Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Tondela 3.0

    Tondela 3.0


    O número três tem uma carga simbólica difícil de ignorar. Não por ser o primeiro número que nos faz sentir a repetição, mas sim por prenunciar uma eventual permanência: depois do um que se arrisca, e do dois que confirma, chega o três que sela, consagra e promete duração. Há quem veja nele a perfeição — Pai, Filho e Espírito Santo; passado, presente e futuro; início, meio e fim. Mas também há quem perceba no três o perigo da rotina, o prenúncio de que uma ideia que começou fresca corre o risco de ficar viciada. E é nesse dilema que se encontra este Da Varanda da Luz, agora a entrar na sua terceira temporada.

    As más-línguas já disseram tudo e o contrário de tudo: que um jornalista que se apresenta como independente e rigoroso não deve entregar-se a crónicas futebolísticas, caseiras e subjectivas; que um fervoroso sócio do Benfica não pode sentar-se numa varanda e, de lá, fazer o papel de cronista; que isto é como confundir o relato íntimo de um jantar em família com o relatório de contas da EDP.

    Talvez tenham razão, talvez não. O certo é que a varanda, com as suas vistas imperfeitas e o coração a bater pelo vermelho, se tornou, para mim, lugar de reflexão e catarse, e já não é só minha: quem lê acompanha-me nesta liturgia quase quinzenal, entre nervos, vitórias suadas e derrotas que doem como punhais.

    Mas há um problema que este número três já carrega consigo, e não é pequeno: se há terceira temporada, tem desta vez que haver caneco. A matemática é cruel. O futebol vive da fome insaciável de conquistas. Um ano sem título para o Benfica é tropeço; dois anos sem título é drama; três anos sem título começa a ser vergonha. E assim, o número que devia trazer perfeição ameaça instalar o ridículo. Não porque esta crónica seja caseira e subjectiva — isso até pode ser um charme, uma espécie de antídoto contra a pompa vazia da crónica oficializada —, mas porque a sucessão de épocas sem festa no Marquês transforma qualquer escrita de um benfiquista numa ladainha de desculpas, revoltas e esperanças adiadas.

    O ridículo, afinal, não mora tanto na varanda, mas na equipa. E como separar o cronista do seu objecto? Se a terceira temporada chegar sem campeonato, quem escreve arrisca-se a ser cúmplice de um fado menor, cronista de um vazio, padre de uma missa sem fiéis. É a sina de quem mistura paixão e profissão, casa e ofício. Talvez o mais independente dos jornalistas seja aquele que, ao assumir a sua subjectividade, se entrega sem máscaras, sem as frases feitas da imparcialidade de fachada. Talvez haja mais rigor em declarar a parcialidade do que em escondê-la debaixo de um casaco de cinismo.

    Em todo o caso, esta não é a minha estreia esta época. Já aqui estive há duas semanas, a limpar o Nice — e foi uma beleza: daqueles jogos em que tudo parece fácil, em que a equipa acerta passes de olhos fechados e a superioridade se sente como uma evidência. Tive a sorte de ter o Tiago Franco a escrever à distância. Enfim, para começar, não foi mau: uma vitória limpa, fresca, sem nódoas, daquelas que fazem acreditar que o ano vai correr direito. Veremos, na próxima terça-feira, se vamos mesmo apear o Fenerbahçe do José Mourinho. Mas isso são contas para outro rosário, e a missa será rezada na devida altura.

    Como qualquer benfiquista que se preze, começamos sempre um campeonato com alguma aflição. Não como no ano passado ou há dois anos, em que entrámos sempre com o pé esquerdo, mas o jogo contra o Estrela da Amadora, na semana passada, não convenceu ninguém. Foi vitória, é certo, mas com exibição deslavada, sem nervo, como se a equipa tivesse decidido entrar em campo de pantufas.

    Contra o Tondela, temos meia equipa diferente do ano passado — e não sei ainda se é para melhor. Financeiramente, acredito, é bom para os empresários. Em todo o caso, o Ivanovic parece que vai fazer uma boa parelha com o Pavlidis; Richard Ríos trouxe intensidade, mas parece-me que terá dias; o novo Enzo (depois do Pérez e do Fernández) tem alma; e os laterais, Dedić (sobretudo este) e Rafael Obrador, acrescentam opções. Mas, ironicamente, continuo a achar que a melhor aquisição é um jogador que já cá estava: Aursnes, que a cada época me parece (ainda) melhor, mais completo, ainda mais polivalente, mostrando que até a extremo-direito joga excepcionalmente bem, como se fosse crescendo com o próprio peso da camisola.

    Enfim, mas devia estar a falar em concreto do jogo contra o Tondela. E aí, confesso, foi daqueles serões que mais parecem um chá morno ao fim do dia. Uma noite de sábado calma, sem sobressalto algum, a aguardar os golitos, uns bocejos a preencher o intervalo, e uma crónica escrita quase em piloto automático. Nada a apontar de grave, nada a exaltar de épico. Apenas o ofício de ganhar, que também faz falta, mas que não chega para incendiar a alma.

    E, nem de propósito, e para fechar a crónica como começou, o miúdo Prestianni — o único jogador do Benfica que está à minha altura, com os seus 1,66 metros — selou a vitória com o terceiro golo, já nos descontos. Bom presságio.

  • A mortalidade triplicou mesmo ou a SIC é o novo Jornal do Incrível?

    A mortalidade triplicou mesmo ou a SIC é o novo Jornal do Incrível?


    A SIC Notícias brindou os portugueses, neste dia da graça de 22 de Agosto, com uma das maiores vergonhas do jornalismo nacional recente: a manchete Calor extremo faz disparar nível de mortalidade para o triplo face a 2024, em arquivo aqui para memória futura. Um enunciado que, à primeira leitura, não resiste sequer ao teste da lógica elementar.

    Triplicar significa aumentar 200%. E, como qualquer aluno do secundário sabe, se em 2024 morreram “x” pessoas, para em 2025 a mortalidade “triplicar” teriam de morrer 3x. Ora, bastaria olhar para a série histórica da mortalidade em Portugal para perceber que tal crescimento seria uma aberração estatística — nunca em tempo algum se registou, nem remotamente, uma explosão destas dimensões.

    Mas afinal, o que mostram os dados oficiais, designadamente os disponibilizados pelo Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO)? Entre 21 de Junho e 20 de Agosto de 2024 morreram 18.570 pessoas. No mesmo período de 2025 morreram 19.606. Diferença: +1.036 óbitos, equivalentes a +5,6%.

    Não há triplicação, nem duplicação, nem um aumento sequer de 50% nem de 10%. Houve apenas um acréscimo marginal, até perfeitamente dentro da variabilidade sazonal. Mas a SIC não hesitou em colocar na capa uma formulação que faria corar qualquer estudante de estatística. O problema não é apenas a mentira numérica: é a incapacidade de suspeitar que a triplicação não tinha lógica alguma e, ainda assim, publicá-lo como verdade absoluta.

    Mesmo que se quisesse, porque a Estatística pode permitir muitos ziguezagues, “puxar” a corda das metodologias, usando baselines mais propensos a detectar excessos de mortalidade — como a média de 2014–2019, um período pré-pandemia em que a mortalidade era mais baixa e a população menos envelhecida (e em menor número) —, o máximo que se encontra é um aumento na ordem dos 20%. E isto com o truque de não usar padronização etária. Mais realistas seriam os cálculos com média 2014–2024, que apontam para +13,6%.

    Porém, uma análise séria teria de incluir a tendência secular e ajustá-la à evolução demográfica. Contas feitas, com o modelo Serfling–Poisson, o excesso no Verão de 2025 não passa assim de +4% (+748 óbitos). Ou seja: nunca, em cenário algum, se chega sequer a 10%. Quanto mais a 200%! A notícia da SIC não é apenas exagerada: é aritmeticamente absurda.

    Evolução da mortalidade diária observada em Portugal no ano de 2025 (linha preta), em comparação com dois baselines históricos: a média dos anos 2014–2019 (linha azul tracejada) e a média de 2014–2024 (linha laranja tracejada). A zona sombreada a laranja corresponde ao período de Verão entre 21 de Junho e 20 de Agosto. Observa-se que, embora durante estas semanas os valores diários de 2025 tenham ficado acima das médias históricas, o desvio foi moderado e nunca configurou uma explosão de mortalidade. A oscilação é compatível com fenómenos sazonais normais e não justifica, jamais, a ideia de uma “triplicação” da mortalidade.

    E há um dado ainda mais revelador que a SIC omitiu, bem como o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge que anda numa azáfama para colar na imprensa um excesso de mortalidade que não existe.

    Com efeito, no acumulado de 2025 até 20 de Agosto, longe de se registar excesso, está a observar-se mesmo um défice de mortalidade, ou seja, menos mortalidade do que a esperada. Entre 1 de Janeiro e 20 de Agosto, o país contabilizou 78.271 óbitos, quando o esperado, ajustado à tendência de envelhecimento, seria de cerca de 81.487. Ou seja, morreram menos 3.216 pessoas do que seria expectável, um défice de 3,9%. Isto significa que, no conjunto do ano, não só não houve uma explosão de mortes, como até se morreu menos do que o normal.

    A “triplicação” da SIC é, portanto, não só falsa mas diametralmente oposta ao real: em vez de se morrer a mais, morreu-se a menos.

    O gráfico mostra a evolução dos óbitos acumulados em Portugal desde 1 de Janeiro até 20 de Agosto de 2025 (linha preta), comparada com três referências distintas: a média diária de 2014–2019 (linha azul tracejada), a média diária de 2014–2024 (linha laranja tracejada) e o baseline ajustado à tendência secular obtido por modelo Serfling–Poisson (linha verde), que incorpora a evolução demográfica e o envelhecimento da população. A zona sombreada a laranja assinala o período de verão, entre 21 de Junho e 20 de Agosto. Apesar de o traçado de 2025 se situar acima das médias históricas não ajustadas durante o verão, a comparação com a linha verde evidencia que, no acumulado anual até 20 de Agosto, o número de óbitos ficou abaixo do esperado, traduzindo um défice de 3,9%. Este resultado confirma que os picos de mortalidade verificados em Julho e Agosto correspondem sobretudo a um efeito de harvesting effect e não a um excesso líquido de mortes.

    Este dado liga-se a um mecanismo conhecido e estudado: o harvesting effect. Em muitos episódios de calor extremo, alguns idosos muito frágeis morrem uns dias ou semanas mais cedo, criando picos temporários. Ou, por outro lado, uma menor actividade gripal no Inverno acaba por ‘permitir’ que no Verão se concentrem mais pessoas altamente vulneráveis. Mas, no verão – que é, aliás, a época do ano de menor mortalidade – logo a seguir a eventuais picos, observa-se um défice compensatório, porque essas pessoas já estavam próximas do fim da vida. É uma espécie de antecipação estatística da mortalidade.

    Em situações normais, excepto casos de ruptura dos sistemas de saúde e crises sanitárias, o resultado líquido, ao fim de alguns meses, tende a ser nulo ou muito reduzido. E é exactamente isso que começa a desenhar-se em 2025, depois das anomalias entre 2020 e 2022: um ligeiro aumento no Verão, mas um défice claro no total anual até Agosto, porque os primeiros meses do ano foram de baixa mortalidade. Aquilo que a SIC pintou como catástrofe inimaginável é, afinal, apenas o jogo normal da sazonalidade e da fragilidade etária.

    Ainda mais grave, a somar ao facto de nenhum editor sénior ter detectado a parvoíce, é quem assina esta autêntica vergonha jornalística. A jornalista responsável passou anos a trabalhar em “fact-checking” para o Polígrafo, projecto que deixou em Novembro do ano passado e se apresenta como guardião da verdade contra a desinformação. Ora, se quem viveu do carimbo “verdadeiro/falso” é capaz de colocar no ar uma falsidade que nem sequer resiste ao senso comum mais básico, que confiança pode ter o público em todo o edifício do chamado “fact-checking”? O caso da SIC mostra como o jornalismo português, em vez de desconfiar e questionar, opta por amplificar narrativas institucionais sem pestanejar, mesmo quando os números gritariam o contrário.

    Tabela comparativa da mortalidade observada em Portugal no verão de 2025 (21 de Junho–20 de Agosto) e no acumulado do ano até 20 de Agosto (YTD), face a dois baselines históricos: média 2014–2019 (A1) e média 2014–2024 (A2). São apresentados os valores observados, os esperados, o excesso absoluto e relativo, bem como a Razão de Mortalidade Padronizada (SMR) e respectivos intervalos de confiança a 95% (IC95%). Mesmo em cenários mais favoráveis à detecção de excesso, os desvios nunca ultrapassam +21%, e no acumulado anual ficam entre +4,8% e +9,5%. Estes valores contrastam radicalmente com a manchete da SIC que falava em “triplicação” (200%), algo estatisticamente impossível e totalmente desprovido de lógica.

    A lógica jornalística deveria ser esta: se alguém afirma que a mortalidade triplicou, o primeiro dever é fazer a conta simples e ver se é plausível. E, em seguida, confrontar a instituição com o disparate. O que aconteceu foi precisamente o inverso: a SIC transformou um disparate em manchete, espalhou-o pelas redes sociais e reforçou o medo colectivo. Tudo isto sem perceber que estava a afirmar uma impossibilidade estatística.

    Em síntese: a SIC não só errou como errou de forma grotesca. Não só exagerou como transformou um aumento de 5,6% (ou mesmo menor) em um suposto aumento de 200%. Não só deixou de fazer jornalismo como prestou um serviço de desinformação. E, talvez mais grave do que tudo isto, revelou uma total ausência de cultura estatística e de escrutínio crítico — exactamente aquilo que um jornalista de “fact-checking” deveria ter como competências mínimas. Publicar esta notícia foi um acto de irresponsabilidade e de propaganda, não de informação.

  • A Economia do Fogo num país de aselhas governado por mentecaptos

    A Economia do Fogo num país de aselhas governado por mentecaptos


    O Governo voltou a anunciar um cardápio de medidas para acudir às zonas devastadas pelos incêndios deste ano: isenções, apoios financeiros a famílias, empresas e agricultores, reconstrução de casas, reforço dos cuidados de saúde, prorrogação de prazos fiscais e contributivos. Um extenso rosário de paliativos, embrulhado em discurso piedoso, que já conhecemos de cor e salteado.

    A cada tragédia sucede a mesma liturgia: visitas oficiais, promessas de apoios, choradeira perante as câmaras, discursos sobre a “solidariedade nacional”. Depois, silêncio, esquecimento e a inevitável repetição da catástrofe. Este é um ciclo vicioso que se arrasta há décadas e que revela não apenas incompetência, mas uma deliberada recusa em alterar a estrutura de um país refém da sua própria economia do fogo.

    Não se trata de má sorte. Não se trata de acidentes. Portugal não tem quatro anos malditos no espaço de um quarto de século por mero acaso – 2003, 2005, 2017 e agora 2025 não são caprichos da Natureza. São a prova empírica de que vivemos num país de aselhas e de mentecaptos políticos, incapazes de agir estruturalmente. Os Governos sucedem-se, mudam as caras, trocam-se siglas partidárias, mas o resultado é sempre o mesmo: hectares e hectares carbonizados, vidas destruídas, um território rural cada vez mais desertificado. Não é azar – é gestão criminosa.

    E, contudo, insiste-se na farsa dos bodes expiatórios. Há sempre quem aponte o dedo aos “incendiários”, às “ignições criminosas”, ao “clima extremo”, até aos “interesses do lítio”. Tudo serve para iludir a raiz do problema: a desordem fundiária, o minifúndio abandonado, a ausência de ordenamento florestal, a dependência do eucalipto e do pinhal, a ausência de políticas sérias de prevenção. O país não é um país de incendiários – é um país que aprecia cultivar essa narrativa, porque ela desvia atenções e permite manter de pé um status quo de interesses aparentemente obscuros mas evidentes nas sombras.

    Fala-se pouco, mas há hoje uma verdadeira Economia do Fogo instalada, tão entranhada quanto as acácias invasoras que dominam os nossos matos. Essa Economia vive e prospera das chamas. Há nela múltiplos actores, todos satisfeitos com o imobilismo governativo. As empresas de meios aéreos, sempre prontas a engordar contratos chorudos a cada verão; as corporações de bombeiros “voluntários”, que já de voluntárias pouco têm e que transformaram a tragédia em mecanismo de financiamento; os madeireiros, que aproveitam a desgraça para adquirir madeira barata e lucrar com a miséria alheia; e, agora, uma nova vaga de empreiteiros da reconstrução, ávidos em receber milhões de euros públicos para erguer de novo o que amanhã pode tornar a arder. É um ciclo obsceno: o fogo destrói, o Estado distribui, meia-dúzia lucram, os contribuintes pagam.

    silhouette of trees on smoke covered forest

    Não pode continuar esta palhaçada. Não é com apoios pontuais, com moratórias fiscais, com subsídios de tesouraria que se resolve um problema estrutural. É preciso romper com a lógica assistencialista e com o oportunismo político que se alimenta da tragédia.

    Portugal precisa de mudanças drásticas e corajosas: consolidação fundiária, gestão dos espaços florestais profissionalizada em larga escala, limitação séria da expansão de espécies silvícolas cada vez menos adaptadas às condições socio-ambientais (eucalipto e pinheiro-bravo), investimento continuado em prevenção e silvicultura sustentável. Não se trata de inventar a roda, mas de ter coragem política para enfrentar lóbis instalados e pôr fim à Economia do Fogo.

    Em 2003, Durão Barroso prometeu uma reforma profunda após o verão infernal. Em 2005, já com Sócrates, repetiram-se juras de “nunca mais”. Em 2017, António Costa encenou a mesma coreografia, jurando que a tragédia de Pedrógão e os fogos do Outono seria um ponto de viragem. Hoje, Montenegro vem repetir o ritual: mais apoios, mais promessas, mais remendos. O guião é o mesmo, os protagonistas mudam.

    bonfire

    O país não aguenta mais este teatro macabro. Não basta reconstruir o que arde, é preciso impedir que arda. O Governo tem de escolher se quer ser cúmplice de um sistema parasitário ou se quer, finalmente, governar para o interesse público. Portugal não precisa de mais discursos piedosos nem de mais milhões a fundo perdido para sustentar esta Economia do Fogo. Precisa de líderes que tenham a coragem de dizer basta e que, em vez de lágrimas de ocasião, tragam reformas estruturais. Se Montenegro repetir o mesmo que prometeram Barroso, Sócrates e Costa, ficará inscrito na mesma lista infame de chefes de Governo que deixaram o país arder em cinzas.

    Esse é o ponto de hoje: ou se rompe, ou continuaremos a ser um país de aselhas, governado por mentecaptos políticos, que confundem solidariedade com esmolas e política com oportunismo. O futuro da floresta, do território e da própria dignidade nacional não pode ficar refém desta Economia do Fogo.

  • Divórcio absoluto: no ano passado só 15 das 54 vagas em licenciaturas no sector florestal foram ocupadas

    Divórcio absoluto: no ano passado só 15 das 54 vagas em licenciaturas no sector florestal foram ocupadas

    Adenda (25/8/2025): como complemento a esta notícia de 22 de Agosto, neste domingo (dia 24) saíram as colocações para o ano lectivo de 2025/2026 que confirmam a pouca atractividade das licenciaturas em Engenharia Florestal. No total, foram abertas 60 vagas em três instituições – Escola Superior Agrária de Coimbra, Instituto Superior de Agronomia (Lisboa) e Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro –, mas apenas 13 lugares foram ocupados. Em Coimbra entraram seis alunos (em 20 vagas), em Lisboa apenas quatro (em 20 vagas) e em Vila Real três (em 20 vagas), sobrando 47 vagas para as fases seguintes, o que corresponde a uma taxa de ocupação de apenas 22%. A situação deste ano ainda piorou mais face ao cenário exposto no título desta notícia.

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    Portugal continua a arder, ano após ano – e este será pelo menos o quarto pior de sempre, com mais de 210 mil hectares já consumidos – numa espécie de ritual estival que junta a indiferença política ao conformismo social. Ardem os pinhais, ardem os eucaliptais, ardem os soutos e os matos que crescem sem dono e sem regra, ardem as aldeias que se esvaziam de gente e ardem as memórias de um país rural que já poucos querem lembrar.

    No meio das cinzas, regressa sempre a mesma ladainha: lamentar a floresta maltratada. Mas essa dor é superficial, quase litúrgica, porque a verdade é que a floresta nem sequer é amada de verdade. Prova disso está num pormenor que deveria envergonhar qualquer governante: já quase nenhum jovem português quer estudar ciências florestais.

    empty concrete road covered surrounded by tall tress with sun rays

    Até aos anos 90 ainda havia entusiasmo. Em 1997, por exemplo, o Instituto Superior de Agronomia, da Universidade de Lisboa, abriu 55 vagas em Engenharia Florestal: todas preenchidas, oito em primeira opção. A Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), em Vila Real, ofereceu 60 vagas, também todas preenchidas, 11 em primeira escolha.

    A rede de escolhas era então vasta, ainda antes do Processo de Bolonha: além das licenciaturas de cinco anos, a Escola Agrária de Coimbra tinha um bacharelato em Engenharia das Operações Florestais; a de Bragança oferecia Gestão de Recursos Florestais; a de Castelo Branco tinha Engenharia da Produção Florestal; e ainda havia cursos em Viseu e na Escola de Tecnologia de Bragança.

    Nos institutos politécnicos sobravam algumas vagas, mas por regra os bacharelatos – que tinham então a mesma duração das actuais licenciaturas – não eram, em todas as áreas, muito apetecíveis. O país formava então engenheiros e técnicos florestais em abundância, como se soubesse que o futuro da paisagem e a defesa contra os incêndios dependeriam deles.

    Escola agrária e florestal por excelência, o Instituto Superior de Agronomia teve todas as suas 55 vagas em Engenharia Florestal ocupadas na primeira fase em 1997; no ano passado só 11 das 20 abertas.

    Mas o entusiasmo esfumou-se depressa. Em 2006, já apenas três cursos sobreviviam, todos licenciaturas de três anos: em Lisboa, Vila Real e Coimbra – e mesmo aí a procura começou a escassear. O mundo urbano afastou-se do mundo rural, a política afastou-se das aldeias, e a floresta foi ficando sem quem a conhecesse de perto. Os anos mais recentes são um retrato cruel: os fogos intensificaram-se, mas o interesse pelas florestas desmoronou ainda mais.

    Nos últimos cinco anos a crise tornou-se abissal. Em 2020, Coimbra ainda conseguiu preencher as suas vagas, mas a UTAD ficou reduzida a três alunos. Em 2021, de 26 lugares em Vila Real, só três foram ocupados. Em 2022, o desastre repetiu-se: apenas dois alunos escolheram a UTAD, enquanto ISA e Coimbra resistiam com as vagas preenchidas. Em 2023, já nem isso: dos 15 lugares disponíveis em Coimbra, só cinco foram ocupados; em Lisboa, dos 19 lugares, só 10; e em Vila Real, três alunos para 15 vagas.

    E o último ano lectivo confirmou o declínio: 15 vagas em Vila Real, apenas duas preenchidas; 20 em Lisboa, só 11 ocupadas; 19 em Coimbra, apenas duas. No total, abriram-se 54 vagas em todo o país e entraram apenas 15 estudantes. Menos de um terço. O curso que formava os profissionais de que a floresta precisa para não arder ficou reduzido a estatística residual. No caso particular da UTAD, somente um regime de excepção por interesse nacional impede o encerramento definitivo da licenciatura.

    a dirt road in the middle of a forest

    “Os jovens são urbanos e o rural tem conotações negativas; na mente colectiva a floresta é vista ora como uma desgraça, apontando-se os eucaliptos e os fogos, ora surge romantizada, numa visão lírica de um espaço intocado. Quem tiver essas visões fugirá de um curso florestal e, quando muito, aqueles que tiverem a visão romantizada vão para Biologia”, destaca Paulo Fernandes, professor da UTAD e um dos principais especialistas nacionais em dinâmica de fogos rurais.

    Na mesma linha, Teresa Ferreira, professora e presidente do Conselho Científico do ISA, releva que as ciências agrárias, incluindo as florestais, não conseguem cativar uma população jovem cada vez mais urbana, exactamente por causa da perda da ligação ao mundo rural. “Neste momento, quase só os jovens com ligações a famílias com propriedades rurais seguem estes cursos”, acrescenta, sublinhando também as dificuldades que estes sectores das universidades portuguesas têm tido em se modernizar e tornar os cursos mais atractivos.

    Certo é que, apesar da escassez – ou, provavelmente, por causa da falta de novos licenciados –, os poucos diplomados não têm qualquer dificuldade em termos de saídas profissionais, mas quase todos seguem para as grandes empresas do sector florestal.

    bonfire

    Em suma, Portugal lamenta os fogos quando eles consomem aldeias e serras, mas não investe na floresta antes de ela arder. O divórcio é total: entre o mundo urbano que exige protecção contra incêndios e o mundo rural que já não tem quem cuide das árvores; entre a política que promete reformas e as aldeias que definham; entre os discursos inflamados e os cursos universitários vazios.

    A floresta portuguesa, cada vez mais abandonada, é o espelho de um país que se habituou a viver entre cinzas. E quando passa a época dos fogos, os jovens urbanos continuam insensíveis.

  • O Índice ICARO do Instituto Nacional de Saúde não é um alerta; é uma farsa científica

    O Índice ICARO do Instituto Nacional de Saúde não é um alerta; é uma farsa científica


    Um investigador ou cientista, para ser credível, tem de cumprir duas premissas: a reprodutibilidade das suas conclusões e a transparência na comunicação pública. E mais uma terceira: a humildade de ser questionado e fiscalizado, mesmo se por alguém que ele possa considerar menos capacitado.

    Ora, em Portugal, a academia tem, infelizmente, caído na velha tentação de se juntar ao poder, sobretudo ao poder político, esquecendo que uma universidade pública deve, em primeiro lugar, ser penhor da Ciência e da Verdade, e da sociedade, e nunca do poder. Pelo contrário, deve até procurar afastar-se de qualquer intromissão política. Não tem sido isso que tem sucedido.

    Fernando de Almeida, presidente do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge

    Por exemplo, o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) tem vindo, ao longo dos últimos anos, a comportar-se como um tentacular braço dos Governos em matérias de saúde pública: ora por omissão, quando não realiza estudos que seriam essenciais à compreensão dos fenómenos epidemiológicos; ora por manipulação, quando apresenta relatórios alinhados com narrativas políticas. Basta recordar a recusa em fazer um escrutínio sério do excesso de mortalidade não-covid em 2020 e 2021, ou a ausência de uma avaliação rigorosa da mortalidade global em 2022. A Ciência foi preterida ao serviço de conveniências.

    Este ano, o INSA voltou a dar mostras de que, em Portugal, a investigação em saúde pública é moldada pelas necessidades comunicacionais do poder. O caso do Índice ÍCARO é, neste ponto, paradigmático. No início deste mês de Agosto, com a vaga de incêndios, o INSA divulgou valores do Índice ÍCARO que apontariam para um inédito excesso de mortalidade entre 4 e 6 de Agosto da ordem de 1.100 óbitos – números alarmistas e sem consistência empírica. Porém, logo no dia seguinte, esses dados foram “corrigidos”, ainda assim para valores elevados, sem qualquer explicação metodológica. E, apesar das insistências do PÁGINA UM, o presidente do INSA, Fernando de Almeida, recusou prestar esclarecimentos.

    Nos dias seguintes, predispus-me eu a confrontar as previsões alarmistas do INSA com dados reais. E o ‘edifício’ do INSA desmoronava-se. Entre 25 de Julho e 7 de Agosto deste ano, em 14 dias, registaram-se 4.601 mortes contra um valor previsto de 4.373. Ou seja, um excesso de apenas 228 óbitos, equivalente a +5,2% — significativo, sim, mas a anos-luz das duplicações anunciadas pelo Índice ÍCARO. Convém recordar que este acréscimo ocorreu num contexto de Inverno menos agressivo em termos gripais, o que, paradoxalmente, teria produzido um défice prévio de mortalidade, susceptível de “inflacionar” o impacto de vagas de calor.

    Reportagem da RTP sobre o alegado excesso de mortalidade e o Índice INSA, com a participação das investigadoras Susana Silva (esq.) e Ana Paula Rodrigues (dir.).

    Perante esta evidência, o que fez o INSA? Organizou, em cooperação com a RTP, uma encenação, protagonizada pelas investigadoras Ana Paula Rodrigues e Susana Silva. Uma pantomima travestida de comunicação científica, onde se insistiu na narrativa de um excesso de cerca de 950 óbitos desde finais de Julho, enquanto se exibiam gráficos vagos e inócuos em ecrã, cuidadosamente desprovidos de dados reprodutíveis. Um exercício mais próximo da propaganda do que da Ciência, colocado estrategicamente numa quinta-feira à noite, em véspera de sexta-feira e antes de um fim-de-semana. Tudo para garantir menor contraditório mediático.

    Ora, como qualquer investigador sabe, a Ciência sem escrutínio é apenas retórica. Aquilo que se exigiria ao INSA seria simples: publicamente, dar a conhecer a descrição metodológica completa do Índice ÍCARO, o modelo estatístico usado para previsão e “correcção por observação”, a definição operacional de “excesso de mortalidade”, as séries diárias de mortalidade observada e esperada, os cálculos que sustentam os tais “950 óbitos em excesso”, a explicitação do efeito de colheita, a indicação das fontes de dados e a análise de robustez a diferentes metodologias. Pedi isto formalmente, na passada segunda-feira, à investigadora Ana Paula Rodrigues, com conhecimento ao gabinete de comunicação do INSA e ao seu presidente. Até hoje, nada.

    Perante esta evidência empírica, a conclusão é inequívoca: a investigação baseada no Índice ÍCARO por parte do INSA não passa de um artifício, uma encenação pseudocientífica que confunde indicadores exploratórios com diagnósticos de mortalidade, manipulando dados conforme as conveniências. E assim, quando a Ciência é usada para encobrir, em vez de esclarecer, deixa de ser Ciência. E quando uma instituição pública de saúde se presta a este jogo, abdica do seu dever maior: servir a verdade e a sociedade.

    A reprodutibilidade e a transparência são duas premissas da Ciência. Mas, aparentemente, não para o INSA.

    Tudo isto não é apenas uma questão metodológica; é uma questão ética. A opacidade do INSA é um insulto à comunidade científica e uma afronta à cidadania. Mais grave ainda é a cumplicidade dos meios de comunicação social, incapazes de exercer o contraditório, aceitando como dogma aquilo que deveria ser alvo de escrutínio. Repita-se por outras palavras, porque nunca é demais: a Ciência sem transparência e sem reprodutibilidade não é Ciência; é prestidigitação. E quem confunde Ciência com prestidigitação não só desonra a academia, como mina a confiança pública.

    O Índice ÍCARO, tal como está a ser usado, não é um alerta: é uma farsa.

  • Sabe a causa dos incêndios devastadores? Não são as alterações climáticas; é a tragédia dos anti-comuns

    Sabe a causa dos incêndios devastadores? Não são as alterações climáticas; é a tragédia dos anti-comuns


    Portugal atravessa um dos piores Agostos de sempre em matéria de fogos. Mais de 200 mil hectares já arderam desde Janeiro, e a contabilidade cresce a cada dia. O número impressiona, mas o país já quase se habituou a vê-lo repetir-se, década após década, com a mesma coreografia: discursos inflamados, homenagens aos bombeiros, promessas de reformas e um rasto de cinzas. O que ninguém encara de frente é a raiz estrutural do problema: a floresta portuguesa vive presa numa “tragédia dos anti-comuns”.

    O termo pode soar académico, mas descreve com precisão a realidade do território. Ao contrário da “tragédia dos comuns” — quando um recurso partilhado é destruído por uso excessivo —, a dos anti-comuns resulta de uma fragmentação que paralisa a gestão: demasiados donos, cada um com poder de exclusão, nenhum com capacidade de agir em escala. Portugal é o caso perfeito: 11,6 milhões de prédios rústicos, muitos com dimensões microscópicas, abandonados ou em litígio entre herdeiros. Cada proprietário olha para a sua parcela; o fogo, porém, olha para o conjunto.

    Tall trees create a dense forest scene.

    É aqui que se esconde a confusão maior. “Floresta privada” não é a mesma coisa que “espaços florestais”. A primeira refere-se às parcelas, registadas nas conservatórias, com estremas e dono definido. Os segundos são o território real: manchas de vegetação contínuas, cursos de água, ecossistemas e paisagens que não reconhecem limites de caderneta. O incêndio não se detém numa estremadura; os benefícios ambientais também não. O ar limpo, a regulação da água, o sequestro de carbono, a biodiversidade — tudo isto ultrapassa as linhas do cadastro. Por isso, os espaços florestais, mesmo em terrenos privados, devem ser encarados como bens públicos.

    Durante muito tempo, a gestão não falhou. Pelo contrário: funcionava porque a paisagem tinha uso e valor. O pinhal era resinado, a lenha e a caruma aqueciam casas, os baldios eram administrados pelas comunidades, e os Serviços Florestais mantinham vigilância, caminhos e aceiros. Havia uma economia do mato e uma autoridade técnica que impunha regras. Funcionava porque havia gente no território e guardas no terreno.

    Esse modelo desfez-se nas últimas décadas. E não foi por causa das alterações climáticas nem pelas ondas de calor – foi por razões políticas, de erros de desenvolvimento. As alterações climáticas aumentam o risco, mas não são o factor desencadeador dos fogos destrutivos. A causa principal está no contínuo vegetal que aumentou, quer em extensão quer em volume, por razões demográficas, económicas e sobretudo políticas.

    an aerial view of a village surrounded by lush green hills

    O êxodo rural esvaziou as aldeias, a resinagem deixou de dar rendimento, os baldios perderam relevância e os Serviços Florestais foram virtualmente extintos. Onde havia uso e vigilância, ficou abandono; onde havia técnicos e guardas, ficou a retórica; onde havia economia, ficou custo. A floresta deixou de ter dono visível e passou a ser combustível à espera da próxima ignição.

    É neste vazio que os incêndios ceifam – e é aqui que cada vez mais urge defender um novo paradigma: a criação de um efectivo Sistema de Gestão de Espaços Florestais (SIGEF), de natureza pública, com equipas permanentes no terreno, incluindo prevenção e combate. O modelo é simples: técnicos, sapadores e vigilantes com mandato para limpar, vigiar e agir, incluindo em áreas privadas, sempre sem custos directos aos proprietários – e, pelo contrário, com compensações justas pelos serviços ambientais prestados pelas suas parcelas. E com uma lógica clara: quem se abstém de gerir não bloqueará o interesse colectivo, quebrando assim a possibilidade de accionar a tragédia dos anti-comuns.

    Assumir os espaços florestais como um bem público teria naturalmente um custo orçamental robusto. Se o Estado quisesse assegurar uma gestão integrada de toda a superfície florestal do continente — cerca de 6,2 milhões de hectares, que inclui áreas de floresta e matos —, com economia de escala, ciclos de limpeza de cinco anos e preços médios de 800 euros por hectare, o encargo anual rondaria 1,1 mil milhões de euros, considerando a rotatividade neste sistema de gestão.

    Mesmo admitindo intervalos de eficiência, o orçamento para este sistema nunca seria inferior a 900 milhões de euros. Em termos macroeconómicos, trata-se de um valor equivalente a pouco mais de 0,4 % do PIB português, montante comparável àquilo que o país despende anualmente em políticas activas de emprego.

    A diferença, porém, é que este esforço financeiro representaria uma inversão do paradigma actual: em vez de dependermos de milhares de minifundiários incapazes de coordenar estratégias de prevenção, o Estado assumiria a floresta como património comum, reduzindo drasticamente a lógica dos anti-comuns que hoje favorece a desordem, a inércia e, em última instância, a catástrofe dos megaincêndios.

    Os números mostram que não é dinheiro que falta: é racionalidade. Entre 2000 e 2016, os incêndios custaram ao país 5,2 mil milhões de euros; em 2003, só num ano, os prejuízos ultrapassaram 1,5 mil milhões. E há custos que passariam a ser evitados. Por exemplo, actualmente entre 45% e 50% da despesa pública — e foi de cerca de 640 milhões de euros em 2024 — é destinada apenas às operações de combate, incluindo meios aéreos.

    Com uma gestão adequada dos espaços florestais, uma parte significativa seria poupada. Menos incêndios seria também riqueza que se criaria: os custos (indicativos) de madeira perdida por incêndios rondam os 1.000 a 1.500 euros por hectare.

    A lush green forest filled with lots of trees

    Além disso, têm de se considerar os custos ambientais e mesmo climáticos: em 2017, cerca de 40% das emissões de dióxido de carbono foram dos incêndios; este ano estarão seguramente acima dos 20%. Existem também os custos em infra-estruturas destruídas (habitações, estradas, prejuízos agrícolas, etc.) e as perdas no turismo. Fazendo algumas contas, o ganho económico potencial de reduzir drasticamente os incêndios situa-se entre os 0,25% e os 0,45% do PIB.

    Mesmo assim, numa primeira fase, o sistema poderia obter um financiamento assente em três pilares, numa lógica clara e percebida como taxa de serviços públicos: contributo diversificado, incidência proporcional e justiça social.

    O primeiro pilar seria o reforço do Fundo Ambiental, via receitas da fiscalidade verde e, sobretudo, das licenças de carbono. Portugal arrecada, em média, 400 milhões de euros por ano apenas com leilões de dióxido de carbono (CO₂). Se um quarto desse montante fosse automaticamente canalizado para a gestão florestal, garantir-se-ia uma verba fixa de 100 milhões anuais.

    cars passing through north and south

    O segundo pilar seria um adicional ao IMI rústico — cujo valor é quase nulo —, aplicando-se um imposto inicial de cinco euros por prédio, mas com forte progressividade: explorações activas ficariam praticamente isentas, enquanto prédios abandonados, em litígio ou em regime de absentismo fiscal suportariam uma carga maior. Desta forma, além de ser um incentivo ao emparcelamento e à venda de prédios rústicos abandonados, seria possível gerar entre 120 e 150 milhões anuais, mas sem penalizar quem mantém a terra viva e produtiva.

    O terceiro pilar seria a criação de uma Taxa de Protecção de Espaços Florestais. Com a aplicação de uma taxa anual de 10 euros por prédio urbano (cerca de 6 milhões) e por veículo motorizado (cerca de 7,2 milhões), a receita anual ultrapassaria os 130 milhões de euros. O valor continua irrisório para quem possui uma habitação ou um automóvel, mas permitiria financiar de forma directa a rede nacional de prevenção e vigilância florestal.

    Naturalmente, a parte da despesa já inscrita todos os anos no Orçamento do Estado — cerca de 600 milhões em prevenção e combate — teria de ser incorporada no novo modelo, funcionando como verba cativa e estável.

    Ao mesmo tempo, Portugal poderia exigir em Bruxelas a criação de um Fundo Europeu de Coesão Florestal, aplicando o princípio da solidariedade ambiental: países menos expostos ao risco de incêndio contribuiriam mais para apoiar aqueles que, como Portugal, Espanha ou Grécia, enfrentam o drama recorrente do fogo. Um mecanismo deste tipo poderia garantir entre 200 e 250 milhões de euros anuais, integrando a política florestal na própria agenda climática europeia e servindo para financiar os serviços ambientais dos proprietários.

    a bridge over a river

    Com este modelo, em vez de desperdiçar milhares de milhões em prejuízos a cada década, Portugal passaria a investir de forma previsível, justa e transparente. Porque transformar os espaços florestais em bens públicos exige também que o seu financiamento seja público, claro e equitativo — distribuindo encargos de acordo com a responsabilidade, mas também com a solidariedade nacional.

    Persistir no modelo actual — pseudo-voluntário, de glorificação da tragédia — mostra-se insustentável económica e socialmente. Se 2025 já está entre os piores anos deste século, é porque Portugal insiste em varrer cinzas em vez de organizar o território. Enquanto não se assumir que os espaços florestais são bens públicos e não se pagar para os gerir, o país continuará a repetir este Verão: cada vez mais extenso, cada vez mais caro, cada vez mais devastador.

  • Bombeiros: eficácia no combate aos incêndios deste ano é a pior do século

    Bombeiros: eficácia no combate aos incêndios deste ano é a pior do século

    O pior ainda não passou, mas 2025 já regista, e de longe, a pior eficácia no combate a incêndios florestais de todo o século XXI. Até 19 de Agosto, de acordo com a análise do PÁGINA UM aos dados do Instituto Nacional da Conservação e das Florestas (ICNF), cada incêndio tem destruído, em média, 89 hectares, um valor nunca antes observado e que ultrapassa largamente os anos mais negros da tragédia dos fogos, como 2003 (50,6 ha/incêndio), 2005 (17,6 ha/incêndio) e sobretudo 2017 (56,2 ha/incêndio), quando morreram mais de uma centena de pessoas em duas vagas de incêndios devastadores.

    Este indicador – que exclui os fogachos, isto é, as ignições apagadas antes de se atingir um hectares (100 por 100 metros) – revela que, quando os fogos não cedem à primeira intervenção, a capacidade de resposta do sistema nacional de protecção civil mostra-se estruturalmente incapaz de os travar, sobretudo quando ultrapassam os mil hectares, ficando o controlo dependente quase exclusivamente da evolução meteorológica.

    a pile of fire hoses sitting on top of a cement slab

    Os números oficiais, compilados até 19 de Agosto, confirmam uma realidade alarmante. Em 2025, já arderam 215.988 hectares, uma área em crescimento que coloca o ano na linha da frente das piores catástrofes florestais desde 2001, mesmo sem se ter atingido ainda o final do período crítico. O total de incêndios registados até agora, excluindo fogachos, é de 2.426, ainda um dos valores mais baixos de sempre, mas com consequências devastadoras: menos fogos, mas muito mais destruição.

    Ou seja, comparativamente a anos anteriores, e sobretudo aos da primeira década do século, o sistema até tem tido menos ignições e também, em consequência, menos incêndios (com mais de um hectare), mas falha redondamente, em demasiados anos, em grandes incêndios no interior do país. A baixa frequência de fogos contrasta, assim, com a altíssima intensidade e extensão dos que acabam por escapar ao controlo.

    Se compararmos com outros anos, percebe-se a dimensão da falha de 2025, mesmo quando comparado com os três anos com maior aárea ardida. Em 2017, o ano mais catastrófico, apesar dos 9.626 incêndios registados, a eficácia do combate ficou em 56,2 ha/incêndio. Em 2003, foram 9.320 incêndios para um rácio de 50,6 ha/incêndio. Em 2005, o rácio foi de 17,6 com quase 20 mil incêndios.

    Área ardida por hectare, considerando apenas incêndios (ocorrências com mais de um hectare). Fonte:ICNF. Análise: PÁGINA UM.

    Já no ano passado, com os grandes incêndios a concentrarem-se em Setembro, este indicador mostrou sinais de descoordenaçao, com um rácio de 50,1 hectares por incêndios, apesar de ter sido o ano deste século com o menor número de ignições a ultrapassarem um hectare (2.745).

    Estes números connstituem uma demonstração inequívoca de que o sistema de combate em Portugal não está desenhado para enfrentar situações em que os fogos, superando a barreira psicológica e operacional dos mil hectares, assumem proporções incontroláveis.

    A questão da “eficácia do combate” tem sido, ao longo das últimas décadas, um verdadeiro tabu político e institucional. Desde a primazia concedida às corporações de bombeiros voluntários – pilares comunitários com forte ligação às câmaras municipais e a redes de influência local – que o combate aos incêndios assenta numa miríade de entidades, de difícil articulação e disciplina operacional.

    Número de incêndios (ocorrências com mais de um hectare) desde 2001. Dados de 2025 até 19 de Maio. Fonte:ICNF. Análise: PÁGINA UM.

    O peso emocional é determinante: os bombeiros são vistos pelas populações como heróis, símbolo de abnegação e de proximidade, o que torna politicamente delicada qualquer tentativa de reestruturação, profissionalização efectiva – com todas as vantagens de instrução, treino e preparação de equipas coordenadas – e consequente responsabilização.

    Mas a verdade é que o actual sistema dito voluntário mas com pagamentos do Estado acaba por ser sistema semi-profissionalizado, mas com baixa capacidade de avaliação e regulação. É um sistema que se tornou anacrónico perante as exigências dos grandes incêndios florestais do século XXI.

    Aliás, nenhum outro sector fundamental do Estado – da segurança pública à educação, passando pela saúde ou pelo sistema prisional – assenta numa lógica semelhante à do combate aos fogos rurais. É impensável conceber a segurança interna dependente de centenas de associações privadas dispersas pelo território, algumas sofrendo de escassez de população jovem, com escassa coordenação centralizada.

    Área ardida total desde 2001. Dados de 2025 até 19 de Agosto. Fonte: ICNF.

    No entanto, é precisamente esse o modelo que subsiste no essencial da protecção civil contra incêndios florestais em Portugal: mais de três centenas de corporações de bombeiros voluntários, articuladas de forma precária com os meios da GNR, da Força Especial de Protecção Civil e da Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil.

    O resultado é a crónica dificuldade em coordenar meios em cenários de grande dimensão, em que a rapidez e a disciplina hierárquica são cruciais. Por exemplo, em incêndios de grandes dimensões, que ultrapassam mil efectivos, é habitual estarem, no denominnado ‘teatro das operações’, bombeiros de mais de uma centena de corporações, sem sequer haver uma logística bem implementadas.

    Os sucessivos Governos, de diferentes cores partidárias, têm evitado enfrentar esta questão estrutural. Em Espanha, a solução foi encontrada em praticamente todas as comunidades autónomas: criação de corpos profissionais de bombeiros-sapadores florestais, integrados nos serviços regionais de protecção civil, com treino permanente, vínculo laboral e disciplina operacional semelhantes às forças militares.

    Nessa organização, os bombeiros voluntários assumem um papel complementar, sobretudo na protecção dos perímetros urbanos e na salvaguarda de habitações, deixando a resposta de primeira linha no espaço florestal para equipas profissionais do Estado. Portugal, pelo contrário, continua a insistir num modelo híbrido, dependente de estruturas locais fragilizadas, cuja coordenação central raramente funciona nos momentos mais críticos.

    Também em Itália e França prevalece um modelo profissionalizado. Itália possui o Corpo Nazionale dei Vigili del Fuoco, uma estrutura estatal com efectivos treinados para diferentes cenários de risco, incluindo os incêndios florestais. Em França, a protecção civil assenta numa combinação de bombeiros profissionais e voluntários, mas com um comando centralizado e meios aéreos fortemente integrados, que asseguram resposta rápida e disciplinada em grandes fogos, sobretudo na região mediterrânica.

    A Grécia, sobretudo após a catástrofe de 2007 e o desastre de Mati em 2018, também avançou para a criação de brigadas profissionais florestais, integradas no Serviço de Incêndios, com forte ligação ao exército e à guarda nacional, assumindo que a escala dos incêndios modernos exige uma estrutura permanente, estável e profissional. Existe voluntariado, mas numa percentagem inferior a 20% dos efectivos, que somente em situações especiais são accionados.

    Portugal, pelo contrário, continua a insistir num modelo híbrido, dependente de estruturas locais fragilizadas, cuja coordenação central raramente funciona nos momentos mais críticos.

    Este é,de facto, um absurdo paradoxo: sendo, por sistema, o país da União Europeia mais fustigado pelos fogos em termos territoriais, mantém-se um sistema mais próximo da lógica do voluntariado do que de uma resposta organizada de protecção do território.

  • 20 cidades de Lisboa: área ardida supera já fasquia desastrosa dos 200.000 hectares

    20 cidades de Lisboa: área ardida supera já fasquia desastrosa dos 200.000 hectares

    A história repete-se com o mesmo dramatismo e a mesma sensação de impotência. Portugal ultrapassou esta noite a mítica fasquia dos 200 mil hectares de área ardida em 2025, segundo os dados oficiais do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), consultados e analisados pelo PÁGINA UM.

    São já 203.422 hectares queimados, número que reconfirma este ano como o quarto pior desde que existem registos estatísticos, iniciados na década de 1940. A dimensão da tragédia equivale a 20 vezes a área da cidade de Lisboa, um valor simbólico que marca uma fronteira que todos sabiam ser possível, mas que se esperava, talvez ingenuamente, que pudesse ser evitada.

    silhouette of trees on smoke covered forest

    Até agora, a barreira dos 200 mil hectares só tinha sido superada em três ocasiões, todas já neste século XXI. A primeira foi em 2003, quando o fogo reduziu a cinzas 471.813 hectares. Dois anos depois, em 2005, voltou-se a cair no mesmo abismo, com 346.731 hectares devastados. Mais recentemente, em 2017, registou-se o pior ano de sempre, com 540.654 hectares queimados, uma ferida ainda aberta na memória colectiva.

    O facto de 2025 se juntar a esta curta lista mostra que, apesar de duas décadas de planos estratégicos, de reestruturações sucessivas proclamadas na Protecção Civil e de discursos políticos inflacionados, Portugal continua incapaz de quebrar o ciclo da devastação.

    A fotografia estatística de 2025 tem um rosto particularmente sombrio: o distrito da Guarda. Com 79.586 hectares destruídos, este é já o pior registo distrital do século XXI, correspondendo a cerca de 15% do território total do distrito. Em termos relativos, é uma tragédia que não encontra paralelo recente, deixando claro que o Interior profundo, despovoado e envelhecido, continua a ser o palco principal da catástrofe florestal. A Guarda, sozinha, concentra quase 40% da área ardida de todo o país.

    Mas a devastação não se fica por aqui. Em Coimbra arderam 41.247 hectares, em Viseu foram 21.489 hectares, e em Bragança o fogo consumiu 13.877 hectares. Estes quatro distritos somam mais de três quartos da área ardida de Portugal em 2025, revelando uma desigualdade territorial chocante: enquanto os distritos do Interior vivem um cenário de catástrofe, no Litoral e no Sul quase nada se registou.

    No extremo oposto, Lisboa conta apenas 63 hectares, Faro 32 e Leiria 26, números residuais que contrastam violentamente com os da Guarda. O país arde, mas arde sobretudo sempre nos mesmos sítios, como se a repetição fosse um destino inevitável.

    Se os números anuais já seriam suficientes para definir 2025 como ano negro, o retrato mensal não deixa espaço para dúvidas: este mês de Agosto, ainda por terminar, é já o quarto pior mês deste século, com 166.316 hectares consumidos em apenas 19 dias.

    Supera de longe qualquer outro Agosto da última década e só é ultrapassado por Agosto de 2003 (312.411 hectares), Outubro de 2017 (289.126 hectares) e Agosto de 2005 (212.917 hectares). Com quase duas semanas ainda pela frente, a perspectiva de que este Agosto suba no ranking da destruição é elevada, colocando em risco a estabilidade do país não apenas em termos ambientais, mas também económicos e sociais.

    A sucessão destes números devastadores revela a falência de políticas que, desde 2003, se anunciaram como redentoras. Do Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios às reorganizações das corporações de bombeiros, passando pelo investimento em meios aéreos e pelo reforço orçamental das campanhas de prevenção, tudo parece esbarrar no mesmo problema estrutural: uma paisagem desordenada, um mundo rural abandonado e um Estado que se limita a gerir emergências em vez de intervir na raiz.

    O resultado é o que se vê: hectares atrás de hectares transformados em cinza, com os mesmos distritos sempre na linha da frente do sacrifício. E Lisboa política a assistir pesarosa, embora com muitas culpas no cartório.

    Mais do que estatísticas, há uma realidade crua: no mês de Agosto em curso, por cada hora que passou ardeu em média 385 hectares, ou seja, 9.240 hectares por dia – são mais de 10 mil campos de futebol a arder. E não é apenas a floresta que se perde. São solos que se degradam, habitats que desaparecem, populações que se sentem sitiadas, e depois abandonadas nas cinzas, e economias locais que ficam amputadas. Quando a Guarda perde 15% do seu território para as chamas, não é apenas a natureza que é devastada: é uma parte inteira do país que se apaga.

    No fundo, a ultrapassagem da fasquia dos 200 mil hectares em 2025 não é apenas um número redondo e trágico. É a prova de que, duas décadas depois dos anos infernais de 2003 e 2005, e oito anos após o horror de 2017, Portugal continua prisioneiro do mesmo ciclo de fogo, incapaz de transformar a memória das tragédias em prevenção efectiva. Os discursos oficiais repetem-se, os planos multiplicam-se, exaltam-se os bombeiros, transformam-se as vítimas em heróis, mas a floresta, já cada vez mais débil e sem sustentabilidade, continua a arder com a mesma fúria. E, pior ainda, com a mesma previsibilidade.

  • Dona do Diário de Notícias está em falência técnica com capitais próprios negativos de quase 20 milhões

    Dona do Diário de Notícias está em falência técnica com capitais próprios negativos de quase 20 milhões

    A derrocada da Global Notícias não surpreende, mas o estrondo atinge valores inimagináveis. Os dados provisórios entregues pela dona do Diário de Notícias — que já vende menos de mil exemplares por dia em banca — no Portal da Transparência dos Media mostram que a empresa colapsou no ano passado com resultados negativos de quase 26,5 milhões de euros, colocando-a em falência técnica.

    E não se trata de meia dúzia de tostões: os capitais próprios estão agora negativos em 19,3 milhões de euros, ao mesmo tempo que os activos encolheram para apenas 21,5 milhões, aparentemente fruto da venda de títulos como o Jornal de Notícias, a TSF e O Jogo à obscura Notícias Ilimitadas, por um valor ainda desconhecido.

    O colapso da empresa que ainda detém os títulos mais antigos do país — o Diário de Notícias e o Açoriano Oriental — é apenas a consequência de um rumo errático, marcado nos últimos anos por transacções pouco transparentes e polémicas infindáveis, incluindo a tentativa de controlo por um fundo das Bahamas, expediente que acabou por servir de argumento para desmembrar o grupo.

    Nos últimos oito anos impressiona como as sucessivas administrações foram sangrando uma empresa que, em 2017, possuía activos superiores a 98 milhões de euros e capitais próprios de 31,4 milhões de euros. Desde então, acumulou mais de 76 milhões de euros de prejuízos. E até os anéis se foram: os edifícios emblemáticos do Diário de Notícias, em Lisboa, e do Jornal de Notícias, no Porto, foram vendidos, e o dinheiro rapisamente se esfumou. Hoje, aquilo que resta é uma carcaça que apenas um regulador conivente e um mundo político condescendente permitem continuar a animar. E a minar o jornalismo.

    Com efeito, as receitas da Global Notícias estão em queda livre há anos, fixando-se em apenas 22,5 milhões de euros em 2024, menos 48% do que em 2017 — e isto apesar da alienação de títulos supostamente ainda lucrativos como o Jornal de Notícias.

    A falência técnica — mas com valores de grandeza estratosférica — parece ser a estratégia para abrir caminho a uma futura intervenção estatal que salve o icónico Diário de Notícias, alienando-se o título e empurrando a Global Notícias para a insolvência, mas com credores e o próprio Estado a ficarem a ‘arder’. As demonstrações financeiras ainda não foram apresentadas na Base de Dados das Contas Anuais, e ignora-se se as dívidas ao Estado aumentaram ao longo do ano passado.

    Recorde-se que, em 2024, a Global Notícias vendeu a maior parte do capital do Jornal de Notícias, da TSF e de outros títulos à igualmente opaca Notícias Ilimitadas — que também não apresentou contas — ficando apenas com uma participação de 30%. O negócio, celebrado como “salvação” por quem insistia em pintar o grupo com cores de optimismo, revelou-se afinal um mecanismo de liquidação encapotada. A operação foi autorizada pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), mas com um pormenor gravíssimo: a existência de um acordo parassocial confidencial entre as partes, cujas cláusulas permanecem em segredo até hoje.

    O Página Um apresentou uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa para obrigar a ERC a mostrar esses documentos, mas apesar de uma sentença favorável, o regulador recorreu com efeito suspensivo. Tem sido norma da ERC, presidida por Helena Sousa, proteger os grandes grupos em dificuldades, negando acesso a informação considerada sensível e escondendo a gravidade da situação financeira.

    Helena Sousa, presidente da ERC: regulador autorizou um estranho negócio de alienação, que esconde, contribuindo para a última estocada para o colapso (pouco involuntário) da Global Notícias.

    As consequências da alienação à Notícias Ilimitadas não tardaram a mostrar-se. Se em 2021 a Global Notícias ainda conseguiu, por via de medidas excepcionais, apresentar um EBITDA ligeiramente positivo (1,1 milhões de euros), em 2023 regressou aos prejuízos e em 2024 desabou num abismo: o resultado operacional foi de -24,8 milhões de euros, mais do que todo o volume de negócios anual. Em rácios, a autonomia financeira caiu para -90% e a solvabilidade fixou-se em 0,53 — ou seja, os passivos superam largamente os activos.

    Do ponto de vista estritamente económico, a Global Notícias já não existe como entidade viável. Qualquer tentativa de recuperação exigiria injecções de capital superiores a 25 milhões de euros, apenas para regressar a capitais próprios positivos e repor mínimos de autonomia financeira. Mas a realidade é que as fontes de receita encolheram e as marcas mais fortes — como o JN e a TSF — foram amputadas do perímetro da empresa.

    Neste momento, existe um esqueleto feito de responsabilidades, passivos e nenhuma margem para sobreviver, sendo que o seu activo mais forte é um jornal emblemático mas de credibilidade ferida de morte, que vende já menos de mil exemplares em banca e nem mil assinaturas digitais possui.

    Este quadro é tanto mais grave porque foi o próprio regulador a abençoar um negócio que ocultou regras de governação através de cláusulas secretas. Não é apenas a Global Notícias que está em colapso: é também o regime de transparência que deveria tutelar a comunicação social.

    A falência técnica da Global Notícias, consagrada em 2024, não resulta apenas de maus resultados acumulados: resulta também da complacência cúmplice da ERC e da permissividade do Estado em relação a negócios pouco claros que moldam o panorama mediático português. É esta cadeia de decisões opacas que hoje conduz ao desfecho previsível: um grupo histórico transformado em ruína contabilística, amputado dos seus principais activos e protegido por uma cortina de sigilo regulatório.

  • Da pandemia aos fogos: o jornalismo em (contínua) crise

    Da pandemia aos fogos: o jornalismo em (contínua) crise


    O jornalismo é, por definição, uma actividade que serve a sociedade: informar, denunciar, interpretar. Não é uma função de propaganda, não é um exercício de entretenimento, não é um palco para vaidades nem um púlpito para a catequese do medo.

    O jornalista tem de olhar para a realidade com instrumentos de rigor e de contexto, sem se deixar enredar por paninhos quentes, mas também sem cair no grotesco do sensacionalismo ou no enviesamento interesseiro. Esta é a condição mínima para se merecer a designação de jornalista. Fora disso, sobra apenas o comentador mal informado, o propagandista disfarçado ou o vendedor de emoções baratas.

    Infelizmente, o passado recente deveria ter servido de lição. Durante a pandemia, a sociedade — não apenas a portuguesa, mas a global — foi bombardeada por um estilo de jornalismo que, de tão abjecto, deveria envergonhar gerações inteiras de editores e repórteres.

    A imprensa desempenhou, durante a pandemia, um papel que ficará como exemplo de como o jornalismo pode degenerar em propaganda alarmista. Em vez de informar com contexto e rigor, cultivou-se uma verdadeira cultura do medo. As manchetes diárias, em letras garrafais, com o número de “casos positivos” foram transformadas em termómetro universal da catástrofe, como se a detecção de um vírus fosse, por si só, doença, sofrimento ou morte. A ausência de qualquer referência sistemática à distribuição etária, aos factores de risco, ou às probabilidades reais de complicação clínica, contribuiu para a percepção de que todos estavam igualmente ameaçados — o recém-nascido e o octogenário, o saudável e o moribundo.

    Os telejornais alimentaram a amplificação do risco através de uma estética de guerra: gráficos vermelhos, contadores em tempo real, rodapés permanentes a anunciar internamentos e mortes, como se a realidade epidemiológica pudesse ser reduzida a um placar de futebol macabro. Pior: chegou-se ao absurdo moral de aplaudir a descida de internados em cuidados intensivos, omitindo que parte dessa descida resultava apenas de óbitos. Uma contabilidade mórbida mascarada de boas notícias.

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    A imprensa também fomentou uma verdadeira cultura de ostracização. Quem duvidava das medidas mais draconianas, quem ousava interrogar a proporcionalidade dos confinamentos ou o impacto das vacinas em fase experimental, era imediatamente rotulado de irresponsável, negacionista, conspiracionista. Criou-se uma divisão maniqueísta: os “bons cidadãos”, obedientes e submissos, versus os “maus cidadãos”, suspeitos e perigosos. Esta lógica, mais próxima de regimes totalitários do que de democracias abertas, foi incentivada e reproduzida nos estúdios televisivos e nas páginas de jornais.

    A linguagem da imprensa revelou uma incapacidade estrutural de contextualizar. Falava-se em milhares de mortos diários na Índia ou no Brasil, esquecendo-se de referir que tais números correspondiam a populações centenas de vezes maiores do que a portuguesa. Comparavam-se riscos de crianças e jovens como se fossem idênticos aos dos idosos frágeis, criando um clima de pânico transversal sem fundamento epidemiológico. A estatística, que deveria ser instrumento de esclarecimento, foi usada como arma de propaganda.

    Mais grave: a imprensa não apenas falhou na análise crítica, como se colocou em posição servil diante das autoridades políticas e sanitárias. Em vez de questionar contratos de vacinas, metodologias de contagem de mortos ou critérios de confinamento, preferiu repetir comunicados oficiais, legitimando sem reservas a narrativa dominante. O jornalismo tornou-se megafone do poder, abdicando da sua função essencial de escrutínio.

    A large bonfire blazing at night with embers and sparks flying into the dark sky.

    O resultado foi devastador: fomentou-se uma cultura de medo permanente, minou-se a confiança crítica da sociedade, normalizou-se a vigilância social e, acima de tudo, reduziu-se o cidadão à condição de súbdito, infantilizado pelo paternalismo mediático. O jornalismo, que deveria ter sido vacina contra o exagero, acabou por ser veículo de contágio do pânico.

    O disparate não teve limites: confundiu-se prevalência com incidência, confundiu-se mortalidade absoluta com risco relativo, confundiu-se ciência com histeria.

    Ora, com os incêndios, está a suceder precisamente o mesmo. Este ano será, garantidamente, pelo menos o quarto pior do século. Já arderam mais de 170 mil hectares, e só um milagre permitirá que se chegue ao fim do ano sem ultrapassar a fasquia dos 200 mil hectares. Esta dimensão é extraordinária, calamitosa, gravíssima. Revela que o poder político continua incapaz de assumir que este é um dos principais problemas estruturais do país. Persistimos no abandono rural, na destruição do papel fundamental da agricultura e da pastorícia, e nos compadrios que perpetuam um sistema obsoleto de prevenção e combate.

    A comunicação social, em vez de assumir o papel de denúncia estruturada, contenta-se em produzir reportagens fotogénicas do horror: casas a arder, bombeiros exaustos, helicópteros em contraluz. Passada a época dos fogos, cai o silêncio. Não se pressiona o Estado a mudar o status quo, não se exige um verdadeiro plano nacional de ordenamento do território rural, não se confrontam os interesses instalados que vivem dos fogos como quem vive de uma indústria cíclica. Essa abdicação é, por si só, uma falha ética do jornalismo.

    19 anos depois: problemas estruturais mantiveram-se, destruição aumentou.

    Causa-me urticária, cada vez mais, a forma misturada de ignorância e de sensacionalismo com que a imprensa portuguesa — do Público ao Correio da Manhã — tabloidiza números. Seria sensato esperar que editores e directores soubessem — e se não sabem, não merecem sê-lo — que a incidência dos incêndios é altamente variável ao longo da época de estio. O Verão português não é uma fotografia estática; é uma película irregular. Em 2017, por exemplo, a esmagadora maioria da área ardida concentrou-se em Junho e em Outubro, mostrando que a duração da estação crítica se estende cada vez mais.

    Significa isto que não faz qualquer sentido, quando a gravidade já é por si grande, exagerar com comparações descabidas. Dizer que a área ardida em 2025 é dezassete ou dezoito vezes superior à de 2024, como sucedeu anteontem em diversas notícias da imprensa, pode ser matematicamente correcto, mas é intelectualmente absurdo. É jornalismo de feira, equivalente a dizer que num restaurante que fecha ao domingo houve, no dia 17 de Agosto, uma quebra de facturação de 100% face ao mesmo dia 17 do ano anterior — ignorando que em 2024 esse dia foi um sábado. O disparate é o mesmo.

    Mais ainda: se o objectivo é o sensacionalismo, porque não escrever que nos primeiros dezassete dias de Agosto ardeu este ano trinta e três vezes mais do que no ano passado? É um número vistoso, mas serve para quê? Para instruir o cidadão? Para alertar a sociedade? Ou apenas para vender papel, cliques e minutos de emissão? O jornalismo não se deve medir pela capacidade de impressionar, mas pela capacidade de esclarecer.

    O papel do jornalista não é o de alimentar a ilusão estatística nem de soprar brasas de pânico, mas de interpretar números, denunciar falhas, dar sentido à informação. Não se exige neutralidade bovina nem frieza burocrática: exige-se compromisso com a verdade, com o contexto e com a responsabilidade social. Quem se limita a repetir comunicados oficiais ou a fabricar títulos escandalosos não está a informar — está a desinformar.

    A imprensa portuguesa, se quiser sobreviver como pilar democrático e não como caricatura de si própria, tem de reaprender a função básica do jornalismo: olhar para a realidade sem filtros de conveniência, expor o que está mal, contextualizar o que é complexo, desmontar o que é manipulado – é para isso que serve um jornalista. O resto é espuma — e a espuma, como se sabe, desaparece sempre ao sabor da próxima onda.