Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Velho é o Eddie the Head

    Velho é o Eddie the Head

    Na adolescência, quando os “tops” musicais ainda se viam e ouviam uma vez por semana na televisão pública, quando as rádios tinham medo do volume das guitarras e o acesso à música era mediado pelos LPs que os irmãos mais velhos conseguiam comprar com o pouco dinheiro que havia, era raro descobrir bandas fora do radar comercial.

    O meu irmão mais velho tinha os seus altares bem definidos — Genesis, Pink Floyd e Yes — e era nessa maré sinfónica que eu, já na juventude adulta, mergulhava com gosto e algum deslumbramento. Mas um meu outro irmão, esse, era devoto de outro culto: Iron Maiden. Teria eu doze ou treze anos quando chegou a casa com The Number of the Beast. Não era apenas o som. Era a capa. Era o bicho. Era o Eddie the Head. E foi, confesso, amor ao primeiro susto.

    Vieram depois outros discos, alguns com o vocalista Paul Di’Anno — antes da entrada meteórica de Bruce Dickinson — e muitos com capas tão aterradoras quanto fascinantes. Foi também nessa fase que aprendi os nomes dos músicos como quem decora santos de um altar profano: Dave Murray, o mais carismático com aquela cabeleira luminosa; Steve Harris, o comandante; Clive Burr, baterista expulso por causas tão comuns quanto trágicas no rock de então; Dennis Stratton, guitarrista de carreira breve; e Paul Di’Anno, voz crua e desregrada. Alguns já mortos. Todos, eternos.

    A minha separação dos Iron Maiden aconteceu por volta de Seventh Son of a Seventh Son, disco de 1988. A vida levava-me para outras sonoridades e os Maiden foram ficando, como ídolos guardados numa estante. Depois, era só o acaso de uma faixa no Spotify, de um vídeo no YouTube — e a constatação, sempre renovada, de que o heavy metal, bem feito, ainda me dizia qualquer coisa.

    O concerto de ontem, no MEO Arena, marcou os cinquenta anos da fundação da banda em East London. Ir a este concerto era para mim uma viagem pessoal com dois propósitos: celebrar meio século de uma banda que me acompanhou na adolescência e ver de perto a energia vital de uma banda de heavy metal com uns senhores já perto dos 70 anos — e que não estão propriamente sentados a dedilhar umas guitarradas.

    Concerto dos Iron Maiden em foto da própria banda.

    Para lá chegar, contudo, não me bastou a vontade nem a carteira de jornalista. A Prime Artists, produtora do espectáculo, optou por ignorar a legislação nacional e recusou-me a acreditação. Saiu uma deliberação da ERC, in extremis, na sexta-feira passada, mas mesmo assim, num gesto de arrogância, a ‘coisa’ só não teve consequências penais imediatas (crime de atentado à liberdade de informação e crime de desobediência) graças à intervenção diplomática — e pedagógica — de um comissário da PSP. Em todo o caso, perdi a actuação da banda de suporte, os suecos Avatar, que me pareciam promissores para se assistir, pelo que já ouvira antes.

    A resistência à entrada foi amargo, mas o primeiro impacto, já dentro da arena, foi doce: t-shirts dos Iron Maiden por todo o lado, gente de duas gerações — com cervejas… e até pipocas.

    Nova surpresa ao chegar ao local de destino: o lugar atribuído pela Prime Artists era um mimo — Balcão 2, Sector 18, Lugar J.3 — para todos os efeitos, o melhor sítio para não ver o palco. Mas, como em tudo na vida, algum improviso permite vencer a má vontade: dali saí para um ponto superior, em pé, com visão integral do altar de luz, fogo e som que é um concerto dos Iron Maiden.

    Comissário da PSP ‘conferenciando’ sobre a recusa de acreditação e as consequências criminais face à deliberação da ERC.

    Na perspectiva onde me encontrava, mesmo assim perdi a parte cénica mais espectacular, de que apenas me apercebi nas fotografias da própria banda no seu perfil do Facebook. Mas esqueçamos a produtora — que, se houvesse avaliação, levaria zero, com direito a machadada do Eddie the Head de três metros. Aquilo que interessa é que tivemos, aqui sim, um grande concerto à moda antiga: como deve ser.

    Apesar das crónicas deficiências acústicas do Meo Arena, o público ligou-se à corrente eléctrica de Harris, Dickinson & Ca., como num ritual logo à primeira música. Murders in the Rue Morgue, lançada no álbum Killers (1981) — e inspirada no conto homónimo de Edgar Allan Poe — inaugurou a noite, precedida de um vídeo onde se revive o nascimento da banda no Cart and Horses Pub. Bruce Dickinson esteve sempre como me recordo, mesmo contando já 66 anos: viaja com a mesma facilidade entre tons graves sólidos, médios expressivos e agudos poderosos, mantendo sempre clareza e controlo técnico, acima das potentes guitarras e da omnipresente bateria.

    Os clássicos sucederam-se sem piedade: Wrathchild, Killers (com Eddie the Head em cena, ameaçador, embora me pareça hoje um adereço desnecessário), Phantom of the Opera, The Number of the Beast (a pedir melhor acústica), 2 Minutes to Midnight, Rime of the Ancient Mariner (com referências visuais ao poema de Coleridge e atmosfera épica), Run to the Hills, The Trooper, Hallowed Be Thy Name. Houve tempo para parte de maior teatralidade, com Dickinson mascarado de faraó em Powerslave, houve bandeiras a tremular com um Eddie-soldado perante a ameaça nuclear, houve Bruce numa cela elevatória.

    E houve, também, oportunidade para a apresentação de Simon Dawson, o novo baterista para substituir, pelo menos nos concertos, o já septuagenário Nicko McBrain. Foi discreto, mas conseguiu manter a pulsação do grupo ao longo de todo o concerto — talvez no lugar mais exigente fisicamente numa banda de heavy metal.

    Quando Wasted Years encerrou a noite, Dickinson pareceu sincero ao dizer que fora a “melhor noite das nossas vidas”. Terá sido retórica, mas deu para perceber que os Iron Maiden apreciam verdadeiramente Portugal. Aliás, desde o ano passado, o vocalista fez uma parceria com a Van Zeller Wine Collection para lançar um tinto do Douro, o Darkest Red, com um rótulo alusivo à banda. Depois deste concerto, uma coisa parece certa: ali, velho, só mesmo o Eddie the Head.

    Nota final: 4,5 em 5.

  • Ronaldo, Diogo Jota e a moral dos abutres

    Ronaldo, Diogo Jota e a moral dos abutres


    Há uma velha tendência humana – que a imprensa-abutre sensacionalista e as redes sociais elevaram à condição de vício pandémico – de querer vigiar os gestos dos outros, medir-lhes o coração, e acusá-los quando não cumprem aquilo que se julga, não uma regra, mas uma expectativa narcísica da comunidade observadora.

    E é este o ponto fulcral do circo moralista que se formou, como se fosse vigília digital de almas, à volta da ausência de Cristiano Ronaldo no funeral de Diogo Jota. Não tardaram os inquisidores do costume a vociferar contra o egoísmo, a frieza, o desrespeito. Não por amor ao morto, note-se, mas por desejo de escândalo. Por necessidade de recriminar. Por impulso mimético de pertença ao grupo dos bons.

    Foto: D.R.

    Mas que espécie de ética é essa que mede o luto com cronómetro e o amor com a geografia do GPS? Que tipo de moral pedante e vazia exige a presença física num ritual fúnebre como critério de compaixão verdadeira? Só uma moral feita de pose e aparência, só uma ética moldada à selfie e ao post. O mundo moderno, saturado de imagens e sedento de comoção pública, já não aceita a dor íntima, silenciosa, invisível. Precisa de encenações. E se o actor principal – neste caso, Cristiano Ronaldo – não entra em cena, o público reclama reembolso emocional e ensaia vaias morais.

    É preciso recordar aos zeladores do sofrimento alheio que o luto não é um teatro. O luto é muitas vezes um retiro, uma sombra, um recolhimento. É exactamente o contrário de tudo aquilo que os acusadores de Ronaldo parecem exigir. E se ele tivesse comparecido? Muito provavelmente, as mesmas vozes que hoje lhe apontam o dedo diriam que era exibicionismo, que era vaidade, que era marketing. Porque o problema, afinal, nunca é o acto em si, mas quem o comete. E quando se trata de Ronaldo, o público quer vê-lo, não importa a circunstância, para depois poder julgá-lo.

    Foto: D.R.

    Cristiano Ronaldo não é um santo, nem quer ser. E também não é um político, nem deve fingir sentimentos para a câmara. É um homem, um desportista de excelência, e – por mais que custe a quem o odeia – é talvez o português mais admirado e respeitado fora de portas. E será porventura também o mais odiado cá dentro, justamente por isso.

    A mediocridade nacional, sempre tão caseira, sempre tão dada ao despeito, não perdoa que alguém do nosso sangue ouse voar mais alto que o campanário da aldeia. Assim, tudo o que Ronaldo faz – ou deixa de fazer – é analisado com microscópio moral por uma turba que só encontra sentido na existência quando descobre um deslize, uma ausência, um gesto imperfeito.

    A crítica à ausência de Ronaldo no funeral de Diogo Jota não é movida pelo amor ao falecido, nem sequer pelo culto da memória. É apenas o reflexo de um espírito do tempo doente, em que os mortos são usados como pretexto para julgar os vivos. A dor tornou-se espectáculo e o respeito, obrigação teatral. Quem não chora em público é cínico. Quem não publica homenagem é frio. Quem não se curva diante do caixão é insensível. E, paradoxalmente, os que gritam essa moral são os que não toleram o silêncio, que não aceitam que o tributo mais digno possa ser justamente a recusa da encenação.

    Foto: D.R.

    Há algo de profundamente ignóbil nesta ética da comoção obrigatória. É uma espécie de necrofilia moral, onde a morte de alguém só serve para se devassar a vida dos outros. Ninguém sabe o que Ronaldo fez em privado, o que sentiu, se telefonou à família, se rezou em silêncio. E não tem de saber. Porque o luto não se presta a boletins nem a selfies. E, se ainda há alguma dignidade possível neste mundo em que a morte virou argumento de cliques, talvez seja essa: a de respeitar quem escolhe viver o pesar sem o partilhar com a turba.

    Confesso, de resto, que não me agrada que o herói popular português por excelência seja um homem do entretenimento desportivo. Preferiria, por vocação e convicção, que esse papel estivesse reservado à ciência ou à literatura. Talvez alguém das Ciências, ou da História, ou um grande romancista, pudesse ocupar esse lugar simbólico.

    Mas a realidade é o que é. E é inegável que Cristiano Ronaldo, com a sua personalidade determinada, a sua persistência de ferro e uma disciplina que muitos doutores invejariam, construiu um percurso admirável. Consolidou-se como um verdadeiro self made man, saído de um dos estratos mais humildes da sociedade para se afirmar, à escala global, como um dos homens mais reconhecidos e celebrados do nosso tempo. Subiu social e financeiramente, por mérito próprio, até ao topo de uma montanha onde poucos chegam. E por isso, perante o que conquistou e o que também perdeu – e não falo apenas de tempo e energia, mas de anonimato, de liberdade e da possibilidade de ser apenas um homem comum – talvez mereça, até, que se lhe perdoe algumas falhas.

    a statue of an angel surrounded by greenery

    Mas se falhas comete – como qualquer humano – não ir a um funeral não será, de forma alguma, uma delas. O funeral é, para quem vai, um acto de despedida, um rito pessoal. Para quem não vai, pode ser, igualmente, um gesto de recato, um respeito que prefere manter-se em silêncio. O que se vê aqui não é falta de compaixão. É a recusa de alimentar a máquina de voyeurismo que exige que tudo se torne espectáculo, até a dor.

    Quem exige de Ronaldo um luto visível fá-lo não por respeito ao falecido, mas por gula emocional, por instinto de tribunal moral, por frustração mal disfarçada. Ronaldo, quer se goste ou não, continuará a viver como símbolo e projecção de uma ideia de sucesso que incomoda. E os seus críticos, esses, continuarão a usar cadáveres para julgar os vivos – o que, convenhamos, é infinitamente mais vil do que não aparecer num funeral.

  • Surpreendente: Lisboa foi o concelho com mais novos residentes nos últimos três anos

    Surpreendente: Lisboa foi o concelho com mais novos residentes nos últimos três anos

    Lisboa está a renascer — ou a gerar novos problemas. Depois de quase meio século de declínio demográfico — e de sucessivos diagnósticos que a davam como cidade em esvaziamento crónico —, o concelho da capital portuguesa voltou, com inesperada força, a crescer em população.

    Entre 2021 e 2024, Lisboa foi o município do país com maior atractividade e registou um aumento de 24.425 residentes, passando de 547.010 para 571.435 habitantes, segundo a análise do PÁGINA UM aos dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE). Nenhum outro concelho português registou um crescimento absoluto tão expressivo neste curto intervalo de três anos, o que representa, em média, mais 22 pessoas por dia — um valor ainda mais notável se considerarmos que o saldo natural de Lisboa continua fortemente negativo.

    Este dado, que à primeira vista poderá parecer auspicioso para quem defende o repovoamento das cidades, levanta, no entanto, questões prementes quanto à sustentabilidade urbana, à coerência das políticas municipais e à capacidade de resposta dos serviços públicos e das infra-estruturas.

    O crescimento abrupto ocorre num concelho cuja estratégia nas últimas décadas assentou sobretudo na promoção do turismo, na requalificação urbana orientada para o investimento imobiliário externo e numa política habitacional que, na prática, favoreceu o arrendamento de curta duração, a alienação de imóveis a estrangeiros e a gentrificação de bairros populares. A crise habitacional numa cidade em crescimento populacional, sobretudo associado à imigração pouco qualificada, tende a criar ainda mais problemas de degradação das condições de vida.

    De facto, a pressão sobre o parque habitacional intensifica-se, os transportes públicos dão sinais de saturação e os equipamentos sociais — escolas, centros de saúde, serviços municipais — revelam limitações perante esta nova realidade. Longe de ser o resultado de um plano urbanístico estruturado, este crescimento demográfico parece atropelar uma cidade que ainda não digeriu o seu passado recente como “resort urbano” de milhões de turistas.

    A título histórico, importa recordar que os números actuais de Lisboa continuam abaixo dos registados há quase um século. Nos Censos de 1930, a cidade contava com 591.939 habitantes e atingiu o seu pico em 1981, com 807.937 residentes — embora já estivesse então em curso um processo de despovoamento iniciado nos anos 60 e apenas atenuado nos anos 70 pela chegada de milhares de retornados após a descolonização. Mas essa era uma fase em que as famílias se ‘amontoavam’ em residências com poucas condições.

    Desde então, Lisboa entrou numa trajectória demográfica descendente, alimentada pela suburbanização, pelo envelhecimento demográfico e pelo êxodo da classe média para os concelhos periféricos. Os Censos de 2021 fixaram a população alfacinha em 545.796 residentes, traduzindo uma quebra acumulada de quase 33% desde 1981.

    O recente crescimento populacional de Lisboa — como o de Portugal em geral — não assenta num rejuvenescimento interno. O país continua a registar um saldo natural negativo, com mais mortes do que nascimentos. Ainda assim, entre 2021 e 2024, a população residente aumentou quase 287 mil pessoas, passando para um total de 10.694.681 habitantes, o que corresponde a um acréscimo médio de 262 pessoas por dia.

    Imigração tem sido o grande motor da recuperação demográfica de Lisboa, mas tem criado tensões sociais.

    Este crescimento deve-se, exclusivamente, ao saldo migratório, uma vez que o saldo natural continua a afundar-se. Em 2023, segundo o INE, morreram mais 33.824 pessoas do que as que nasceram, agravando o já elevado défice de 2022, que se fixara em 32.596. Ou seja, em três anos, o saldo migratório terá sido próximo das 400 mil pessoas.

    Os maiores crescimentos populacionais absolutos verificaram-se sobretudo nos municípios urbanos. A larga distância de Lisboa — com os já referidos 22 residentes adicionais por dia — surge o concelho do Porto, que, não obstante também registar um saldo natural negativo, viu a sua população crescer em 16.290 pessoas no último no triénio, o equivalente a mais 16 por dia.

    Seguem-se Sintra (mais 10 por dia), Braga, Seixal e Amadora (7), Maia (6), e depois Vila Nova de Gaia, Cascais, Matosinhos, Odivelas, Loures, Leiria, Aveiro, Valongo e Oeiras, todos com cerca de cinco novos residentes diários. Em comum, estes concelhos integram áreas metropolitanas e beneficiam de dinâmicas urbanas, oferta de emprego, habitação mais acessível ou atracção universitária.

    Abrantes foi o concelho de país que mais população perdeu no último triénio. Foto: CMA.

    Apesar da tendência de crescimento agregada, cem concelhos — quase um terço do total nacional — perderam população entre 2021 e 2024. Em termos absolutos, os maiores recuos ocorreram em Abrantes (menos 575 residentes), Felgueiras (menos 523) e Portalegre (menos 494). Também a cidade da Guarda, sede de distrito, perdeu habitantes: menos 190 face a 2021. Este decréscimo não é apenas estatístico, mas evidencia a persistência das assimetrias entre litoral e interior, bem como o falhanço das políticas de coesão territorial.

    Em termos relativos, o maior crescimento verificou-se em concelhos com forte presença de imigração laboral ligada ao sector agrícola. O caso mais extremo é o de Odemira, que viu a sua população crescer 11% em apenas três anos, passando de 30.186 para 33.495 residentes — um acréscimo de 3.309 pessoas.

    Seguem-se Sobral de Monte Agraço, no distrito de Lisboa, com uma subida de 10,7%, Óbidos e Vila Nova da Barquinha (10,5%), Arruda dos Vinhos (9,0%), Porto Santo (8,9%), Corvo (8,7%), Entroncamento e Bombarral (8,4%), Albufeira (8,1%), Oliveira do Bairro (8,0%), Benavente e Alenquer (7,9%), Lourinhã (7,4%), Ílhavo e Salvaterra de Magos (7,1%), Porto (7,0%), Vagos (6,9%) e São João da Madeira (6,8%).

    Odemira, com as suas estufas, tem atraído bastante população: cresceu 11% nos últimos três anos.

    Estes aumentos percentuais, por vezes mais discretos em números absolutos, são, ainda assim, relevantes. Assinalam novas dinâmicas locais, associadas à atracção de mão-de-obra estrangeira, a políticas de habitação menos especulativas ou à retoma económica pós-pandemia.

    Porém, muitos destes territórios não dispõem de recursos, serviços públicos nem planeamento urbanístico suficientes para absorver, com qualidade, uma população em crescimento acelerado.

  • Até com polémico ‘balão de oxigénio’ do Governo, Santa Casa da Misericórdia do Porto atinge décimo ano de prejuízos contínuos

    Até com polémico ‘balão de oxigénio’ do Governo, Santa Casa da Misericórdia do Porto atinge décimo ano de prejuízos contínuos

    Há sete anos, a Associação Portuguesa de Ética Empresarial decidiu distinguir António Tavares com uma Medalha de Mérito. O então — e ainda — presidente da Mesa Administrativa da Santa Casa da Misericórdia do Porto (SCMP) foi considerado um exemplo de Ética, Responsabilidade Social e Sustentabilidade. É provável que, à época, não existissem elementos suficientes que colocassem em causa a justeza da distinção no plano da ética pessoal. Porém, no campo da gestão, António Tavares — também professor na Universidade Lusófona e antigo deputado do PSD — dificilmente receberá algum dia um galardão, excepto se for um Prémio Razzie, os famosos anti-Óscares de Hollywood, aplicados ao sector da Economia.

    Com efeito, nos últimos dez anos, a SCMP — sob direcção ininterrupta de António Tavares desde 2011 — acumulou um buraco de 30,4 milhões de euros. Desde 2014 que não sabe o que é apresentar lucros. Em catorze anos de gestão, Tavares conheceu apenas dois exercícios positivos: em 2011 e em 2014.

    A cada ano, os resultados têm vindo a escavar mais fundo o fundo patrimonial da instituição: o que eram 234,8 milhões de euros em 2011 são hoje cerca de 138,5 milhões. Ou seja, o capital próprio da SCMP — para usar o jargão empresarial — emagreceu 96,3 milhões de euros sob a gestão de António Tavares, o que representa uma queda de 41%. A “sustentabilidade” — outro dos termos inscritos na distinção de 2017 — parece ter desaparecido por completo do léxico da Misericórdia do Porto.

    O ano de 2024 deveria ter sido o momento da inversão, até pela bênção do Governo de Luís Montenegro. Em Agosto do ano passado, um Conselho de Ministros autorizou um reforço de verbas para o Hospital da Prelada, propriedade da SCMP, no âmbito da criação de um Centro de Atendimento Clínico (CAC) para receber doentes não urgentes dos hospitais de São João e de Santo António.

    Por outras palavras, o Estado passou a pagar à Misericórdia do Porto para aliviar as urgências do SNS — o que, na prática, representou uma injecção directa de dinheiro numa unidade hospitalar deficitária há anos.

    De acordo com o relatório e contas de 2024, analisado pelo PÁGINA UM, este reforço de financiamento especificamente dirigido ao Hospital da Prelada foi substancial. Se em 2023 esta unidade hospitalar teve receitas de vendas e prestações de serviços de 34,1 milhões de euros, em 2024 essa rubrica subiu para quase 38,7 milhões — ou seja, um aumento de quase 14%. Teria servido, em teoria, para “limpar” a instituição de uma linha contínua de prejuízos.

    Mas não deu, porque as despesas também aumentaram. E há sobretudo um departamento, denominado Serviços Partilhados, que insiste em apresentar mais de quatro milhões de euros de prejuízos anuais. Em suma, o “balão de oxigénio” concedido pelo Governo de Luís Montenegro — de cerca de 4,6 milhões de euros — serviu apenas para reduzir o prejuízo global em cerca de 1,5 milhões de euros.

    Curiosamente, no mesmo dia em que o Diário da República oficializava o reforço de verbas para o Hospital da Prelada, o primeiro-ministro Luís Montenegro encontrava-se a gozar férias no Brasil, numa casa pertencente a Eurico Castro Alves — o coordenador da task force do Plano de Emergência da Saúde (autor do modelo dos CAC) e, até há poucos meses, membro suplente da Mesa Administrativa da SCMP.

    Membros da Mesa Administrativa da Santa Casa da Misericórdia com ‘obra feita’: 10 anos de prejuízos consecutivos.

    Não é apenas António Tavares e Eurico Castro Alves que mantêm ligações ao PSD. Manuel Pinto Teixeira, membro efectivo da Mesa Administrativa da SCMP e antigo chefe de gabinete de Rui Rio na Câmara Municipal do Porto, também aparenta ter bom trânsito entre os sociais-democratas.

    O relatório e contas de 2023 associa-o directamente à tutela do Hospital da Prelada. Entre Julho de 2020 e Julho de 2022, Pinto Teixeira integrou a Comissão Política Nacional do PSD — onde se sentava ao lado de Ana Paula Martins (actual ministra da Saúde) e de Joaquim Miranda Sarmento (actual ministro das Finanças). A proximidade é de tal ordem que, mesmo em tempos de contenção orçamental, se arranja sempre dinheiro para os amigos do Porto.

    Não há memória recente de qualquer medida de reestruturação significativa na Misericórdia do Porto. Pelo contrário: os gastos com fornecedores e serviços externos continuam a subir. Em 2011, ascendiam a 13,2 milhões de euros; em 2023, já ultrapassavam os 19,5 milhões; e, no ano passado, subiram para 21,6 milhões de euros.

    Também os gastos com pessoal aumentaram: entre 2023 e 2024, o acréscimo foi de 7,1%, passando de 34 milhões para quase 36,5 milhões de euros. O salário médio dos 1.261 trabalhadores da SCMP é de 2.065 euros mensais, calculado em catorze meses. A SCMP, tal como uma empresa pública em fim de ciclo, mantém a estrutura e o esbanjamento — na expectativa de que o Estado a venha salvar no fim.

    Hospital da Prelada, um sorvedouro de dinheiros públicos, mas que nem assim faz a SCMP sair do ‘vermelho’.

    Saliente-se que, ao contrário da sua congénere lisboeta, a SCMP não tem receitas provenientes dos jogos. Vive, por isso, exclusivamente da sua actividade empresarial e de acordos com o Estado. Entre 2008 e 2023, o Ministério da Saúde transferiu cerca de 500 milhões de euros para a Misericórdia do Porto. Só no último quinquénio, foram aproximadamente 160 milhões. Mas, nem assim, a SCMP conseguiu apresentar lucros.

    O PÁGINA UM contactou a SCMP para obter comentários sobre a situação financeira da instituição, bem como para saber se António Tavares considera manter condições para continuar em funções após o décimo ano consecutivo de prejuízos. A resposta foi lacónica: “Não nos será possível enviar as respostas solicitadas no prazo definido, uma vez que, por motivos de agenda, não foi possível obter em tempo útil os contributos necessários para o efeito.”

  • Lisboa tem uma dezena de mesquitas (em condições precárias)

    Lisboa tem uma dezena de mesquitas (em condições precárias)

    Fez lembrar um slogan pós-25 de Abril sobre soldado para África, mas deturpado com um leve travo identitário excludente (use-se o eufemismo, que não quiser usar a palavra xenófobo): “Nem mais uma mesquita em solo português.”

    A frase, lançada pelo líder do Chega, André Ventura, surgiu como reacção à polémica provocada por uma recomendação aprovada na 8.ª Comissão Permanente da Assembleia Municipal de Lisboa — com votos do PS, Bloco de Esquerda, Livre e PAN — sugerindo à autarquia encontrar um local adequado para a construção de uma mesquita no eixo da Avenida Almirante Reis, entre o Martim Moniz e a Alameda. Uma recomendação, recorde-se, não é uma deliberação vinculativa. Mas bastou para incendiar o habitual discurso político identitário do Chega, porque o seu representante absteve-se.

    Mesquita informal na Rua Alves Torgo, na zona da Praça do Chile.

    E, no entanto, se muitos lisboetas pensam que a capital tem apenas uma mesquita — a Mesquita Central de Lisboa, situada na zona de Sete Rios —, a realidade é bem mais difusa. Em Lisboa, existem formalmente 11 locais de culto islâmico, embora a maioria funcione em condições precárias, improvisadas em antigas lojas ou apartamentos devolutos.

    Aliás, um destes locais, situado na Rua Maria Andrade, na zona dos Anjos, foi encerrado pela Câmara Municipal de Lisboa em Janeiro deste ano, por questões de segurança, por estar defronte à linha do eléctrico 28. O espaço — que acolhia a Associação Cultural Pontos & Capítulos e dispunha de uma ampla sala de oração — era frequentado por uma comunidade significativa. Encerrado sem alternativa, deixou mais uma vez a nu a escassez de condições de dignidade para o culto islâmico.

    Exceptuando a Mesquita Central — um edifício construído com apoio de fundos estrangeiros, e inaugurado em 1985 —, os restantes locais de culto são soluções transitórias, improvisadas em espaços exíguos e por vezes pouco seguros. Entre os mais movimentados destacam-se dois na zona do Martim Moniz e da Rua do Benformoso: a Jam-e-Masjid (“Mesquita Congregacional”, em urdu), situada na Rua do Terreirinho; e a Baitul Mukarram Masjid (“Mesquita da Casa Bendita”), na Calçada Agostinho de Carvalho, que acolhe também o Centro Islâmico do Bangladesh.

    Mesquita na Rua Maria Andrade foi encerrada pela autarquia de Lisboa em Janeiro deste ano.

    Na Graça, mais precisamente na Travessa da Senhora da Glória, funciona o Baitur Rahman Jame Masjid (“Mesquita da Misericórdia de Deus”), instalado no rés-do-chão de um prédio de habitação, sem qualquer sinalização exterior visível.

    Do outro lado da colina, na zona dos Anjos, próximo do Centro Nacional de Apoio à Integração de Migrantes, localiza-se outro espaço de culto, discreto e modesto, na Rua da Palmira. Pelas imagens disponíveis online, percebe-se que o interior é apertado, cabendo talvez uma centena de fiéis

    Mais acima, junto ao Banco de Portugal, na Avenida Almirante Reis, ergue-se um edifício algo singular. No número 20 da Rua Passos Manuel, num prédio que alberga também um espaço da Junta de Freguesia de Arroios, está indicado o funcionamento de mais uma mesquita.

    No entanto, o espaço situa-se numa cave, acedida por uma porta lateral. O PÁGINA UM visitou o local e encontrou um espaço desarrumado, com objectos pessoais, mas sem presença de fiéis. Poderá funcionar como mesquita, como dormitório improvisado — ou ambos.

    Subindo até às imediações da Praça de Chile, surge talvez o espaço de maiores dimensões, pelo menos à primeira vista: o Masjid Baitur Rahim (“Mesquita da Casa do Clemente”) na Rua Alves Torgo, acolhe dezenas de fiéis mesmo a meio da tarde, como pôde constatar o Página Um. Já na Rua Quirino da Fonseca, na zona da Alameda, situa-se a Alameda Jame Masjid, outra mesquita reconhecida pela comunidade muçulmana e instalada numa área residencial, sem sinalização exterior que denuncie a sua função.

    Espaço referido como sendo uma mesquita na Rua Passos Manuel.

    Além destas, existem em Lisboa mais duas mesquitas: uma na Portela e outra na zona das Galinheiras. Na Amadora conseguiu-se identificar pelo menos três em funcionamento. De acordo com o Instituto Halal de Portugal estão identificadas 54 mesquitas e outros locais de culto em território nacional.

    A verdade é que este tipo de soluções — espaços improvisados em prédios residenciais, garagens ou antigas lojas — não é exclusivo da religião islâmica. Outras comunidades religiosas, com menor implantação histórica em Portugal, seguem caminhos semelhantes, sobretudo nas grandes áreas urbanas. E nenhuma é tão profusa nesse modelo como a miríade de igrejas evangélicas que têm proliferado em Lisboa nas últimas décadas.

    Tal como acontece com os locais de culto islâmico, também a proliferação de igrejas evangélicas em Lisboa segue uma lógica de improvisação e ocupação de espaços originalmente não destinados à prática religiosa. O PÁGINA UM identificou mais de quatro dezenas de igrejas evangélicas activas na cidade, muitas das quais instaladas em antigas lojas, garagens, andares residenciais ou edifícios de escritórios.

    Na zona da Rua do Benformoso existem duas mesquitas mas em condições precárias.

    A maior parte destas comunidades tem origem no Brasil, embora algumas provenham dos Estados Unidos, da China e até do Nepal. A diversidade de nomes reflecte uma pulverização denominacional — Baptistas, Pentecostais, Assembleia de Deus, Igreja Cristã Maranata, entre outras — mas a realidade urbana é semelhante: a religião instala-se onde pode, não onde deve. Exemplo disso é a Assembleia de Deus Paço de Jacó, situada num quinto andar de um prédio de escritórios junto à Praça do Chile, onde no primeiro piso funciona a Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra em Lisboa.

    Noutras zonas da cidade, igrejas como a Embaixada Cristã Portugal, a Cidade de Refúgio Lisboa, a Igreja Batista Renovada ou a Igreja Pentecostal Deus é Amor adaptaram lojas devolutas, espaços comerciais desactivados ou pisos de edifícios mistos, partilhando muitas vezes o quarteirão com cafés, cabeleireiros ou pequenas mercearias. A United Nepali Christina Church Portugal é outro caso curioso: situa-se numa antiga loja defronte à igreja Católica da Nossa Senhora do Resgate, nos Anjos.

    Igrejas evangélicas pululam por Lisboa ocupando espaços de antigas lojas. Hámais de quatro dezenas.

    Nomes como Igreja Verbo da Vida, Igreja Cristã Internacional, Igreja dos Santos Doze Apóstolos e da Sua Rainha ou Terceira Igreja Evangélica Baptista de Lisboa confirmam a vitalidade destas comunidades, mas também a ausência de uma política urbana coerente que permita o seu enraizamento em condições dignas.

    O fenómeno não é exclusivo da fé evangélica, mas nesta atinge uma expressão visível: igrejas em série, dissimuladas entre as montras comerciais da cidade, quase sempre sem placa nem fachada. A fé, aqui, vive de improviso — e reza entre paredes alugadas.

  • Tribeca & Moedas: o problema não foi o jantar; foi tudo o que se gastou e escondeu depois da sobremesa

    Tribeca & Moedas: o problema não foi o jantar; foi tudo o que se gastou e escondeu depois da sobremesa


    Durante meses, o único rasto visível nos contratos públicos sobre os gastos do município de Lisboa com o festival Tribeca Lisboa — uma franquia luso-adocicada do evento nova-iorquino apadrinhado por Robert De Niro — era um modesto registo no Portal Base: a aquisição de um jantar por 6.230 euros, adjudicado à empresa As Patrícias, ao abrigo de um ajuste directo.

    Nada mais. Nenhum contrato com a Impresa, a entidade organizadora, nenhuma nota explicativa sobre os reais encargos públicos, nenhuma referência aos montantes transferidos. O silêncio era ensurdecedor. E, não fosse o esforço persistente e meticuloso de um jornalista da revista Sábado, este caso permaneceria submerso no pântano burocrático onde se enterram, diariamente, os vestígios do despesismo estatal.

    Agora soube-se, por via de uma investigação persistente — e é uma pena haver tão poucas — publicada na revista Sábado, que afinal o jantar foi apenas o amuse-bouche. O verdadeiro banquete foi servido à Impresa, grupo privado de comunicação social que detém, entre outros, a SIC e o Expresso.

    Só daqui foram 500 mil euros retirados directamente dos cofres da Câmara Municipal de Lisboa, por empenhos operados a alta velocidade após instruções vindas do gabinete do presidente Carlos Moedas. Acrescem ainda mais 250 mil euros do Turismo de Portugal, que decidiu também financiar o festival — tudo para que a Impresa pudesse pagar os “direitos” do evento norte-americano e assegurar a presença simbólica de De Niro, mesmo que o actor tenha passado despercebido à maioria dos lisboetas.

    Em rigor, o que está em causa não é apenas a saloiice institucional de importar um festival nova-iorquino, ainda por cima mal organizado, para se tirar umas fotografias ao lado de um actor famoso. Nem tampouco o habitual enlevo provinciano de políticos que confundem política cultural com festas mediáticas. O que se passou com o Tribeca Lisboa é mais grave: é um exemplo cristalino de como se instrumentalizam recursos públicos para fins privados, com intermediação política e total opacidade.

    Note-se o padrão: o festival não foi uma organização municipal, nem promovido por qualquer entidade pública. Foi uma operação integral da Impresa, cujo objectivo era — como sempre — reforçar a marca e a influência do grupo. Mas, ao invés de procurar investidores ou assumir o risco financeiro do evento, recorreu-se à “via Moedas”: um atalho de poder que, em apenas três semanas, desbloqueou meio milhão de euros da autarquia. Sem concurso, sem critérios públicos conhecidos, sem transparência.

    Pior: com silêncios reiterados e recusa de entrega de documentos a jornalistas que, desde Novembro de 2024, tentam obter explicações junto da Câmara e da EGEAC.

    Este caso só não é escândalo maior porque o país político já se habituou à promiscuidade entre comunicação social e poder. Entrevistas “fofinhas” — como a de Daniel Oliveira a Carlos Moedas no Alta Definição — tornaram-se moeda de troca num sistema onde os favores circulam, os elogios se compram, e os interesses se protegem. A fotografia ao lado de De Niro — paga com o dinheiro dos lisboetas — resume bem o espírito da coisa: um marketing político montado para alimentar egos, seduzir audiências e garantir reverência jornalística.

    a person walking down a street holding an umbrella
    Tribeca é um conhecido bairro de Nova Iorque e o nome de um festival de cinema norte-americano.

    Se isto fosse apenas vaidade, poder-se-ia sorrir e passar adiante. Mas não é. Trata-se de um modelo de governo assente em peculato de uso: recursos públicos canalizados para eventos que promovem, em primeiro lugar, os próprios decisores. Um sistema que, por falta de escrutínio institucional, se normaliza e perpetua, onde cada euro gasto parece menos um investimento cultural e mais uma operação de auto-publicidade. Não há aqui qualquer racionalidade económica ou cultural, apenas um cálculo político e mediático.

    Pior: estes gastos são deliberadamente escondidos dos cidadãos. São dispersos por diferentes fontes (autarquias, empresas municipais, organismos do Turismo), canalizados por ajustes directos, ocultos sob rubricas vagas e não publicitados em tempo útil. É preciso escavar muito — como agora se viu — para expor o que deveria estar à vista de todos. E isso é, talvez, o sinal mais preocupante do estado a que chegou o exercício do poder local e central: a transparência converteu-se em slogan, não em prática. Carlos Moedas até criou um Departamento de Transparência — mas, ironicamente, nunca respondeu às perguntas sobre os apoios ao Tribeca Lisboa.

    O caso do Tribeca Lisboa mostra como o país político continua a comportar-se como se vivêssemos sobre um poço de petróleo. Gasta-se com ligeireza, distribui-se dinheiro como se nada fosse, sempre com a convicção de que o contribuinte pagará — e, no fim, ainda agradecerá, hipnotizado por uma selfie ao lado de um actor de Hollywood.

    Mas Portugal não é um poço de petróleo. É um país endividado, com escolas por requalificar, hospitais a colapsar e transportes públicos obsoletos, que pouco aposta verdadeiramente na Cultura. Cada euro entregue à Impresa — um grupo privado de comunicação que deveria viver dos seus leitores e espectadores — é um euro que falta noutro lado. Setecentos e cinquenta mil euros daria quase para uma longa metragem em Portugal. E o que Moedas fez não foi apoiar a Cultura. Foi financiar, com o dinheiro dos lisboetas, a vaidade de um festival e a máquina mediática que o serve.

    Em suma, o problema não foi o jantar. Foi tudo o que se gastou e foi escondido depois da sobremesa.

  • Carta aberta ao jornalista Luís Ribeiro, um serventuário

    Carta aberta ao jornalista Luís Ribeiro, um serventuário


    Luís Ribeiro,

    agradeço a deferência — embora algo envergonhada — com que me dedicas umas linhas no X, em resposta à coima que a ERC aplicou à tua empresa, a Trust in News, por difundir conteúdos de publicidade encapotada, usando jornalistas — entre os quais tu próprio és nomeado. A tua tentativa de desvalorizar o assunto, como se estivesses acima das suspeitas, é uma vã manobra para te descolar de uma realidade que, a cada passo, te envolve mais: a de ser jornalista ao serviço de uma empresa com mais dívidas do que escrúpulos.

    E agradeço, porque assim me deste incentivo para esta carta aberta, que para ti não terá préstimo — porque manifestamente não prestas como jornalista nem como pessoa —, mas poderá ter para outros, talvez os mais jovens jornalistas. Como aviso. Até porque, salvo erro, te conheço desde 2001.

    Trabalhas(te) para a Trust in News, um grupo editorial com um capital social de uns meros 10 mil euros — igual ao do PÁGINA UM, por isso nada contra. Mas olhas para o PÁGINA UM com um indisfarçável desdém. Compreendo: há uma grande diferença: PÁGINA UM não deve nada a ninguém, não faz fretes e exerce um jornalismo independente, enquanto o teu estimado empregador carrega um passivo superior a 30 milhões de euros, incluindo calotes ao Estado que ultrapassam os 15 milhões.

    Como se não bastasse, tem o dono e um dos gerentes (Luís Delgado) já uma condenação por abuso de confiança fiscal. É esta a entidade de referência do teu jornalismo — e não, não fui eu quem a classificou como tal, foi a própria Justiça.

    Foi nesse ambiente que, a pedido da tua directora e amiga, Mafalda Anjos, resolveste então deixar a dignidade profissional à porta da redacção e prestar serviço à causa do Ministério do Ambiente e da empresa pública Águas de Portugal, para lhe cuidares do marketing. A pretexto de uns Prémios Verdes, fizeste um fretes multicoloridos. Produziste então meia dúzia de artigos fofinhos, pintados de verde esperança e inocência editorial. E agora vens jurar que foste livre, que não recebeste nada além do salário, como se a ausência de suborno directo fosse um atestado de honra. Ora, Luís, isso não abona sequer da tua inteligência. Se mercadejas a tua pena, ao menos exige as trinta moedas de prata… Fica-te mal prostituíres a profissão e ainda por cima de forma gratuita.

    Tweet de Luís Ribeiro no X

    Não fui só eu que te chamei à pedra. A própria ERC — esse Conselho que dizes “estapafúrdio”, só porque, por uma vez, resolveu ver para além da espuma — referiu o teu nome cinco vezes na deliberação, onde conclui que a Trust in News difundiu conteúdos publicitários disfarçados de jornalismo. Isso tem um nome: publicidade encapotada. E o teu nome lá está, Luís, gravado com tinta que nem o teu desdém consegue apagar.

    Depois, num gesto pueril, resolves atirar contra mim — atacas o mensageiro —, aludindo aos meus “conflitos” com a ERC, como se isso te conferisse superioridade. Mas até aqui falhas o tiro. Sim, tenho conflitos com a ERC. Porque exijo melhor regulação, mais transparência e menos conivência com aldrabices editoriais e poderes instituídos.

    Mas sabes o que mais? Dois dos processos em tribunal foram sim interpostos por mim contra a ERC no Tribunal Administrativo de Lisboa por me negarem acesso a documentos administrativos. Ganhei ambos — vê lá isto! Um jornalista que não cede a um não institucional e até mete a entidade que o regula num tribunal. Perdeu-se o respeitinho, não é, Luisinho? Temos de ser bem comportadinhos, não é? Isso mesmo!

    Além disso, em quase quatro anos de PÁGINA UM, não fui alvo de uma única contra-ordenação, nem de qualquer processo judicial activo. Nem um. Apesar de toda a espuma e névoa que se tem colar contra o projecto editorial do PÁGINA UM inexiste uma qualquer falha, uma qualquer condenação.

    Portanto, falemos de fretes? Eu não faço. Prefiro perder leitores a perder a espinha. Tu, Luís Ribeiro, escolheste o caminho contrário: achaste normalíssimo ajoelhar diante das Águas de Portugal e do Ministério do Ambiente e servir de megafone a patrocinadores públicos, como se o jornalismo fosse uma extensão do gabinete de comunicação do regime. Depois bateste no peito, meteste um cravo à lapela, abriste o X para o mundo e, com solenidade revolucionária de funcionário público em hora extraordinária, proclamaste-te impoluto, livre e independente.

    Pois bem: e a tua consciência, essa, meteste-a no contentor azul — junto dos folhetos recicláveis que andas a assinar.

    O Luís Ribeiro fez artigos noticiosos para cumprir contratos de patrocínio, e ainda defende no X que “TODOS o fazem. A ERC não vive no mundo real”. São os jornalistas que matam o jornalismo.

    E agora ainda tentas, num chilique de vitimização, fingir que estás acima da polémica quando, na verdade, estás mergulhado até à raiz do teclado na lama de um jornalismo serventuário.

    E fica-te bem uma lição final: se não queres ser confundido com um mercador de notícias, então pára de te comportar como um.

    Pedro Almeida Vieira

  • Doenças cardiovasculares: cada minuto a mais até às urgências causa 567 mortes por ano

    Doenças cardiovasculares: cada minuto a mais até às urgências causa 567 mortes por ano

    No espaço de apenas um mês, foram divulgados dois conjuntos de informação que, apesar de não terem merecido uma única manchete nos jornais do regime, encerram uma tragédia silenciosa com implicações gravíssimas para a política de saúde pública e o ordenamento do território.

    Com poucas semanas de intervalo, o INE publicou, por um lado, os tempos medianos (no sentido de abranger 50% da população) no acesso em automóvel ligeiro ao hospital com urgência mais próximo, e, por outro, as taxas de mortalidade por doenças do aparelho circulatório (que por simplificação se denominará por doenças cardiovasculares), ambas discriminadas por concelho. São, ao todo, os 308 concelhos de Portugal.

    Patient in hospital bed with heart monitor showing blood pressure and heart rate.

    À primeira vista, parecem variáveis inconciliáveis — como quase tudo o que se publica com etiquetas burocráticas. A mortalidade cardiovascular, dirão os especialistas, depende de múltiplos factores: grau de envelhecimento da população, prevalência de diabetes, hipertensão, obesidade, estilos de vida, hábitos alimentares, níveis de pobreza, isolamento, rede de cuidados primários, acesso a medicamentos.

    Tudo verdade. Mas o PÁGINA UM colocou uma questão que parece, à partida, ingénua ou até simplista: e a distância até à urgência hospitalar — só por si — será um factor determinante, ou sequer relevante, para as variações da mortalidade por doenças do aparelho circulatório?

    A resposta estatística é directa e inegável: sim. E o que se segue é a demonstração dessa evidência — sem alarme gratuito, mas com o peso sereno dos números. Recorrendo aos dados disponíveis, o PÁGINA UM cruzou as duas variáveis — tempo de acesso às urgências por veículo para 50% da população (2.º quartil) e taxa de mortalidade por doenças do aparelho circulatório — e construiu um modelo de regressão linear simples.

    Distribuição do tempo mediano de acesso às urgências hospitalares e a taxa de mortalidade por doenças do aparelho circulatório nos concelhos portugueses. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    O resultado pode surpreendeu até os mais cépticos: a correlação (de Spearman) é estatisticamente significativa e robusta (ρ = 0,60), indicando uma associação moderadamente forte entre as variáveis, mesmo sem pressupor linearidade. E com outro modelo estatístico — o de regressão por mínimos quadrados — constata-se que o tempo mediano de acesso à urgência explica, isoladamente, 30,5% da variabilidade das taxas de mortalidade entre concelhos.

    Trata-se de um valor elevado, sobretudo tratando-se de um modelo univariado — ou seja, sem controlar factores como idade, rendimento ou prevalência de doenças crónicas. Em estudos populacionais, raramente uma única variável explica tamanha parte da variação. Este resultado revela, por si só, a força preditiva da distância até ao hospital.

    Traduzido em linguagem comum: a Estatística comprova que, quanto mais longe está o hospital com urgência, maior tende a ser a taxa de mortalidade por doenças cardiovasculares — como enfartes do miocárdio, tromboses ou acidentes vasculares cerebrais (AVC). E esta relação não é simbólica: é mensurável. Na prática, o modelo do PÁGINA UM mostra que cada minuto adicional no tempo de acesso está associado a um aumento médio de 0,053 mortes por mil habitantes por ano. Ou noutra perspectiva, mesmo se de forma simplista, cada minuto a mais na chegada à urgência ceifa 567 vidas por ano em Portugal.

    Mas se isto ainda parece uma visão abstracta, passemos ao concreto. Aplicando a taxa de agravamento calculada pelo modelo, é possível estimar o impacto dessa diferença em diversos cenários.

    Por exemplo, se todo o país tivesse tempos de acesso às urgências semelhantes aos da Grande Lisboa — cerca de 7,6 minutos —, a taxa de mortalidade por doenças do aparelho circulatório desceria de 2,8‰ para 2,53‰, evitando-se cerca de 2.900 mortes por ano. Pelo contrário, se os tempos se agravassem para os valores médios da Beira Baixa (29,7 minutos) ou do Baixo Alentejo (35,2 minutos), essa taxa subiria para 3,70‰ e 3,99‰, o que significaria mais 9.600 e 12.700 mortes anuais, respectivamente.

    Com efeito, os valores tornam-se ainda mais expressivos quando se observam as desigualdades territoriais. Muitos concelhos com elevadas taxas de mortalidade cardiovascular são aqueles onde o tempo mediano de acesso às urgências ultrapassa largamente os 30 minutos, em alguns casos mais de uma hora. De entre os 94 concelhos com taxas de mortalidade 50% acima da média nacional — ou seja, com taxa superior a 4,2‰ —, 53 têm tempos medianos de mais de 30 minutos. Ou seja, quase seis em cada 10 concelhos (56%) com taxas de mortalidade elevada para este tipo de doenças súbitas têm grande parte da sua população a mais de 30 minutos de uma urgência.

    brown concrete houses on mountain
    Viver numa aldeia pode ser paradisíaco, mas fatal em caso de doenças súbitas.

    Estes concelhos dispersam-se sobretudo entre o Alentejo profundo, as serranias do Centro, os vales raianos e as franjas da Madeira, e merecem destaque: Penalva do Castelo, Castro Daire, Montemor-o-Novo, Vila de Rei, Sátão, Resende, Portel, Redondo, Sertã, Estremoz, Nisa, Aljezur, Aljustrel, Gavião, Fornos de Algodres, Alvito, Manteigas, Arganil, Santana, Castro Verde, Vila Nova de Paiva, Almeida, Sabugal, São Pedro do Sul, Vieira do Minho, Vinhais, Coruche, Proença-a-Nova, Penamacor, Serpa, Idanha-a-Nova, Alandroal, Góis, Vimioso, Avis, Sousel, Oleiros, Porto Moniz, Monção, Ourique, Aguiar da Beira, Montalegre, Mêda, Mértola, Pampilhosa da Serra, Mora, Moura, Mogadouro, Sernancelhe, Figueira de Castelo Rodrigo, Alcoutim, Melgaço e Freixo de Espada à Cinta

    Têm em comum o mesmo fardo estrutural: o afastamento dos equipamentos de saúde. Mas o problema não é exclusivo de aldeias esquecidas. Mesmo concelhos de média dimensão — como Castelo Branco, Viseu, Évora, ou zonas periféricas de Coimbra e Leiria — enfrentam tempos medianos de acesso superiores a 30 minutos. A dispersão populacional, a escassez de serviços de atendimento permanente e o desinvestimento em redes viárias e extensões hospitalares contribuem para essa penalização.

    Em sentido inverso, a análise aos 63 concelhos com tempo de acesso inferior a 10 minutos confirma o efeito protector da proximidade: apenas 21 ultrapassam a média nacional de mortalidade (2,8‰), e destes só três — Elvas, Beja e Abrantes — apresentam taxas de mortalidade 50% acima da média nacional, ou seja, mais de 4,2‰. Ou seja, estes casos isolados não invalidam a tendência dominante.

    Silhouette of a person with a glowing red neon heart in the dark, symbolizing love.

    E essa tendência é ainda mais clara nos grandes centros urbanos. Lisboa com 4,3 minutos de distância mediana até ás urgências regista 3,1‰ de taxa de mortalidade é a excepção, embora seja um concelho bastante envelhecido (quase um quarto da população tem mais de 65 anos), o que permite aferir o desastre que seria se os tempos fossem maiores.

    De resto, todas as principais cidades estão abaixo da taxa de mortalidade e abaixo da média do tempo mediano: Porto (5,5 min), 2,7‰; Oeiras (6,0 min), 2,6‰; Coimbra (6,6 min), 2,5‰; Cascais (7,1 min), 2,6‰; e Vila Nova de Gaia (7,2 min), apenas 2,1‰. Mesmo com uma população envelhecida e elevada carga de doenças crónicas, estes concelhos têm mortalidade cardiovascular bastante abaixo da média nacional. A explicação é simples: chegam ao hospital mais cedo — muitas vezes, a tempo de serem salvos.

    Num país que se gaba de ter um Serviço Nacional de Saúde universal e igualitário, a geografia continua a ser um factor de desigualdade brutal. Viver em Alvito, Nisa ou Montalegre não devia ser, por si só, uma ameaça cardiovascular. Mas é. E essa ameaça não decorre apenas de heranças do passado: resulta de opções políticas recentes, de centralizações disfarçadas de modernização e de cortes orçamentais que não chegam à opinião pública, mas chegam às portas fechadas dos centros de saúde.

    black sand

    A distância, neste caso, mata. Mata com estradas estreitas, com ambulâncias em falta, com urgências encerradas, com extensões sem capacidade de estabilização. Mata com o silêncio estatístico da negligência. Mas os números não mentem. Nem se comovem. Apenas revelam.

    E estes apenas pelo PÁGINA UM servem para apelar para a necessidade análises estatísticas mais rigorosas e modelos mais refinados, de modo a se conseguir isolar outros factores determinantes da mortalidade, permitindo identificar com precisão onde as desigualdades são mais profundas e como podem ser eficazmente combatidas. Porque saúde pública não se faz apenas despejando dinheiro em medidas genéricas ou politicamente vistosas — faz-se, antes de tudo, com estudo, método e sabedoria na aplicação dos recursos.

    ***

    N.D. Os resultados apresentados neste artigo — com destaque para a associação estatisticamente significativa entre o tempo mediano de acesso às urgências hospitalares e a taxa de mortalidade por doenças do aparelho circulatório — assentam em modelos estatísticos simples e transparentes, construídos a partir de dados oficiais. No entanto, cumpre assinalar que se trata de um modelo univariado, ou seja, não ajustado para outros factores relevantes como o envelhecimento demográfico, a prevalência de doenças crónicas, a distribuição dos cuidados de saúde primários ou os níveis socioeconómicos locais.

    Neste sentido, a associação estatística identificada não deve ser confundida com uma prova de causalidade directa, embora a evidência científica internacional reconheça, de forma robusta, que a rapidez no acesso a cuidados médicos especializados é determinante na sobrevivência em situações de doença súbita, como enfartes agudos do miocárdio ou acidentes vasculares cerebrais.

    O objectivo desta análise foi, por isso, identificar padrões territoriais de risco que justificam estudos mais aprofundados, com modelos multivariados e abordagens geoestruturais, permitindo orientar a política pública com base em evidência e não apenas em pressupostos administrativos ou igualitarismos abstractos.

  • Afinal, o Benfica (ainda) sabe ser campeão

    Afinal, o Benfica (ainda) sabe ser campeão


    Confesso: há dois anos que não me entusiasmava verdadeiramente com um jogo de pontapé na bola — e isto depois de mais um balde de água fria sobre as águias, nos Estados Unidos. Talvez porque, sendo benfiquista, tenho coleccionado desilusões com mais afinco do que títulos. Entre um campeonato prometido em Setembro e um “estivemos quase” em Maio, o futebol do Benfica tem sido mais um exercício de fé do que de razão. Vai daí, num rasgo de insensatez que deve ter nascido numa escuta enviesada do podcast de Rui Miguel Tovar sobre o imortal Pimenta Machado — esse titã filosófico de Guimarães — decidi ir ver a finalíssima do campeonato de futsal… em pleno Pavilhão João Rocha.

    A ousadia teve cúmplice: o leonino Carlos Enes, autor de vários Da Varanda do Varanda — textos tão afiados como a língua de um Varandas em dia de comício — que, numa rara demonstração de civilidade interclubística, acedeu a fazer-se acompanhar por um benfiquista, desde que este, claro está, lavasse as mãos antes de entrar. O plano só não descambou num enredo ao estilo das comédias do Mel Brooks porque os deuses do futsal, ou talvez os funcionários do Sporting, mostraram alguma misericórdia.

    De facto, num intervalo entre escrever dois parágrafos sobre os despesismos com o Erário Público e a audição das memórias do homem que um dia terá dito que as verdades de hoje podem ser as mentiras de amanhã, dei por mim a preencher o pedido de acreditação… para o jogo Sporting – Guimarães em futsal. Um pequeno detalhe: o Vitória de Guimarães não tem equipa sénior de futsal — pelo menos, segundo reza o Google e uma rápida incursão pelo site da FPF. Descobri, no entanto, a existência do Futebol Clube Os Piratas de Creixomil e do Lokomotiv de Gondar — o que, convenhamos, só reforça a ideia de que a imaginação em Guimarães não morreu com D. Afonso Henriques.

    O caso ficou resolvido com algumas trocas de mensagens e telefonemas do Carlos Enes, que terá usado a sua credencial de cronista sportinguista como moeda de troca, prometendo que não levava um infiltrado, mas sim um “erudito em exílio futebolístico temporário”. Fomos admitidos. Chegados ao pavilhão, a primeira surpresa foi o próprio recinto: cheio, sim, mas mais pequeno do que esperava. A televisão faz milagres: dá profundidade a pavilhões e talento a jogadores medíocres.

    Confesso outro pecado: não domino as regras do futsal. Sou do tempo em que se chamava futebol de salão, e a bola pesada fazia menos barulho do que os chinelos da Educação Física. Até à irrupção de Ricardinho e da sua ginga patrocinada, o futsal passava-me ao lado. A única regra que trazia bem decorada era a do tempo cronometrado — duas partes de 20 minutos — que, como qualquer ex-árbitro medíocre de basquetebol e ex-jogador de andebol sabe, equivale a uma eternidade de bola a rolar sem desculpas para antijogo ou lesões imaginárias. Uma benesse.

    Mas vamos ao jogo, que é para isso que se foi. E começou mal. O Sporting marcou dois golos quase seguidos, com o primeiro a ser de um tal Zicky Té, nome que reconheci vagamente, talvez por me soar a personagem de anime com superpoderes. Parecia que os ‘lagartos’ estavam prontos para o penta. O Benfica ainda reduziu antes do intervalo, numa jogada que mostrou como uma pequena distracção pode, no futsal, ser penalizada com a precisão de uma guilhotina. Nem tudo parecia perdido.

    A segunda parte recomeçou com esperança: empate do Benfica, explosão na bancada. Mas o Sporting reagiu com o mesmo instinto predador com que o leão ataca a zebra no Serengeti. Voltou à vantagem, e aí temi que tudo estivesse perdido.

    E foi então que a ignorância me salvou da angústia. Não sabia que, no futsal, após uma expulsão, a equipa fica reduzida durante dois minutos — ou até sofrer um golo. E foi exactamente isso que sucedeu. O Benfica empatou de novo, numa jogada em que o guarda-redes leonino teve uma espécie de epifania inversa: em vez de defender, ofereceu-se à bola como um apóstolo do desespero.

    Pouco depois, quase a faltar apenas dois minutos úteis para jogar, o improvável aconteceu: um remate de meia-distância do guarda-redes do Benfica — que, julgo, terá partido de uns bons doze metros — encontrou as redes, com mais ajuda do guarda-redes do Sporting do que qualquer estratégia treinada. Golo! Benfica na frente.

    A comoção foi tal que, por breves segundos, temi que o meu coração me traísse ali mesmo no João Rocha — e que tivesse de ser levado em ombros não por glória, mas por aflição. No pavilhão, o operador do resultado, certamente um sportinguista, também não estaria em si: demorou larguíssimo segundos até admitir o 3-4.

    O jogo terminou, e o mais bonito veio depois. Os funcionários do Sporting montaram com dignidade o cenário para a entrega do troféu ao rival. O Rui Costa deve ter agradecido a poupança por a festa ter sido custeada pelo adversário .

    E os jogadores do Benfica, num gesto que honra mais do que mil vitórias, fizeram alas para os jogadores do Sporting receberem as medalhas de segundo lugar. E depois foram os sportinguistas que fizeram o mesmo para os campeões passarem rumo ao caneco. Um momento de fair-play raro — que, confesso, me emocionou quase tanto quanto o golo da vitória.

    Foi uma noite de festa, não só por termos vencido, mas por termos partilhado o jogo com quem pensa diferente. E o futsal ensinou-me uma coisa num só jogo: que mesmo num pavilhão onde tudo nos é adverso — regras, estatísticas, paredes em verde ácido — ainda é possível sair com um sorriso. E um título. E, sobretudo, com o sentimento de que, afinal, ainda vale a pena ir ao desporto só pela alegria do jogo. Ah! E ainda aguardo a crónica do Carlos Enes…

  • Um espectáculo em vez de um concerto

    Um espectáculo em vez de um concerto

    Perco-me na memória, o que, confesso, já não é difícil. Ela anda fraca, difusa, com os fios do passado a entrelaçarem-se nas brumas do presente. Mas julgo lembrar-me — ou talvez esteja já a confundir imagens com sonhos — dos tempos em que fui, na juventude, a concertos de estádio. Penso que um desses foi com os Genesis, já envelhecidos mas ainda imponentes, ou talvez tenha sido o Sting, não sei já bem. Em ambos os casos, no antigo Estádio da Luz. Recordo, isso sim com mais nitidez, o Nick Cave no Estádio do Dragão, em noite tripeira, como convém à sua figura gótica. Mas tudo isso foi há décadas.

    Nos últimos anos, tenho preferido os recintos mais comedidos, mais próximos do ouvido e do coração. Um concerto no Coliseu ou no Campo Pequeno sabe-me melhor do que a profusão de luzes e decibéis de um estádio. Já quase não vou a festivais. Acho que o último foi com o David Bowie no Passeio Marítimo de Alcântara em 1996 — e já nem me lembrava do ano.

    Foto: João Palhinha / Everything is New.

    E não é apenas por pudor de idade ou cansaço auditivo: é porque, cada vez mais, o que se apresenta num estádio é um espectáculo — e não um concerto. Um estádio é uma arena de imagens, de sons preparados ao milímetro, de efeitos que hipnotizam o olhar mas nem sempre tocam a alma. E tudo isso se confirmou com os Imagine Dragons.

    Na quinta-feira, frente a 64 mil pessoas no Estádio da Luz, Dan Reynolds e os seus companheiros ofereceram o que se esperava: um evento visualmente apoteótico, musicalmente eficiente, emocionalmente polido. Mas talvez fosse essa previsibilidade que me deixou um leve sabor a indiferença, como um prato servido com mestria mas sem surpresa.

    Cheguei ligeiramente atrasado ao concerto (não acontece apenas com os jogos do Benfica), mas também não fiquei na Varanda da Luz: fiquei num assento junto ao relvado, perto do sítio onde assisti à vitória de Portugal contra a Suíça no apuramento para o Mundial de 2018. Enfim, bom lugar para ver a parafernália e os ecrãs, mas difícil de saber onde parava o Dan, que ia percorrendo o catwalk, perpendicular ao palco principal. Perdi, segundo consta, Fire in These Hills, do último álbum, e apanhei-me no meio de Thunder, um dos hits da banda de Las Vegas, nascido em 2008, que fez vibrar as bancadas, e que funcionou, claro, como grande parte do repertório do grupo: porque já está no ouvido, porque tem refrão fácil, porque tem (boa) percussão.

    Foto: João Palhinha / Everything is New.

    Como disse, pela distância e porque andei a percorrer com os olhos as bancadas, não me dava conta por onde Dan Reynolds andava, já de tronco nu, porque o homem saltava, corria, agitava os braços com uma energia quase coreografada, ao mesmo tempo que bolas insufláveis invadiam o relvado e a pirotecnia estalava. Percebia-se logo que ali não se queria dar um concerto, queria-se causar impacto — até porque, por vezes, o som distorcia. E conseguiram: Bones, Take Me to the Beach, Shots, Whatever It Takes — pelo menos estas, que consegui, com maior ou menor dificuldade e apoio, desfilaram todas, uma após outra, como faixas de um álbum de êxitos empilhados sem pausas. Já ali há pouco ou quase nada de indie ou alt rock — é quase tudo pop.

    É verdade que houve momentos de pausa emocional. Quase no final, Dan Reynolds partilhou com o público a sua história pessoal de luta contra a depressão e a ansiedade. Falou da importância da terapia, do apoio, da vida partilhada. Foi genuíno — e nessa franqueza conseguiu o que raras vezes se alcança num estádio: silêncio. Mas, sendo já recorrente nos concertos da banda, esse momento de abertura emocional começa a resvalar para um ritual quase coreografado, uma catarse repetida que, podendo ser sincera e até incentivadora, já dá sinais de déjà vu.

    Tocará isto sempre os corações menos cínicos, é certo, mas roça perigosamente os contornos do marketing emocional — aquele ponto em que a intimidade parece mais ensaiada do que vivida, e em que o apelo à empatia se confunde com uma estratégia de retenção de público. Fica a sensação de que há ali verdade, sim, mas também conveniência.

    Entretanto, houve também momentos acústicos com Next to Me e I Bet My Life, num registo mais contido e sincopado. Talvez ali se tenha ouvido o grupo com maior nitidez — talvez ali se tivesse encontrado, por breves minutos, o que antes se chamava um concerto.

    Também I’m Sorry e Shots tentaram recuperar alguma densidade musical, e não faltaram solos — ora de guitarra, ora de baixo — para cumprir o protocolo técnico. Porém, a estrutura do concerto foi sempre a mesma: subida, explosão, breve pausa, nova explosão, apoteose. A música como cenografia.

    Já perto do fim, desfilaram os maiores sucessos: Bad Liar, Radioactive, Demons e Believer, este último encerrando a noite com pirotecnia em modo épico e Dan Reynolds enrolado numa bandeira da Ucrânia — símbolo de um mundo em que a política e o entretenimento partilham o mesmo palco, mesmo quando não se diz uma palavra sobre o assunto. Houve também uma guitarra com a bandeira trans empunhada pelo baixista Ben McKee, que, podendo ser sincera, também tem algo de marketing inclusivo. Até porque os Imagine Dragons têm recebido críticas pelo facto de tocarem em países pouco recomendáveis.

    Foto: João Palhinha / Everything is New.

    Por fim, durante Radioactive, Reynolds ainda subiu à bateria para um dueto com o baterista — e ainda pensei que fosse como Phil Collins: melhor baterista do que cantor — e depois sentou-se ao piano para Demons, para acabar por correr de um lado ao outro do palco. “Amamos-vos, Lisboa”, repetiu, até à exaustão. Mas foi um amor sem encore. E aqui, confesso, reside uma das minhas maiores perplexidades: um grupo que não faz encore, mesmo depois de duas horas de actuação, falha algo essencial.

    O encore não é apenas um apêndice: é uma praxe simbólica, um agradecimento final, um jogo de fingimento que reforça a ligação com o público. Recusar esse ritual é como recusar o brinde no final do jantar. E, por causa disso, os Imagine Dragons levam meio ponto a menos nesta crítica do que estavam para apanhar.

    Nota final: 3,5 em 5.