebés não chegava em Portugal ao final de um ano de vida e a esmagadora maioria morria mesmo com menos de dois meses de idade. Uma época não assim tão longínqua em que o natural era os pais enterrarem os filhos.
Há pouco mais meio século, o Estado Novo deixou uma situação um pouco melhor, mas ainda na cauda da Europa, com cinco em cada 100 recém-nascidos a falecerem antes dos 12 meses. A partir daí, as evoluções tecnológicas, as artes da Medicina e o desenvolvimento económico têm alcançado sucessos dignos, neste caso, de Primeiro Mundo. Ainda mais quando a margem de melhoria é agora bastante estreita face aos valores já muitíssimo baixos.
O ano de 2023, como o PÁGINA UM salientou em Maio passado, ainda trouxe motivos de festejo. De acordo com dados revelados pelo Instituto Nacional de Estatística, a mortalidade infantil no sexo feminino – que sempre foi mais baixa do que a registada em meninos – foi de apenas 2,07 por cada mil crianças nascidas, o valor mais baixo de sempre. Este dado representou então uma descida ligeira face aos 2,43 em cada mil registados em 2022.
No caso das crianças do sexo masculino, a taxa de mortalidade infantil situou-se no ano de 2023 em 2,81, um ligeiro agravamento face aos 2,80 registados no ano anterior. O valor mais baixo de mortalidade infantil masculina observou-se em 2020 com 2,49 óbitos em cada mil. Apesar da situação favorável nas meninas, a taxa de mortalidade infantil global fixou-se em 2,45, ligeiramente acima do mínimo histórico de 2,43 observado em 2021.
Sendo expectável uma ligeira redução no número de nascimentos em 2024 – deverá ficar pouco acima dos 84 mil, contratando com os 85.764 do ano passado –, a taxa de mortalidade infantil em redor dos três óbitos por mil nascimentos, o que a confirmar-se será o valor mais elevado desde 2018.
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Os tempos mudaram, e a revista da apresentadora da TVI, que em Janeiro de 2020 confiava vir a ter hipóteses de um dia se candidatar à Presidência da República, está em vias de fechar as portas. O PÁGINA UM analisou as contas da empresa de Cristina Ferreira que gere a sua revista, a Treze7, e não há outra solução se não fechar portas. Há pelo menos uma boa notícia: ao contrário de outros grupos de media, a empresa não tem dívidas ao Estado. Pelo menos até ao final de 2023.
Na edição deste mês da revista ‘Cristina’, a taróloga Joana Dias anunciava um artigo sugestivamente intitulado “Como sobreviver ao mês de Novembro!” Por ironia, ou sinais dos tempos, será a própria revista fundada pela apresentadora Cristina Ferreira que não vai sobreviver ao final do ano. O anúncio ainda não é oficial, mas tem sido especulado o fim da revista de uma das apresentadoras mais mediáticas do país, que ainda há cerca de cinco anos colocava a hipótese de se candidatar à Presidência da República, mas que agora aparente ser uma estrela cadente em declínio.
Seja como for, a análise da situação financeira feita pelo PÁGINA UM aos últimos anos à empresa Treze7, detida pela apresentadora da TVI, não deixa margem de manobra: 2024 deverá terminar em falência técnica, ou seja, com capitais próprios negativos. Se quisesse continuar, teria de haver uma forte injecção de capitais.
Mesmo apesar da publicidade feita em plenos programas da TVI, a revista. Foto: DR
Recorde-se que Cristina Ferreira é ainda sócia maioritária da empresa Amor Ponto, envolvida num litígio com a SIC, e que viu há uma semana o Tribunal de Sintra penhorar as suas contas. A decisão decorreu após uma iniciativa do Grupo Impresa após uma notícia do PÁGINA UM em Junho passado que revelou que a apresentadora da TVI andava a descapitalizar a empresa, tendo desviado 2,2 milhões de euros em dividendos porque não constituíra uma provisão para assegurar o pagamento da indemnização à SIC caso perdesse, como perdeu, o caso em tribunal.
Ora, a situação financeira da empresa Treze7 é distinta, e deve-se exclusivamente à perda de élan da revista em consequência de um menor brilho da imagem da apresentadora. Criada em Março de 2015, a revista mensal Cristina tinha Oprah Winfrey como modelo, e de facto, à escala portuguesa, registou número de vendas muitíssimo interessantes. O primeiro número atingiu, de acordo com os dados da Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação (APCT), uns impressionantes 112.058 exemplares vendidos. Nos meses seguintes, os números decaíram, mas mesmo assim no quarto trimestre a revista atingiu vendas médias de mais de 53 mil exemplares. As vendas no ano seguinte foram variando, por trimestre, com números médios entre os 35 mil e os 55 mil exemplares. Neste período, Cristina Ferreira tinha uma produtora, a Masemba, que editava a sua revista, mas as relações negociais deterioraram-se e acabaram em tribunal.
E foi em Janeiro de 2017 que Cristina Ferreira criaria a sua própria editora, concedendo uma quota simbólica de 1% à sua mãe, Maria Filomena Jorge. Apesar de ter deixado de auditar as vendas na APCT, os primeiros três anos da Treze7 não correm demasiado mal, com receitas totais sempre acima de um milhão de euros, mas com resultados líquidos, embora positivos, sempre a descer: em 2017 ainda foram de quase 184 mil euros, desceram para os cerca de 164 mil euros no ano seguintes, e quedaram-se nos 70.820 euros em 2019.
Foto: DR
No primeiro ano da pandemia, em 2020, as receitas quebraram 34% face ao ano anterior, mas mesmo assim as contas ainda ficaram no ‘verde’ com um lucro de um pouco mais de 35 mil euros. Porém, a partir daí somaram-se prejuízos consideráveis para a dimensão da empresa com as vendas da revista e a publicidade (e outras prestações de serviços) a despencarem. De acordo com as demonstrações de resultados analisados pelo PÁGINA UM ao último triénio da Treze7, mostra-se expectável que 2024 esgote o capital próprio positivo de quase 470 mil euros que Cristina Ferreira ainda detinha nesta sua empresa em 2020.
Com efeito, em 2021, as receitas da Treze7 nem sequer chegaram ao meio milhão de euros, resultando assim no primeiro ano de prejuízos de quase 230 mil euros. Embora não existam indicações de números de exemplares da revista Cristina adquiridos por leitores, o montante das vendas rondou apenas 267 mil euros ao longo de todo o ano, o que significa, ao preço de capa, cerca de seis mil exemplares em média por edição mensal.
Os números do ano seguinte não foram melhores; pelo contrário. O ano de 2022 contabilizou mais 273.676 euros de prejuízo, apesar de no Portal da Transparência dos Media este valor surgir, equivocadamente, positivo. Não se poderia esperar outra coisa com rendimentos totais de cerca de 465 mil euros, dos quais um pouco menos de 208 mil euros de vendas de revistas. Com o preço de venda ao público (PVP) de 3,70 euros, a revista Cristina terá vendido, em média, apenas cerca de 5.600 exemplares por mês.
O ano de 2023 ainda viu os rendimentos totais subirem para os 665 mil euros, mas não trouxeram melhorias nos resultados líquidos. Pelo terceiro anos consecutivo, a Treze7 contabilizou prejuízos, sendo que no ano passado ficaram na casa dos 265 mil euros. Ou seja, em apenas um triénio, os prejuízos acumulados atingiram a cifra de quase 770 mi euros. Pior ainda, as vendas das revistas anunciavam números deploráveis, com receitas de apenas 129.339 euros, sendo que a parte restante dos rendimentos referiram-se a prestações de serviços. Deste modo, a revista Cristina terá vendido menos de 2.800 exemplares por mês ao longo do ano passado.
Revista serviu como âncora de diversos projectos de marketing de Cristina Ferreira.
Os números deste ano não estão apurados, nem Cristina Ferreira deu qualquer esclarecimento ao PÁGINA UM, mas não será de surpreendente se os 214.803 euros que ainda restavam de capital próprio no final de 2023 tenham sido ‘comidos’ completamente por mais prejuízos. Isto significa que a revista terá dado um prejuízo acumulado em quatro anos de cerca de um milhão de euros, apesar das contas, até 2023, estarem ainda sustentáveis. Ou seja, Cristina Ferreira não tinha dívidas bancárias nem devia valores relevantes ao Estado.
Ontem, o Correio da Manhã adiantou que em Dezembro sairá, previsivelmente, a última revista Cristina, havendo ainda uma edição especial em Janeiro, com destaque para as capas, protagonistas e entrevistas. E acrescenta ainda a hipótese de se manter a versão digital. Apesar de Cristina Ferreira ter chegado, em Março deste ano, que trabalhavam diariamente 20 pessoas na produção da revista, na verdade os relatórios da Infomação Empresarial Simplificada (IES) apontam apenas sete trabalhadores com salários médios líquidos de um pouco mais de 2.000 euros.
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Quase três em cada 10 partos de nados-vivos no ano passado foram de mães com naturalidade estrangeira, mas um ‘olhar’ mais fino, realizado pelo PÁGINA UM a partir dos dados do Instituto Nacional de Estatística, revela que já há concelhos de grande dimensão onde esse peso é maioritário. Nos municípios de Sintra, Amadora e Odivelas, a maioria dos nascimentos registados em 2023 teve, como mães, mulheres naturais de países estrangeiros. É a primeira vez que tal sucede em concelhos que estão no top 10 dos mais fecundos. Este fenómeno tem vindo reforçar-se sobretudo nos últimos três anos, e com especial prevalência na Grande Lisboa e no Algarve. Na região Norte, no Alentejo interior e nas regiões autónomas o peso de nascimentos provenientes de mães ‘estrangeiras’ mantém-se ainda bastante baixo.
Uma realidade inédita em Portugal. No ano passado, os municípios de Sintra, Amadora e Odivelas – três dos concelhos que se encontram no top 10 dos mais fecundos do país – contabilizaram mais recém-nascidos cujas mães são de naturalidade estrangeira do que de naturalidade portuguesa. Além destes três municípios, também em Odemira, no Alentejo Litoral, e nos concelhos algarvios de Aljezur e Albufeira se registaram mais bebés de ‘mães estrangeiras’ (no sentido estrito de naturalidade, uma vez que podem ter adquirido a nacionalidade portuguesa). Esta é uma análise do PÁGINA UM aos dados históricos, desde 2011, divulgados pelo Instituto Nacional de Estatísticas (INE), sendo que a informação por município relativa ao ano de 2023 foi disponibilizada no final da passada semana.
Embora entre 2011 e 2019 se tenha observado esporadicamente concelhos pequenos com uma percentagem superior a 50% de bebés nascidos de mães naturais do estrangeiro – como em Porto Moniz, em 2015 e 2019, e no Corvo, em 2017 –, somente em 2020 surgiram mais casos em municípios de média dimensão. Por exemplo, em 2020 os municípios de Albufeira, Odemira e Aljezur tiveram mais bebés de mães ‘estrangeiras’ do que de mães ‘portuguesas’. Os dois últimos concelhos repetiriam a partir desse ano essa característica, que confirma os efeitos da imigração de população em idade fecunda, e em 2022 até tiveram a companhia novamente de Albufeira e também de Pedrógão Grande e também dos ‘pequenos’ Porto Moniz e Corvo.
Contudo, no ano passado, juntaram-se a este ‘clube’ concelhos de grande dimensão: Sintra (52,1% de nascimentos de ‘mães estrangeiras’), o segundo do país com mais nascimentos em termos absolutos (apenas atrás de Lisboa); Amadora (56,2%), que está na quinta posição, e ainda Odivelas (50,6%), que é o oitavo. No entanto, em termos percentuais, Aljezur foi em 2023 o município de Portugal com o maior fluxo de nascimentos de mães naturais de país estrangeiros com 64,6% do total, seguindo-se Odemira (63,3%) e Albufeira (63,0%).
Em concreto, no concelho da Amadora nasceram mais 249 crianças de mãe não-autóctone em comparação com bebés de mães naturais de Portugal (1.135 vs. 886), enquanto em Sintra a diferença foi de 186 (2.267 vs. 2.081) e em Albufeira foi de 139 (337 vs. 198). Nos outros três concelhos, a diferença absoluta foi mais pequena: em Odemira de 73 (174 vs. 101), em Odivelas apenas de 20 (921 vs. 901) e em Aljezur de 19 (42 vs. 23).
O surgimento de mais nascimentos de crianças de mães ‘estrangeiras’ decorre do aumento da imigração, que tem registado crescimentos significativos nos últimos anos, sobretudo na Área Metropolitana de Lisboa. Entre 2011 e 2018, a percentagem de nascimentos provenientes de mães de naturalidade estrangeiras variou entre 16% e 19%, tendo atingido os 20% em 2019, ou seja, um em cada cinco nascimentos. Mas em 2022 e 2023 houve saltos significativos, que justificam que o saldo natural em Portugal seja agora positivo. Os municípios da Grande Lisboa e Península de Setúbal concentraram, em 2023, 51,6% dos nascimentos de bebés cujas mães tinham naturalidade de países estrangeiros.
Nascimentos (números absolutos no topo das colunas) nos 10 municípios mais fecundos em 2023 e repartição em função da naturalidade da mãe. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.
Em 2022, no território nacional, contabilizaram-se 20.464 bebés nascidos de mães com naturalidade estrangeira, representando já 24,5%, e no ano passado subiu para 25.034 nascimentos, significando 29,2% do total. Em apenas dois anos, entre 2021 e 2023, o número de recém-nascidos de mães não-autóctones aumentou quase em oito mil, com o peso relativo a crescer 7,7 pontos percentuais. Se se considerar o ano base de 2014, ou seja, a última década, os partos de nados-vivos com mães de naturalidade estrangeira cresceram 85%. passando de 13.549 para 25.034.
A Grande Lisboa, englobando a Área Metropolitana de Lisboa e a Península de Setúbal, foi, sem dúvida, o grande contribuidor. Se bem que o peso relativo de nascimentos de mães ‘estrangeiras’ tenha sido, entre 2011 e 2017, sempre bem acima da média nacional, somente em 2018 ultrapassou os 30%, mas em 2022 já atingiu os 37,5%, ultrapassando mesmo dos 44% no ano passado. Por exemplo, no município de Lisboa, em 2023 contabilizaram-se 2.270 nascimentos de mães ‘estrangeiras’ e 3.776 de mães de naturalidade portuguesa, ou seja, 40,2% do total dos recém-nascidos vieram ao mundo de mães não-autóctones.
Mas além de Lisboa e dos seis municípios já destacados (Aljezur, Odemira, Albufeira, Amadora, Sintra e Odivelas), encontra-se mais 18 concelhos que ultrapassam a fasquia dos 40%: Lagos (49,6%), Barreiro (48,8%), Vila do Bispo (48,1%), Seixal (46,9%), Monção (46,2%), Loulé (45,7%), Moita (45,0%), Loures (44,8%), Portimão (44,0%), Almada (43,7%), Valença (42,9%), Entroncamento (42,9%), Cascais (42,8%), Montijo (42,1%), Penela (41,7%), Vila Velha de Ródão (41,2%), Tavira (40,6%), Rio Maior (40,3%).
O fenómeno do aumento da prevalência dos nascimentos provenientes de mães não-autóctones não tem sido homogéneo, subsistindo ainda grandes diferenças regionais, e espelhando distintas dinâmicas económicas, sociais e demográficas. Enquanto a Área Metropolitana de Lisboa, a Península de Setúbal e o Algarve registam percentagens elevadas de mães de naturalidade ‘estrangeira’, outras regiões, sobretudo, a Norte e nas regiões autónomas apresentam um peso muito mais baixo.
Número de nascimento de bebés em 2023 por região provenientes de mãe com naturalidade portuguesa (barras azuis) e com naturalidade estrangeira (barras verdes), marcando a proporção percentual. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.
Com efeito, na região Norte, nenhuma das sub-regiões ultrapassa os 25% de bebés nascidos de mães ‘estrangeiras’, sendo esta percentagem particularmente baixa no Tâmega e Sousa (7,1%) e no Ave (13,7%). No entanto, como acima referido, destacam-se os valores elevados de Monção e Valença, devido à vizinhança com a Galiza. Estes valores heterogéneos reforçam o perfil mais homogéneo destas áreas, onde predominam mães de naturalidade portuguesa. Outras sub-regiões do Norte, como o Cávado (20,6%) e a Área Metropolitana do Porto (18,3%), situam-se ligeiramente acima dos valores mais baixos da região, mas ainda distantes de outras partes do país com maior diversidade.
Aliás, de entre os 10 concelhos portugueses com mais nascimentos em 2023, os dois da região Norte (Vila Nova de Gaia e Porto), estão abaixo da média nacional no que diz repito à mães não-autóctones, com 21,1% e 28,7%, respectivamente, ou seja, abaixo média nacional. Os restantes oito concelhos, todos da Grande Lisboa, tiveram valores acima dos 40%, com Sintra, Amadora e Odivelas acima dos 50%, como já salientado.
No Centro, a percentagem de bebés nascidos de mães de naturalidade ‘estrangeira’ foi já mais elevada no ano passado em comparação ao Norte, embora permaneça ainda moderada. Com exceção das Beiras e Serra da Estrela (17,9%), todas as sub-regiões apresentaram valores entre 20% e 30%. O destaque vai para a Região de Leiria, que regista o maior valor da região Centro, com 29,8%, um pouco acima da média nacional.
As regiões que concentram os valores mais elevados de nascimentos provenientes de mães estrangeiras são a Área Metropolitana de Lisboa (44,5%), a Península de Setúbal (41,4%) e o Algarve (42,2%). Estas três áreas, que lideram a tabela nacional, são destinos preferenciais para comunidades migrantes, quer pelo dinamismo económico, quer pela oferta de emprego em sectores como turismo, construção civil e serviços. Estes números confirmam o papel fundamental da imigração para a renovação populacional nestas regiões.
No Alentejo, os valores são, em geral, bastante baixos, com três das quatro sub-regiões a registarem percentagens inferiores a 20%. No Alto Alentejo, apenas 13,3% dos bebés nasceram de mães estrangeiras, enquanto no Alentejo Central o valor é de 18,5%. O Baixo Alentejo também se situa em patamares modestos, com 16,3%.
A excepção notável é o Alentejo Litoral, onde a percentagem sobe para 25,9%, fruto da relevância crescente da imigração laboral, sobretudo em atividades agrícolas, ao longo da última década. O concelho de Odemira é o principal responsável: no ano passado, apenas 101 dos 275 bebés naturais daquele concelho nasceram de mães de naturalidade portuguesa.
As regiões autónomas ilustram um cenário demográfico peculiar. Os Açores são, aliás, a região com menor peso de bebés nascidos de mães ‘estrangeiras’, registando apenas 5,1% do total, enquanto na Madeira se cifrou nos 19,2%, um valor significativamente abaixo da média nacional.
Evolução do número de recém-nascidos em Portugal desde 2011 cujas mães tinham naturalidade estrangeira e percentagem em relação ao total. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.
Estes dados reforçam que as disparidades na naturalidade das mães são uma manifestação clara das dinâmicas económicas e sociais de cada região. Se os municípios dos distritos de Lisboa, Setúbal (sobretudo a norte do Sado) e Faro evidenciam o impacto direto da imigração na estrutura demográfica, observa-se noutras, como o Norte interior e os Açores, perfis populacionais mais tradicionais, com menor diversidade nas origens das mães.
Esta geografia da maternidade, saliente-se, não permite aferir a nacionalidade das mães nem a naturalidade ou a nacionalidade dos pais, pelo que não se mostra possível retirar quaisquer conclusões sobre graus de miscigenação ou sobre a composição multicultural das famílias. Além disso, a ausência de dados sobre a origem dos pais limita a compreensão das dinâmicas familiares em termos de mobilidade e integração social, restringindo a análise a uma perspectiva exclusivamente centrada nas mães.
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Mudou o Governo, mas os negócios entre a empresa francesa Samsic e a Autoridade Tributária e Aduaneira continuam de pedra e cal. Este mês entrou em vigor mais um ajuste directo, o 21º desde 2017, para limpeza das instalações da ‘máquina fiscal’, sempre com o argumento da “urgência imperiosa resultantes de acontecimentos imprevisíveis”, que já dura há sete anos. Durante o Governo Costa, os contratos de ‘mão-beijadas’ eram suportados por despachos do Ministério das Finanças, mas o último justificava a escolha sem concorrência da Samsic, só até ao final do primeiro semestre deste ano. Aparentemente, a limpeza continuou mesmo sem contrato entre os meses de Julho e Outubro. E surgiu agora, caído do céu, mais um ajuste directo por mais um mês. O Ministério de Miranda Sarmento não dá explicações sobre um negócio que desde 2021 deu 11,4 milhões de euros à empresa francesa, ‘sem espinhas’, ou seja, sem concorrência.
Desde 2017, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) anda a contratar sempre a mesma empresa de limpeza, a Samsic, através de ajustes directos justificados por alegada “urgência imperiosa” e ‘escoltados’ em despachos do Ministério das Finanças. Já são 21 ajutes directos sucessivos, usando um subterfúgio legal no Código dos Contratos Públicos, mas que se torna ilegal quando usado de forma abusiva.
A prática de contratualizar serviços de limpeza só à Samsic sem qualquer concurso público surgiu durante o Governo de António Costa, mas está a prolongar-se com o Governo de Luís Montenegro, uma vez que foi assinado pelo menos mais um ajuste directo este semestre. Com capitais franceses, a Samsic soma já 25 contratos para limpar as instalações da ‘máquina fiscal’, sendo que os últimos 21 foram por ajuste directo, sem qualquer possibilidade de apresentação de propostas por outros candidatos. Os serviços de limpeza, a par da segurança e do fornecimentos de refeições, é um dos sectores onde a prática abusiva de contratos de ‘mão-beijada’ se tem vindo a generalizar, ano após anos, de uma forma arbitrária e potencialmente ilegal, nas ‘barbas’ do Tribunal de Contas.
Apesar de ser um serviço programável – e onde os concursos públicos fazem todo o sentido, por uma questão do melhor preço e qualidade –, apenas dois contratos, desde 2016, não foram realizados por ajuste directo, tendo sido abrangidos por um acordo-quadro. E grande parte dos contratos entre a Autoridade Tributária e a Samsic foram celebrados no decurso do período de vigência, que normalmente são trimestrais, mas podem abranger outras durações sem se perceber os motivos. O mais recente, por exemplo, no valor de cerca de 350 mil euros (sem IVA), é uma excepção: foi assinado em 30 de Outubro e vigora durante o actual mês de Novembro.
Contudo, o ajuste directo anterior a este, que consta no Portal Base, no valor de um pouco mais de dois milhões de euros, foi assinado apenas em Abril deste ano, apesar da sua vigência se aplicar a todo o primeiro semestre (Janeiro a Junho de 2024). Não existe no Portal Base ainda qualquer referência à prestação de serviços de limpeza referentes aos meses de Julho, Agosto, Setembro e Outubro – ou seja, quatro meses. O valor deste período ‘esquecido’ deve ascender aos 1,4 milhões de euros.
Conforme o PÁGINA UM já havia atestado em Outubro do ano passado, quase todos os contratos têm contornos estranhos, havendo mesmo sinais de fraude. Com efeito, em diversos contratos existrem evidências de os preços terem sido inflacionados para compensar a inexistência de suporte contratual em períodos anteriores. Um desses contratos teve uma duração de apenas 13 dias, porque só foi assinado no dia 19 de Março de 2019 e expirava no dia 31 desse mês, e envolveu um pagamento de 648.402 euros, significando assim que, formalmente, em cada um dos poucos dias deste contrato de limpeza a Autoridade Tributária pagou 49.877 euros à Samsic. No mês seguinte, em Abril, entraria em vigor um novo contrato por ajuste directo, que durou 275 dias, até ao final do ano. Como teve um preço contratual de 1.984.242,74 euros, significa que por dia custou 7.215 euros, bem demonstrativo de que o contrato de Março de 2019 foi forjado para ter um preço médio mais de sete vezes superior.
Helena Borges, directora-geral da AT, e Cláudia Reis Duarte, secretária de Estado dos Assuntos Fiscais. O Ministério das Finanças do actual Governo não diz se manterá prática que ajustes directos sempre com a Samsic.
Todos os ajustes directos desde 2016 têm sido assinados pelo subdirector Roda Inácio, nomeado pela então ministra social-democrata Maria Luís Albuquerque, actual comissária europeia. Em alguns contratos inseridos no Portal Base, o seu nome está indevidamente rasurado alegadamente por causa do Regulamento Geral da Protecção de Dados.
O uso de tantos despachos governamentais para justificar a entrega de ‘mão-beijada’ de contratos sempre à mesma empresa, e alegando sempre “urgência imperiosa”, não é uma prática comum e a sua legalidade é bastante questionável. Através destes despachos, o Governo Costa autorizou, entre 2021 e 2024, a aquisição de serviços de limpeza à Samsic no valor total de 9.115.734,10 euros (11,2 milhões de euros com IVA), fundamentados num alegado critério material decorrente de supostos “motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis” pela AT. Mas isso somente pode servir de argumento se for “na medida do estritamente necessário” e, em simultâneo, “as circunstâncias invocadas não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”, ou seja, neste caso, à AT.
O PÁGINA UM consultou advogados especializados em contratação pública que referiram que a urgência imperiosa exige que a situação seja comprovadamente imprevisível, inevitável, e que não permita respeitar os prazos dos procedimentos concorrenciais habituais, pelo que a contratação repetitiva ao longo de vários anos, usando este expediente, contradiz o espírito da lei, que pressupõe que as entidades públicas planeiem os seus procedimentos de forma a evitar ajustes diretos sistemáticos.
Nélson Roda Inácio, à esquerda (cumprimentando em 2016 o então presidente da autarquia de Pombal) foi nomeado subdirector-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira em 2015, tendo assinado todos os ajustes directos com a Samsic.
Além disso, nos casos em apreço, estamos perante a prestação de serviços de limpeza que constitui uma necessidade contínua e previsível. A renovação anual ou trimestral com o mesmo fornecedor, alegando urgência, demonstra assim ou uma incompreensível falta de planeamento ou uma estratégia deliberada para contornar os procedimentos normais de contratação pública, nomeadamente concursos públicos ou limitados por prévia qualificação. A renovação sucessiva com a mesma empresa cria também um ambiente de favorecimento e reduz a transparência e a concorrência, violando princípios fundamentais do Código dos Contratos Públicos.
O PÁGINA UM contactou o Ministério das Finanças para obter esclarecimentos adicionais sobre estes sucessivos ajustes directos, incluindo a razão pela qual nem sequer consta ainda no Portal Base a sustentação legal para os serviços de limpeza entre Julho e Outubro deste ano. De igual modo, procurou-se saber se o Ministério agora liderado pelo social-democrata Miranda Sarmento também usou despachos de algum secretário de Estado para ‘abrigar’ a continuação dos ajustes directos. Não houve resposta. Nem se sabe também qual o motivo para um concurso público para serviços de limpeza da AT, promovido pela Unidade Ministerial de Compras do Ministério das Finanças anda a ‘vegetar’ desde 2022.
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