Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Em Medicina, a presunção da inocência não se pode transformar em consagração da impunidade

    Em Medicina, a presunção da inocência não se pode transformar em consagração da impunidade


    Um dos princípios inscritos no Código Deontológico dos Jornalistas estabelece que “o jornalista deve salvaguardar a presunção de inocência dos arguidos até à sentença transitar em julgado”. Trata-se de um princípio nobre, indispensável numa sociedade de direito: protege cidadãos de julgamentos precipitados e de linchamentos mediáticos, tão comuns num tempo em que a reputação se mede em cliques e indignações instantâneas.

    Esse princípio, porém, não deve ser usado como escudo moral para justificar silêncios cúmplices, laxismos institucionais ou abusos corporativos. Quando a presunção de inocência é invocada não para garantir justiça, mas para evitar que a verdade se conheça, transforma-se num instrumento de opacidade e de impunidade — e aí, cabe aos jornalistas denunciá-lo.

    Edifício principal da sede da Ordem dos Médicos, na Avenida Gago Coutinho, em Lisboa.

    O caso de negligência no Hospital de Faro é um desses exemplos inquietantes. Em Abril de 2023, uma médica interna, Diana Pereira, apresentou denúncias de actos de negligência médica praticados por dois cirurgiões seniores: Pedro Cavaco Henriques e Gildásio Martins dos Santos.

    O Conselho Disciplinar Regional do Sul da Ordem dos Médicos abriu um processo e, em Julho de 2024, mais de um ano depois, um relator Vítor Rocha, após analises e estudos de uma comissão independente, concluiu um extenso despacho de acusação, com 145 páginas, que descreve uma sucessão de falhas clínicas graves e comportamentos eticamente inaceitáveis. E, face à gravidade, não apenas da negligência médica grosseira mas também da devassa de dados clínicos da denunciadora, propôs sanções de suspensão de 12 e seis meses, respectivamente.

    Porém, mais de um ano depois, nada foi decidido. O processo continua parado — ou, para usar o termo popular e certeiro, engavetado. E a invocação da “presunção da inocência” serve agora como argumento para justificar o inexplicável: que dois médicos formalmente acusados de negligência grave e de devassa de dados pessoais de uma colega, com informação já avalizada por estudos e análises, continuem a exercer livremente, sem qualquer sanção disciplinar, enquanto o processo dorme nas gavetas do Conselho Disciplinar.

    Trecho do despacho de acusação de Julho de 2024… já passaram 14 meses – e mais nada.

    O despacho do relator, revelado agora pelo PÁGINA UM, não é um texto ligeiro nem um exercício burocrático. É um documento severo, lúcido e minucioso. Acusa Pedro Cavaco Henriques de revelar “ignorância extrema da anatomia e das técnicas cirúrgicas” e de actuar sem “respeito pela integridade do outro”, violando o princípio hipocrático primum non nocere. Denuncia uma cultura hierárquica de abuso, na qual o então director de serviço, Gildásio Martins dos Santos — que, note-se, integra os órgãos sociais do Sindicato Independente dos Médicos (SIM) — terá validado práticas clínicas arriscadas e, pior ainda, acedido a dados clínicos da médica denunciante para os divulgar num grupo interno de WhatsApp, com o propósito de a desacreditar publicamente.

    Nada disto tem a ver com delitos de opinião, nem com divergências teóricas. São actos concretos, graves e documentados. Ainda assim, a Ordem dos Médicos parece mais preocupada em preservar a aparência de equilíbrio do que em defender a integridade da sua própria profissão.

    Durante a pandemia, o então bastonário Miguel Guimarães foi lesto — e até zeloso — a abrir processos disciplinares a colegas por meras opiniões divergentes, divulgando publicamente essas investigações como forma de estigmatizar quem ousasse discordar da narrativa sanitária oficial. Hoje, quando estão em causa actos clínicos de enorme gravidade e violações éticas objectivas, a mesma instituição refugia-se na prudência, na lentidão e na sombra.

    Miguel Guimarães (à direita), urologista e ex-bastonário da Ordem dos Médicos, ao lado de Carlos Robalo Cordeiro: em 2022 abriram um processo disciplinar contra Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria, por ter elaborado um parecer sobre a vacinação de crianças contra a covid-19, e divulgaram a queixa (que seria mais tarde arquivada) para tentar descredibilizar publicamente o colega. Nessa altura, a presunção da inocência para a Ordem dos Médicos não contava.

    A incoerência é gritante. E a omissão é cúmplice. Uma entidade que exige dos seus membros o cumprimento de um código deontológico não pode ser ela própria exemplo de laxismo, nem usar os princípios éticos como cortina de fumo. Quando o relator descreve práticas cirúrgicas em que erros graves geraram sequelas irreversíveis, ou quando aponta a violação deliberada de dados pessoais de uma médica, não estamos perante um conflito interno — estamos perante uma ameaça à confiança pública na Medicina.

    A Medicina não é uma ciência exacta, inclui o erro, e é uma profissão que vive da confiança. Cada acto médico é, no fundo, um contrato moral: o doente entrega o seu corpo e a sua vida ao cuidado de quem tem por vocação (e profissão) ajudá-lo e que jura não causar dano. Esse pacto só subsiste se houver um sistema disciplinar que actue com celeridade e transparência, separando o erro compreensível da negligência censurável, o engano humano da imperícia intolerável. Nos casos de Pedro Henriques e Gildásio Martins dos Santos, os elementos constantes no despacho de acusação não permitem, pelo menos para mim, outro veredicto: eu queria ter outros médicos a tratarem de mim.

    Quando os prazos se arrastam e as decisões não chegam, o sinal transmitido pela Ordem dos Médicos à sociedade é devastador: que todos os médicos são intocáveis, que todos se protegem, e que mesmo os actos mais graves acabarão dissolvidos na lentidão corporativa.


    Diogo Pais, presidente do Conselho de Disciplina Regional do Sul; mais de dois anos depois, casos gravíssimos ainda não tiveram conclusão disciplinar.

    Não é admissível, por isso, que um processo tão detalhado e fundamentado, assinado por um relator que não poupa palavras na sua indignação, esteja parado há mais de um ano sem decisão final. Não é admissível que a invocação genérica da “presunção da inocência” sirva de pretexto para a paralisia. A presunção de inocência é uma garantia para os acusados — não é um álibi para as instituições que têm o dever de julgar. Quando os órgãos disciplinares da Ordem dos Médicos se tornam reféns da sua própria inércia, traem a confiança dos cidadãos e colocam em causa o prestígio da profissão.

    A actual direcção da Ordem, é certo, parece pautar-se por um estilo mais ponderado do que o do bastonário anterior. Mas isso não basta. A prudência não pode ser sinónimo de passividade. A Ordem dos Médicos não é apenas uma associação profissional corporativa; é uma entidade investida de autoridade pública, com um mandato de regulação ética em nome da sociedade. Por isso, deve agir não apenas em defesa dos seus membros, mas também — e sobretudo — em defesa dos doentes e da credibilidade da Medicina.

    A protecção da reputação da classe médica não se faz escondendo os seus piores actos — faz-se expurgando-os. Como um agricultor que retira o escalracho da vinha, a Ordem dos Médicos tem de separar o trigo do joio, mesmo que isso signifique cortar fundo.

    Carlos Cortes, actual bastonário da Ordem dos Médicos.

    E os jornalistas, por seu turno, não podem aceitar a manipulação semântica que transforma o direito à defesa em sinónimo de silêncio cúmplice. O respeito pela presunção da inocência não impede que se revelem factos objectivos, nem que se critique a inércia de quem tem o dever de decidir. Seria bom que a Ordem dos Médicos compreendesse o que está verdadeiramente em causa. Não se trata de condenar apressadamente ninguém, mas de impedir que o medo de agir acabe por degradar a própria ideia de responsabilidade.

    A justiça tardia é, também ela, uma forma de injustiça. E quando a demora beneficia os acusados e penaliza a confiança pública, a presunção da inocência degenera em consagração da impunidade.

  • LinkedIn e Microsoft: os derradeiros e perniciosos bastiões da censura digital

    LinkedIn e Microsoft: os derradeiros e perniciosos bastiões da censura digital


    Estamos em 2025 e os tempos negros da censura pandémica deveriam já pertencer aos manuais de História. Mas não no LinkedIn — essa rede social que se proclama “profissional”, mas que insiste em agir como um zelador ideológico.

    Ontem, o PÁGINA UM publicou uma notícia baseada num artigo científico revisto por pares, editado pelo grupo Nature, um dos mais prestigiados do mundo académico. Não se tratava de um rumor, de um blog obscuro ou de uma tese conspirativa: era ciência publicada, que relatava uma associação estatística entre a vacinação contra a covid-19 e a incidência de vários tipos de cancro.

    A notícia, fiel ao princípio jornalístico da ponderação, enquadrava o estudo com rigor, sublinhando que a associação não prova causalidade, mas representa um contributo relevante para uma área que a Europa — e em particular Portugal — tem sistematicamente recusado estudar: a das reacções adversas. O artigo recordava também a batalha jurídica travada pelo PÁGINA UM, com vitórias já reconhecidas em tribunal, para obter acesso integral aos registos do Portal RAM.

    E que faz o LinkedIn?

    Menos de uma hora após a publicação, removeu o post por “desinformação”. Apresentei recurso, assumindo ser um post de um jornalista sobre um artigo noticioso baseado numa revista científica de prestígio; responderam de forma automática, sem argumentos, confirmando a censura e ameaçando encerrar a minha conta.

    O problema, porém, vai muito além da cegueira de um algoritmo. O LinkedIn pertence à Microsoft, e as suas decisões de moderação não são arbitrárias nem neutras: seguem directrizes do Office of Responsible AI e da Corporate, External & Legal Affairs Division, liderada por Brad Smith, presidente da multinacional. É esta estrutura corporativa que define o que pode ou não circular, em alinhamento com o Código Europeu de Boas Práticas em Desinformação e com as recomendações da OMS e da Comissão Europeia. Em nome da “integridade da informação”, institui-se uma cadeia hierárquica de censura algorítmica onde a ciência passa a ser filtrada como se fosse propaganda.

    Na prática, estas decisões não resultam de um debate científico, mas de um controlo reputacional centralizado, em que equipas de Trust & Safety e sistemas de inteligência artificial bloqueiam publicações automaticamente, sem contraditório nem fundamentação técnica.

    Trata-se de uma censura anónima e inapelável, exercida por plataformas que se escondem atrás da retórica da segurança informativa. O LinkedIn, assim, não se mostra um espaço de partilha de conhecimento profissional, mas assume-se como um instrumento corporativo de gestão do discurso, onde a prudência se confunde com obediência e o rigor com silêncio.

    A postura do LinkedIn e da Microsoft não é apenas estúpida, ignorante e arrogante — é intelectualmente cobarde, cientificamente analfabeta e moralmente corrupta.

    É estúpida, porque se isola como o último bastião da censura digital, num momento em que as principais plataformas — Twitter/X, YouTube e até a Meta — já reconheceram publicamente que actuaram como extensões informativas de Governos durante a pandemia e reveram as suas políticas. Enquanto o mundo começa, ainda timidamente, a admitir os erros da censura sanitária, o LinkedIn e a Microsoft preferem persistir na arrogância dogmática, apagando notícias que reproduzem factos científicos.

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    É ignorante, porque desconhece o que é a ciência: um processo aberto, imperfeito e dinâmico, que evolui pela dúvida e não pela imposição.

    E é arrogante, porque se coloca acima dos próprios cientistas, julgando poder decidir o que é verdadeiro ou falso em nome de um suposto consenso que nem a ciência reconhece.

    É perniciosa também do ponto de vista democrático, porque a censura algorítmica — ao contrário da censura tradicional — é anónima, invisível e inapelável, dissolvendo a responsabilidade humana na opacidade de um sistema automatizado. E é perniciosa epistemicamente, porque mina o próprio fundamento da ciência: a liberdade de questionar, replicar e refutar.

    Já nem se trata de desafiar consensos — trata-se simplesmente de permitir que a ciência exerça a sua função natural: investigar, testar e rever o que julgamos saber. Durante os anos pandémicos, esse direito elementar foi suspenso em nome de uma falsa unanimidade sanitária, e plataformas como o LinkedIn parecem persistir nesse erro histórico, impedindo o livre exame de estudos publicados por canais científicos legítimos.

    Uma rede social que se pretende séria e plural não pode condicionar ou interditar a circulação de informação científica, sobretudo quando esta é revista por pares e proveniente de fontes de referência. No limite, o LinkedIn e a Microsoft não estão a proteger os seus utilizadores da desinformação: estão a protegê-los da própria ciência, convertendo a ignorância em virtude e a dúvida em heresia.

    Por isso, reafirmo: continuarei a divulgar não apenas esta notícia, mas também o artigo científico original. Se o LinkedIn e a Microsoft querem censurar um jornalista, que o façam às claras — suspendendo a conta e assumindo o gesto.

    Mas ficarão, então, diante de uma escolha moral: ou reconhecem que erraram e que a censura é incompatível com a liberdade científica e jornalística, ou assumem, perante todos, que são apenas mais um instrumento de controlo discursivo travestido de rede profissional.

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    A História — essa que o LinkedIn e a Microsoft parecem ignorar — já nos ensinou o destino dos que tentaram calar a verdade em nome da conveniência: primeiro impõem o silêncio, depois colhem o descrédito.

    E é isso, precisamente, o que o LinkedIn e a Microsoft estão agora a semear.

  • Sanção de 12 meses para médico que mostra “uma ignorância extrema da anatomia e das técnicas cirúrgicas’ está engavetada na Ordem dos Médicos há mais de um ano

    Sanção de 12 meses para médico que mostra “uma ignorância extrema da anatomia e das técnicas cirúrgicas’ está engavetada na Ordem dos Médicos há mais de um ano


    O Conselho Disciplinar Regional do Sul (CDRS) da Ordem dos Médicos recusa explicar por que motivo ‘engavetou’ o processo disciplinar relativo a dois cirurgiões do Hospital de Faro acusados, desde Abril de 2023, de um conjunto de negligências graves.

    O despacho de acusação confidencial a que o PÁGINA UM teve agora acesso — tem data de 23 de Julho de 2024, ou seja, mais de 14 meses — e propõe suspensões de 12 meses para o cirurgião Pedro Cavaco Henriques e de seis meses para o antigo director de serviço de Cirurgia, Gildásio Martins dos Santos, ex-presidente da Administração Regional de Saúde (ARS) do Algarve e vogal do Conselho Nacional do Sindicato Independente dos Médicos (SIM).

    Edifício principal da sede da Ordem dos Médicos, na Avenida Gago Coutinho, em Lisboa.

    Contactado pelo PÁGINA UM, a ausência de explicações sobre a fase processual e os motivos do atraso são justificados pelo CDRS, liderado por Diogo Pais, por obra e graça do “princípio da presunção da inocência [que] deve ser salvaguardado”. Um argumento que contrasta com a postura da Ordem dos Médicos que durante a pandemia divulgava publicamente a simples abertura de processos disciplinares por delito de opinião, expondo e estigmatizando médicos que manifestavam visões críticas das políticas sanitárias oficiais.

    Neste caso, porém, as acusações contra Pedro Henriques e Gildásio Martins dos Santos não se prendem com opiniões, mas com acções clínicas. E muito graves porque estiveram e estão em causa vidas humanas. O despacho de acusação, assinado pelo relator Vítor Rocha, é de uma severidade invulgar, apenas justificável pela gravidade dos erros descritos.

    Num relatório de cerca de 150 páginas — que analisa uma dezena de intervenções cirúrgicas e ainda a divulgação ilícita de dados clínicos da denunciadora, a médica Diana Pereira —, o relator evidencia perplexidade quanto à conduta ética e técnica dos arguidos. Sublinha que a ausência de autocrítica, humildade e rigor técnico de Pedro Henriques pode transformar o acto cirúrgico em fonte de dano, e a autoridade hierárquica de Martins dos Santos num instrumento de abuso.

    Diogo Pais, presidente do Conselho de Disciplina Regional do Sul; mais de dois anos depois, casos gravíssimos ainda não tiveram conclusão disciplinar.

    No caso concreto de Pedro Henriques, embora o relator reconheça que é “comprovadamente detentor de formação avançada em cirurgia colo-rectal”, assinala que o cirurgião revela “uma ignorância extrema da anatomia e das técnicas cirúrgicas, o que lhe dá muito pouco sentido crítico”.

    Num balanço devastador, o relator adverte ainda que, quando se alia “o pouco respeito pela integridade do outro” à violação reiterada do princípio hipocrático primum non nocere, “o resultado pode ser catastrófico”.

    O despacho recorda que devem existir sempre limitações ao exercício da actividade cirúrgica: a primeira, “intrínseca”, radica “na excelência da formação técnica e humana e no sentido de autocrítica”; a segunda, “institucional”, decorre do “controlo hierárquico e da avaliação do erro”, nomeadamente através da análise inter pares das complicações e da mortalidade operatória. Sem essas salvaguardas, alerta o relator, “o sistema clínico degrada-se e coloca em risco a vida dos doentes”.

    gray surgical scissors near doctors in operating room

    Vítor Rocha insiste ainda na humildade e cooperação como condições essenciais à aprendizagem médica. “Para que seja possível ao cirurgião evoluir através do erro, é fundamental ter a humildade necessária para o reconhecer e, depois, o analisar em conjunto com os seus pares”, escreve, sublinhando que só assim se pode corrigir falhas e melhorar a prática clínica. “Há uma característica humana que deve ser comum a todos os médicos — a compaixão e o sofrimento comum por aqueles que sofrem e precisam de ajuda médica”, acrescenta.

    O relator lamenta que, no exercício do contraditório, “em momento algum o Dr. Pedro Henriques reconhece os erros e as complicações”, algumas das quais “graves e que produziram sequelas irreversíveis”. Nota ainda que essa recusa se deveu “à sua obstinação cirúrgica validada pelo director de serviço [Martins dos Santos]”, comportamento que considera “contrário ao mais elementar bom senso e altamente censurável para um cirurgião”.

    O relatório descreve também falhas reiteradas nos registos clínicos e a violação do dever de documentar ocorrências intra-operatórias, o que impediu a correcta identificação das negligências denunciadas. Segundo o despacho, os dois médicos “não cumpriram este dever de registo, de forma reiterada em todos os casos avaliados”, configurando um ilícito disciplinar por violação do artigo 40.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos.

    Trecho com a proposta de sanção para os dois médicos. Já passou mais de 14 meses deste a conclusão do despacho de acusação e quase 30 meses desde o conhecimento público dos factos.

    Em matéria de confidencialidade, a acusação é igualmente severa. O relator demonstrou que “o Dr. Pedro Henriques acedeu efectivamente à Plataforma de Dados de Saúde e consultou informação pessoal e clínica da participante [Diana Pereira]” sem autorização, e que o director de serviço, “Dr. Martins dos Santos, publicou e partilhou efectivamente, no dia 21 de Abril de 2023, no grupo WhatsApp criado para os médicos do Serviço de Cirurgia I, o relatório médico referente à consulta a que a participante compareceu”.

    O objectivo seria denegrir a imagem pública da médica denunciadora — uma acção que ecoou depois em notícias do Expresso, usadas para desacreditar as suas denúncias. O despacho conclui que ambos violaram o dever de sigilo e acederam indevidamente a dados de saúde, “preenchendo, em abstracto, o tipo de crime de violação de segredo previsto no artigo 195.º do Código Penal”.

    Nesta linha, Vítor Rocha censura duramente Gildásio Martins dos Santos, lembrando que, sendo “assistente graduado sénior e director de serviço de um hospital universitário”, tinha o dever acrescido de garantir qualidade e segurança na prática cirúrgica. Contudo, “não explicou o motivo das complicações [cirúrgicas] nem a forma de as evitar”, preferindo “um ataque permanente de carácter à participante [Diana Pereira], tentando fazer passar a ideia de insanidade mental desta”.

    No fecho do despacho, o relator conclui que os dois médicos “agiram voluntária e conscientemente, não respeitando as normas deontológicas a que estão adstritos, havendo negligência grosseira e até dolo eventual”. Considera, assim, demonstrada “má prática médica e imperícia”, esta última apenas imputável a Pedro Henriques.

    Apesar de o relatório propor suspensões de 12 meses para Pedro Henriques e de seis meses para Gildásio Martins dos Santos, a decisão permanece sem homologação 15 meses depois.

    Recorde-se que, no mês passado, a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) propôs apenas 40 dias de suspensão para Pedro Henriques, estando o processo disciplinar de Gildásio Martins ainda pendente. Paralelamente, este último moveu um processo judicial contra Diana Pereira, reclamando 172 mil euros de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes das denúncias.

    Despacho de acusação demorou mais de um ano a ser produzido. E depois de Julho de 2024, com as propostas de sanção, nada mais se soube nem a Ordem dos Médicos quer revelar.

    Contactado pelo PÁGINA UM, o presidente do SIM, Jorge Roque da Cunha, afirma “manter plena confiança pessoal e institucional no Dr. Gildásio Martins dos Santos, dirigente sindical com mais de 35 anos de serviço sem qualquer mácula”. Recorda que o antigo director de serviço “chegou a ser suspenso [preventivamente] pela Ordem dos Médicos, decisão entretanto anulada nessa mesma sede”, acrescentando que “também o inquérito da IGAS relativo aos factos denunciados foi arquivado”.

    Saliente-se, no entanto, que o arquivamento da IGAS não é definitivo, uma vez que decorrem ainda processos no Ministério Público. “Neste contexto, entendemos que cumpre respeitar os mecanismos próprios de justiça e de regulação, não cabendo ao sindicato antecipar julgamentos nem retirar legitimidade a quem continua a desempenhar funções representativas”, conclui Roque da Cunha.

  • Impresa: Transacções em bolsa com fortes indícios de crime de ‘insider trading’ nas primeiras semanas de Setembro

    Impresa: Transacções em bolsa com fortes indícios de crime de ‘insider trading’ nas primeiras semanas de Setembro


    Nas sessões da Bolsa de Lisboa desta segunda e terça-feira, a Impresa incendiou os ecrãs: 3.617 negociações, mais de 33,1 milhões de acções trocadas e uma subida acumulada de 105% face ao fecho de sexta-feira. O preço intradiário de hoje chegou aos 0,334 euros — +165% — antes de recuar cerca de 23%.

    A febre especulativa correu atrás de rumores e de uma confirmação vaga sobre a entrada da MediaForEurope (MFE) no grupo fundado pela família Balsemão. Nada, por si, de inédito num título pequeno e pouco líquido.

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    Mas aquilo que se mostra verdadeiramente relevante — e que a CMVM, liderada por Luís Laginha de Sousa, se recusa a esclarecer, apesar de existir para garantir transparência — são os sinais de actividade anómala em torno da Impresa nas semanas anteriores, compatíveis com assimetria informacional, ou em termos técnico inglês, ’insider trading’. Em linguagem simples: gente a negociar antes de o mercado saber.

    Em Portugal, o ‘insider trading’ — designado juridicamente como abuso de informação — constitui crime previsto no artigo 378.º do Código dos Valores Mobiliários, punível com prisão até cinco anos ou multa, quando alguém, dispondo de informação relevante e não pública, a utiliza para negociar, transmitir a terceiros ou influenciar operações no mercado.

    De acordo com o código, entende-se também por informação privilegiada “toda a informação não tornada pública que, sendo precisa e dizendo respeito, directa ou indirectamente, a qualquer emitente ou a valores mobiliários ou outros instrumentos financeiros, seria idónea, se lhe fosse dada publicidade, para influenciar de maneira sensível o seu preço no mercado. Assim, por exemplo, se alguém tivesse decidido, por saber das negociações antes da informação ao mercado, comprar 80.000 acções da Impresa a 0,125 euros, gastando cerca de 10 mil euros e vendido hoje entre 0,25 e 0,334, veria um ganho bruto aproximado entre 100% e 167%. Ora, se na origem da decisão tivesse uma informação privilegiada, o seu acto seria criminoso.

    Pier Silvio Berlusconi, CEO da MFE: negociações foram oficialmente comunicadas no sábado passado, mas movimentações na Bolsa de Lisboa evidenciam que havia informação privilegiada a ser usada.

    Para além da responsabilidade penal, a CMVM pode, em teoria, aplicar sanções administrativas severas: as infrações qualificadas como muito graves podem implicar coimas entre 25 mil e 5 milhões de euros, perda dos lucros obtidos e proibição temporária de exercer funções de gestão em sociedades cotadas. Mas para isso suceder tem de haver duas coisas: crime e, depois, vontade da instituição liderada por Luís Laginha de Sousa em agir conforme determinam as competências da CMVM.

    O PÁGINA UM analisou as séries históricas da Euronext para a Impresa e apurou que, entre 11 e 26 de Setembro, se registou uma média diária de 442 transacções e 383.155 acções negociadas — valores mais de seis e quatro vezes superiores, respectivamente, às médias dos 22 meses anteriores, período em que a actividade foi modesta: 67 negócios e 91.172 acções transaccionadas em média por dia.

    Comparando o número acumulado de transacções na semana de 15 a 19 de Setembro (com 1.958) e da semana seguinte (com 3.078) torna-se evidente que as negociações relevantes entre a Impresa e a MEF já tinha saído dos corredores e estavam a influeciar o mercado. Isto porque a média semanal de transacções acumuladas era apenas de 313 desde Janeiro.

    Número de transacções acumuladas por semana dos títulos da Imprensa na Bolsa de Valores de Lisboa. A vermelho estão as semanas de 15 a 19 e de 22 a 26 de Setembro, antes dos comunicados da empresa cotada na CMVM. Fonte: Euronext. Análise: PÁGINA UM.

    Num emitente cuja capitalização ainda na semana passada rondava 21 milhões de euros – bem longe dos 514 milhões que a Impresa chegou a atingir em 2007, quando cotou acima dos 3 euros), movimentos discretos mas persistentes bastam para deslocar preços de forma material. Este salto de actividade antecedeu a comunicação, feita apenas no fim-de-semana, de que a empresa estava em conversações com a MFE — comunicação pouco elucidativa quanto a moldes e preços.

    Para reduzir o ruído estatístico e separar acaso de padrão nas negociações da Impresa ao longo dos últimos dois anos, o PÁGINA UM aplicou uma metodologia transparente: para cada sessão calculou-se a média e o desvio-padrão em janelas móveis de sete dias úteis (excluindo a sessão corrente), construindo-se z-scores de volume e de retorno diário e um Índice de Anomalia Composta com igual peso para ambos.

    Nessa análise foram detectados vários dias com configuração típica de acumulação informada sem facto público conhecido na altura, em sequência do padrão clássico volume vs. preço. Estes sinais não constituem prova de uso de informação privilegiada (insider trading), mas são, todavia, indícios robustos que obrigam o supervisor a diligências mínimas de verificação.

    Luís Laginnha de Sousa, presidente da CMVM. Foto: DR

    Por isso, o PÁGINA UM questionou formalmente a CMVM, pedido se houve confirmação de alertas internos de vigilância nas datas críticas; se requereu reconstrução de “tape” (registos de ordens, livro de ordens, rácios de cancelamento, concentração por intermediário/conta/beneficiário final); se solicitou verificação de posições curtas, empréstimo de títulos e derivados economicamente equivalentes; e se inquiriu a administração da Impresa sobre eventuais atrasos na divulgação de factos relevantes.

    Até ao fecho deste artigo, o regulador não confirmou se abriu investigação nem explicou que medidas activou. Para um mercado que se quer íntegro e transparente, o silêncio da CMVM não deveria servir.

    Importa recordar o básico: informação privilegiada é a informação não pública, precisa e susceptível de afectar o preço; negociar com base nela é ilegal, independentemente do lucro obtido. Em praças pequenas e com “penny stocks”, como Lisboa, a combinação de baixa liquidez com notícias de grande impacto agrava o risco de uso de informação reservada e de manipulação subsequente.

    Francisco Pedro Balsemão, CEO da Impresa: o grupo de media chegou a ter uma capitalização bolsista de mais de 500 milhões de euros; hoje, mesmo com a valorização desta semana pouco ultrapassa os 40 milhões.

    E aqui nasce um perigo adicional para os próximos dias: a tentativa de sustentar artificialmente as cotações para influenciar expectativas em torno de uma eventual Oferta Pública de Aquisição (OPA) ou do preço de transacção com a MFE. Em muitas jurisdições — e Portugal não é excepção —, a contrapartida mínima de ofertas públicas considera parâmetros objectivos como médias de mercado recentes e, em particular, o maior preço pago pelo oferente num período relevante antes do anúncio. No caso de Portugal, costuma ser a média ponderada com o volume dos últimos XXXX dias.

    Por isso, elevar preços com artifícios não seria apenas manipulação; poderá afastar o comprador por encarecer a operação, destruindo valor para a própria Impresa e para quem agora entrou à boleia do “lucro imediato”.

    Este quadro ganha gravidade adicional se atendermos ao histórico comunicacional da Impresa sobre factos relevantes – sale & lease-back do edifício-sede, efeitos contabilísticos de imparidades e alienação de títulos à Trust in News – têm  permanecido, com a anuência da CMVM, em zonas de sombra. Num contexto desses, a prudência recomendaria vigilância redobrada por parte da ‘polícia da bolsa’. A tecnologia existe e está ao alcance do supervisor: software de detecção de padrões, identificação de quem vendeu e quem comprou, sequência de ordens, cruzamento de cancelamentos e eventuais “wash trades”. Saber, a CMVM sabe – ou pode saber. A questão é querer, agir e explicar.

    Francisco Pinto Balsemão

    Os últimos dois dias falam por si sobre a credibilidade dos mercados financeiros portugueses. Mas o filme começou semanas antes, com volumes acima do normal e oscilações sem correspondência em informação pública. O mercado precisa de respostas simples: houve ou não houve negociação informada? Quem acumulou antes da notícia? Houve coordenação entre contas? Existem posições derivadas que expliquem parte do efeito mola?

    A CMVM tem meios para responder rapidamente a tudo isto. Ao recusar dizer se investiga, aumenta a incerteza — e a incerteza custa dinheiro e reputação. Num país onde até o índice de referência insiste em chamar-se PSI-20 com menos de vinte empresas elegíveis, pedir regras claras e execução firme não é preciosismo: é a condição mínima para que o mercado sequer sobreviva com um mínimo de credibilidade.

  • Vacinação contra a covid-19 associada a um aumento do risco de vários cancros

    Vacinação contra a covid-19 associada a um aumento do risco de vários cancros


    Um estudo de grande escala publicado na sexta-feira passada na prestigiada revista científica Biomarker Research – integrada no grupo editorial Springer Nature – veio reacender um debate que as autoridades sanitárias em Portugal e na Europa têm preferido silenciar no pós-pandemia da covid-19.

    A investigação de cientistas sul-coreanos, de diversas instituições de Seul, abrangeu mais de 8,4 milhões de cidadãos, com dados recolhidos entre 2021 e 2023, e, na comparação dos riscos entre vacinados e não vacinados – utilizando modelos estatísticos ajustados por múltiplas variáveis –, encontrou uma possível associação entre pessoas vacinadas e um aumento da incidência de vários tipos de cancro ao fim de um ano. Os resultados apontam para aumentos estatisticamente significativos no risco de cancro da tiroide (risco relativo de 1,35), do estômago (1,33), do cólon (1,28), do pulmão (1,53), da mama (1,20) e da próstata (1,69), em comparação com os não vacinados.

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    O chamado risco relativo é uma medida que permite comparar a probabilidade de um evento ocorrer entre dois grupos distintos — neste caso, vacinados e não vacinados. Um valor igual a 1 significa que não há diferença entre os grupos; valores superiores a 1 indicam um risco mais elevado entre os vacinados; e valores inferiores a 1 sugerem o contrário. Assim, um risco relativo de 1,53 para o cancro do pulmão significa que os vacinados tiveram uma probabilidade 53% maior de desenvolver esse cancro em relação aos não vacinados.

    De acordo com os autores, as vacinas de cDNA, ou vacinas de ADN recombinante, estiveram associadas a aumentos de risco para os cancros da tiroide, estômago, cólon, pulmão e próstata. Estas vacinas utilizam fragmentos de ADN sintético que codificam a proteína spike do vírus SARS-CoV-2, introduzindo o material genético no núcleo das células, onde serve de molde para a produção do mRNA que, por sua vez, origina a proteína viral. Essa proteína estimula o sistema imunitário a reconhecer o vírus e a gerar resposta protectora.

    Este tipo de vacina foi sobretudo usado em países asiáticos como a Coreia do Sul, o Japão e a Índia, sendo distinto das vacinas de mRNA (como as da Pfizer-BioNTech e Moderna) e das vacinas de vector viral (como as da AstraZeneca e Janssen), não tendo sido utilizado na União Europeia nem nos Estados Unidos.

    person holding white and orange plastic bottle

    Já as vacinas de mRNA, por seu lado, apresentaram aumentos semelhantes nos riscos dos cancros da tiroide, cólon, pulmão e mama; e os esquemas heterólogos – ou seja, a combinação de diferentes tipos de vacinas nas doses – mostraram correlação com maior incidência de cancro da tiroide e da mama.

    Embora os resultados revelem correlações consistentes, os investigadores sublinham que estes dados não demonstram uma relação imediata de causalidade e defendem a necessidade de mais estudos para compreender se certas estratégias vacinais poderão ser mais seguras ou adequadas para determinados grupos populacionais.

    Em todo o caso, este estudo surge num momento de crescente escrutínio sobre a opacidade das autoridades de saúde em matéria de farmacovigilância das vacinas da covid-19, do qual Portugal tem sido um triste exemplo. O PÁGINA UM tem denunciado, desde 2022, o irresponsável alheamento das autoridades de saúde em Portugal relativamente às reacções adversas às vacinas e a completa ausência de acompanhamento sistemático e cronológico dos casos suspeitos, incluindo os mais graves, com mortes e incapacidades elevadas.

    Primeira página do artigo científico publicado na Biomarker Research, pertencente ao mesmo grupo editorial da revista Nature.

    Em Portugal, o Infarmed, liderado por Rui Santos Ivo — que, para cúmulo, foi este ano nomeado presidente da Agência Europeia do Medicamento (EMA) — tem-se destacado como a entidade que recusa intencionalmente disponibilizar a base de dados integral sobre efeitos adversos.

    Essa ocultação foi já considerada ilegal. Depois de uma série de mentiras e justificações absurdas, um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul obrigou, no ano passado, o Infarmed a entregar ao PÁGINA UM os registos completos de farmacovigilância, após uma “batalha judicial” de mais de dois anos.

    Contudo, a decisão continua sem execução plena. O Infarmed optou por enviar versões truncadas que impedem qualquer reconstituição de casos individuais ou análise da evolução temporal, o que desde logo denuncia a ausência de uma farmacovigilância digna dessa denominação. Mesmo assim, o PÁGINA UM conseguiu mostrar que pelo menos 19.224 portugueses com reacções adversas foram completamente desprezadas pelo Infarmed.

    Rui Santos Ivo; presidente do Infarmed: a ocultação de dados do Portal RAM também terá contribuído para a sua eleição para a liderança da Agência Europeia do Medicamento.

    Perante esta desobediência de Rui Santos Ivo, o PÁGINA UM tem actualmente um processo no Tribunal Administrativo de Lisboa para a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória – ou seja, uma multa diária – ao presidente do Infarmed e também à EMA, visando obrigá-los a cumprir a decisão judicial.

    É neste contexto de opacidade institucional que o estudo sul-coreano adquire maior relevância pública. Mesmo que as suas conclusões devam ser lidas com prudência — por carecer de análises de sensibilidade, controlos negativos e períodos de latência adequados —, o simples facto de investigadores independentes se debruçarem sobre potenciais efeitos de longo prazo das vacinas contra a covid-19 contrasta com a inércia das autoridades europeias, que têm abdicado de investigar sistematicamente a segurança das vacinas após a sua introdução massiva.

    Em todo o caso, convém destacar que este estudo sul-coreano constitui ainda um ponto de partida sobre o possível efeito oncogénico das terapias genéticas associadas à vacina contra a covid-19. A janela temporal de 12 meses é ainda demasiado curta para sustentar uma relação causal com tumores sólidos, cuja formação se prolonga por anos.

    aerial photography of lighted city high rise buildings during dawn
    Coreia do Sul: um dos países mais avançados do Mundo em ciências médicas não tenta evitar encontrar ‘verdades incómodas’.

    Os autores usaram técnicas estatísticas para reduzir vieses de selecção (propensity score matching) e equilibrar grupos de vacinados e não vacinados, mas não divulgaram as tabelas de balanço que comprovassem a equivalência entre ambos em factores determinantes como idade, hábitos de vida, rastreios ou comorbilidades.

    Outro ponto crítico é a ausência de correcção estatística para múltiplas comparações. Foram testados vinte e nove tipos de cancro, além de subgrupos por sexo, idade e tipo de vacina. Num universo de dezenas de testes, é previsível que algumas “significâncias” surjam por mero acaso. Além disso, o período 2021-2023 coincidiu com a retoma dos rastreios suspensos durante a pandemia, fenómeno que pode ter inflacionado a incidência nos vacinados, mais propensos a procurar cuidados médicos.

    Ainda assim, a dimensão invulgar da amostra e o contexto sul-coreano tornam alguns destes vieses menos prováveis, embora não impossíveis. Num país com cobertura universal de saúde, elevada literacia médica e disciplina social reconhecida, a diferença de comportamento entre vacinados e não vacinados será, à partida, muito menor do que em sociedades ocidentais. É também plausível que, entre os não vacinados, coexistam grupos mais jovens e informados, eventualmente mais atentos aos riscos ou às limitações dos ensaios clínicos iniciais.

    person in white jacket wearing blue goggles

    Por isso, mesmo com estas reservas, o estudo tem significativa relevância, sobretudo porque aponta para um dever de vigilância contínua que as instituições europeias parecem ter esquecido. A farmacovigilância, prevista nos regulamentos comunitários, exige o acompanhamento cronológico de cada caso reportado — algo que nunca foi feito em Portugal.

    Até agora, as bases de dados do Infarmed limitam-se a acumulações estatísticas destinadas um dia a serem apagadas, sem qualquer memória. Na verdade, hoje, em Portugal, não se sabe quantas pessoas tiveram reacções adversas graves, quanto tempo demoraram a recuperar ou quantas morreram posteriormente. Com as vacinas contra a covid-19 existe um omertà

  • A esplendorosa melodia da globalização

    A esplendorosa melodia da globalização

    O caos do quotidiano é, por vezes, a mais refinada forma de poesia. Vivemos num tempo em que a pressa se tornou vício, e o movimento incessante substituiu o silêncio interior. As horas atropelam-se umas às outras, como se o dia fosse um palco em que o protagonista, aflito, corresse de cena em cena sem nunca dominar o guião.

    Dei por mim, em menos de quarenta e oito horas, a acumular no pulso direito duas pulseiras de contextos tão díspares quanto simbólicos: a primeira, no Hospital de São José, em Lisboa, após uma queda estúpida que me fez suspeitar de um osso partido no braço esquerdo (está tudo bem, felizmente); a segunda, já na noite seguinte, no LAV, onde Tamino – um belga de raízes egípcias – transformou o espaço num templo sonoro. Entre ambas, uma viagem relâmpago ao Porto para testemunhar como arguido, de pé, durante horas num julgamento kafkiano, só mitigada por um almoço de leitão à Bairrada e um jantar de pernil.

    E foi já quase no final do concerto, enquanto ecoava “Indigo Night” e depois “Habibi”, que me apercebi da ironia sublime desses dois selos de passagem — um hospitalar, outro musical — e de como a vida, mesmo no seu torvelinho, é bela, se soubermos escutá-la com atenção.

    Essa sucessão de episódios, quase cinematográfica, condensa bem a condição humana contemporânea: entre o prosaico e o sublime, entre a burocracia e o arrebatamento, entre a queda e o voo. Cada pulseira, como cada momento, é uma marca de pertença — ora ao corpo que dói, ora à alma que se eleva. Há quem veja nisto uma simples coincidência; eu vi um lembrete discreto da vida a dizer-me que o tempo, quando se vive intensamente, cabe inteiro em dois dias.

    Foi precisamente essa intensidade, de uma beleza por vezes inquietante, que Tamino trouxe ao palco do Lisboa ao Vivo (LAV). Com a sala completamente esgotada – eu tive a fortuna de ficar nos varandins –, o músico apresentou-se sem alinhamento fixo, preferindo deixar-se conduzir pela emoção do instante. “Tonight I’m trying something slightly different”, avisou ele, e foi essa imprevisibilidade que fez do concerto uma experiência quase ritual. O público, entregue, seguiu-o numa travessia pelas melodias do Crescente Fértil, onde as fronteiras entre Ocidente e Oriente se desvanecem em acordes de oud e sussurros de guitarra.

    Tamino é um daqueles raros artistas que parecem emergir de um tempo fora do tempo. A sua altura, a sua postura e sobretudo sua voz, situada entre o tenor e o barítono, carregam uma ressonância antiga, como se contivesse séculos de melancolia. A herança egípcia e a formação europeia encontram-se num ponto de equilíbrio que não é apenas geográfico, mas espiritual – a globalização no seu melhor.

    Dizem que se identificam semelhanças com Jeff Buckley ou Nick Drake, mas parece-me redutor e injusto: Tamino não é eco de ninguém – é antes um viajante entre mundos, um poeta da incerteza, um alquimista que transforma silêncio em som e dor em beleza.

    A viagem começou com “Every Dawn’s a Mountain”, tema que dá título ao seu álbum mais recente, lançado este ano. As primeiras notas soaram como um convite à introspecção. Seguiram-se “Raven” e “Sanpaku”, onde o oud — esse instrumento de alma árabe — traçou arabescos sonoros que evocaram o Cairo, o deserto e o murmúrio dos minaretes. Tamino alternou incessantemente entre guitarras clássicas e eléctricas, cruzando geografias e emoções. Em “Willow”, aproximou-se do folk europeu; em “A Drop of Blood”, revelou-se como um trovador místico dos tempos modernos.

    A meio do concerto, sozinho em palco, ofereceu “My Dearest Friend and Enemy”, num registo quase confessional, seguido de “w.o.t.h.”. Quando regressou a “Tummy” e “Sanctuary”, já com a sua banda (bem sincronizada), o público sentiu o concerto ascender a um plano mais luminoso, onde a emoção se tornava partilhada.

    Mas o clímax chegou, inevitavelmente, com “Indigo Night”. Este tema, um dos mais amados do seu repertório, transformou o LAV num santuário de contemplação. As luzes azuladas, o violoncelo em surdina e o timbre envolvente de Tamino criaram uma atmosfera quase litúrgica. Já no encore, surgiu “Habibi” – melancólica história de amor a um ente (físico ou espiritual), com o seu refrão em falsete que ecoou pela sala como um cântico de devoção. Era a consagração do instante, o triunfo da vulnerabilidade sobre o ruído do mundo – por mim, ficava por aqui e tudo o mais poder ser medíocre que já estavam asseguradas as 5 estrelas.

    Entre as sombras e os clarões, Tamino provou que ainda há espaço, na música contemporânea, para a beleza que não precisa de artifício. A sua arte é feita de despojamento, de entrega e de uma honestidade que desarma. Por isso mesmo, exige do público um grau de concentração e silêncio raros — o mesmo silêncio que faltou a alguns, incapazes de compreender que há concertos que são quase orações.

    Ao sair, voltei a olhar para o meu pulso e para a pulseira que restava. Já não era sinal de hospital nem de espectáculo: era um lembrete de que, entre o corpo que cai e a alma que canta, há uma vida que pulsa, desordenada e magnífica.

    E talvez seja esse o maior ensinamento de Tamino: que a beleza não é ausência de dor, mas a sua sublimação. Que viver é, afinal, andar entre quedas e concertos, entre ferimentos e melodias — e que cada um desses instantes, mesmo os mais caóticos, é uma nota indispensável da sinfonia maior que chamamos existência.

    Nota final: 5 em 5.

    Fotografias: Gonçalo Silva / Last Tour

  • OPA da Impresa: Entrada da família Berlusconi na SIC e Expresso com potencial para fazer subir até 50% o valor das acções

    OPA da Impresa: Entrada da família Berlusconi na SIC e Expresso com potencial para fazer subir até 50% o valor das acções


    Para entrar no mercado dos media em Portugal e ficar com os canais televisivos da SIC, integrados na empresa homónima, e o jornal Expresso e outros títulos menores, através da Impresa Publishing, a MediaForEurope deverá ter de desembolsar 31,75 milhões de euros no curto prazo, mas herdando uma dívida líquida superior a 130,9 milhões.

    De acordo com uma análise financeira realizada pelo PÁGINA UM, considerando as contas da Impresa relativas a 2023, o valor justo de aquisição para uma operação de controlo da Impreger – que controla 50,31% do grupo de media fundado por Francisco Pinto Balsemão – situar-se-ia entre 0,18 e 0,19 euros por acção, o que corresponde a um prémio entre 40% e 50% face à cotação de sexta-feira.

    Pier Silvio Berlusconi, CEO da MediaForEurope.

    Esta avaliação baseia-se em resultados antes de juros, impostos, depreciações e amortizações (EBITDA) de 18,4 milhões de euros, numa dívida líquida de 130,9 milhões e num factor multiplicador de 8,8 vezes o rácio entre o valor da empresa e o EBITDA, considerado adequado ao perfil financeiro da Impresa.

    A esse preço, as participações minoritárias da Impreger valeriam entre 4,57 e 4,95 milhões, enquanto a parte pertencente à família Balsemão, a partir da Balseger, deverá valor um pouco mais de 11 milhões. No entanto, a MFE herdará uma dívida líquida de 130,9 milhões, pelos valores do relatório e contas do ano passado, o grande pesadelo que assombra o grupo há anos.

    Mas a MFE terá de abrir ainda mais os cordões à bolsa – e é aqui que a situação se complica se a CMVM e a Euronext não exigirem maiores esclarecimentos à família Balsemão.

    Em Portugal, a lei impõe que qualquer investidor que passe a deter o controlo efectivo de uma empresa cotada seja obrigado a lançar uma oferta pública de aquisição (OPA) sobre a totalidade das acções remanescentes, garantindo assim tratamento igual a todos os accionistas.

    Fim de linha no controlo da Impresa pela família Balsemão. Captura a partir de vídeo da SIC

    Essa obrigação decorre do artigo 187.º do Código dos Valores Mobiliários, que define como controlo a posse de mais de 50% dos direitos de voto ou a capacidade, directa ou indirecta, de designar a maioria dos administradores ou exercer influência dominante – algo que sucederá se a MFE ficar com uma posição maioritária na Impreger, que detém 50,31% da Impresa. O objectivo é impedir que um novo grupo de controlo se instale sem dar aos minoritários a possibilidade de alienar as suas participações em condições justas.

    Ora, o preço dessa OPA obrigatória deve ser pelo menos igual ao mais elevado pago pelo novo controlador nos seis meses anteriores, estando sujeito à validação da CMVM, que assegura a observância das regras de transparência e equidade.

    Assim, se a MFE pagar, por exemplo, 0,189 euros por acção à Balseger e aos minoritários da Impreger, que detêm 84,5 milhões de acções da Impresa, terá de oferecer pelo menos o mesmo valor aos investidores da bolsa. Isso representaria um prémio de cerca de 50% face à cotação de sexta-feira, devendo provocar uma reacção imediata nas acções da Impresa, caso não sejam suspensas.

    Certo é que, considerando essa estimativa de 0,189 euros por acção, a MFE gastará mais 15,8 milhões na OPA, aos quais se somariam 16 milhões pela aquisição integral da Impreger, desembolsando assim cerca de 31,75 milhões de euros no curto prazo, mas herdando uma dívida líquida superior a 130,9 milhões.

    Ainda assim, a MFE dispõe de margem negocial junto dos credores para uma reestruturação da dívida com haircut – isto é, um perdão parcial dos montantes em dívida. O argumento é simples e convincente: se a Impresa permanecer nas mãos da família Balsemão, o colapso é iminente e os credores arriscam perder tudo; com a entrada de um colosso europeu da comunicação social, o pagamento da dívida – mesmo com algum perdão – torna-se exequível e credível.

  • Sara Duarte Brandão

    Sara Duarte Brandão

    Na vigésima nona sessão da BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com a escritora Sara Duarte Brandão.



    USara Duarte Brandão tem a vocação de entrelaçar mundos — da palavra à imagem, do design à poesia, do palco à página. Nasceu no Porto em 1997, mas o seu corpo e alma dividem-se entre a Beira Baixa e Arouca — lugares que alimentaram memórias e raízes.

    Licenciada em Design de Comunicação e Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes, é também Facilitadora em Criação Artística Comunitária e doutoranda em Ciências da Educação, com uma bolsa da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

    Designer, tecedeira de imaginários e escritora, representa hoje uma geração que recusa fronteiras entre arte, pensamento e comunidade. Em 2023, publicou Descolonizar o Sujeito Poético (Urutau), livro que viria a conquistar uma Menção Honrosa no Prémio Glória de Sant’Anna e alcançar a final da Mostra Nacional Jovens Criadores. Já o romance Quem Tem Medo dos Santos da Casa?, publicado este ano pela Dom Quixote, recebeu o Prémio Literário Cidade de Almada.

    Recebeu ainda o Prémio Nortear com o conto (Ver) e participa em projectos que cruzam literatura, teatro e artes plásticas.

    Nesta conversa com Pedro Almeida Vieira para a Biblioteca do PÁGINA UM, gravada no Porto, a Literatura é o ponto de partida — mas os temas alargam-se a outros horizontes e mundos.

  • Elevador da Glória: o que se sabe, o que eles escondem e o que você precisa (já) de saber

    Elevador da Glória: o que se sabe, o que eles escondem e o que você precisa (já) de saber


    Mais de três semanas depois do acidente no Elevador da Glória, que lançou novamente a sombra sobre a segurança em Portugal — e perante um vergonhoso manto de obscuridade que remete o relatório para as calendas e esconde tudo sob o conveniente segredo de justiça —, a pergunta essencial permanece sem resposta oficial: por que razão colapsou o cabo de tracção?

    Não basta, como têm feito a Carris e a Câmara Municipal de Lisboa, remeter o caso para investigações administrativas ou debates pós-eleitorais. É necessário explicar de forma transparente, com informação completa e assumpção de responsabilidades.

    A Carris, quer na actual administração liderada por Pedro Bogas, quer na anterior, chefiada por Tiago Lopes Farias, não pode continuar no silêncio nem recusar a divulgação de contratos que deveriam ser públicos. E o Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), que deveria ser garante de segurança, não pode permanecer numa espécie de coma regulatório, indiferente ao escrutínio público.

    Mas há, ainda assim, aspectos que já se sabem e que são fundamentais para compreender o que poderá ter estado na origem do desastre. Primeiro: até 2022, o cabo do Elevador da Glória era de alma de aço. A mudança para um cabo com alma de fibra ocorreu nesse ano, ainda sob a presidência de Tiago Lopes Farias, e justamente no mês anterior à sua saída.

    Antes dessa substituição, os cabos utilizados cumpriam a norma europeia EN 12385-8, que estabelece os requisitos técnicos para cabos de aço usados em transporte de pessoas por funiculares. Depois de 2022, ninguém sabe — ou ninguém quer esclarecer — se o cabo de alma de fibra possuía ou não certificação compatível com as normas harmonizadas da União Europeia para transporte de pessoas. O silêncio sobre este ponto é, por si só, revelador.

    Segundo: tanto os cabos com alma de aço como os cabos com alma de fibra têm uma característica fundamental — possuem resistência à tracção suficiente para suportar cargas muito superiores às que lhes eram exigidas em serviço no Elevador da Glória. Traduzindo: o cabo jamais romperia por esforço de tracção em condições normais. Logo, se o cabo colapsou, não foi por “partir” como um fio de corda velho, mas sim porque se soltou do seu encaixe.

    Ora, aqui entramos num domínio ainda mais técnico: o das terminações dos cabos. No caso do Elevador da Glória, a selagem é, em termos simples, o coração da segurança — ainda mais sabendo agora que o sistema de travagem era absurdamente inoperacional. É nesse encaixe metálico, denominado bucha cónica ou socket (soquete), que as dezenas de fios de aço que compõem o cabo são presos, por meio de cunhas ou resinas.

    Quando a selagem é perfeita, a resistência atinge praticamente a do próprio cabo — ou seja, por aí jamais haveria acidente. Porém, se existirem falhas de montagem, má escolha do tipo de cabo ou envelhecimento do material, a selagem pode transformar-se num ponto frágil, iniciando-se uma ruptura lenta: um processo que começa com pequenos deslizamentos internos, invisíveis a olho nu, até ao colapso total. Ora, o colapso repentino ocorreu cerca de um ano após a substituição do último cabo e, portanto, da criação desse encaixe metálico.

    Cabo de aço em preparação para ser unido no soquete. Foto: Carl Stahl GmbH.

    Para perceber a vulnerabilidade deste ponto, importa explicar como se faz a selagem — e muito bem o mostrou o jornalista Carlos Enes, na CNN Portugal, a partir de imagens da empresa alemã Carl Stahl GmbH, especializada em tecnologia de guindastes e elevadores. Primeiro, a extremidade do cabo é destrançada e cuidadosamente limpa, expondo fios e alma. Depois, o conjunto é introduzido numa bucha metálica em forma de cone. Segue-se a fixação, através de um de dois métodos principais.

    No método mecânico, insere-se uma cunha que, sob tracção, comprime os fios contra a parede do cone: quanto maior a carga, maior o aperto. No método químico — que será o utilizado neste tipo de ascensor —, a bucha é cheia com resina epóxi ou, em versões clássicas, com metal fundido, que endurece e encapsula todos os fios, criando um bloco sólido. Finalmente, deve ser feita uma prova de carga para garantir que a selagem resiste à tracção máxima prevista.

    Quando tudo é feito segundo as regras, a terminação é tão forte como o próprio cabo. Mas quando algo corre mal — seja pela má preparação dos fios, pelo uso de uma bucha inadequada ou pela escolha errada do cabo — cria-se um ponto crítico onde a falha pode ocorrer.

    Exemplificação da criação de um soquete em cabo de aço. Vídeo da empresa alemã Carl Stahl.

    Os engenheiros que lidam com sistemas de tracção sabem que os pontos de amarração — onde o cabo entra no soquete — são os mais sensíveis. Aí concentra-se a fadiga por flexão, aí se inicia a ovalização que abre caminho a quebras de fios, aí se manifesta a incompatibilidade entre o tipo de cabo e a geometria da selagem. Se não houver ensaios prévios de carga, se não se verificar se existem ou não alongamentos anómalos durante os dias de serviço, o sistema pode parecer seguro até ao dia em que, subitamente, cede. Ou seja, o cabo não rompeu por fadiga de aço: deslizou do soquete.

    É precisamente aqui que importa desfazer um equívoco que alguns poderão alimentar para desviar atenções. Quem pense que, tratando-se de um ascensor histórico, estes aspectos técnicos poderiam ser menorizados, sob a alegação de que quem “mandava” era o instituto público Património Cultural — que sucedeu ao IPPAR e ao IGESPAR —, desengane-se. Isso é areia atirada para os olhos dos ingénuos. O encaixe metálico, por exemplo, é uma operação de elevada responsabilidade técnica — não uma soldadura improvisada por um curioso, mas uma selagem que exige materiais certificados, controlo de processo e ensaio de resistência segundo norma europeia.

    Em sistemas de transporte público de pessoas, mesmo que em veículos históricos, tudo está subordinado a normas europeias de segurança. No caso dos cabos de aço, a norma de referência é a EN 12385-8; no caso das terminações e soquetes, a EN 13411-4; no caso da liga metálica das buchas, são exigidas especificações estruturais de aços forjados como C45, S355 ou 42CrMo4, constantes das normas EN 10250 e EN 10025.

    O processo de enchimento do soquete com uma liga metálica ou resina especial é um processo que requere o cumprimento de normas europeias de segurança. Foto: Carl Stahl.

    O primeiro é um aço carbono médio, robusto mas simples, usado em peças de solicitação intermédia; o segundo, um aço estrutural de baixa liga, com limite de escoamento mínimo de 355 MPa (megapascal), combina ductilidade e soldabilidade com resistência adequada; o terceiro, uma liga de crómio-molibdénio (Cr-Mo) de alta performance, oferece elevada dureza e resistência à fadiga, sendo indicada para componentes críticos de segurança. É, pois, evidente que a escolha do material e da certificação não pode ser secundária nem deixada à arbitrariedade de quem executa a obra.

    Perante este quadro, as hipóteses plausíveis para o acidente do Elevador da Glória são três. A primeira hipótese: o problema estava no cabo. E aqui importa esclarecer que, no contexto de funiculares e ascensores desta natureza, os cabos com alma de aço são preferíveis aos cabos com alma de fibra. A alma de aço garante maior estabilidade dimensional, reduz a deformação sob carga cíclica e oferece melhor resistência ao esmagamento nos pontos de amarração. Já a alma de fibra, embora mais flexível e com melhor capacidade de retenção de lubrificante, pode retrair-se sob tensão prolongada e ceder progressivamente em ambientes húmidos ou sujeitos a variações térmicas, criando espaços internos que diminuem a eficácia da ligação no soquete e favorecem o deslizamento.

    A segunda hipótese é que o problema tenha residido no material usado no soquete: se, em vez de um aço forjado de tenacidade comprovada como o C45, o S355 ou o 42CrMo4, foi utilizada uma liga inadequada, ou se o enchimento foi feito com resina não certificada ou mal curada, a fixação ficou condenada desde o início.

    16 mortes e mais de duas dezenas de feridos: três semanas depois, aumentou o obscurantismo para descobrir as causas e responsabilidades.

    A terceira hipótese é a de erro humano na instalação, seja na preparação deficiente do cabo, sem a abertura e desfiamento adequados dos fios antes da inserção no cone, seja na execução apressada do enchimento — que pode não ter penetrado devidamente entre os fios —, seja ainda em falhas de controlo dimensional.

    Não se pode excluir, claro, que o desastre do Elevador da Glória resulte da conjugação de dois ou mais destes factores: um cabo de alma de fibra menos adequado, um soquete fabricado ou enchido com materiais questionáveis e uma instalação executada com erros de método. E quando factores técnicos frágeis se somam a falhas de fiscalização e de ensaio, o resultado torna-se inevitável: um sistema vulnerável, que cedo ou tarde acabaria por falhar.

    Mas há algo ainda mais grave: em qualquer cenário, o acidente revelou falhas incompreensíveis de manutenção e de fiscalização. É sabido que a fadiga ou o deslizamento progressivo de um cabo no soquete podem ser detectados com ensaios periódicos — testes não destrutivos, medições de deslizamento, verificações de integridade interna com equipamentos adequados. Aparentemente, nada disto foi feito. O regime de manutenção da MNTC parece ter-se limitado a uma rotina burocrática de verificações visuais — um olhómetro e relatórios de circunstância —, deixando de fora aquilo que é verdadeiramente essencial: ensaiar, testar, certificar.

    João Caetano, presidente do Conselho Diretivo do Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT): apenas mais um responsável que tenta passar pelos ‘pingos da chuva’. A entidade reguladora deveria ter acompanhado da mudança do cabo, exigido ensaios de segurança e executado fiscalizações trianuais, Nada disso foi feito.

    O caderno de encargos para a manutenção concebido pela Carris seria apenas anedótico, se não fosse trágico pela ausência de exigências técnicas. Essa fragilidade permitiu à MNTC esmagar o preço base para quase metade e ganhar um concurso sem sequer saber substituir o cabo, como era exigível. De facto, tudo indica que o encaixe metálico terá sido executado na paragem regular do Elevador da Glória por técnicos da própria Carris, entre Agosto e Setembro de 2024.

    E, como complemento desta sucessão de irresponsabilidades e obscurantismo, constata-se agora um dado de pasmar: nunca ninguém testou a hipótese de um colapso súbito do cabo para verificar se os sistemas de travagem responderiam de forma eficaz. Andou-se convencido de que existiria sempre um “segundo paraquedas” pronto a actuar, quando afinal não havia paraquedas nenhum. O Elevador da Glória do século XXI era um sistema assente na fé, não na redundância técnica — uma confiança ingénua de que o improvável jamais aconteceria.

    Certo é que, independentemente da origem última — e teme-se que se vá atribuir responsabilidades a um qualquer funcionário da Carris, um “marido da culpa” que acaba sempre em parte incerta —, estamos perante uma sucessão de falhas que não podem ser reduzidas a um inquérito interno ou a um relatório técnico para um incerto julgamento e eventuais indemnizações.

    A yellow tram travels uphill on its tracks.

    Este não é apenas um episódio de falha mecânica; é uma falência institucional. E se a Carris não esclarece, se o IMT não fiscaliza, se a Câmara Municipal de Lisboa se refugia em discursos de pesar, resta-nos concluir que os cidadãos são transportados em veículos cuja segurança depende mais da sorte do que da técnica e da regulação.

    As últimas semanas têm mostrado, mais uma vez, a atitude dos políticos e gestores perante os erros: um muro de silêncio. Mas esse muro fala demasiado alto: fala da arrogância das administrações que se julgam acima do escrutínio; fala da impotência dos reguladores que preferem esconder-se em vez de agir; e fala da cultura da opacidade que domina tantas empresas públicas, onde os cidadãos são tratados como intrusos sempre que ousam pedir transparência.

  • Gil Vicente 2.1

    Gil Vicente 2.1


    Há quem me acuse, e com razão, de sofrer de um problema crónico de pontualidade. Admito-o sem resistência, embora com um pequeno pedido de contexto: eu, que tantas vezes chego tarde, nunca falho uma promessa. Se digo que vou, vou. E é aí que nasce o meu outro problema — o da assiduidade. Porque, sendo pontualmente atrasado, sou assiduamente presente. E, assim, como uma pescadinha de rabo na boca, lá vou eu: presente mas atrasado, assíduo mas em cima do apito. Só que, ultimamente, nem isso. A minha pontualidade, já de si vacilante, entrou em colapso existencial.

    A verdade é que, nesta época, o atraso ganhou corpo, fôlego e até uma certa dimensão metafísica. Tenho chegado tão tarde que já nunca assisto ao ritual aéreo da Glória — ou da Vitória, ou da Luz, já me baralho entre as águias — nem tão-pouco me cruzo com uma delas no elevador, como acontecia noutros tempos em que o atraso era ainda um luxo de minutos. Agora, é uma eternidade.

    Entre o excesso de trabalho, o excesso de jogos e a crónica pressa de quem quer fazer tudo e acaba por fazer quase nada a tempo, os meus atrasos tornaram-se sistemáticos. E esta época já são mais os golos do Benfica que perdi do que os que vi, sobretudo porque até tem havido golos iniciais, e depois minga tudo. Um número triste, quase estatístico.

    O caso mais doloroso foi, talvez, o jogo com o Qarabag. Um desastre desportivo – e para mim muito pior: não vi um único golo do Benfica. Quando finalmente subi as escadas e alcancei a bancada — aos 15 minutos —, já o marcador registava 2-0 a favor do Benfica. Depois, foi o que se viu — e eu vi. Um duplo (ou triplo) murro no estômago. Não há timing que resista a isto.

    Desde então, parece que o destino decidiu ensinar-me que, quanto mais corro para chegar a tempo, mais o tempo foge. Porque, desde essa partida, o que tenho visto é só desgraça, mesmo com o José Mourinho, mostrando que até eu arriscaria a não fazer pior.

    E assim sucedeu mais um atraso com o jogo do Gil Vicente – e mais uma desgraça, apesar da sorte de um resultado de 2-1 a favor do Benfica, muito lisonjeiro face ao desempenho. Tinha regressado do Porto na tarde anterior, exausto, depois de um julgamento tão bizarro que só a tragicomédia portuguesa o poderia engendrar. Ainda tive de passar por um concerto – menos mau, ou muitíssimo bom, para ser sincero.

    Esta sexta-feira, o corpo pedia repouso, a mente clamava por pausa, mas a agenda — essa entidade diabólica — já tinha decidido por mim. Enfim, os dias atropelam-se, as horas evaporam-se e o relógio parece conspirar. Há um momento, aliás, em que dou por mim a pensar — com um certo temor — que o trabalho mata. Mata o descanso, mata o tempo livre e, sobretudo, mata a capacidade de chegar antes do minuto quinze.

    Mas a pior parte nem foi essa. Ao chegar ao estádio, com mais de meia hora decorrida da primeira parte, e o resultado (sem eu o saber então) já feito (o Gil Vicente adiantou-se aos 11 minutos e o PAVlidis deu a reviravolta aos 18 e 26 minutos), soube que uma agência de comunicação — a JLMA — me boicotara uma cacha sobre a Impresa. Uma irritação monumental. O corpo cansado, a cabeça a latejar, o jogo correr e, ainda assim, havia notícia.

    Respirei fundo e decidi: havia matéria para se escrever — e nãopodia ficar para a amanhã. Afinal, a Impresa tinha de comunicar à CMVM as negociações com os italianos da MFE — os herdeiros de Berlusconi, antigo dono do AC Milan — por se tratar de informação privilegiada.

    Entre o som do público e o rumor de fundo das teclas, falei com a Elisabete e lá fomos redigindo o artigo, a meias — eu sentado na Varanda da Luz, com o portátil perto do famoso farnel do Benfica, metendo de vez em quando um olho no relvado, outro no ecrã, e um terceiro (imaginário) no relógio.

    E foram nesses instantes, no meio desta fusão absurda entre futebol jogado pessimamente, jornalismo e cansaço, que me veio à mente uma das frases mais sombrias da História da Humanidade: Arbeit macht frei — “O trabalho liberta.”

    A expressão, hoje impregnada de horror, nasceu num contexto muitíssimo menos macabro do que aquele que a imortalizou. Surgiu na Alemanha do século XIX, num tempo em que o trabalho começava a ser exaltado como instrumento de regeneração moral e de ascensão social.

    O lema foi popularizado pelo escritor Lorenz Diefenbach, num romance publicado em 1873, intitulado precisamente Arbeit macht frei: Erzählung von Lorenz Diefenbach. Nele, o autor apresentava o labor como antídoto contra o vício e a degradação, um caminho para a virtude — a ideia de que o esforço dignifica e redime. Adoptada por movimentos culturais e associações laborais, a expressão ganhou o estatuto de máxima edificante: uma versão germânica do “pelo trabalho se vence”.

    Foi, no entanto, essa mesma frase, esvaziada do seu sentido moral e apropriada pelo nazismo, que viria a adornar os portões de Auschwitz, Dachau e outros campos de concentração. Aí, transformou-se na mais cruel das ironias: aquilo que prometia dignidade passou a anunciar aniquilação. O trabalho já não libertava o espírito — esmagava o corpo; já não regenerava — exterminava. Tornou-se símbolo da perversão total da linguagem, prova de que até as palavras podem ser escravizadas.

    Essa metamorfose semântica — da virtude à infâmia — mostra como as palavras têm destino, e como um ideal moral pode ser capturado e deturpado por uma ideologia que faz da mentira o seu alicerce.

    Enfim, ali sentado na bancada, de portátil aberto e olhos divididos entre o relvado e a notícia sobre a Impresa, dei por mim — perante as contingências de mais um jogo deplorável, mesmo com Herr Mourinho nas redes — a cometer uma pequena heresia semântica: a paráfrase. Sim, arrisco dizê-lo — e que me perdoem os deuses da semântica e da História —, o trabalho liberta.

    Mas liberta-nos de quê? No meu caso, libertou-me de ver um jogo confrangedor. Libertou-me da angústia dos passes errados, dos cruzamentos para o nada, dos remates à figura e das expressões perdidas de quem já não sabe o que fazer à bola. Aliás, nem sequer vi em directo o jogo anulado ao Gil Vicente por seis centímetros – uma dimensão completamente obtusa como escrevi em tempos.

    Portanto, o trabalho libertou-me… de sofrer mais do que o necessário. Se não estivesse a escrever sobre a Impresa, teria sido tortura em directo. E assim, decidi que esta época vou passar a levar sempre um tema noticioso para a Varanda da Luz — um colete de salvação emocional. Se o Benfica tropeçar em campo, eu refugio-me no texto e poupo-me à agonia. Será a minha nova estratégia defensiva — mais eficaz do que qualquer lateral esquerdo improvisado.

    E se algum dia conseguir convencer os benfiquistas a seguir este método, trabalhando para se anestesiarem do que se passa no relvado, acredito que o PIB nacional vai subir em flecha, invertendo o mito de que a Economia portuguesa se expande quando o Benfica é campeão.