Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Regulador dos media não pode esconder dados financeiros da IURD, diz parecer da CADA

    Regulador dos media não pode esconder dados financeiros da IURD, diz parecer da CADA

    Helena Sousa, ex-jornalista e presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), e os seus colegas do Conselho Regulador, não podem continuar a proteger a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), permitindo a ocultação dos dados financeiros daquela associação religiosa. Quem o diz é a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), em parecer aprovado após queixa do PÁGINA UM.

    Em causa está o impedimento da ERC em permitir o acesso aos documentos financeiros que a IURD – tal como todos as entidades e empresas detentoras de órgãos de comunicação social – está obrigada pela Lei da Transparência dos Media a enviar anualmente ao regulador. Sem qualquer sustentação legal, e contrariando as directizes do anterior Conselho Regulador, a equipa de Helena Sousa permitiu que a IURD, que tem sido representada pela poderosa sociedade Abreu Advogados, deixasse de divulgar os seus dados financeiros globais, passando a reportar apenas informações não validadas e relativas à sua actividade mediática.

    A mudança ocorreu sob a presidência de Helena de Sousa, sem qualquer deliberação formal, permitindo à IURD ocultar as movimentações financeiras das suas actividades globais, que, entre 2017 e 2022, envolveram 209 milhões de euros. A ERC justificou a decisão alegando que a actividade de comunicação da IURD seria “secundária”. Um argumento que não tem uma base factual: a igreja evangélica de origem brasileira detém, directa e indirectamemnte, 12 rádios, dois jornais e um canal televisivo (UniFé TV), incluindo os meios de comunicação da sua ‘holding’ Global Difusion, que acumulava dívidas de 58 milhões de euros e estava em falência técnica em 2022.

    Face à habitual recusa da ERC em permitir acesso a documentos administrativos, com atitudes de reiterada prepotência, o parecer da CADA acaba por revelar mais uma vez a postura obscurantista do regulador dos media – algo que se tornou recorrente e de uma impunidade desarmante. Com efeito, de acordo com o parecer da CADA, embora a ERC possa determinar aquilo que pode ser revelado publicamente, esse acto não impede o acesso a outra informação em sua posse, que venha a ser solicitada, por exemplo, por um jornalista.

    “Uma coisa é o cumprimento de deveres de divulgação activa de informação no âmbito das competências da ERC, enquanto reguladora das entidades que prosseguem atividades de comunicação social; outra coisa é o direito de acesso aos registos e arquivos da administração pública”, salienta o parecer da CADA, agora presidida pela juíza conselheira Maria do Céu Neves.

    Helena Sousa, presidente do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

    Na argumentação, a CADA salienta que “o exercício do direito de acesso aos arquivos e registos administrativos não se confunde, não exclui ou colide com os deveres de divulgação activa que impendem sobre a ERC – nem vice-versa”. Ou seja, o regulador dos media até tem liberdade de divulgar o que lhe apetece, mesmo sem uma base legal, mas não pode depois impedir que alguém queira aceder aos documentos originais, incluindo troca de correspondência entre as partes. A CADA destaca, de forma clara, que mesmo se os elementos financeiros globais da IURD não sejam divulgados pela ERC, “não deixa de ser acessível por qualquer interessado no quadro da LADA [Lei do Acesso aos Documentos Administrativos”.

    Este é mais um episódio de um absurdo caso envolvendo as dificuldades de acesso a documentos detidos pela ERC, uma entidade ironicamente criada pela Constituição para defesa da liberdade de imprensa e acesso à informação. O PÁGINA UM já se viu mesmo obrigado a recorrer ao Tribunal Administrativo para que o regulador disponibilizasse documentos, mesmo de forma contrariada. Extrajudicialmente, a CADA já se pronunciou por seis vezes sobre as atitudes de bloqueio por parte da ERC, sempre de forma desfavorável a esta entidade, conforme se pode ver aqui (1), aqui (2), aqui (3), aqui (4), aqui (5) e aqui (6).

    Após este parecer, a ERC pode decidir acatar ou não o parecer da CADA, porque não é vinculativo. Em todo o caso, sobre este caso da IURD, e no decurso de uma notícia do PÁGINA UM em 30 de Outubro do ano passado, a ERC está ainda a analisar uma queixa apresentada pela Abreu Advogados como representante da igreja evangélica. O mais curioso dessa queixa, por alegada falta de rigor, é que a notícia visada envolve a actuação à margem da lei da própria ERC, que assim poderá vir a decidir em causa própria.

    Foto: PÁGINA UM

    Saliente-se que a ERC tem poderes, que usa de forma arbitrária, para apreciar queixas sobre a alegada falta de rigor dos órgãos de comunicação social, cuja análise é conduzida de uma forma muito sui generis. O director do órgão de comunicação social é ‘convidado’ a pronunciar-se sem saber qual a acusação em concreto, e depois é elaborada uma deliberação crítica sobre a qual o Conselho Regulador aceita ou não uma reclamação posterior.

    Como estas deliberações da ERC não implicam uma penalidade, não são consideradas actos administrativos – são assim meros bitates (embora possam ser usados para descredibilizar jornais e jornalistas incómodos) –, nem sequer são passíveis de impugnação judicial.


    N.D. O PÁGINA UM usou uma fotografia de Helena Sousa na “Galeria de Imagens” da ERC, onde surge uma referência a ser obrigatória uma autorização por escrito para o seu uso. Mais uma vez a ERC exorbita as suas competências e poderes. A ERC é um organismo público e, como tal, está vinculada ao princípio da transparência da Administração Pública e ao direito constitucional de acesso à informação. Nos termos da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (Lei n.º 26/2016), os documentos detidos por entidades públicas – incluindo fotografias institucionais que documentam a sua actividade – são de acesso livre e podem ser utilizados sem necessidade de qualquer autorização prévia, salvo se estiverem protegidos por excepções legais devidamente fundamentadas, como questões de segurança, privacidade ou sigilo legal.

    Além disso, nos termos do artigo 8º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, os textos e documentos oficiais produzidos pela Administração Pública não são protegidos por direitos de autor. Fotografias institucionais que servem para ilustrar a actividade da ERC, ou os seus membros, não podem, portanto, ser restringidas com base numa alegada necessidade de autorização, tanto mais se forem expostas no seu site.

    A imposição de uma autorização prévia para a utilização destas imagens constitui uma tentativa ilegítima de controlo sobre a circulação de informação pública e não tem qualquer fundamento legal. O PÁGINA UM não reconhece qualquer legitimidade a esta exigência e não aceita estar condicionado ao uso de imagens institucionais públicas.

  • 13 deputados do PSD têm interesses no imobiliário

    13 deputados do PSD têm interesses no imobiliário

    Não é um, nem dois, nem três. São treze os deputados do PSD que possuem negócios e participações em empresas ligadas ao sector imobiliário, de acordo com um exaustivo levantamento do PÁGINA UM às declarações dos parlamentares do partido do Governo na Entidade para a Transparência. O escrutínio – óbvio em democracia e que apenas não abrangeu ainda os deputados dos outros partidos por causa do burocrático e moroso processo de requerimento da consulta – coloca em causa a alteração da Lei dos Solos, que permite, de forma arbitrária, a transformação de solos rústicos, de baixo valor, em áreas urbanizáveis.

    As ligações de figuras de topo do PSD a negócios de compra e venda de imóveis, construção civil e promoção imobiliária não se circunscrevem aos membros do Governo, incluindo Luís Montenegro e o ministro da Coesão Territorial, Castro Almeida, que propuseram alterar a Lei dos Solos. No sábado passado, o PÁGINA UM já revelara também os interesses empresariais no sector imobiliário de Hugo Soares, líder parlamentar do PSD, e de José Pedro Aguiar-Branco, presidente da Assembleia da República.

    No caso de Hugo Soares, cuja intervenção recente no Parlamento procurou apontar o dedo a deputados do Chega pelo envolvimento no sector imobiliário, tornou-se especialmente embaraçoso o facto de também ele ter criado, em 2020, juntamente com a mulher, a Capítulo Universal, uma empresa que, além de consultoria, se dedica à compra e venda de imóveis. Nas últimas contas apresentadas, a empresa registou um volume de negócios de 164 mil euros e acumulava, até finais de 2023, lucros de quase 285 mil euros. Mais do que um simples investimento paralelo, a sociedade aparenta ser uma fonte sólida de rendimento para o líder parlamentar do PSD.

    Já José Pedro Aguiar-Branco, advogado e ex-ministro da Defesa, detém 38,97% da Portocovi, uma empresa com sede em Lisboa dedicada à compra e venda de imóveis e ao arrendamento. Embora com uma participação minoritária, os activos imobiliários registados pela empresa ultrapassam os 631 mil euros, o que evidencia a sua relevância dentro da estrutura patrimonial do deputado.

    Porém, os nomes de Soares e Aguiar-Branco estão longe de ser os únicos no grupo parlamentar do PSD. Na análise do PÁGINA UM às participações em sociedades, pelo menos mais onze deputados têm ligações directas a empresas do sector, abrangendo diversas áreas da actividade imobiliária, desde a intermediação de crédito até à construção de edifícios.

    Hugo Soares

    Entre os casos agora identificados, destaca-se Paulo Cavaleiro, deputado e secretário-geral adjunto do PSD desde Julho de 2022. Nascido em São João da Madeira, foi vereador na autarquia presidida por Castro Almeida entre 2002 e 2013. Apesar disso, Cavaleiro tem o seu negócio em Oliveira do Bairro, também no distrito de Aveiro, sendo sócio em 50% da Marta & Laura Construções, uma empresa anteriormente conhecida como Cerâmica do Vale da Formosa, mas cuja principal actividade é agora a construção de edifícios.

    Carlos Cação, deputado por Braga e coordenador da Comissão de Ambiente, é outro político social-democrata com as mãos no imobiliário, detendo 99,5% da Preminvest, uma empresa sedeada em Vila Verde, criada em 2017 e anteriormente conhecida como Fachada Maravilha. A sociedade do deputado de 39 anos, licenciado em Engenharia Civil, actua em múltiplas frentes dentro do sector, desde a construção e reparação de edifícios até à compra e venda de bens imóveis, passando pelo arrendamento e revenda. Além disso, a empresa dedica-se ainda à reciclagem e gestão de resíduos da construção civil, expandindo a sua esfera de actividade para um segmento de mercado particularmente lucrativo.

    Outro caso relevante é o de Pedro Neves de Sousa, deputado pelo círculo do Porto e figura com um passado ligado à consultoria empresarial. Possui 33,33% da Semblante Desafio, uma sociedade criada na Invicta em 2022, de cuja actividade se destaca a “compra e venda de bens imobiliários, incluindo revenda, arrendamento e exploração de imóveis próprios ou alheios”, bem como a promoção imobiliária e a construção e reabilitação de edifícios residenciais e não residenciais.

    Emídio Guerreiro

    Ofélia Ramos, deputada algarvia e advogada de profissão, detém 50% da Faratleta, uma empresa inicialmente ligada ao comércio de equipamentos desportivos, mas que, desde 2010, se especializou na construção e remodelação de prédios para venda e arrendamento. A empresa tem uma presença particularmente forte no mercado imobiliário do Algarve, região onde a especulação imobiliária e o turismo têm impulsionado fortemente o valor dos imóveis.

    A deputada Olga Freire, eleita pelo círculo do Porto, surge igualmente na lista de parlamentares do PSD com interesses no sector imobiliário. Presidente da Junta de Freguesia da Cidade da Maia, é dona de 100% da Papel Oportuno, empresa unipessoal fundada em 2015. A sua actividade abrange um leque diversificado de áreas, desde mediação de seguros e consultoria para negócios até comércio de mobiliário e decoração. E, claro, “compra e venda de imóveis”.

    Por sua vez, a deputada Andreia Neto, representante do círculo de Braga, também integra a lista de políticos com interesses no sector imobiliário. Além de ser directora executiva da AMCO Recuperação e Gestão de Créditos, detém também 26% da AMCO Intermediários de Crédito, uma empresa que, além de actuar na intermediação de crédito e consultoria para negócios, tem também a compra e venda de imóveis como parte do seu objecto social.

    Andreia Neto ao lado de Luís Montenegro.

    O antigo secretário de Estado do Desporto, Emídio Guerreiro, também foi ‘apanhado’ no escrutínio do PÁGINA UM, por ter uma quota de 15% na empresa Sombras Viçosas. Criada em 2021 em Beja, a empresa dedica-se sobretudo à agropecuária, com olivicultura em destaque, mas surge também a incontornável “compra e venda de imóveis” no seu objecto social.

    O antigo presidente da Câmara Municipal de Óbidos, Telmo Faria, é outro deputado com uma ‘perninha’ no imobiliário. A empresa Carbono 21 tem uma forte presença no sector do turismo rural, mas lá aparece também, no objecto social, “a compra e venda de imóveis”. Porém, não havendo uma sem duas, o deputado social-democrata por Leiria ainda criou outra empresa em 2021, a Redsoul, com um vasto objecto social que termina com “compra e venda de imóveis”.

    Outros deputados do PSD com interesses directos ou indirectos no sector incluem Maurício Marques, ex-presidente da Câmara Municipal de Penacova, sócio da Vibrante Pulsar, que se dedica à promoção imobiliária e exploração de parques de energia renovável; e Carlos Eduardo Reis, deputado pelo círculo de Braga e proprietário da Abigiold Invest, empresa vocacionada para obras públicas e construção civil.

    Por fim, Almiro Moreira, deputado do PSD e funcionário do Instituto Nacional de Estatística (INE), detém uma participação simbólica na Parcelas & Asteriscos, empresa fundada em 2020 por Norberto Moreira, administrador da entidade proprietária da TSF. Embora a sua posição na sociedade seja de apenas 1%, a empresa tem um objecto social que inclui actividades de consultoria e assistência operacional a empresas e organismos públicos, bem como compra, venda e arrendamento de imóveis, além de consultoria fiscal e contabilidade.

    Emídio Guerreiro

    A dimensão e a profundidade das ligações dos deputados do PSD ao sector imobiliário levantam, assim, sérias questões sobre potenciais conflitos de interesse. Ainda que a legislação actual obrigue os deputados a declararem os seus interesses empresariais, esta não impede que possam beneficiar indirectamente de decisões políticas.

    O debate sobre a intersecção entre funções públicas e negócios privados reacende-se com estas novas revelações, podendo pressionar o PSD a clarificar a posição dos seus parlamentares sobre esta matéria. E sobretudo questionar a pertinência de uma injustificável alteração de uso do solo que apenas desestabilizou o mercado.

  • Boavista 3.0

    Boavista 3.0


    Deveria ser uma noite tranquila de futebol – e até foi – sem sobressaltos. Mas nunca é. O cronista que também é jornalista, que por sua vez é também director do próprio jornal, decidiu que merecia a ida ao Estádio da Luz ver o seu Benfica, escrevinhar a crónica e degustar o seu farnel.

    No entanto, o problema da multipersonalidade – que isto de dizer esquizofrenia já nem sei se se pode – impôs-se. Às oito da noite, quando a bola já rolava, o director entendeu que havia condições para cobrir, com urgência, a notícia explosiva sobre os negócios imobiliários de Hugo Soares que, no dia anterior, apontara o dedo ao Chega por interesses imobiliários, quando afinal tinha os seus próprios terrenos no jogo. E havia mais umas nuances. As empresas dos homens do Chega eram um hino à falta de cumprimento das regras de gestão; e até o presidente do Parlamento, José Pedro Aguiar-Branco, molhava o bico e tinha também a sua empresa imobiliária. E decidiu telepaticamente falar com o jornalista, que fez um bypass ao cronista.

    O director insistia. “Notícia para o Página Um, tem de ser hoje ainda!” — ordenava. O jornalista suspirava. O cronista tentava ignorar. Mas o director é teimoso. Assim, com o olhar intercalando entre o relvado e a timeline de um documento de texto, a crónica do jogo teve de ser intercalada com mais um caso de ‘normalidade política lusitana’, ou seja, mais um escândalo.

    Assim, enquanto à esquerda, Bruma – acho que era ele – lançava um sprint pela ala, à direita eu abria os registos empresariais de Hugo Soares. “Compra e venda de imóveis próprios ou alheios”. Pimba, mais um parágrafo. Cruzamento para a área, desvio de cabeça, defesa do guarda-redes. “Capital social de 5 mil euros transformado num pé-de-meia de 285 mil.” Será que o guarda-redes do Boavista, que fez defesas espectaculares – se calhar para impressionar o Preud’homme, velha estrela numa época em que o Benfica andou mal – também faz render assim os seus investimentos? Duvido.

    O Benfica marcou entretanto pelo italiano Belotti, mas a história mais dramática era a de Aguiar-Branco, que detém quase 40% de uma empresa do sector imobiliário. Para alguns, uma jogada legal. Para outros, um autogolo ético.

    Ao intervalo, entre uma trinca na maçã e um gole de água, a notícia já estava a meio. A segunda parte começou. Um cartão vermelho para um jogador do Boavista ajudou o Benfica, mas não a mim. O jornalista corria contra o tempo, mas o cronista teimava em rever na televisão o pisão do Miguel Reisinho ao Kökçü com a mesma atenção aos detalhes que dava ao RusticGate. Porque sim, a política e o futebol não são assim tão diferentes: ambos têm os seus protagonistas, os seus falhanços clamorosos e, claro, as suas infracções. O problema é que, na política, o VAR está a dormir.

    O segundo tempo caminhava para o fecho e a notícia precisava também de ser encerrada. Entre um contra-ataque perigoso e mais um remate defendido, surgiam os detalhes finais: a ligação entre os negócios imobiliários e os interesses políticos, os lucros que surgem do nada, os terrenos que mudam de valor por decisão legislativa. No ecrã do telemóvel, as últimas correcções. No campo, o Benfica tentava dilatar a vantagem. E eu? Eu tentava não perder o fio à meada.

    Foi então que o inevitável aconteceu. Golo! Pavlidis, vindo do banco, ampliava a vantagem para 2-0. E, no mesmo instante, o jornalista concluía o seu artigo: “No fim, todos ganham. Ou quase todos.” O director podia respirar aliviado. A manchete estava pronta. O cronista, por sua vez, olhava para o campo e pensava: “Mas será que algum dia eu vou poder simplesmente ver um jogo de futebol?”

    No final do jogo, com o Benfica a atropelar o Boavista por 3-0, o jornalista enviava a notícia para publicação. O director, satisfeito, desligava as notificações. E o cronista, esse, ficava a matutar: “Mas afinal quem é que marcou os golos desta noite? O Benfica ou os negócios imobiliários da política portuguesa?”

    Saí do estádio com essa dúvida a martelar na cabeça. No metro, olhei para os adeptos e ouvi as suas conversas. Alguns celebravam o resultado, outros lamentavam a falta de eficácia perante um checo que defendeu mais de 10 remates.

    Ninguém, obviamente, falava dos negócios imobiliários de Hugo Soares ou Aguiar-Branco. No país do futebol, os verdadeiros jogos jogam-se nos bastidores, com jogadas bem mais sofisticadas do que um contra-ataque bem desenhado.

    Cheguei ao PÁGINA UM ainda a tempo de umas arrumações para receber uns amigos, para uma conversa sobre a vida, a inteligência artificial e ideias para este jornal. E a crónica desta A Varanda da Luz fica assim, hoje, algo esquisita. É a vida. Importante, sim, é que foi um dia triplamente ganho, não fosse o Benfica espetar 3-0 ao Boavista.

  • Os 10 Mandamentos da especulação imobiliária e dos expedientes políticos

    Os 10 Mandamentos da especulação imobiliária e dos expedientes políticos


    Não é de hoje. A especulação imobiliária e a transformação de terrenos rústicos em urbanizáveis sempre foram verdadeiras minas de ouro para quem, nos meandros políticos, sabe navegar entre o Governo e a Assembleia da República, que fazem as leis e aprovam planos de ordenamento, e o mundo autárquico, que delimita áreas urbanizáveis e aprova os licenciamentos. Desde os anos 80, nos primórdios dos planos directores municipais (PDM), sob a aparência de desenvolvimento e progresso, bem como da necessidade de habitações, muitos empresários e políticos unem esforços para valorizar terrenos que, antes, valiam o preço da uva mijona. O segredo? Um jogo bem montado de influência, legislação e oportunidades bem aproveitadas.

    A especulação imobiliária baseada na reclassificação de terrenos é um dos negócios mais lucrativos para quem souber movimentar-se nos bastidores da política, combinando informação privilegiada, boas relações com o poder local e uma estrutura bem montada de influências e intermediação.

    Aqui ficam os Dez Mandamentos que sempre regeram este lucrativo negócio, sendo que a recente alteração da Lei dos Solos, que já fez subir os preços dos terrenos rústicos, é mais um capítulo da promíscua ligação entre o imobiliário e a política lusitana.

    1 – Amarás a informação privilegiada acima de todas as coisas

    O primeiro passo para o sucesso na especulação imobiliária é saber antes dos outros onde o dinheiro vai brotar. Se um município está prestes a rever o seu Plano Director Municipal (PDM) ou a alterar o perímetro urbano das cidades, vilas e aldeias, há que garantir que a informação chega primeiro aos interessados certos. Ligações próximas com vereadores do urbanismo, arquitectos municipais ou até membros de gabinetes governamentais são essenciais. O segredo do lucro está em comprar, aos proprietários papalvos de prédios rústicos, antes da valorização ser pública.

    A river running through a small town next to a hillside

    2 – Não tomarás o nome da transparência em vão

    O discurso oficial tem de ser sempre exemplar. Para evitar desconfianças, é fundamental defender publicamente boas práticas de ordenamento do território, sustentabilidade e desenvolvimento equilibrado, e, sobretudo, invocar o direito constitucional à habitação. Nos bastidores, no entanto, a actuação deve ser outra: pressão sobre técnicos municipais, negociações de bastidores e uma gestão “criativa” das normas ambientais e urbanísticas. O importante não é o que se faz, mas sim o que se aparenta fazer.

    3 – Santificarás as boas relações com autarcas

    Sem apoio político, não há reclassificação de terrenos. O jogo é simples: os autarcas precisam de financiamento para as suas campanhas, e os promotores imobiliários precisam de decisões favoráveis. Jantares estratégicos, promessas de futuros cargos ou simples favores pessoais criam uma teia de interesses mútuos. Um presidente de câmara ou um vereador do urbanismo alinhado pode valer milhões em mais-valias.

    a house in a field with a tree in the foreground

    4 – Honrarás os técnicos municipais e consultores

    A burocracia pode ser um entrave, mas também um grande aliado. O segredo está em ter nos quadros (ou no bolso) engenheiros, arquitectos, advogados especializados em ordenamento do território e, sobretudo, deputados e até governantes com empresas de consultoria de objecto social ambíguo. São eles que irão justificar, com argumentos técnicos e pareceres “científicos”, a necessidade de alterar a classificação de um terreno de cabras para área urbanizável essencial ao progresso da Nação. Sem um parecer bem fundamentado, nenhuma decisão política pode ser tomada – e é aqui que entra a influência sobre os profissionais da área.

    5 – Não darás parte de fraco nas negociações

    Antes da reclassificação, os terrenos rústicos devem ser adquiridos pelo menor preço possível. Os pequenos proprietários rurais, muitas vezes sem noção do verdadeiro potencial da terra, devem ser convencidos de que, se não aceitarem valores irrisórios, perdem uma oportunidade de vida. Pressionar, oferecer valores aparentemente vantajosos ou até recorrer a intermediários que escondam a identidade dos verdadeiros compradores são práticas que devem ser implementadas. Depois, quando a reclassificação ocorrer e o preço disparar, os intermediários usados jamais atenderão o telefone aos pobres vendedores ludibriados.

    A view of a city from a hill

    6 – Não ficarás preso a uma só estratégia

    Quando a alteração do uso do solo ou a expansão dos perímetros urbanos se mostrar difícil ou demorada, há sempre alternativas. Pode-se convencer o presidente da câmara e os autarcas a elaborarem Planos de Pormenor, Unidades de Execução ou a autorizarem pela via do “interesse público” para contornar obstáculos administrativos. Em casos mais complexos, nada como recorrer a lobbies e advogados influentes para encontrar brechas legais que permitam a reclassificação. A chave é nunca desistir à primeira barreira.

    7 – Não levantarás suspeitas desnecessárias

    Esconder os rastos é essencial. Para evitar que se perceba quem realmente lucra, utilizam-se sociedades offshore, empresas-fantasma ou testas-de-ferro para as compras iniciais de terrenos valorizados pela alteração do uso do solo. O verdadeiro dono do terreno só aparece mais tarde, talvez um fundo de investimentos – que melhor esconde os titulares de unidades de participação – quando os terrenos já estiverem valorizados e prontos para serem vendidos para construção imobiliária. Quanto menos ligações directas houver entre o político que aprovou a reclassificação e o beneficiado, melhor.

    brown long coated dog on brown wooden door

    8 – Não cobrarás dividendos de forma directa

    Lucros imediatos podem ser tentadores, mas os verdadeiros mestres da especulação sabem que a paciência paga melhor. Em vez de apenas vender terrenos valorizados, aproveitam-se oportunidades como adjudicações de obras públicas, concessões de exploração ou parcerias público-privadas, ou então contratos fictícios de empresas de consultoria que nem site ou funcionários de jeito precisam de possuir para facturarem bem. Muitas vezes, os verdadeiros lucros surgem anos depois, sob a forma de contratos vantajosos para empresas ligadas aos envolvidos.

    9 – Não desejarás o escândalo, mas estarás preparado

    Por mais discreta que seja a operação, há sempre o risco de um jornalista incómodo ou de um rival político levantar suspeitas. Nesses casos, a estratégia é clara: negar tudo, desvalorizar as acusações, clamar transparência, invocar a família e o futuro dos filhos, e alegar com fervor que a decisão seguiu todos os trâmites legais. Se necessário, recorre-se à velha desculpa da “cabala política” ou da “perseguição ideológica” para descredibilizar qualquer investigação.

    a house with a pool in the yard

    10 – Não cobrarás o lucro apenas uma vez

    Depois da valorização inicial, o jogo ainda não acabou. Quem domina o sector e os esquemas sabe que há sempre mais dinheiro a ganhar. Uma vez urbanizado, o terreno pode ser vendido para construção, os edifícios podem ser arrendados ou revendidos, e novas licenças podem ser obtidas para aumentar ainda mais o valor das propriedades. Assim, deves criar uma empresa de gestão de escritórios, de condomínios e até de limpezas. O ciclo da especulação é infinito para quem sabe aproveitar todas as oportunidades.

  • ‘Beija-mão’ do líder da Marinha no Supremo Tribunal Administrativo causa mal-estar

    ‘Beija-mão’ do líder da Marinha no Supremo Tribunal Administrativo causa mal-estar

    É um dos princípios mais óbvios, mas sagrados, de uma democracia e do Estado de Direito: a separação de poderes, garantindo que as funções legislativa, executiva e judicial actuem de forma independente. Nos tribunais administrativos, essa equidistância é ainda mais essencial, dada a necessidade de assegurar que todas as partes, desde o mais simples funcionário até ao mais alto dirigente, sejam tratadas em igualdade de condições.

    Nesse contexto, um encontro entre o presidente do Supremo Tribunal Administrativo (STA), Jorge Aragão Seia, e o Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), Almirante Nobre de Sousa, está a causar estupefacção entre os advogados dos militares castigados pelo antigo líder da Marinha, Almirante Gouveia e Melo, cujos processos ainda estão a ser dirimidos na mais alta instância da justiça administrativa, depois da derrota da Marinha no Tribunal Central Administrativo do Sul.

    O presidente do Supremo Tribunal Administrativo (STA), Jorge Aragão Seia, recebeu o Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA) em audiência para “apresentação de cumprimentos”. Prática similar ao ‘beija-mão’ da Monarquia pode conflituar com a equiistância exigida no Estado de Direito.

    Divulgada numa nota oficial do STA, acompanda por uma foto de Aragão Seia e Nobre de Sousa, lado a lado, em pose descontraída e sorridente, o encontro no passado dia 6, terá tido como objectivo a “apresentação de cumprimentos”, sem indicação do tempo e assuntos tratados, mas a situação causa estranheza, especialmente num momento delicado em que este tribunal superior está a analisar processos sensíveis relacionados com decisões da Marinha, incluindo as do anterior CEMA, Almirante Gouveia e Melo. Uma audiência formal para “apresentação de cumprimentos” constitui, nos tempos modernos, o equivalente cerimonial do “beija-mão” das monarquias, onde se prestava vassalagem para receber posteriormente benefícios.

    Recorde-se que, em Dezembro passado, o Tribunal Central Administrativo do Sul decidiu anular a decisão da Marinha, confirmada por Gouveia e Melo, de suspender 11 militares do Navio da República Portuguesa (NRP) Mondego. O acórdão, que deixava o putativo candidato a Belém numa posição pouco digna, mostrava assim que havia motivos para os militares terem recusado cumprir, em Março de 2023, por falta de condições, a missão de acompanhamento de um navio russo a norte da ilha de Porto Santo, no arquipélago da Madeira. O caso envolveu quatro sargentos e nove praças.

    Além de apontar várias falhas processuais, incluindo não ter sido concedido o direito ao contraditório, o TCAS referiu que um oficial que participara na instrução do processo disciplinar esteve também envolvido na cadeia de eventos do NRP Mondego, algo que não devia ter ocorrido, mas que Gouveia e Melo aceitou. Aliás, o antigo Chefe do Estado-Maior da Armada mostrou, desde o primeiro momento do incidente, uma vontade inabalável de castigar os militares, tendo mesmo dado uma repreensão pública para as televisões gravarem.

    Supremo Tribunal Administrativo vai decidir se castigos de Gouveia e Melo se mantêm, depois do Tribunal Central Administrativo do Sul os ter anulado m Dezembro do ano passado.

    O processo subiu agora ao Supremo Tribunal Administrativo – e é por esse motivo que os advogados dos militares se mostram estupefactos com esta audiência, apresentada como se fosse um encontro para um “chá das cinco” ou um “beija-mão” entre um supremo juiz conselheiro e um almirante de quatro estrelas.

    “À Justiça não basta ser, tem também de parecer ser!”, salientou ontem o advogado Garcia Pereira na rede social Facebook, acrescentando que “estando pendentes no STA vários recursos em que a Marinha é parte directamente interessada, entre os quais os dos militares do [NRP] Mondego, o respectivo Presidente concede uma audiência ao CEMA, o chefe máximo da Marinha?! Porquê e para quê??!!”

    Com efeito, a nota do STA nada mais diz sobre os assuntos nem a duração dessa audiência de apresentação de cumprimentos. Certo é que, não sendo inéditos, estes encontros são bastante raros, pelo menos a atender às frequentes notas de imprensa do STA, onde se destacam os encontros e audiências deste tribunal. Analisando todas as notas de imprensa desde 2017, verifica-se que nunca um presidente do STA recebeu o líder da Marinha em audiência para “apresentação de cumprimentos”. Encontra-se apenas uma audiência similar em Abril de 2023 com o Chefe do Estado-Maior do Exército e outras duas com o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, em Abril de 2023 e em Novembro de 2018.

  • Afinal, até Hugo Soares e Aguiar-Branco têm empresas do sector imobiliário

    Afinal, até Hugo Soares e Aguiar-Branco têm empresas do sector imobiliário

    Num cenário onde a credibilidade política se tem esvaído ao sabor dos conflitos de interesse e promiscuidades em redor da alteração da Lei dos Solos – com a possibilidade arbitrária de se transformar terrenos rurais pouco valorizados em áreas urbanizáveis de elevado valor, criando-se mais-valias de um dia para o outro –, ontem aplicou-se, durante o debate da moção de censura do Chega, um adágio: “fala o roto do nu”.

    Hugo Soares defendeu Luís Montenegro e acusou deputados do Chega de ter imobiliárias. Afinal, com a sua mulher, também detém uma consultora que também compra e vende imobiliário.

    Com efeito, depois de o secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, Hernâni Dias, se ter demitido após se saber que criara duas empresas imobiliárias; depois da revelação da existência de uma empresa familiar de consultadoria (a Spinumviva) de Luís Montenegro e dos seus terrenos rurais; depois de o ministro da Coesão Territorial ter confessado que vendera recentemente a sua quota de uma empresa imobiliária; e depois de a ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, e da ministra do Trabalho, Maria do Rosário Palma Ramalho, também terem entrado no lote de “governantes imobiliários”, eis que surgiu o contra-ataque: afinal, até no Chega havia deputados “promíscuos”. E logo quatro.

    Na verdade, eram três – como mais tarde se corrigiu –, porque a empresa do deputado Pedro Pessanha (a PP Gest) foi entretanto dissolvida. E a empresa de José Dias Fernandes estará sedeada em França – portanto, sem benefícios directos na Lei dos Solos. Mas duas sempre são duas, claramente na área do imobiliário. Mas esse nem é o maior “problema” descoberto pelo PÁGINA UM.

    No caso da empresa unipessoal do deputado Filipe Melo, foi criada em Braga no final de 2016, com um capital de 5.000 euros, e no seu objecto social incluem-se “actividades de consultoria para os negócios e a gestão; realização de créditos [dentro de limites legais]; promoção imobiliária; e compra e venda de imóveis”.

    Aguiar-Branco tem uma participação de quase 40% de uma empresa do sector imobiliário.

    Mas as actividades desta empresa – formalmente denominada António Filipe Dias Melo Peixoto, Unipessoal, Lda. – são completamente desconhecidas. O deputado do Chega não entregou a Informação Empresarial Simplificada (IES) de 2016, 2017, 2018, 2019, 2020, 2021, 2022 e 2023 – são oito anos de actividade “fantasma”, que lhe poderão custar multas e vistorias da Autoridade Tributária.

    Quanto à empresa de Felicidade Vital, denominada LXDomi, foi criada também em 2016, tendo a deputada do Chega quotas de 75% com o seu marido, e tem “apenas” um ano de atraso na entrega do IES. Em todo o caso, nas demonstrações financeiras de 2022 consultadas pelo PÁGINA UM, a LXDomi registou uma actividade residual, com prestação de serviços de 18.300 euros, e até está em falência técnica, com capitais próprios negativos de 6.655 euros.

    Mas se o partido de André Ventura não sai nada bem na “fotografia” deste RusticGate, pior fica o denunciador das “promiscuidades imobiliárias” do Chega: Hugo Soares, o líder parlamentar dos sociais-democratas que ontem solicitou ao presidente do Parlamento, Aguiar-Branco, a divulgação dos interesses empresariais de Filipe Melo, Pedro Pessanha, Felicidade Vital e José Dias Fernandes.

    E porquê?

    Alteração da Lei dos Solos do Governo Montenegro está férida de morte com tantas polémicas, mas o RusticGate revela sobretudo negócios de ‘part time’ pouco transparentes dos políticos.

    Porque, e parecendo uma triste anedota, tanto Hugo Soares como José Pedro Aguiar-Branco são de empresas com actividade no sector imobiliário. Com efeito, Hugo Soares, bastante próximo de Luís Montenegro, criou em 2020 a Capítulo Universal com a sua mulher, Patrícia Lopes Mendes. Com um capital social de 5.000 euros, a empresa começou por estar sedeada em Caminha, mas mudou-se entretanto para Braga. E tem um objecto social quase decalcado da Spinumviva: além de actividades de consultoria, surge a inevitável “gestão e comércio de bens imóveis próprios ou de terceiros, incluindo a compra para revenda”.

    A empresa de Hugo Soares não tem facturado tanto como a de Luís Montenegro, mas aparenta ser um bom “pé-de-meia”. Nas últimas contas apresentadas, a Capítulo Universal facturou 164.000 euros – nem um cêntimo a mais nem a menos – e um lucro de quase 69 mil euros, tendo Hugo Soares declarado que recebeu 19 mil euros como gerente. Sem distribuição de lucros – para não haver aplicação de impostos –, o presidente do grupo parlamentar do PSD tem lucros acumulados de cerca de 285 mil euros, um pecúlio de quatro anos bastante razoável para quem investiu cinco mil euros.

    Quanto a Aguiar-Branco, conhecido pela sua actividade de advogado, também mete o dedo no imobiliário. De entre as três empresas em que declara participações, uma delas – a Portocovi – tem actividade no sector imobiliário. Com uma participação minoritária do social-democrata (38,97%), a Portocovi tem sede em Lisboa, um capital próprio de 29 mil euros e no seu objecto social está “a compra e venda de bens móveis e imóveis, arrendamento, gestão e administração de bens próprios ou alheios e prestação de serviços”.

    Extracto do registo da Capítulo Universal, detida por Hugo Soares e a sua mulher, onde consta a “gestão e comércio de bem imóveis próprios ou de terceiros”.

    Na análise às demonstrações financeiras feita pelo PÁGINA UM, esta empresa não tem uma elevada facturação (63.200 euros em 2023), mas acumula lucros de quase 195 mil euros. Na aparência, tendo em conta que lhe foi entretanto “associado” um activo fixo tangível de 631 mil euros (um imóvel) com o correspondente empréstimo bancário de 391 mil euros, a Portocovi servirá sobretudo para obter benefícios fiscais, por via das depreciações e gastos com juros. Este tem sido, aliás, um expediente legal de muitos políticos e empresários, pelos benefícios fiscais que incorpora, mas também constitui um risco se houver falência.

    Seja como for, a ‘colecção’ de políticos de quase todos os quadrantes com interesses imobiliários coloca a alteração da Lei dos Solos a caminho de uma ‘morte certa’, excepto, claro, se a impunidade política já estiver bem enraizada numa sociedade passiva e dócil. Até porque, na verdade, os bons negócios não são os que se fizeram antes da alteração da Lei dos Solos, mas sim aqueles que se preparam agora. No urbanismo, não se enriquece demasiado construindo onde antes se podia construir, mas sim construindo onde antes não se podia construir.

  • Instituto Superior Técnico ‘marimba-se’ para acórdão sobre ‘esboços embrionários que consubstanciam meros ensaios para eventuais relatórios’

    Instituto Superior Técnico ‘marimba-se’ para acórdão sobre ‘esboços embrionários que consubstanciam meros ensaios para eventuais relatórios’

    Rogério Colaço, o presidente do Instituto Superior Técnico (IST), não cumpriu o acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul (TCAS), que determinou a obrigatoriedade de disponibilizar os 51 relatórios relacionados com a pandemia da covid-19 que aquela instituição universitária terá elaborado em 2021 e 2022 para continuar a alimentar o alarmismo numa fase em que o SARS-CoV-2 se encontrava em fase endémica.

    O acórdão do TCAS é de 12 de Dezembro passado e já transitou em julgado, sem que Rogério Colaço, que desde o início do processo deu indicações de prepotência, tenha enviado os relatórios sobre Epidemiologia por si coordenados em articulação com uma suposta equipa científica credível constituída por  Pedro AmaralJosé Rui FigueiraHenrique Oliveira e Ana Serro. Os relatórios surgiram de uma parceria com a Ordem dos Médicos, então liderada por Miguel Guimarães, actual vice-presidente do Grupo Parlamentar do PSD,

    Rogério Colaço, cidadão português nascido em Soure em Junho de 1968, conjunturalmente presidente do Instituto Superior Técnico, não quer entregar ‘a bem’ 51 relatórios elaborados por uma instituição universitária pública, ao cidadão Pedro Almeida Vieira, nascido em Coimbra em Novembro de 1969, conjunturalmente director do jornal PÁGINA UM.

    Um dos dois únicos relatórios científicos conhecidos, divulgado em Julho de 2022, chegava a afirmar que as festas populares e festivais de música em Lisboa estariam “na origem de 340 mil casos de covid-19” que teriam causado “a morte de 790 pessoas”. A credibilidade científica destes relatórios, ainda mais de uma instituição pública com pergaminhos, era muito questionável – e o IST fez de tudo para que o PÁGINA UM não tivesse acesso aos relatórios que foram ‘semeando’ pânico com ares de Ciência.

    Após uma recusa por mensagem de smartphone do presidente do IST, o PÁGINA UM recorreu ao Tribunal Administrativo que, numa primeira decisão, em Janeiro de 2023, reconheceu o direito do PÁGINA UM ao acesso ao chamado “Relatório 52”, mas não se pronunciou sobre os restantes 51 relatórios e os ficheiros de dados utilizados nas análises. A decisão foi contestada por ambas as partes: o IST argumentava que não havia prova da existência dos relatórios anteriores – mesmo se numerara os dois únicos relatórios conhecidos com os números 51 e 52 –, enquanto o PÁGINA UM defendeu que todos teriam de ser divulgados.

    A luta judicial chegou a ter contornos constrangedores – e também confrangedores, por se tratar do IST –, pois ao contrário de se seguir o espírito científico de tudo se mostra, fez-se ao contrário. Para evitar o acesso, a instituição liderada por Rogério Colaço ‘inovou’ pelo absurdo: considerou, em finais de Setembro de 2022, que aquilo que fora divulgado seria “um esboço embrionário, que consubstancia[va] um mero ensaio para um eventual relatório”. A intenção era clara: convencer o tribunal a não se aplicar a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos. Pouco mais tarde, ainda em sede de processo de intimação, o IST diria que nunca negara “ter elaborado um ensaio, apenas afirm[ara] que não se tratava do produto final do estudo, mas uma mera abordagem embrionária, por isso era um esboço”. E acrescentava que o seu “esboço”, que associou mortes às festividades de Junho, “pode[ria] não conter informações exactas e precisas.”

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes na sede da Ordem dos Médicos, em Julho de 2021, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico recusou divulgar os relatórios em 2022. E ignora agora perante um acórdão.

    Nunca tendo feito mea culpa por ter andado a lançar desinformação científica com chancela universitária, o presidente do IST continuou a lutar com o recurso para não dar os restantes 51 relatórios, cuja existência formal está até em causa, o que acarretaria, além de falta de integridade académica, uma situação compaginável com manipulação de dados e mesmo fraude científica.

    No acórdão de Dezembro passado do TCAS, mais de dois anos e cinco meses após o pedido inicial, os juízes desembargadores concluíram que a sequência numérica indicava logicamente a existência dos 51 relatórios anteriores. O tribunal rejeitou ainda a alegação do IST de que os documentos seriam “esboços embrionários”, afirmando que os relatórios, independentemente do seu carácter preliminar, são documentos administrativos sujeitos a divulgação.

    No entanto, a decisão judicial isentou o IST da obrigação de fornecer os ficheiros de dados utilizados na elaboração dos relatórios, argumentando que o pedido formulado pelo PÁGINA UM não especificava suficientemente a origem e o formato dos ficheiros. Esta interpretação é, no mínimo, questionável, uma vez que qualquer estudo quantitativo requer necessariamente um conjunto de dados para sustentar as suas conclusões.

    Rogério Colaço é professor catedrático e autor de um romance de ficção científica. E é ainda co-autor de 52 relatórios que não se sabe se são científicos, porque não os quer mostrar, apesar de um acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul.

    Uma vez que o IST não cumpriu o prazo para entrega dos relatórios, nem recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo, o processo seguirá agora para uma execução de sentença com pedido para ser aplicada uma sanção pecuniária compulsória contra Rogério Colaço, ou seja, uma multa diária a pagar directamente pelo presidente do IST por cada dia de atraso.

    Foi essa, aliás, a única forma legal que permitiu que, recentemente, o presidente do Conselho Superior da Magistratura disponibilizasse os relatórios da inspecção à distribuição da Operação Marquês. Sob os bolsos de João Cura Mariano, também presidente do Supremo Tribunal de Justiça, pendia uma multa diária de 50 euros. Caso Cura Mariano preferisse pagar, seriam cerca de 1.500 euros por mês a decontar do seu salário bruto de 7119, 50 euros.


    N.D. Os processos de intimação do PÁGINA UM são financiados pelos leitores através de donativo dirigidos em exclusivo ao FUNDO JURÍDICO, usando a plataforma do MIGHTYCAUSE. Se preferir usar outros meios, agradecíamos um aviso para procedermos ao depósito na plataforma. Se necessitar de esclarecimentos, escreva-nos para geral@paginaum.pt.


    Esta notícia foi objecto de um direito de resposta publicado a 28 de Fevereiro de 2025, cujo texto pode ser lido AQUI.

  • Luís Montenegro tem 87.210 metros quadrados de prédios rústicos em pleno Parque Natural de Montesinho

    Luís Montenegro tem 87.210 metros quadrados de prédios rústicos em pleno Parque Natural de Montesinho

    O primeiro-ministro Luís Montenegro possui 46 prédios rústicos na freguesia do Rabal, em pleno Parque Natural de Montesinho, e pode vir a beneficiar economicamente da alteração da Lei dos Solos, que permite, em determinadas condições, que as autarquias autorizem construções. O líder do Governo possui ainda, além de cinco prédios urbanos, incluindo a polémica vivenda em Espinho, mais três prédios rústicos na freguesia de Barro, no concelho de Resende, um dos quais um terreno de 4,5 hectares, com cultura de regadio, uma vinha, pastagens, mato e árvores de fruto.

    O Parque Natural de Montesinho, criado em 1979, é um santuário natural e uma das mais extensas áreas protegidas de Portugal, estendendo-se por 75 mil hectares nos concelhos de Bragança e Vinhais, com uma paisagem diversificada, onde se alternam serras, vales profundos e vastos planaltos, moldados por uma interação secular entre a Natureza e as práticas agrícolas tradicionais. Além de bem preservados carvalhais, predominam bosques de castanheiros e azevinhos. Porém, no seu mosaico de habitats habitam importantes populações de lobo ibérico, símbolo da região, de corço e da lontra, para além de águia-real, tartaranhão-azulado e picanço-real.

    Luís Montenegro herdou terrenos do avô e pai, naturais desta aldeia de Bragança.

    De acordo com a declaração do primeiro-ministro na Entidade para a Transparência – que agora é responsável por disponibilizar informações sobre o património e rendimento de titulares de cargos –, as 46 parcelas que Montenegro possui no concelho de Bragança não se destacam pelo seu valor patrimonial nas Finanças, que historicamente têm valores simbólicos. Com efeito, na zona de Montesinho, os valores patrimoniais estão compreendidos entre os 10 cêntimos, numa parcela de apenas 90 metros quadrados, e os 86,1 euros, para uma parcela de 5.400 metros quadrados (um pouco mais de meio hectares).

    Contudo, se se considerar as parcelas de Montenegro naquela área protegida – todas de uso ‘passivo’, ou seja, são pastagens, lameiros ou áreas de arvoredo –, identificam-se várias com potencial de uso urbano, se se considerar a possibilidade de transformar prédios rústicos em áreas urbanizáveis.

    De facto, de entre as 46 parcelas em Rabal, o PÁGINA UM identificou 29 com uma superfície susceptível de se poder edificar uma vivenda de mais de 150 metros quadrados com um índice de construção de 0,20. Isto porque, no lote de parcelas, ainda existem algumas que, no sistema de minifúndio daquela região transmontana, ‘exibem’ áreas consideráveis, havendo oito maiores do que meio campo de futebol. A parcela maior nesta zona tem 9.900 metros quadrados (quase um hectare).

    Na zona de Resende, além do terreno agrícola de 4,5 hectares, Luís Montenegro tem uma pequena vinha de 470 metros quadrados e uma área de pastagem com oliveiras e vinha de 1.480 metros quadrados.

    Embora os preços dos terrenos não urbanizáveis e urbanizáveis em zonas periféricas, como as localizadas em aldeias do concelho de Bragança, não tenham um preço de mercado similar aos de zonas urbanas, em consulta de sites imobiliários os preços podem variar numa proporção de 1 para 2. Ou seja, a ‘migração’ administrativa do uso de solo rural para solo urbano duplica o preço, podendo atingir nesta região entre os 5 e os 10 euros por metro quadrado.

    O somatório das áreas das parcelas de Luís Montenegro no Parque Natural de Montesinho atinge os 87.210 metros quadrados. Não existem garantias de que toda esta área seja convertível em solo urbanizável, uma vez que a alteração da Lei dos Solos somente permite que tal ocorra nos perímetros das aldeias. Ou seja, o potencial de alteração depende da localização em concreto dos prédios rústicos. Saliente-se que, ao contrário da sua atitude quando apenas deputado e presidente do PSD, Luís Montenegro não solicitou que a Entidade da Transparência apagasse a inscrição matricial dos prédios rústicos e urbanos de que é proprietário.

    Parque Natural de Montesinho no Inverno.

    Carlos Aguiar, professor no Instituto Politécnico de Bragança, salienta que nesta zona do Parque Natural de Montesinho, a procura e a oferta de terrenos não segue a linha do mercado das cidades. “É mais uma questão de oportunidade, de alguém que quer vender e alguém que aparece a querer comprar”, salienta, manifestando críticas à alteração da Lei dos Solos por não resolver os problemas da habitação e somente ir buscar áreas com potencial agrícola.

    “Pelo facto de determinadas zonas não terem agora uso agrícola, não lhes retira valor; pelo contrário, constitui uma reserva para o futuro, que não apenas se preserva mas que até melhora a fertilidade”, diz Carlos Aguiar.


    N.D: Pelas 22:55 fez-se o seguinte acrescento: “Não existem garantias de que toda esta área seja convertível em solo urbanizável, uma vez que a alteração da Lei dos Solos somente permite que tal ocorra nos perímetros das aldeias. Ou seja, o potencial de alteração depende da localização em concreto dos prédios rústicos.”

  • Quem tem medo da Inteligência Artificial no Jornalismo?

    Quem tem medo da Inteligência Artificial no Jornalismo?


    Houve um tempo em que os pintores eram também alquimistas, misturando substâncias raras e perigosas para criar os seus próprios pigmentos. Um azul profundo exigia a trituração minuciosa do lápis-lazúli, uma pedra semipreciosa trazida do Oriente, e um branco puro requeria chumbo submetido a um processo químico prolongado e tóxico. O pintor não era apenas um artista: era um químico improvisado, um operário da sua própria paleta, um artesão obrigado a desviar-se do que realmente importava – o acto de pintar – para assegurar que as suas cores tivessem a intensidade e a durabilidade desejadas.

    Com o tempo, essa necessidade desapareceu. A evolução dos pigmentos sintéticos permitiu que os artistas pudessem concentrar-se naquilo que realmente importava: a concepção e a execução das suas obras. E, no entanto, a arte não perdeu nada da sua profundidade nem da sua beleza. Pelo contrário, com o fardo da manufactura das cores retirado dos seus ombros, os pintores puderam explorar novas técnicas, novos estilos, novas formas de expressão. Michelangelo, Caravaggio, Rembrandt, Velázquez, Goya, van Gogh ou Cézanne não teriam sido piores artistas se tivessem tintas pré-fabricadas. Pelo contrário, poderiam ter-se dedicado ainda mais à sua arte sem os incómodos da elevada toxicidade das tintas que afectaram (e mataram) muitos pintores. Ou a dedicarem mais tempo a simplesmente contemplar a vida. O génio não reside no método, mas na visão.

    white robot wallpaper

    Um paralelismo se pode fazer com todos os avanços tecnológicos – que só o são verdadeiramente quando criam rupturas, quando desconstroem paradigmas estabelecidos e impõem novas formas de pensar, produzir e interagir com o mundo. De nada serve uma inovação que apenas aprimora o que já existe sem desafiar a estrutura vigente; o verdadeiro avanço é aquele que obriga a Humanidade a reconsiderar o que tomava como certo, abrindo caminho para novas possibilidades e, inevitavelmente, novas resistências.

    A Inteligência Artificial, democratizada em aplicativos, mais do que uma inovação é uma revolução, que, em todo o caso, causa compreensivas apreensões e dilemas. Por exemplo, no caso do Jornalismo, há quem tema que as ferramentas de Inteligência Artificial transformem a informação num produto padronizado, numa sequência interminável de notícias indistintas, redigidas sem alma, sem contexto, sem aquela centelha que distingue um jornalista talentoso de um vulgar reprodutor de comunicados de imprensa.

    Mas este receio, embora natural, ignora a essência do verdadeiro Jornalismo e a perspicácia e espírito crítico dos leitores a médio e longo prazo. Porque, tal como um mau pintor não se torna um mestre por ter acesso às melhores e pré-fabricadas tintas, um mau jornalista não se tornará excelente apenas porque tem à sua disposição um assistente de inteligência artificial.

    selective focus photography of people sitting on chairs while writing on notebooks

    Obviamente, é inegável que a Inteligência Artificial levanta questões prementes sobre ética e controlo da informação. Quem programará as ferramentas que auxiliam os jornalistas? Com que critérios serão filtrados os dados e seleccionadas as fontes? Ora, sabemos que o risco de enviesamento algorítmico é real, e um jornalismo excessivamente dependente de automatismos pode tornar-se vulnerável à censura subtil e à manipulação encapotada. Mas a comodidade da tecnologia não pode ser desculpa para se abdicar do escrutínio editorial humano, sob pena de transformarmos o jornalismo numa ilusão de objectividade, quando, na verdade, apenas reflectirá os preconceitos embutidos nos sistemas que o regem.

    A Inteligência Artificial não substitui a inteligência humana – reforça-a. Potencia-a. Estimula-a. Aquilo que separa o grande jornalista do medíocre não é a ferramenta, mas a forma como a utiliza. A Inteligência Artificial pode estruturar dados, sintetizar informações dispersas, organizar fontes, até sugerir ângulos de abordagem, mas não pode compreender aquilo que torna uma história realmente relevante. Não pode substituir o faro de um repórter experiente, a intuição de quem percebe que a verdadeira notícia não está na declaração oficial, mas naquilo que não foi dito. Não pode replicar a ironia subtil de um grande cronista, nem a acutilância de um editorial bem elaborado. Pode, no entanto, libertar os jornalistas de tarefas mecânicas e repetitivas, permitindo que se concentrem naquilo que realmente importa: investigar, interpretar, analisar.

    Tal como no xadrez, o jogo não termina simplesmente quando os programadores conseguem construir um computador capaz de vencer um campeão mundial. Pelo contrário, a Inteligência Artificial cria sim, com essa vitória, um novo desafio: o de superar a própria máquina, de aprender com ela, de atingir um novo nível de jogo, antes inimaginável. O jornalismo não é diferente. Se o objectivo fosse apenas o de produzir notícias padronizadas, os algoritmos já o fariam sem qualquer necessidade de supervisão humana.

    A computer circuit board with a brain on it

    Mas a questão não é essa. O verdadeiro desafio não está em criar máquinas que produzam textos indistintos, mas sim em proporcionar aos jornalistas as ferramentas para que possam elevar a sua arte a um nível superior.

    O perigo do Jornalismo jamais estará na inteligência artificial, mas na mediocridade humana. O jornalismo, como qualquer forma de criação intelectual, depende da capacidade crítica, da curiosidade, do espírito analítico. O mau jornalismo não nasce da automação, mas da preguiça, da complacência, da falta de rigor e de ética. Se há algo a temer no Jornalismo, não é o uso da Inteligência Artificial, mas sim o uso passivo e acrítico que dela se possa fazer. Se os jornalistas aceitarem que a máquina pense por eles, se se limitarem a reproduzir textos gerados automaticamente sem questionar, sem interpretar, sem acrescentar valor, então não será a Inteligência Artificial a culpada pelo declínio do Jornalismo – mas sim os próprios jornalistas.

    Assim, tal como os pintores do passado souberam tirar partido dos avanços da química sem comprometer a sua identidade artística, também os jornalistas – que já contaram com o auxílio da máquina de escrever, dos gravadores, da rádio, da televisão, da Internet e de inúmeras outras ferramentas – devem encarar as novas tecnologias não como substitutos da sua essência profissional, mas como instrumentos que potenciam a acuidade da investigação, a profundidade da análise e a clareza da comunicação. Até porque não são as tecnologias que interferem com o rigor e a independência crítica que definem o verdadeiro jornalismo.

    a group of white robots sitting on top of laptops

    O grande jornalista do futuro não será aquele que rejeita a tecnologia por medo ou por atávico purismo, mas sim aquele que a domina, que a molda aos seus propósitos, que a usa para expandir os limites daquilo que é possível fazer. A Inteligência Artificial não apagará o talento, a intuição ou a visão crítica – será um estímulo para que cada jornalista vá mais longe, investigue melhor, escreva com mais profundidade e precisão.

    Por isso, o jornalismo do futuro não será feito por máquinas; continuará a ser feito pelos humanos – talvez menos, certo –, por aqueles e aquelas que souberam integrar a Inteligência Artificial no seu processo criativo, tal como os mestres da pintura aprenderam a usar os pigmentos modernos sem perder o toque de génio que distingue uma obra-prima de um exercício técnico. O Jornalismo, afinal, é uma arte. E como em qualquer arte, o que conta não é a ferramenta – é quem a utiliza.

  • Moreirense 3.2 (antecedido de Mónaco 3.3)

    Moreirense 3.2 (antecedido de Mónaco 3.3)


    A escrita tem destas coisas – ou melhor, eu tenho destas coisas. Houve um tempo em que Da Varanda da Luz era escrita inteiramente no estádio, num nível fisicamente acima do fervor dos adeptos, acompanhado pelo famigerado farnel. Era um ritual, quase religioso, com a escrita a sair enquanto mal assistia ao jogo e, amiúde, apenas com o aviso de um bruá para poder ver os golos ao vivo. Publicava a crónica ali mesmo, sem filtro nem ponderação, porque a urgência do momento assim o exigia. Era, muitas vezes, um dos últimos jornalistas a sair do estádio, já com as luzes normais apagadas e apenas as vermelhas brilhantes acesas, dando-me uma sensação de exclusividade. Ajustes e acertos? Esses, em muitos casos, vieram depois, quando já ninguém queria saber, mas ainda assim os fiz, que a dignidade da crónica também conta.

    Mas veio a edição quinzenal e, com ela, um novo método – ou uma nova complicação. Já não era um sprint frenético de 90 minutos e descontos. Pior: a crónica começou a “ir-se fazendo”, o que nunca é boa ideia. Entre outras escritas, outras paixões e, claro, algumas conveniências, a crónica passou a ser apenas alinhavada no estádio e concluída à distância, com a serenidade – ou procrastinação – de quem acha que há sempre tempo. E foi assim que, aqui e ali, começou a sair fora de horas, por vezes colada a um jogo da Liga dos Campeões, porque o futebol não tem paciência para cronogramas nem respeita calendários editoriais.

    Eis o que nos traz a este momento. A crónica sobre o jogo contra o Moreirense deveria ter saído antes, a quente. Não saiu. E eis-me, assim, a concluí-la, como já fizera com o Barcelona, porque assim se fica com a sedução do futebol europeu. Mas hoje não estou talhado para uma crónica sobre o Mónaco. Até porque cheguei atrasado – o Montenegro não me deixou.

    Portanto, terão os leitores – se calhar poucos – apenas para ler a crónica do Moreirense,  e antes umas fotografias deste Benfica – Mónaco por um lugar nos oitavos de final da Liga dos Campeões. Ainda bem que não me apeteceu escrevê-la – e não me levem a mal. Previ que seria um jogo de sofrimento. E não me enganei: passámos à rasca, como poderíamos ter ido de vela. A imprevisibilidade nos jogos do Benfica já se torna previsível.


    Hesito, mas não muito. A dúvida instala-se como incerto anda a meteorologia deste Fevereiro, sem ser suficientemente enevoada para me fazer recuar, mas incómoda o bastante para me obrigar a pensar duas vezes se trago o chapéu de chuva. Esta tarde não chovia, mas veio-me a pergunta que não cala: vou ou não vou ao jogo? Sei que, no final, a resposta quase sempre é afirmativa, embora, a cada jornada que passa, a interrogação se torne um ritual — uma espécie de exame de consciência benfiquista, um exercício de ascese futebolística. Vale a pena? E não é só pelo resultado do Glorioso que pesa; é a antecâmara do jogo, a travessia, a incerteza do que ali me espera.

    Bem sei que, se o Benfica me desse apenas alegrias, não haveria grande mérito em ser benfiquista. O fervor clubístico vive de uma mística que se alimenta do triunfo, se bem que também de alguma provação, não demasiada, para que a felicidade se mostre ainda mais dulcífera. E é nesta última que a reflexão se impõe.

    Como Job a questionar a justiça divina, dou por mim a interrogar-me sobre as razões pelas quais me imponho esta jornada, sabendo que pode redundar em euforia galopante – o Campeonato está no papo –, mas também em aborrecimento taciturno – com esta equipa não vamos lá – ou, pior, naquela cólera amarga que apenas a ineficácia ofensiva e a displicência defensiva conseguem produzir – e aqui não reproduzo palavras por decoro.

    (ena, ena… um brinde do VAR que nos oferece um penálti… e golooooooooo! PAVlidis, sem hipóteses!)

    Bom, mais bem-disposto, embora não o suficiente para me fazer esquecer a viagem de metro. Ah, o metro. Esse purgatório subterrâneo onde se comprimem almas sofredoras de todas as condições, algumas com cachecóis encarnados, outras alheias ao rito futebolístico, mas todas reféns da mesma lógica de transporte errático. No Metropolitano de Lisboa, a passagem de um comboio não é nunca uma certeza, mas uma hipótese estatística, sujeita a atrasos e a falhas técnicas que soam a castigo divino. Quando não, o melhor que se aspira é um trem de sete em sete minutos, ou dez, sempre cheio nas proximidades do início e fim do jogo. Ando cada vez mais exigente desde que andei de metropolitano de Copenhaga: três minutos e lá vem mais um. De certeza.

    (e goloooooooooo!!! PAVlidis de novo. Finalmente, com veia goleadora o grego; finalmente, a fazer jus às três primeiras letras do nome)

    Estou mais animado, mas, enfim, agora tenho de continuar a minha reflexão. Dizia eu que, mais de uma vez parado numa plataforma pejada de fiéis e de curiosos, questiono-me se a peregrinação à Luz será assim tão distinta da Via Dolorosa. Pelo menos Jerusalém tem uma mística que a justifica; já a estação do Alto dos Moinhos, onde de ordinário saio para apanhar a credencial, nada tem para devaneios místicos.

    Mas avanço, porque a recompensa há-de vir – um dia. Há-de vir, mesmo sem saber que recompensa me espera: a Liga dos Campeões ou só o (habitual) campeonato nacional? Em todo o caso, a chegada ao estádio é sempre um alívio. Sair do metro e respirar o ar fresco – mesmo que cheire a castanhas queimadas, a torresmos suspeitos e a bifanas de qualidade duvidosa – traz um conforto que só quem passou vinte minutos em contacto forçado com a axila de um estranho pode verdadeiramente apreciar.

    Mas depois de subir do piso -2 até ao piso 4, começa a ascensão, mas já nada heróica, e sim lenta e implacável: a grande escadaria que tenho de calcorrear, até chegar à Varanda da Luz – esse meu santuário laico onde a devoção se consume –, anda a inclinar-se com os anos. Os meus anos, diga-se. Aqui, permito-me mais uma analogia bíblica: Moisés subiu ao monte Sinai para receber os mandamentos; e eu subo esta ladeira maldita para receber, com sorte, um golo bem construído. Mas se Moisés seguia ao encontro aprazado com Deus, eu, amiúde, nada tenho garantido.

    (olha!, temos golo do Moreirense; como é possível!)

    E ia eu embalado para escrever que, quando finalmente atinjo o meu lugar, olho para a imensidão do estádio e sinto, momentaneamente, que tudo valeu a pena… Mentira: hoje sinto que, mais uma vez, vamos andar à rasca, como têm sido quase todos os jogos deste campeonato, tirando um ou outro. O relvado está ali, verde e aparentemente promissor, como se cada jogo fosse um novo começo, uma nova possibilidade de redenção – mas não… Os dois primeiros golos do Pavlidis concederam-me esperança – não para o mítico 15-0 –, mas surgem demasiados adormecimentos…

    De facto, nos últimos tempos, a esperança inicial tem cedido demasiadas vezes à frustração. O jogo começa e, em poucos minutos, aquilo que deveria ser um caminho glorioso revela-se uma provação. A bola não circula com a fluidez desejada, os passes saem denunciados, e a nossa defesa parece acreditar mais na fé do que na marcação aos atacantes.

    E eu pergunto-me: vale a pena tudo isto? Vale a pena suportar o metro, a escadaria, a angústia dos minutos que passam sem golo? Por regra, quando o adversário marca, o estádio mergulha num silêncio fúnebre, a dúvida a todos assola, incluindo os jogadores. Talvez esta Via Sacra seja, afinal, um castigo. Talvez Deus (ou Eusébio, que, no fundo, são manifestações do mesmo princípio metafísico) me esteja a pôr à prova.

    (goloooooooo… 3-1, marca Otamendi)

    Pelo menos há animação… isso não posso questionar. E vou agora descansar um pouco que o intervalo está a chegar.

    (e vem o intervalo…)

    … e recomeça o jogo.

    Aqui está o texto corrigido, mantendo o acordo ortográfico anterior a 1990:


    Portanto, continuemos: sina ou malapata, de jornada em jornada, de dúvida em dúvida, de sofrimento em sofrimento, cumpre-se a minha peregrinação. Sei que voltarei a questionar-me se devo meter-me no metro, se quero mesmo subir aquela escadaria, se tenho estofo para mais uma noite de emoções extremas no resultado, mas de exibições pouco consistentes. Mas também sei que, quando cá chego, quando finalmente me sento na Varanda da Luz, fico sempre com esperança de que tudo melhore. Na verdade, por mais irritante que por vezes esteja, o Benfica não se explica – cumpre-se.

    E cumpre-se sempre da forma mais imprevisível possível, confesso. Porque, no fundo, o Benfica já nem é apenas uma equipa de futebol – é uma experiência existencial, um exercício contínuo de fé cega e teimosia emocional. Cada jogo traz consigo a promessa de redenção, mas também a ameaça de um martírio. E é neste limbo que me encontro desde que comecei estas crónicas, e nem sei que lição tenho de aprender.

    No fundo, talvez seja isso que me mantém preso a este ritual: a ilusão de que, um dia, deixe de sofrer – e só haja prazer. A chatice é que esse El Dorado nunca mais chega – e eu, aqui, de coração nas mãos.

    E jogo a jogo tudo recomeça. Sempre recomeça, como um ciclo vicioso de esperança e frustração. Os jogadores voltam a correr, a bola volta a rolar, e eu volto a iludir-me, a acreditar que desta vez será diferente, que hoje veremos uma exibição convincente, sem tremores nem sobressaltos. E eu a repetir-me. Já acho que fazem de propósito. O Benfica é mestre na arte de manter os seus adeptos em suspense, de os obrigar a viver cada minuto como se fosse o último, de os fazer passar do êxtase ao desespero num simples passe mal medido. E, por mais que todos se queixem, por mais que resmunguem e ameacem nunca mais voltar, o Benfica sabe que estarão aqui na próxima jornada, no mesmo lugar, a repetir o mesmo ritual.

    (e golo do Moreirense; grande porcaria: 3-2 para sofrer)

    E pronto, instala-se de novo o pânico. O estádio, que há instantes parecia exalar um alívio quase festivo, regressa ao estado natural de inquietação. As mãos voltam à cabeça, os murmúrios ganham volume, e já vejo quem pragueje de pé, indignado com a facilidade com que se sofrem golos.

    E o relógio, esse maldito, mexe-se agora numa sádica lentidão, e eu sei o que me espera: uns dez minutos, com descontos, de mais tormento – uma vergonha para um Benfica de glórias perante uma equipa de Moreira de Cónegos. Pelo amor do Santo Padre!!!

    (… nem vale dizer nada sobre o jogo…)

    Pronto! Mais uma vitória suada, com golos sofridos, uma porcaria! Regresso no próximo. Claro!