Se há sector em que Portugal teve uma evolução extraordinária ao longo do último século, foi nos cuidados infantis. Na década de 20 do século XX, a mortalidade infantil — de crianças com menos de 1 ano — era absurdamente elevada: mais de 20% dos recém-nascidos não completava o primeiro ano. A partir dos anos 40, a evolução da medicina e das condições de higiene melhoraram bastante este indicador. Mesmo assim, no final dos anos 60, ainda no Estado Novo, a mortalidade infantil rondava os 2%.
Os maiores avanços da medicina, a par da vacinação e da prevenção e cuidados de higiene, reforçaram essa evolução — e assim a taxa de mortalidade começou a ser medida por óbitos por milhar de nados-vivos, porque passou a situar-se abaixo de 1%. Mesmo assim, com números que colocavam Portugal na vanguarda dos países mais desenvolvidos, em 1996 morreram 758 bebés, ficando abaixo do meio milhar de óbitos a partir de 2022.
Ainda assim, nas últimas décadas, mesmo estando num desempenho extraordinário em termos de Saúde Pública, mas consciente da preciosidade da vida de um bebé, houve progressos significativos. A taxa de mortalidade já chegou a estar abaixo dos 3 óbitos por mil — ou seja, 0,3% — com o ano de 2021 a representar o número absoluto mais baixo de sempre: 194 óbitos.
Nos últimos anos, tem-se vindo a verificar um aumento relativo significativo: em 2024 morreram 255 crianças com menos de um ano de idade, representando um crescimento de 30,5%. Mas se estas variações até poderiam, em certas circunstâncias, ser conjunturais, por se estar perante números pequenos, a análise do PÁGINA UM ao conjunto de dados hoje divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística detectou uma situação altamente preocupante: o distrito de Setúbal está num absurdo agravamento da mortalidade infantil.
Com efeito, a nível nacional, o período posterior a 2021 rompeu com a tendência de contínuo decréscimo de longo prazo. Em todo o caso, numa visa territorial, este acréscimo podia-se explicar pelo ligeiro aumento da natalidade e pelo aumento de comunidades com menor atenção no acompanhamento durante a gestação — situação que, em muitos contextos, se associa a menor acesso ou adesão aos cuidados pré-natais —, mas há o distrito de Setúbal que ‘apita’ por atenção.
De facto, este distrito a sul de Lisboa não só lidera o aumento recente — passou de 19 óbitos em 2021 para 41 em 2024, uma subida de 116% — como é o único distrito onde o número de mortes de bebés em 2024 foi superior ao registado há 20 anos. Aliás, neste distrito não havia tantas mortes de bebés desde 2002.
Evolução relativa da mortalidade infantil entre 2004 e 2024 em Portugal e nos distritos de Braga, Lisboa, Porto e Setúbal, tomando o ano de 2004 como valor base (índice 100).Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM. Nota: Cada linha representa a variação percentual anual face ao valor de referência de 2004, pelo que valores acima de 100 representam um acréscimo e abaixo de 100 uma redução.
De acordo com os dados do INE, em 2004 registaram-se no distrito de Setúbal um total de 32 óbitos, menos nove do que em 2024. Ou seja, esta região teve um crescimento da mortalidade de 28% durante este período, em absoluto contraciclo com todas as outras regiões de Portugal. De facto, não há nenhum caso similar — muito pelo contrário.
Em termos comparativos, em todo o país morreram em 2004 um total de 420 bebés, enquanto no ano passado foram 250, o que representa uma redução de 40%. No distrito de Lisboa, a redução nesse período foi de 31%, enquanto no distrito do Porto foi de 60%. Em Braga, de 48%, e em Aveiro de 65%. Para se ter uma noção mais chocante desta evolução, em 2004, no distrito do Porto, houve quase o triplo de óbitos de bebés com menos de um ano face ao distrito de Setúbal (94 vs. 32); agora, em 2024, morreram 41 bebés em Setúbal e 38 no Porto.
Especular pode sempre especular-se sobre as causas de Setúbal estar em evidente e chocante contraciclo — que é aquilo que, por regra, se faz quando se pede um comentário a pediatras ou outros especialistas. Por regra, aponta-se a degradação de serviços neonatais, o aumento de partos de risco não acompanhados e eventuais factores sociais e económicos ainda por caracterizar.
Situação da mortalidade infantil do distrito de Setúbal é um caso de Saúde Pública, estando em completo contra-ciclo num sector que registou progressos exemplares nas últimas décadas.
Mas, por regra, fala-se nisso e mete-se uma pedra sobre o assunto sem sequer se analisar em detalhe as verdadeiras causas dos óbitos, para perceber aquilo que efectivamente está a causar esta situação única.
Em todo o caso, através de outro conjunto de dados também divulgados hoje pelo INE, consegue-se saber em que concelhos vivem as mães dos recém-nascidos que morreram nos últimos quatro anos, e onde os números têm aumentado mais. E ressaltam aí os concelhos de Almada, com uma subida de quatro óbitos em 2023 para 16 no ano passado, e do Seixal, com uma subida de dois óbitos em 2021 para 10 no ano passado. Fora do distrito de Setúbal, também se nota uma subida relevante nos concelhos de Sintra e Amadora: em conjunto, registaram 18 óbitos em 2021, número que subiu para 30 no ano passado.
A campanha para as legislativas deste domingo de 2025 não tem sido apenas palco de confronto entre partidos – e não há apenas queixas dos partidos sem assento parlamentar. Nos bastidores das televisões, fora do ecrã, travou-se também, nas últimas semanas, uma acesa mas mais discreta guerra, envolvendo audiências, monopólios e acusações de práticas anticoncorrenciais.
A protagonista deste conflito foi a Medialivre — proprietária da CMTV e do canal informativo News Now — que, apesar das crescentes subidas nas audiências, foi liminarmente afastada da organização dos debates eleitorais transmitidos pelas empresas de media com canais generalistas (RTP, SIC e TVI), que também usaram os seus canais por subscrição.
Debate entre Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro transmitido no dia 30 de Abril pela RTP1, SIC e TVI.
A decisão de exclusão, segundo apurou o PÁGINA UM, partiu da ‘aliança informal’, ao melhor estilo do oligopólio, formada pela RTP, SIC e TVI, que, à semelhança do modelo de 2024, celebrou um acordo com os partidos com assento parlamentar para realizar os tradicionais 28 debates a dois entre os principais candidatos, entre os dias 7 e 30 de Abril. Dos 28 confrontos, 13 foram emitidos nos canais generalistas RTP1, SIC e TVI (incluindo um debate em simultâneo, o mais apetecível, entre Luís Montenegro e Pedro Numo Santos), e os restantes 15 distribuídos pelos seus canais temáticos — RTP3, SIC Notícias e CNN Portugal. Em paralelo, a RTP programou ainda um debate com todas as candidaturas com assento parlamentar (4 de Maio) e outro com as restantes forças políticas (6 de Maio).
Canais da Medialivre ‘afastados’ dos debates pelas concorrentes.
Perante este afastamento, a Medialivre recorreu inicialmente à Comissão Nacional de Eleições (CNE), tendo depois apresentado uma queixa formal à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), no passado dia 8 de Abril, exigindo uma análise urgente por considerar estar em causa uma “grave violação do pluralismo, da igualdade de tratamento entre operadores e do direito à informação”. Apesar de a Medialivre não deter canais generalistas, a quota de audiência da CMTV este mês está nos 6,3%, superando largamente a SIC Notícias (2,4%) e a CNN Portugal (2,6%). Mesmo o novo canal Now está já com 1,4% em Maio, ultrapassando a RTP3 (1,0%). A Medialivre argumenta que os seus canais possuem “relevância nacional” e capacidade técnica “suficiente para realizar e cobrir debates eleitorais”.
Na sua queixa, a Medialivre acusou os operadores concorrentes – que, embora estejam há muito mais tempo no mercado, não têm tido a mesma capacidade de investimento – de promoverem uma “mercantilização do espaço informativo eleitoral”, trocando o interesse público por lógicas de exclusividade comercial, o que “limita injustificadamente a diversidade de fontes de informação” e marginaliza o papel de outros operadores fora da troika televisiva. E acrescentou ainda que o acordo das televisões generalistas com os partidos configurava uma prática anticoncorrencial, afastando canais que poderiam alargar o alcance e o pluralismo do discurso democrático.
No âmbito do processo aberto pela ERC, as empresas dos canais generalistas (RTP, SIC e TVI) argumentaram que o modelo acordado com os partidos satisfaz “plenamente o interesse público, o pluralismo e a liberdade de expressão”, e que são os únicos canais com sinal aberto, acrescentando ser uma prática “consensual entre os partidos” e repetida em eleições anteriores, mas que não impedia que outros operadores, como a Medialivre, realizassem iniciativas próprias. Em suma, RTP, SIC e TVI claramente não querem um novo ‘menino’ no seu ‘restrito clube’.
Helena Sousa, presidente da ERC: regulador considera que a inclusão dos canais da Medialivre seria positiva, mas acrescenta que o ‘cartel dos debates’ não contraria a lei.
A deliberação da ERC, aprovada na semana passada mas apenas divulgada hoje, considerou a queixa da Medialivre “improcedente” – declarando que “não se verificou violação do dever de pluralismo” e que o acordo das televisões generalistas cumpria a lei –, mas reconheceu que a inclusão da CMTV e da Now nos debates “teria contribuído para ampliar o esclarecimento dos cidadãos”, tanto mais que os seus públicos não se sobrepõem inteiramente aos dos canais que organizaram os debates.
No essencial, a ERC não afasta a percepção de que a lógica do ‘clube fechado’ entre os três canais principais continua a moldar o acesso mediático aos grandes momentos da democracia. A exclusão da Medialivre levanta, pois, uma questão maior do que a disputa entre grupos mediáticos: a de saber se, em plena era digital e com novos actores informativos a ganharem expressão e audiência, faz sentido manter os debates eleitorais reféns de acordos restritivos entre partidos e um ‘cartel televisivo’.
Ainda por cima quando, neste oligopólio de comunicação, estão os canais da SIC e da TVI, cujas empresas privadas, embora mais antigas, estão em situações financeiras pouco saudáveis em comparação com a Medialivre, onde Cristiano Ronaldo é o principal accionista individual.
Há livros que parecem escritos não para serem lidos, mas para nos confrontarem com o que preferíamos não saber. Naquele Dia, da escritora Laura Alcoba, é um desses livros. Evita o alarido, recusa a grandiloquência, abdica de qualquer manobra de sedução narrativa — e, no entanto, impõe-se com a força de um sismo moral. Baseado num caso verídico ocorrido em Paris em 1984, Naquele Dia propõe uma reconstrução fragmentária, mas obsessivamente delicada, de um acto de violência doméstica que escapa a toda a lógica e que, por isso mesmo, exige escuta.
Não é um romance no sentido clássico, e também não se entrega à crueza documental. Laura Alcoba faz — e fá-lo com uma contenção que roça o ascetismo — uma reconstituição de um espaço de ruína emocional através de três figuras: a mãe, Griselda, que mergulha num estado de desespero absoluto; o pai, Claudio, impotente e ausente; e a filha, Flavia, que sobrevive. Mas o verbo “sobreviver” aqui não é simples estatística vital: Flavia sobrevive à morte física, mas não ao colapso do mundo. A sua voz — ou melhor, os seus gestos, os seus silêncios, os seus desenhos infantis — atravessam o livro como restos de uma linguagem interrompida.
Há neste gesto literário algo de Truman Capote, mas sem teatralidade. A escritora argentina, exilada desde a infância, inscreve-se na tradição da literatura do real, mas recusa o voyeurismo. Não há aqui nenhum esforço de dramatização. Nem julgamento, nem explicação. Alcoba compreende — como poucos — que há actos que não podem ser reduzidos a uma lógica causal, nem sequer à linguagem da psicologia. Aquilo que houve naquele dia — e nos dias que o antecederam — foi um paroxismo. Um termo árido, sim, mas talvez o único que se aproxima da natureza do que se passou: o colapso súbito, íntimo, surdo, da humanidade numa mulher. A maquilhagem de Griselda, obsessiva, torna-se não apenas máscara mas metáfora. E o frio de Paris, omnipresente, nunca é apenas meteorológico.
A escrita, depurada até ao osso, é também um acto ético. Laura Alcoba não toma o lugar de ninguém: recolhe, escuta, recompõe. Nunca tenta explicar o que não é explicável. Nunca escreve em nome das vítimas — escreve perto delas. E, talvez por isso, Naquele Dia se torne mais do que um livro: uma forma de presença, uma tentativa de devolver ao espaço público uma história que parecia ter sido soterrada por neve e silêncio.
Não deixa de ser significativo que a escritora, embora vivenda na França há décadas, ainda guarde um olhar argentino sobre o Mundo. Há no seu estilo uma densidade hispano-americana, uma estranheza dos exilados que vivem entre línguas. E se o livro nos fala de um drama familiar, fala-nos também do exílio — esse estado permanente de perda de referência e de reconstrução forçada da identidade. Perguntar se Laura Alcoba ainda se sente argentina é talvez redundante: aquilo que ela escreve só poderia ser escrito por alguém que traz um país inteiro dentro da memória.
Naquele Dia não é um livro agradável, mas é um romance necessário. Não nos reconcilia com o mundo, mas também não nos entrega ao desespero. Obriga-nos apenas — e já é tanto — a parar, escutar e reconhecer que há actos humanos que não devem ser julgados à pressa, nem esquecidos em silêncio. Devem, isso sim, ser habitados. E, com a delicadeza quase litúrgica que lhe conhecemos, é isso que Laura Alcoba faz — e nos convida a fazer com ela.
Durante a pandemia, uma parte significativa do jornalismo português ajoelhou-se perante os altares da Comissão Europeia e dos Governos nacionais. A crítica, o contraditório e a investigação foram substituídas por uma militância sanitária que assumiu como missão promover vacinas, esconder contratos, silenciar dúvidas e rotular como perigosos ou irresponsáveis os que ousassem fazer perguntas.
Por exemplo, logo após o nascimento do PÁGINA UM em Dezembro de 2021, a direcção editorial da CNN Portugal (com o apoio da Ordem dos Médicos) encomendou ao então estagiário Henrique Magalhães Claudino uma notícia para me associar aos ditos movimentos negacionistas da covid-19. Tive de lutar meses junto da ERC pela justeza da minha notícia rigorosa para, pelo menos, conseguir publicar direitos de resposta em alguns dos jornais que propalaram esta patifaria da CNN.
Ursula von de Leyer com o CEO da Pfizer, Albert Bourla.
Ou seja, durante a pandemia, a imprensa mainstream e muitos jornalistas não hesitaram em atribuir-me epítetos por não seguir linhas editoriais de propaganda vacinal e de gestão da pandemia, funcionando mais como departamentos de comunicação da DGS do que como órgãos de comunicação social que se exigem livres e plurais.
Nesse contexto, não surpreende que a imprensa portuguesa — com raríssimas excepções — nunca tenha demonstrado qualquer interesse em saber o que realmente se passou nos bastidores das negociações das vacinas, tanto a nível europeu como nacional. Quando, em 2022, o The New York Times avançou com um processo contra a Comissão Europeia para obter as célebres mensagens trocadas entre Ursula von der Leyen e o CEO da Pfizer, Albert Bourla, a imprensa nacional mal lhe dedicou uma nota de rodapé. Uma ou duas linhas tímidas, e logo voltou ao conforto das pachorrentas conferências de imprensa, onde as perguntas difíceis eram proscritas.
O Público agora rejubila com a vitória da liberdade de imprensa e da transparência…
A hipocrisia na sua plenitude: quem ontem negou o jornalismo, hoje celebra o jornalismo dos outros — desde que venha com o selo do New York Times e sem incomodar os interesses nacionais.
Mas mais grave do que esta hipocrisia mediática é o facto de, em Portugal, também haver um “caso Pfizergate” — ou melhor, um “caso DGSgate”, igualmente associado à compra de vacinas da covid-19, mas este, intentado pelo PÁGINA UM, arrasta-se há mais de dois anos, sem que o Tribunal Administrativo tenha decidido o que há muito já deveria estar resolvido. Ou melhor dizendo, porque os tribunais (e as suas decisões) são feitos por pessoas, pela juíza do processo, Telma Nogueira.
Com efeito, em 22 de Novembro de 2022, requeri à DGS, ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos, um pedido claro, inequívoco e fundamentado de acesso integral aos contratos celebrados com as farmacêuticas fornecedoras de vacinas contra a covid-19, incluindo todos os anexos, cadernos de encargos, guias de transporte e trocas de correspondência administrativa.
A juíza associada à intimação do PÁGINA UM tem permitido ao Ministério da Saúde e à DGS um exercício prolongado de opacidade com verniz burocrático: quando está em causa decidir se existe legitimidade para o acesso, é permitido que se negue o inegável, que se traduzam documentos (sem se ver os originais), e expurguem partes, retirando qualquer valor informativo real. E, na verdade, ‘apenas’ se quer consultar os originais. E anda-se há 28 meses — a intimação foi apresentada no último dia de 2022 — numa encenação de transparência, onde se finge cooperação para, na prática, se negar o acesso à informação pública.
E a juíza permanece, despacho após despacho, sem proferir sentença ao fim de 28 meses, num processo classificado de urgente. Ainda que fosse desfavorável, seria preferível uma sentença, porque, ao menos, seria possível recorrer ao tribunal superior.
Ainda este mês, sabendo bem que aquilo que a DGS tem carreado para o processo em nada corresponde ao que foi solicitado em 2022, a juíza Telma Nogueira deu um despacho para que nos pronunciemos se estamos satisfeito com aquilo que temos. Anda-se neste ‘enrola-enrola’ há dois anos. Se o formalismo jurídico permitisse seguiria uma única palavra e em maiúsculas: NÃO. E a seguir, um rogo: “decida, se faz favor”.
Talvez não seja de bom tom, com um caso em curso, estar a debruçar-me e a criticar a condução deste caso. Mas ao jornalismo cabe a obrigação da denúncia, mesmo se em casos que digam respeito ao próprio jornalista, porque, neste caso, existe interesse público. E a questão jurídica do Tribunal Administrativo nestes casos é simples: não lhe cabe ser árbitro entre o que o requerente pediu e aquilo que o requerido quer dar. Cabe-lhe dizer, com clareza e firmeza, se há ou não legitimidade no pedido, se a DGS tem ou não obrigação de entregar os documentos originais sem rasuras, se o cidadão e, em particular, o jornalista têm ou não o direito de escrutinar os contratos que foram pagos com dinheiro público em nome de uma emergência sanitária. E decidir com a celeridade que a lei determina para as intimações. E 28 meses são 28 meses — não há conceito lato de urgência que encaixe todo este tempo.
Ao contrário do que muitos insinuaram durante a pandemia, não há qualquer pulsão negacionista em se querer saber como foram negociadas e contratadas as vacinas ou se geriu a pandemia. Aquilo que há é jornalismo — esse mesmo que agora tantos fingem celebrar quando a vitória é de um jornal estrangeiro.
O ‘caso DGSgate’ – e um outro relacionado com uma base de dados dos internamentos, que se eterniza apesar de um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 2023 – é, por isso, um teste à democracia. Se a Justiça portuguesa confirmar que a recusa da DGS foi ilegal, estará a dar uma resposta clara em favor da liberdade de informação e contra a opacidade institucional. Mas se continuar em silêncio, estará a dizer-nos que, em Portugal, certos contratos públicos estão acima da lei — e que, ao contrário do que se exige aos cidadãos, o Estado pode desobedecer impunemente àquilo que ele próprio legisla.
Assim, se Von der Leyen foi condenada por esconder mensagens de WhatsApp, o que se deve dizer de uma DGS que esconde contratos inteiros, facturas, guias de remessa e cartas em papel timbrado? E o que dizer de uma Justiça que, passados mais de dois anos, ainda não respondeu?
Enfim, não basta aplaudir o New York Times e dizer que a liberdade de imprensa venceu em Bruxelas. É tempo de exigir que a liberdade de imprensa também vença em Lisboa. E que se denuncie, em simultâneo, os hipócritas — sobretudo os escribas de certa imprensa, que tão maltrataram os princípios do jornalismo durante os anos da pandemia.
Na vigésima sétima sessão da BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com a escritora argentina Laura Alcoba.
Nascida em 1968, na Argentina, e exilada em França desde os dez anos, Laura Alcoba construiu uma obra literária profundamente marcada pelas sombras da história e pelos silêncios da infância. Filha de militantes perseguidos pela ditadura militar, viveu na clandestinidade com um nome falso e aprendeu cedo que o medo pode tornar-se idioma. Hoje, professora universitária em Paris e autora consagrada em língua francesa, Laura Alcoba regressa com frequência à Argentina — não apenas nos afectos, mas sobretudo na literatura.
Na sua passagem por Lisboa, a pretexto do lançamento do seu romance Naquele dia, a sua primeira obra traduzida em português, e publicada pela Dom Quixote, Laura Alcoba conversa com Pedro Almeida Vieira numa edição especial, gravada na Livraria Bucholz, em Lisboa, para a BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, cuja transcrição editada também aqui se apresenta.
Naquele dia é o teu primeiro romance traduzido para Portugal e parte de um facto real, trágico e íntimo. Em que momento sentiste que essa história tão delicada, tão violenta, podia transformar-se em literatura?
Foi algo que surgiu por etapas. Há anos, fui ver um filme do Martin Scorsese, Shutter Island [Ilha do Medo, em portyguês, de 2010] e, ao sair da sala, tive uma sensação muito estranha: parecia que eu já conhecia aquela história. Havia uma cena em que uma mãe afogava três filhos — uma menina e dois rapazes — e isso mexeu muito comigo. Com o tempo, lembrei-me de algo que o meu pai me contou: ele conheceu uma família na qual se tinha passado um drama semelhante. E eu, em criança ou adolescente, tinha visto dois desses meninos. A mãe afogou os filhos na banheira.
Laura Alcoba com Pedro Almeida Vieira.
Recordaste isso depois de veres o filme?
Laura: Sim. Lembro-me de dizer ao meu editor, anos depois: “Houve um caso terrível entre exilados argentinos, e um dia, se tiver forças, talvez escreva sobre isso.” Mas não sabia se seria capaz. Guardei isso num canto da mente. Escrevi outros livros até que, já mais recentemente, aconteceu algo muito particular, encontrei os contactos de Griselda.
A mãe?
Sim, e também a filha. Ambas pareciam estar à minha espera. Sabiam que eu escrevia. Foi uma sensação estranho. A verdade é que eu ainda tinha medo. Mas o encontro com Flavia, a filha, agora uma mulher de mais de 40 anos, foi decisivo. Ela tinha seis anos na altura dos acontecimentos, em 1984. Quando falámos, foi muito forte ela e me contou aquilo que se recordava naquele dia e disse-me: “Preciso que fales com a minha mãe. Preciso que escrevas este livro.” A partir desse momento, foi como se o livro tivesse começado a escrever-se por si só.
Foi só após essa conversa com a filha que decidiste adoptar essa perspectiva narrativa mais contida, quase como em A Sangue-Frio, do Truman Capote? Ou já tinhas essa ideia antes?
Não sei… Talvez sim, no sentido em que fiz uma investigação, como Capote. Mas o que tentei fazer foi contar essa história e, através dela, contar muitas outras. O que me interessa é o que há de universal no particular. Aqui há um momento de loucura, um infanticídio — infelizmente, algo que se repete noutros casos — e, ao mesmo tempo, há uma criança que sobrevive. É um livro sobre um crime terrível e um acto horroroso e, ao mesmo tempo, sobre a sobrevivência. Nesse dia, a criança salva-se e emerge uma luz para outra coisa. É um livro sobre a força da infância, sobre a resiliência. Não o teria escrito se fosse apenas sobre o crime.
Claro, claro…
Persigo esse tema da infância, sobre a sua força indestrutível, é algo que faço há anos. Aquilo que é impressionante nesta história é que Flavia se salvou e tornou-se uma pessoa extraordinária. Isso é um mistério, um milagre, é incrível. Sem essa luz no final, não teria conseguido escrever. Interessava-me essa sobrevivência.
Depois de escreveres este livro, que trata de uma violência tão extrema — violência doméstica, de mãe contra filhos —, conseguiste compreender o acto? Escreveste-o para tentar entender?
Acho que não. Nunca se compreende verdadeiramente. Podemos tentar aproximar-nos do que é incompreensível. Este acto continuará a sê-lo — até para a própria Griselda. Não se trata de explicar nem de justificar, mas de entrar numa zona obscura do humano e saber que, mesmo depois disso, há um “depois” possível. Sem esse “depois”, eu não teria escrito.
E a história da salvação de Flavia é incrível. A mãe vai buscá-la à escola após matar os dois irmãos…
Sim. A mãe chega à escola num estado completamente alterado. E a professora de Flavia, Colette, percebe que há algo errado. Recusa-se a entregar a menina. E aí põe-se em marcha outra coisa. Esse gesto salvou a vida de Flavia. Foi essa recusa que impediu que a tragédia se consumasse por completo.
Chegaste a conhecer Colette?
Sim. Encontrei-me com ela, com a sua companheira, com a advogada. Colette, que é a pessoa mais extraordinária que conheci na vida, teve uma intuição extraordinária. Não entregou a menina à própria mãe. Graças a isso, Griselda acabou por ir para um hospital psiquiátrico e teve um julgamento. E foi decidido que voltaria a viver com a filha, depois de sair da prisão. Na altura, eu própria teria dito que era uma loucura esse veredicto. Mas hoje, ao vê-las juntas tantos anos depois, percebo que essa aposta — difícil, quase impossível — funcionou.
E como decidiste a forma de contar a história? Sem cair no jornalismo, sem fazer juízos morais?
Nunca quis fazer um livro jornalístico. Havia momentos em que me parecia estar dentro de um mito. No livro, menciono o mito de Medeia — que também foi contado a Flavia. Mas o que quis foi encontrar algo profundamente humano, algo universal. Esta história, embora extrema, fala-nos de questões fundamentais: loucura, morte, mas também amor, coragem, sobrevivência.
E conseguiste escrever tudo isso com muito pudor, sem entrar nos pormenores macabros.
Sim. Não queria dar detalhes chocantes. O acto está presente, claro — é um abismo —, mas tentei manter a distância certa. A loucura e o mal existem. Não há explicações jurídicas ou psiquiátricas que resolvam tudo. A única coisa que podemos tentar é procurar alguma luz na escuridão.
E esta história passa-se em Paris, entre exilados argentinos. Achas que o facto de serem exilados, sem raízes, contribuiu para a tragédia?
Não quero reduzir tudo a isso, mas é claro que Griselda foi alguém profundamente ferido pela História. Uma mulher que sofreu abusos na infância, que viveu a repressão da ditadura. A História com H grande quebrou-a. Era como um vaso que se parte de repente.
Escreves em francês. Mas falas castelhano com fluência. Como vives essa dualidade?
Escrevo sempre em francês. O castelhano está em mim como um lençol freático. Toda a minha memória argentina está lá, debaixo da terra, e emerge nos livros. Não conseguiria escrever em castelhano, mas os meus livros, quando são traduzidos para essa língua, é como se voltassem à sua origem.
E sentes que serias outra pessoa se fosses francesa nascida em França?
Claro. Vivi na clandestinidade na Argentina, com um nome falso, escondida. Isso marcou-me para sempre. A autocensura, o medo de falar… tudo isso explorei em francês. Especialmente no livro agora traduzido em Portugal, onde os silêncios são fundamentais.
Tens visitado a Argentina?
Sim, regularmente. Sou recebida com muito carinho. Tenho muitos leitores.
E como vês agora a Argentina com Milei?
Mas a situação económica é muito difícil. E agora, com Milei, tudo se agravou. As suas medidas são brutais na assistência social. Ele quer destruir o Estado, e o Estado é o que nos permite viver juntos. As pessoas não vivem na Macroeconomia. A democracia está em perigo.
Qual é o papel do escritor, neste contexto?
Laura: Acho que é importante tomar a palavra, assumir uma posição. Mesmo vivendo em França, acompanho tudo com preocupação. É fácil destruir a uma velocidade estontante, difícil é reconstruir. Mas confio na resiliência da Argentina e. Como Flavia.
Perante a aproximação das eleições do próximo domingo, o PÁGINA UM decidiu avançar com uma análise — ou, para sermos mais precisos, uma prospectiva — que permitirá compreender a real eficácia da representação parlamentar no sistema eleitoral português, com base nos resultados das legislativas de Março de 2024. O estudo assenta numa metodologia rigorosa que visa escrutinar a proporcionalidade do método de Hondt nos diversos círculos eleitorais, avaliando se os votos dos cidadãos têm, de facto, o mesmo peso em todo o território nacional.
Este trabalho incide assim sobre oito parâmetros fundamentais:
Quociente Limiar: corresponde ao número de votos que, na prática, foi necessário para eleger o último deputado num círculo. A fórmula usada é simples — divide-se o total de votos válidos pelo número de mandatos mais um —, mas o seu valor revela muito sobre o grau de exigência eleitoral em cada distrito.
Votos em falta para partidos sem representação: calcula-se a diferença entre os seus votos e o quociente limiar. Este indicador revela quão próximo (ou quão distante) um partido esteve de eleger, o que permite afinar estratégias políticas.
Votos desperdiçados: somam-se todos os votos dados a partidos que não elegeram nenhum deputado, revelando a ineficácia prática desses votos no actual modelo. A percentagem destes votos face ao total permite aferir a frustração potencial do eleitorado.
Limiar real de entrada: é a percentagem mínima de votos que permitiu, efectivamente, eleger um deputado em cada círculo. Em alguns distritos, bastam pouco mais de 3%; noutros, exige-se o dobro.
Análise da distorção da representação: através do cálculo do Índice de Gallagher, mede-se o desvio entre a percentagem de votos e a percentagem de mandatos obtida por cada partido. Quanto mais elevado este índice, maior a distorção democrática.
Comparação de círculos para partidos pequenos: identifica-se onde estiveram mais próximos de eleger, e onde os votos tiveram menor eficácia. Esta análise interessa, sobretudo, a formações políticas emergentes ou com implantação territorial desigual.
Estimativa de votos necessários para eleger: calcula-se, por partido, o número adicional de votos que teriam sido necessários para garantir representação em cada círculo, aferindo cenários realistas de crescimento.
Simulações de métodos alternativos: são realizadas simulações com o método Sainte-Laguë, mais favorável à proporcionalidade, para permitir comparações com o actual sistema de Hondt.
O objectivo desta iniciativa é clarificar, com base em dados concretos e fórmulas matemáticas simples, a arquitectura real da representação política em Portugal, questionando se o sistema eleitoral serve, de facto, os princípios da proporcionalidade e da igualdade do voto. Esta análise será publicada em várias partes até ao dia das eleições, acompanhando os círculos eleitorais com especial destaque para os chamados votos “desperdiçados” e as barreiras invisíveis à entrada de novos partidos na Assembleia da República.
Começar por Lisboa e Porto é, mais do que uma escolha editorial, uma imposição da aritmética eleitoral. Estes dois círculos reúnem quase um terço dos mandatos da Assembleia da República (88 em 230), sendo determinantes tanto para a formação de maiorias como para a diversidade política do Parlamento.
Com base nos resultados das eleições legislativas de Março de 2024 e aplicando a Metodologia Eleições, é possível traçar um retrato nítido das oportunidades, barreiras e distorções presentes no sistema eleitoral português. E, como sempre, é nos números que a democracia revela as suas virtudes e as suas imperfeições.
Sala das Sessões da Assembleia da República. Foto: Carlos Pombo / AR.
O distrito de Lisboa, com 1.289.608 votos válidos nas legislativas de 2024 e 48 mandatos atribuídos, apresentou um quociente limiar de 26.319 votos, com o último deputado eleito pelo PAN, que reuniu 32.829 votos (2,55%). O desperdício de votos foi reduzido (2,8%), sinal de um voto eficaz, concentrado em partidos viáveis.
O distrito do Porto, com 1.089.429 votos válidos no ano passado e 40 mandatos, teve um quociente limiar semelhante (26.571 votos), com o último eleito a ser o PCP-PEV, com 26.343 votos (2,42%). No entanto, o desperdício foi ligeiramente superior: 5,67% dos votos válidos foram atribuídos a partidos sem qualquer representação.
Olhando para os partidos sem representação parlamentar, constata-se que, tanto em Lisboa como no Porto, há forças políticas muito próximas de entrar. O PAN no Porto ficou a apenas 3.156 votos do limiar, e o ADN, quer em Lisboa (7.245 votos de distância) quer no Porto (6.986), mostra viabilidade aritmética.
Esta informação, invisível para o eleitor comum, pode ser decisiva na estratégia de campanha, sobretudo para partidos que tentam consolidar ou alcançar representação parlamentar. Todos os outros partidos não eleitos — como R.I.R, Volt, PCTP/MRPP, JPP, MPT.A, entre outros — estão em situação díficil, com mais de 20 mil votos de distância face ao limiar.
Quanto aos partidos com representação, a análise do PÁGINA UM permite identificar quem está em risco e quem pode crescer com reforços marginais. No caso de Lisboa, o PS poderá perder um deputado com uma quebra de apenas 2.600 votos, enquanto o Livre pode conquistar um terceiro com mais 6.800 votos, e a IL um quarto com cerca de 18.400 votos adicionais. No Porto, a IL precisaria de 13.000 votos para um terceiro mandato, e o Livre, com um deputado, está muito longe de um segundo (mais de 26 mil votos em falta).
Esta análise demonstra que a matemática da eleição não se esgota na contagem directa de votos, mas joga-se também nos restos, nos limiares e nas sobras de distribuição. É aí que o método de Hondt se revela: proporcional, sim, mas com inclinação clara para favorecer os partidos grandes.
Para aferir o grau de distorção deste favorecimento, o PÁGINA UM recorreu também ao Índice de Gallagher, um indicador reconhecido internacionalmente que mede a diferença entre a percentagem de votos e a percentagem de mandatos obtida por cada partido. O resultado foi relativamente baixo — 2,23 em Lisboa e 1,97 no Porto — o que atesta uma proporcionalidade aceitável nestes grandes círculos.
Mas quando se simula a distribuição de mandatos pelo método Sainte-Laguë, mais justo para forças médias, as mudanças são reveladoras. Em Lisboa, o Livre elegeria três deputados em vez de dois, enquanto o PS perderia um mandato. No Porto, o IL conquistaria um terceiro deputado à custa de um mandato retirado ao PSD/CDS. Estas simulações mostram que o sistema português, mesmo em círculos grandes, penaliza os partidos médios mais do que seria desejável num modelo de democracia proporcional.
A conjugação destes indicadores permite traçar um mapa das oportunidades e fragilidades de cada força política. Partidos como o PAN e o ADN têm hipóteses reais de representação se ultrapassarem o limiar dos 27 mil votos em Lisboa e Porto. Partidos já eleitos, como o Livre ou o IL, têm margens curtas e podem crescer (ou cair) com variações mínimas na votação. O PS e o PSD/CDS continuam a beneficiar da estrutura do sistema, mas mesmo eles enfrentam zonas de risco em mandatos marginais.
Em suma, os dados de Lisboa e do Porto mostram que a representação em Portugal é proporcional, mas não equitativa, e que as sobras do método de Hondt não são neutras. A democracia parlamentar portuguesa continua dependente de quocientes, restos e limiares — e é por isso que uma análise técnica é indispensável para interpretar correctamente os resultados.
O PÁGINA UM continuará, até à véspera das eleições, a publicar relatórios detalhados de todos os círculos do continente e das regiões autónomas. Porque só compreendendo a mecânica do sistema é possível avaliar se este representa, de facto, a vontade plural dos cidadãos — ou apenas a sua tradução estatística.
📘 Relatório técnico – Círculo Eleitoral de Lisboa
🔎 Dados gerais
Votos totais válidos: 1.289.608
Mandatos totais no círculo: 48
Quociente limiar (QL): 26.319 votos
Votos do último eleito: 32.829 (PAN)
Limiar real de entrada (LRE): 2,55 %
Votos desperdiçados (VD): 36.073
Percentagem de votos desperdiçados: 2,8 %
📈 Observações analíticas
O círculo de Lisboa é, a par do Porto, o mais inclusivo do sistema proporcional português, com 48 mandatos atribuídos. Este volume permite uma distribuição alargada e representativa. Elegeram deputados sete partidos: PS, PPD/PSD.CDS-PP.PPM (AD), CH, IL, Livre, BE, PCP-PEV e PAN.
O limiar real de entrada situa-se nos 2,55%, permitindo a eleição de forças políticas com menos de 33 mil votos, como foi o caso do PAN. Ainda assim, partidos com votações entre os 15 e os 25 mil votos, como o ADN, ficaram de fora, o que mostra que Lisboa, embora generoso, continua a exigir concentração de voto e ultrapassagem da barreira prática do quociente.
📉 Votos em falta para partidos sem representação e viabilidade de eleição
O ADN é o único partido com alguma competitividade, mas ainda está a mais de 7 mil votos do limiar — um valor considerável mesmo em Lisboa. Todos os outros estão numa zona politicamente irrelevante em termos aritméticos.
🧮 Eficiência de representação
A eficiência por mandato oscilou entre 24.389 (PS) e 36.051 (Livre). PS, PSD, CH e PCP-PEV apresentam alta eficiência proporcional. IL, Livre, BE e PAN têm custos mais elevados por deputado, mas dentro dos limites da proporcionalidade do círculo.
🌊 Desperdício eleitoral
Com apenas 2,8% dos votos desperdiçados, o círculo de Lisboa garante uma representatividade quase plena. A esmagadora maioria dos eleitores votou em listas que elegeram deputados, o que revela forte eficácia do voto útil e uma oferta política bem estruturada.
⚖️ Conclusões técnicas
Lisboa mantém-se como um círculo de entrada possível para partidos médios, mas já não acolhe partidos com menos de 25 mil votos.
O limiar de entrada real (2,55%) está dentro da média histórica do distrito.
Apesar da grande dimensão, Lisboa não é um círculo “fácil” para forças pequenas ou de recente fundação — é necessária estrutura, voto urbano e mobilização digital.
A dispersão à esquerda permitiu manter IL, BE, Livre, PCP-PEV e PAN em representação, mas com custos elevados de entrada.
📎 Recomendações estratégicas
O ADN é o único partido que pode aspirar à entrada se reforçar a sua base urbana em Lisboa, com pelo menos mais 7.500 votos.
Coligações entre partidos ambientalistas, liberais e moderados (PAN, ADN, R.I.R, Volt, etc.) seriam necessárias para alcançar representação.
Campanhas com voto concentrado e mobilização dirigida a jovens urbanos poderão fazer diferença nos limiares abaixo dos 30 mil votos.
Partidos com menos de 10 mil votos devem reavaliar a sua presença em Lisboa enquanto estratégia isolada.
📘 Relatório técnico – Círculo Eleitoral do Porto
🔎 Dados gerais
Votos totais válidos: 1.089.429
Mandatos totais no círculo: 40
Quociente limiar (QL): 26.571 votos
Votos do último eleito: 26.343 (PCP-PEV)
Limiar real de entrada (LRE): 2,42 %
Votos desperdiçados (VD): 61.718
Percentagem de votos desperdiçados: 5,67 %
📈 Observações analíticas
O círculo do Porto, com 40 mandatos, garante uma elevada proporcionalidade e abre espaço à entrada de sete partidos com representação parlamentar: PPD/PSD.CDS-PP.PPM, PS, CH, IL, BE, Livre e PCP-PEV. No entanto, partidos com votação próxima dos 20 mil votos, como PAN e ADN, não conseguiram ultrapassar o limiar, ficando a poucos milhares de votos da representação.
O limiar real de entrada ficou nos 2,42%, valor que continua abaixo da média nacional e que confirma o Porto como um círculo viável para forças médias, mas que não perdoa dispersão ou falta de concentração eleitoral.
📉 Votos em falta para partidos sem representação e viabilidade de eleição
O PAN foi o mais próximo de eleger, a apenas 3.156 votos do QL. O ADN ainda se manteve dentro da zona da competitividade. Todos os restantes estão fora de alcance num cenário normal de evolução eleitoral.
🧮 Eficiência de representação
A IL teve o custo mais elevado por deputado (mais de 32 mil votos), enquanto PSD/CDS e CH mostraram maior eficiência proporcional, elegendo com menos de 25 mil votos por mandato.
🌊 Desperdício eleitoral
O Porto apresenta um nível de desperdício relativamente baixo (5,67%), sobretudo tendo em conta a quantidade de partidos concorrentes. Isto indica que quase todos os votos se concentraram em forças elegíveis, revelando voto útil bem mobilizado.
⚖️ Conclusões técnicas
Limiar real de entrada abaixo de 2,5%, o que favorece a diversidade democrática.
PAN e ADN estiveram muito perto de entrar, mas não o conseguiram.
O Porto mantém-se como um dos círculos mais abertos do país, mas a barreira de 26.571 votos para o QL impõe-se com clareza.
A eficiência dos partidos grandes e médios foi elevada, com distribuição equilibrada dos mandatos.
📎 Recomendações estratégicas
O PAN deve manter investimento forte neste círculo, com alta viabilidade de eleição em 2025.
ADN encontra-se no limiar de entrada e poderá entrar com ligeiro reforço.
O Porto deve ser estratégico para partidos médios, desde que concentrem o voto e evitem dispersão ideológica.
Coligações entre pequenos partidos ambientalistas ou populistas poderão tornar-se competitivas neste círculo.
O Campo Pequeno foi inaugurado, numa arquitectura a imitar o estilo mourisco, em 1893 para ser uma praça de corrida de touros, mas, ao invés de uma arena, transformou-se — mesmo que por breves (demasiado breves) momentos — em altar escandinavo na passada sexta-feira.
E quem ali entrou, pés desnudados em passos de elfo e olhos de estrela, foi Aurora, uma espécie de sacerdotisa dos fiordes e das florestas encantadas, transportando, com ingenuidade e por vezes travessura, as dores do mundo. Não veio apenas cantar. Veio dizer, em tom de profecia gentil, que ainda há música capaz de sarar a linguagem — essa que já ninguém ouve — e de devolver ao palco o seu valor ancestral: o de câmara de iniciação.
Desde o primeiro instante, com gestos que pareciam mais exorcismo do que coreografia, a norueguesa nascida em 1996 emergia, para os mais veteranos, como uma figura trans-histórica. Para quem viveu os anos oitenta e noventa, o espanto era redobrado: ali estavam todas as deusas fundidas numa só — a fragilidade orgânica de Kate Bush, o lirismo dilacerado de Sinéad O’Connor, o sussurro tribal de Enya, a excentricidade encantada de Björk, a espiritualidade de Loreena McKennitt, a braveza poética de Annie Lennox. E também David Bowie, pela sua plasticidade camaleónica, aqui já bem evidente quando canta Life on Mars (que não incluiu no Campo Pequeno). Mas tudo isso transfigurado, não por imitação, mas por reinvenção. Aurora é a sua própria linhagem.
Inserido na promoção do seu novo álbum, What Happened to the Heart?, menos conceptual do que os anteriores, Aurora trouxe consigo uma mensagem para Lisboa, ainda que não verbalizada: a emoção não desapareceu, e a música não precisa de pirotecnia nem de outros artefactos da indústria pop, mas apenas de luz e carne, sombra e voz. E isso houve.
E que voz! O timbre de Aurora, ao vivo, surpreende — sobretudo porque consegue algo que raramente se mantém na transição entre estúdio e palco: uma verdade vocal que não vacila. Ouvindo-a em disco, dir-se-ia tratar-se de mais uma voz bem produzida por software, encaixada num dream pop estilizado e polido. Mas bastam poucos segundos em palco para que essa impressão ceda lugar a algo mais raro: autenticidade vocal, domínio técnico e, sobretudo, uma capacidade de encarnar a canção, como se cada verso fosse, simultaneamente, lamento, encantamento e exorcismo.
Aliás, bastaria ouvi-la nas variadíssimas versões ao vivo, disponíveis no YouTube (que vai desde isto até isto, passando por isto), que tem composto de Murder Song — essa elegia íntima à morte por amor, feita com uma beleza crua, e que deveria figurar num upgrade de Murder Ballads, curiosamente editado no ano do seu nascimento, mas com o Nick Cave remetido ao estatuto de backing vocals.
O timbre de Aurora, embora de aparente tessitura leve e aguda, está longe de ser frágil. Pelo contrário: há nele uma firmeza cristalina, quase mineral, sem esforço. O vibrato, discreto mas natural, não é artifício — mostra-se como pulsação interna, sobretudo nas canções mais intimistas — como em The River, Exists for Love ou Invisible Wounds e, claro, em Murder Song —, porque nas produções mais ‘electrónicas’, por vezes, perdem-se esses detalhes.
Não é o caso, porém, de canções como The Seed, que evoca uma festa pagã, onde o crescendo emocional não depende da batida nem da produção, mas do modo como a sua voz vai ganhando densidade. Ou em Runaway, talvez a sua música mais conhecida, mas não necessariamente a melhor, que se torna quase um hino à infância perdida, cantado com uma pureza que parece desafiar a lógica. No meio disto, apesar de extremamente expressiva e de preferir os gestos à dança — apesar de algumas correrias —, Aurora nunca parece estar a representar. Está, simplesmente, a ser.
Aliás, chegou a ser desconcertante que se tenha queixado da vontade de urinar logo no início do espectáculo, ou tenha falado do seu rabo — não sendo uma artista que se queira destacar pela parte física, até por a sua beleza ser mais onírica —, ou que se tenha interrompido num repente em Invisible Wounds porque se lembrou de agradecer ao seu guarda-costas.
Mas não há ali loucura, nem ingenuidade. Não há ali diva, nem estrela pop. Não há performer. Há uma rapariga que canta como se estivesse sozinha ou em redor de uma fogueira na tundra.
Há em Aurora algo de paradoxal: ao mesmo tempo que nos lembra todas as deusas do passado — de Kate Bush a Sinéad O’Connor, de Enya a Annie Lennox —, ela subverte todas essas influências, criando algo que não se pode arquivar em nenhuma prateleira. Não é pop, nem folk, nem new age. Não se gosta de tudo, mas tudo é revelação — música para depois do fim do mundo.
O público presente no Campo Peqeuno, maioritariamente jovem e feminino, com o espiritualismo e o gótico bem representados, mostrou-se grande. Cantou, gritou e até coreografou luzes com as cores da bandeira nacional. E Aurora agradeceu sempre com gentileza. No meio da sua actuação, agradeceu em português — “Muito, muito obrigada!” — não foi só um gesto de cortesia: foi a confirmação de que ela também sentiu a simbiose, embora em algumas músicas fosse preferível o silêncio e a contemplação.
Mas ouvir em silêncio, isso já seria exigir em demasia: concertos como o que Aurora ofereceu em Novembro de 2017 na Catedral de Nidaros, quando tinha apenas 21 anos, não se fazem todos os dias. Aquilo são heresias dos deuses…
Portugal é, em muitos dias, um país soalheiro e tranquilo — pelo menos na aparência. Este sábado foi um desses dias mornos de primavera citadina, sem tempestade, sem alerta da Protecção Civil, sem o Rui Fonseca e Castro a querer fazer bifanas no Martim Moniz — mas revelou-se, afinal, um perfeito retrato da crónica inépcia lusitana.
Em dia de campeonato ao rubro, com a possibilidade de se coroar o campeão nacional, eis que o Metropolitano de Lisboa decide… fechar. Encerrar. Trancar quatro estações mais de duas horas antes do apito final de um jogo que faria pulsar a capital. Dir-me-ão que foi uma questão de segurança. Pois sim. Mas de quem? Do bom senso? Mas que dizer, então, de uma falha de electricidade que parou o dito metropolitano em quase todas as estações logo às cinco da tarde? Já foi segurança ou incompetência? Portanto, ficámos, eu e o sportinguista Carlos Enes — cuja teimosia clubística já granjeou lugar nos anais da fé cega — à porta da estação dos Anjos, ou do Intendente, já não sei. Se foi do Intendente, bem que os administradores do Metropolitano de Lisboa mereciam levar com o Pina Manique, o verdadeiro.
Enfim, a menos de uma hora do jogo do título e nós, dois homens feitos, jornalistas prevenidos, encontrávamo-nos a mendigar mobilidade. Valeu-nos o Uber, esse milagre pago a peso de ouro, malgrado a espera. Fomos levados pelo Malkit, classificação de 4,91 em 5, num Renault com uma curiosa matrícula iniciada por AD. Vinte minutos de jogo foram perdidos. Um pecado em dia de epifania futebolística.
Mas a irritação, como se sabe, é uma erva daninha que se alastra. E o Carlos Enes, fiel ao seu evangelho leonino, não tardou em começar a vociferar contra o árbitro João Pinheiro ainda no Uber. Que ele era isto, que era aquilo, que o homem só via vermelho quando era para os verdes, que só marcava penáltis quando era contra Alvalade. Já ouvira tais lamúrias antes, mas ontem, confesso, o tom de queixa parecia vir com lastro estatístico.
Apeteceu-me calar-lhe os protestos, mas decidi, em nome da paz do Uber e do método científico, consultar a inteligência artificial. Talvez a frieza algorítmica nos trouxesse alguma claridade. E assim foi. Lancei a pergunta com as estatísticas que cirandaram na semana passada pelas redes sociais: “Haverá razões estatísticas para desconfiar de João Pinheiro?” O ChatGPT, que já me havia esclarecido questões de Economia, Meteorologia e História, respondeu com inesperada contundência.
Estatística ‘enxertou’ durante uma semana João Pinheiro.
Disse-me que sim, a disparidade nos penáltis aplicados por João Pinheiro contra o Sporting (7 contra apenas 1 contra o Benfica) era improvável sob uma distribuição equitativa. Acrescentou que os cartões vermelhos (9 vs. 1) revelavam uma assimetria preocupante. E rematou: a percentagem de vitórias do Benfica com João Pinheiro (68%) superava em muito a sua média histórica em provas nacionais. Conclusão? O Sporting tinha razões fundadas para desconfiar. Nada disto prova dolo — sublinhava o algoritmo —, mas justifica uma auditoria independente. Uma espécie de VAR científico.
Disse isto ao Carlos Enes, que rejubilou com a validação estatística do seu calvário. E, porque o destino gosta de ironias, vaticinei logo: “Então hoje vai compensar. A pressão é tanta que vai inclinar o campo… mas para o outro lado.” Não sendo versado em Psicologia, está nos livros. E não me enganei.
É certo que perdemos os primeiros 20 minutos — entre os quais uma alegada falta do Otamendi sobre o Pote, aos 17 minutos, que Carlos Enes jurou depois ser penálti claro. Mas aquilo que vimos — quer dizer, eu vi; eles não — a seguir foi um festival. Um Pinheiro tão zeloso que parecia ter sido regado, adubado e podado pelos deuses de Alvalade durante a semana. Uma exibição tão florida que, mesmo sem rega ao intervalo, a todos espantaria pela exuberância botânica.
Veja-se:
Minuto 25: após canto de Di María, Otamendi cai na área e queixa-se de empurrão de Debast. O Pinheiro, sereno como um carvalho, ignora o VAR e resolve premiar o banco do Benfica com um amarelo pedagógico.
Minuto 44: nova queixa do Benfica por mão na bola de Debast. Pinheiro, inflexível como uma sequoia, decide que o melhor é expulsar mais um elemento da equipa técnica encarnada. Didáctica com pulso.
Minuto 60: Hjulmand deixa Aktürkoglu no relvado. O árbitro, talvez confuso pela brisa primaveril, interrompe o jogo e penaliza… Florentino, por uma falta anterior. Nada como viver em tempo elástico.
Minuto 83: falta de Hjulmand sobre Kokçu. Os encarnados pedem o segundo amarelo. Pinheiro abana a cabeça como um salgueiro zen e prossegue, tranquilo, rumo à eternidade.
Mas o mais notável nem esteve nestes lances, esteve nos sopros. Nos pequenos toques. Nas brisas que abanavam os gémeos dos jogadores leoninos. João Pinheiro via tudo. Sentia tudo. Apitava cada lamento dos sportinguistas como se escutasse a alma dos médios. E enquanto o guardião leonino Rui Silva se deitava, espreguiçava e perdia tempo com mais arte do que o cronómetro do Coliseu de Roma, Pinheiro deixava correr. A relva da Luz, então, parecia um relvado de piquenique para os lagartos que estiveram mais tempo deitados de barriga para cima do que com os dois pés no chão. E no fim, sete escassos minutos de desconto, como quem oferece um rebuçado a uma criança que perdeu o almoço.
Não sou dado a falar de arbitragens. A maioria das vezes, os erros compensam-se ou desculpam-se com o factor humano. Mas neste jogo, neste particular sábado, viu-se algo raro. Um milagre agronómico. Sempre me disseram, nas aulas de Biologia do secundário, que as angiospérmicas não podiam ser enxertadas de modo a mudar de fisiologia. Mas ontem, caro leitor, assistimos a uma revolução científica. Um Pinheiro, árvore robusta, vertical e previsivelmente imune a enxertos, transformou-se. Enxertaram-lhe tantas durante a semana passada que João Pinheiro ganhou raízes de acácia. Sim, aquela árvore de copa larga, onde os leões descansam na savana, à sombra do vento e da complacência. No estádio da Luz, os leões tiveram um abrigo botânico único: João Pinacácia.
De resto, ganhe quem ganhar o campeonato — e digo-o com o respeito clubístico que me é próprio —, o país precisa de mais do que árbitros compensadores. Precisa de transportes que transportem. De horários que se cumpram. De decisões que não nasçam da burocracia, mas do bom senso. Porque um país onde os jogos decisivos não se jogam de forma decente, os metropolitanos não andam ao sábado e os pinheiros ganham folhas de acácia… é um país que, mesmo ao sol, continua às escuras. Não nos admiremos pelos apagões eléctricos, mas sim por acharmos normal a anormalidade.
A cultura do business as usual é a mais insidiosa forma de irresponsabilidade institucional. Mais ainda no rescaldo de um apagão eléctrico que mergulhou Portugal na escuridão, depois de o MIBEL ter andado a ser ‘vendido’ como modelo de negócio com garantias de “segurança no abastecimento de electricidade”, ainda mais depois de Portugal ter encerrado a central a carvão do Pego, que embora causasse problemas ambientais, concedia inércia à rede electrica nacional, auxiliando o amortecimento de variações súbitas de frequência.
Nas últimas duas semanas, a REN – a empresa monopolista de segurança e continuidade do serviço de eletricidade e pela gestão do sistema elétrico nacional – tem-se desdobrado em declarações à imprensa acrítica – sobre o apagão espanhol que colapsou Portugal como um baralho de cartas. Ouvem agora declarações de prudência e de monitorização “em permanência”, mas sem que se vislumbre uma explicação sobre as actuais fragilidades portuguesas e sem se mexer uma palha naquilo que verdadeiramente conta: a estrutura técnica do sistema. Enfim, fazem-se figas e toca a negociar de novo – em Portugal, o business as usual quer dizer irresponsabilidade.
É certo que as investigações internacionais ainda decorrem e já há quem prognostique que as causas do ‘incidente’ do passado dia 28 de Abril demore meses – este prazo é muito conveniente para que a culpa se esqueça ou morra solteira. Mas não nos haja iluões: a morosidade processual é muitas vezes um biombo conveniente para adiar decisões e manter tudo como está – e confiar na sorte. E achar aceitável continuar a operar uma rede eléctrica com os mesmos erros que nos levaram, literalmente, ao colapso.
Os sinais são, infelizmente, de um país a regressar tranquilamente à rotina. Portugal já retomou as importações de electricidade de Espanha, embora agora com supostas restrições nas horas de maior produção fotovoltaica. A medida, apresentada como prudente, nada resolve.
Aliás, ao reduzir e condicionar a importação de electricidade fotovoltaica em função do período horário, a REN acaba por revelar, de forma implícita mas inequívoca, onde esteve a génese do apagão de 28 de Abril: na conjugação entre forte produção solar intermitente, demasiada importação de Espanha, baixa inércia do sistema nacional e ausência de mecanismos de resposta rápida. A própria REN, ao limitar agora as importações diurnas, indicia o risco que não ousa nomear frontalmente — e ao fazê-lo, reconhece tacitamente que o sistema eléctrico ibérico, e o português, não está preparado para absorver grandes fluxos renováveis sem ferramentas técnicas modernas.
Limitar a importação solar, portanto, não é uma precaução neutra — é uma confissão técnica. E mais: é a manutenção deliberada de um sistema que falhou, à espera que falhe outra vez.
Uma das grandes vantagens do apagão foi, em certa medida, permitir que muitos especialistas independentes pudessem expor as fragilidades do sistema eléctricio português, porque aparentemente temos uma Entidade Reguladora do Sector Energético que anda a vir navios.
De entre as propostas que, não sendo eu especialista em detalhe nesta matéria – direi que ‘tenho umas luzes’ – se afiguram muito realistas e exequíveis, destaco as seguintes causas para estarmos continuamente sob risco de sucessivos apagões.
Primeiro, a ausência de Fast Frequency Reserve (FFR), ou seja, de capacidade de injectar ou retirar potência da rede em milissegundos após uma perturbação. Esta reserva rápida, que actua como um “airbag” eléctrico, é hoje considerada essencial em redes com elevada penetração de renováveis. Portugal tem neste momento zero megawatts contratados, enquanto, por exemplo, a Irlanda opera com 330 MW e o Reino Unido gasta mais de 200 milhões de libras anuais para garantir este tipo de resposta.
Foto: D.R./ REN
Segundo, a persistência de relés de protecção mal calibrados, com valores de RoCoF (Rate of Change of Frequency) excessivamente conservadores. Com o actual limiar, variações superiores a 1 Hz/s disparam desligamentos automáticos de centrais e linhas devido à variação excessiva da frequência — uma resposta defensiva que, em vez de estabilizar, pode precipitar colapsos em cascata como o que ocorreu a 28 de Abril. A solução, consta, é simples e está estudada: reprogramar os relés para aceitar ±1 Hz/s, o que evitaria desligamentos prematuros. Mas nada foi feito.
Terceiro, a actual baixa inércia do sistema, que se agravou com a substituição de centrais térmicas por fontes renováveis intermitentes. Esta fragilidade, não sendo recente, poderia ser mitigada com a chamada inércia sintética — conversores especiais ‘grid-forming’, baterias e até veículos eléctricos com tecnologia V2G. A REN sabe disto. O Governo também. E, no entanto, nenhuma meta foi definida, nenhum plano foi anunciado.
Quarto, a ausência de digitalização e controlo dinâmico. A integração em tempo real de produção distribuída, pequenos produtores, veículos eléctricos e baterias requer uma infraestrutura de gestão moderna, com sistemas de gestão de energia (EMS) actualizados. Continuamos com uma infraestrutura pouco digitalizada e com baixa capacidade de resposta automatizada.
Perante tudo isto, o mais grave é a tentativa de empurrar a responsabilidade para um vago “ainda não se sabe” ou para Espanha. Porque se sabe. Sabe-se, tecnicamente, que o sistema ibérico estava numa situação crítica às 11h33 de 28 de Abril.
Sabe-se que houve uma quebra abrupta de 2200 MW na produção do sul de Espanha, provavelmente fotovoltaica, e que a ausência de FFR provocou uma queda de frequência tão rápida que os relés foram disparados em cascata. Sabe-se que os mecanismos de defesa do sistema — supostamente para o proteger — causaram precisamente o seu colapso.
Se nada for feito, o próximo apagão é uma questão de estatística, não de surpresa. E, nessa altura, será lícito perguntar: quantas vezes precisa o país de cair para se lembrar de erguer os pés?
A REN, como operadora do sistema, tem a obrigação de preparar a rede para a realidade que já existe. E o Estado, como garante do interesse público, tem o dever de agir, regular e proteger. Aquilo que não pode suceder é continuar-se como se nada tivesse ocorrido, enquanto se esperam relatórios que apenas confirmarão o que os engenheiros e analistas já sabem de cor.
Regressar ao business as usual serve os interesses dos operadores do MIBEL, mas é um luxo que portugueses já não podem pagar, até porque pagam já uma factura de electricidade já demasiada alta.
Ainda não existem explicações definitivas nem garantias de que não ocorrerá novo apagão no sistema eléctrico português, causado por uma dependência artificial de electricidade importada de Espanha. Mas hoje regressou o business as usual. Ao décimo dia do colapso da rede eléctrica nacional, registado pelas 12h30 do dia 28 de Abril, Portugal começou a importar electricidade de Espanha, como se nada tivesse ocorrido.
De acordo com os dados consultados pelo PÁGINA UM numa plataforma da Red Eléctrica de España, até às 19 horas de hoje (hora espanhola), o sistema eléctrico português já importara do país vizinho um total de 12.845 MWh, tendo o saldo importador passado a ser favorável a Espanha desde as 8h20. À hora da publicação desta notícia, Espanha estava a exportar para Portugal cerca de 800 MW.
Mas esta “normalização” — que esteve na origem de cerca de dez horas de apagão — levanta uma questão cada vez mais difícil de ignorar: se o sistema eléctrico nacional conseguiu manter-se durante nove dias completamente independente de importações de Espanha, entre 29 de Abril e 7 de Maio, qual foi afinal a necessidade de estar a importar 8.000 MW de potência instantânea no momento do apagão do dia 28 de Abril? Além disso, não se pode sequer afirmar que Portugal estivesse à míngua de electricidade. Também segundo dados da Red Eléctrica de España, durante os últimos nove dias, Portugal ajudou o sistema eléctrico espanhol a estabilizar, através da exportação regular de electricidade.
Segundo cálculos do PÁGINA UM, entre 29 de Abril e 7 de Maio, o sistema eléctrico português exportou 85.966 MWh para Espanha, com um pico no passado dia 3 de Maio de 24.512 MWh — um valor que corresponde a cerca de 16% do consumo médio diário de electricidade em Portugal, demonstrando existir folga suficiente não só para garantir o abastecimento nacional como também para apoiar o país vizinho.
Mas a 28 de Abril, pouco antes do colapso, Portugal importava cerca de um terço da electricidade que, nesse momento, estava a ser consumida, através das interligações com Espanha. Tecnicamente, isso não constituiria problema se existissem garantias de redundância e de reserva imediata. Porém, como se verificou nesse dia, uma quebra súbita na produção espanhola impossibilitou compensar a falha portuguesa, que, por sua vez, não tinha unidades em prontidão para iniciar rapidamente a produção. Esta dependência mútua, sem planos de resposta em tempo real, resultou numa queda sincronizada: Portugal desligou-se integralmente da rede ibérica, num fenómeno designado por grande perda de sincronismo.
A restauração de um sistema eléctrico após um colapso total exige um processo designado por black start, que consiste no arranque progressivo da rede a partir de unidades capazes de operar sem depender da energia da rede. Estas unidades, normalmente hidroeléctricas ou térmicas específicas, devem estar preparadas para reactivar segmentos da rede em sequência, garantindo a estabilidade da frequência e da tensão a cada passo. Em Portugal, como noutros países europeus, este processo é tecnicamente exigente e moroso — agravado, neste caso, por perturbações no acoplamento com Espanha, que dificultaram a sincronização das redes.
Nos dias seguintes ao apagão, a REN informou que as trocas comerciais com Espanha estavam suspensas, sendo apenas admitidas em situações técnicas excepcionais. Contudo, os dados mostram que Portugal continuou a exportar para Espanha durante quase todo o período entre 29 de Abril e 7 de Maio. E o fornecimento não foi pequeno: num total de 85.965,5 MWh exportados neste período de nove dias, os valores diários oscilaram entre 999,3 MWh, logo a 29 de Abril, e 1.447 MWh no dia seguinte. Nos primeiros três dias de Maio, as exportações totalizaram 59.756 MWh, descendo para 23.764 MWh entre os dias 4 e 7 de Maio. Já hoje, Portugal teve apenas um pequeno período de exportação durante a madrugada, num total de 559 MWh. No mesmo intervalo entre 29 de Abril e 7 de Maio, Portugal apenas importou 1.729 MWh — um valor residual, justificado apenas por necessidades técnicas.
Uma das razões para a “ajuda” de Portugal à rede espanhola nos últimos nove dias parece residir na morosidade do reatamento das centrais nucleares espanholas após o apagão. Só hoje, 8 de Maio, os diagramas de carga — os chamados diagramas técnicos de balanço diário — revelam que a produção nas cinco centrais nucleares espanholas está finalmente ao nível do período pré-apagão. E com essa estabilização, o sentido do comércio inverteu-se.
Exportações para Espanha e importações a partir de Espanha do sector eléctrico português entre os dias 29 de Abril e 8 de Maio (até 19 horas de Espanha). Fonte: Red Eléctrica de España.
Este regresso à ‘normalidade’, com electricidade a fluir com base em critérios estritamente comerciais, expõe um problema que permanece sem resposta pública: por que razão Portugal, com potência instalada mais do que suficiente para garantir os seus consumos internos, se coloca frequentemente numa posição de dependência, em tempo real, da produção espanhola?
Se foi possível manter, durante nove dias, o abastecimento com recursos próprios — e ainda ajudar de forma significativa um vizinho em dificuldades —, talvez seja chegada a hora de rever as premissas operacionais do sistema eléctrico ibérico. Excepto se o objectivo futuro for continuar a andar sobre o fio da navalha… com ‘kits apagão’ em casa.