Autor: Pedro Almeida Vieira

  • O pedantismo cientifista de David Marçal, sacerdote da Verdade Absoluta

    O pedantismo cientifista de David Marçal, sacerdote da Verdade Absoluta


    Sempre que leio no Público as crónicas de David Marçal, vejo ali um cruzado da Ciência, um paladino da racionalidade contra as hordas de bárbaros negacionistas. No entanto, ao contrário do que prega, Frei Marçal não combate o obscurantismo com argumentos rigorosos nem com método científico, mas com enviesamento ideológico e um irritante pedantismo que roça a arrogância e a boçalidade, temperado com um desdém dogmático que faz lembrar os inquisidores do Santo Ofício.

    No seu texto de hoje, glosa sobre um surto de sarampo nos Estados Unidos, parafraseando, de forma acérrima, o lema trumpista. “Tornar o sarampo grande outra vez” – o título do artigo de opinião – serve de mote para David Marçal culpabilizar R.F.K. Jr. por tudo e um par de botas. De facto, encontra-se em curso um surto de sarampo em 12 jurisdições norte-americanas: Alasca, Califórnia, Flórida, Geórgia, Kentucky, Nova Jérsia, Novo México, Nova Iorque, Pensilvânia, Rhode Island, Texas e Washington. Houve já uma morte confirmada e outra em investigação. As mortes não são normais, independentemente de estatisticamente serem irrelevantes, mas estaremos perante algo incontrolável? Uma crise de saúde pública causada pelo simples facto de Trump e R.F.K. Jr. terem assumido o poder nos Estados Unidos há menos de dois meses?

    Vejamos. O Centers for Disease Control and Prevention (CDC) – que mantém a mesmíssima abordagem e acompanhamento sobre os perigos do sarampo e sobre a vacinação – aponta este ano para 222 casos desde 1 de Janeiro até ontem, dos quais 38 resultaram em hospitalizações. Podemos ver isto em duas perspectivas. Em termos relativos, estes 222 casos nos Estados Unidos corresponderiam a 7 casos em Portugal, considerando a diferença populacional. A nossa Direcção-Geral da Saúde não costuma revelar informação detalhada da monitorização de sarampo em Portugal, mas posso adiantar que, há um ano, entre 1 de Janeiro e 5 de Maio, tinham sido contabilizados 27 casos. Ajustando para a população das terras do Tio Sam, estes 27 casos nacionais equivalem a 860 casos nos Estados Unidos. Não me recordo de ter lido David Marçal a escrever sobre os surtos de sarampo em Portugal em 2024.

    Além disso, convém referir que o sarampo é, cada vez mais – e em virtude também da vacinação –, uma doença benigna em países mais modernizadas, embora ainda longe de estar erradicada. E nos Estados Unidos, onde os diversos Governos estaduais têm um papel determinante, a ocorrência de surtos depende de muitos factores, sendo evidente que os mais vulneráveis são as pessoas não vacinadas. Se olharmos para o site do CDC, essa evidência é ali exposta para o ano de 2025, com R.F.K. Jr., tal como nos tempos de Biden e no primeiro mandato de Trump.

    Aliás, é curioso reparar que o número de casos de sarampo este ano ainda é inferior aos de 2024 – e não é certo que seja ultrapassado – e muitíssimo inferior aos valores de 2014 (667 casos, no segundo mandato de Barack Obama) e de 2019 (1274 casos, no primeiro mandato de Trump). Convém referir que, tanto num período como no outro, o responsável máximo do National Institutes of Health (NIH) era Anthony Fauci. Parece-me que apenas estes simples dados desmontam, e estragam, o tão jeitoso título de David Marçal.

    Casos de sarampo por ano nos Estados Unidos desde 2000. Fonte: CDC.

    Porém, onde Marçal melhor regurgita o seu ‘ódio’ quase irracional a R.F.K. Jr. – que há duas dezenas de anos era considerado um ídolo das correntes ambientalistas pela sua tenaz luta como advogado – é na tese de ser ele “um teórico da conspiração antivacinas”. E para tal, conta Marçal um episódio de um surto de sarampo em Samoa após erros na administração de vacinas terem causado mortes. Esquecendo, ou querendo esquecer, Marçal, que a Farmacopeia não é uma história imaculada, o paladino da Ciência chega a culpar R.F.K. Jr. de ser co-responsável por 83 mortes naquele país da Polinésia, por uma doença que a OMS diz ser fatal, por ano, para mais de 100 mil pessoas. Em 2023, foram 107.550 pessoas, praticamente todas em países subdesenvolvidos.

    Mas é na forma como David Marçal resume uma carta de R.F.K. Jr., em Novembro de 2019, ao primeiro-ministro de Samoa que se mostra o tipo de cientista que é – ou, melhor, que não é. Diz David Marçal que o actual secretário de Estado da Saúde norte-americano “culpa as vacinas pelas mortes por sarampo” e que a “carta de quatro páginas é um absoluto delírio” – contudo, o delírio está do seu lado.

    Lendo a carta de R.F.K. Jr., haveria espaço para rebater factualmente alguns dos seus argumentos – algo que um verdadeiro defensor da Ciência deveria fazer. Mas isso não é coisa para David Marçal – e outros que, durante a pandemia, ‘arrotaram’ certezas insofismáveis –, que enveredou pelo caminho da deturpação e do achincalhamento, reduzindo tudo a um “absoluto delírio” e a um “chorrilho de argumentos pseudocientíficos”.

    A táctica de David Marçal é sempre a mesma: simplifica-se ao extremo a posição do ‘adversário’, amputando-lhe qualquer nuance ou legitimidade, para depois a ridicularizar como se fosse produto de uma mente lunática. “Dois dias depois, R.F.K. Jr. escreveu ao primeiro-ministro de Samoa, na sua qualidade de presidente da Children’s Health Defense, culpando as vacinas pelas mortes por sarampo no país”, escreveu Marçal. A afirmação é uma mentira objectiva. Na sua carta, Kennedy nunca culpa as vacinas pelas mortes.

    A carta não é um panfleto antivacinação, não incita ao medo irracional das vacinas, nem exorta os samoanos a rejeitarem a imunização. Aquilo que R.F.K. Jr. faz é levantar questões sobre a relação entre a vacina MMR da Merck e a crise sanitária em Samoa, propondo hipóteses que deveriam ser cientificamente avaliadas. Ele sugeriu que se investigasse a imunidade materna conferida pela vacina, que se determinasse se a vacina estava a cobrir todas as estirpes do sarampo circulantes e que se examinasse se a vacinação em massa poderia ter desencadeado infecções por estirpes vacinais.

    Estes são argumentos que podem ou não ter mérito científico – e é assim que se deve tratar a Ciência, como um debate aberto, e não como um dogma imutável –, mas em nenhum ponto R.F.K. Jr. se opõe à vacinação per se. Aquilo que ele sugere é precisamente uma abordagem científica: estudar os dados, sequenciar geneticamente os vírus, identificar as variantes em circulação, analisar a eficácia das vacinas num contexto complexo, não assumindo que sejam consideradas sacrossantas.

    David Marçal

    Se David Marçal fosse um cientista a sério – e não um propagandista travestido de divulgador –, responderia a todos os argumentos de R.F.K. Jr. com números, estudos e dados. Mas nada disso faz – às tantas, dirá que tem mais que fazer. E assim, em vez disso, opta pelo caminho mais fácil: a caricatura.

    Este modus operandi de ataque ao ‘inimigo’ é recorrente – e viu-se bem na pandemia da covid-19. David Marçal nunca debate – destrói. Nunca argumenta – desqualifica. Nunca analisa – ridiculariza. Para ele, não há espaço para dúvidas ou para a revisão de conceitos. O palco é-lhe oferecido sem contestação – e ele ergue-se convencido da vitória e da razão.

    Para Frei Marçal, a Ciência é um santuário de verdades absolutas – como eram, por exemplo, os verhonhosos relatórios epidemiológicos do Instituto Superior Técnico –, e ele, um Sumo Sacerdote que pode decretar quem é herege e quem é iluminado. O problema é que esta postura não tem nada de científica. A Ciência verdadeira não se faz com certezas dogmáticas, mas com questionamento constante, com hipóteses que devem ser testadas, refutadas ou confirmadas pela experiência e pelos dados.

    A ironia disto tudo: se há alguém realmente a praticar a pseudociência, é David Marçal. A pseudociência não é apenas acreditar em teorias da conspiração e negar evidências – é também a recusa do debate, o uso de argumentos de autoridade em vez de evidências, a manipulação retórica para eliminar opositores sem os confrontar directamente. R.F.K. até poderia estar a fazer pseudociência, mas Marçal quer impor-nos a anti-Ciência, quer transformar a Ciência em dogma. Aquilo que ele pratica não é divulgação científica – é uma propaganda científica enviesada, onde o nome da Ciência é usada, e abusada, não para esclarecer, mas para justificar dogmas e atacar dissidências.

    E o efeito deste cientificismo autoritário é exactamente o contrário daquilo que ele quer fazer passar. David Marçal acredita que, ao ridicularizar os críticos, está a proteger a Ciência do obscurantismo. Mas, na verdade, está a afastar as pessoas da Ciência.

    Quando a Ciência se apresenta como um dogma inquestionável, as pessoas começam a desconfiar dela. Quando os defensores da ciência se comportam como inquisidores, as pessoas começam a procurar alternativas. Quando o debate é substituído pela arrogância, a credibilidade científica é corroída.

    Sejamos claros: a vacinação é uma das maiores conquistas da Medicina moderna, mas a confiança na vacinação não se impõe como se o hábito fizesse o monge; não se impõe com escárnio e insultos – conquista-se com transparência, com comunicação clara e honesta, com abertura ao debate. O problema de Marçal, e de tantos outros cruzados do cientificismo, é que não percebem que a confiança na Ciência não pode ser imposta à força; deve convencer, e não vencer; as pessoas devem ser conquistadas através do rigor, da humildade e da disponibilidade dos cientistas para responderem a todas as dúvidas – mesmo as que parecem incómodas ou possam ser obtusas.

    Se R.F.K. está errado, então prove-se que está errado. Mas prová-lo exige mais do que epítetos e ridicularizações – exige Ciência a sério. E mal seria se, estando ele errado, não existissem (como acho que existem) mecanismos numa democracia para evitar que ele imponha a sua opinião errada a toda a sociedade. Marçal pensa que isso se faz com marketeers da Ciência com tiques de inquisidores. Na verdade, a Ciência não precisa de tipos como David Marçal com tiques de inquisidor; precisa apenas de cientistas, que errem por lapso e acertem por sabedoria, e que, na prudência, tenham a humildade de reconhecer que até os seus acertos podem, afinal, ser erros.

  • Universidade Lusíada vai investigar directo na CNN Portugal durante uma aula

    Universidade Lusíada vai investigar directo na CNN Portugal durante uma aula

    A Reitoria da Universidade Lusíada vai investigar a adequação do uso do tempo de uma aula por um professor para entrar ontem à tarde em directo na emissão da CNN Portugal. O caso inédito foi revelado num curto trecho gravado por um aluno do pólo do Porto daquela universidade privada, onde se vê, durante 20 segundos, Tiago André Lopes em simultâneo na emissão do canal televisivo da Media Capital e a falar ao monitor de um computador na sua mesa.

    A gravação mostra diversos alunos sentados e, numa parede da sala, um aviso: Silêncio. ESTAMOS EM DIRETO. O pequeno vídeo, com a legenda “Pov [point of view]: Estás em aula e o professor está em direto na CNN”, contava já com mais de 237 mil visualizações pelas 15h00 desta sexta-feira.

    De facto, Tiago André Lopes, um habitual comentador de política internacional na CNN Portugal, esteve ontem à tarde a comentar o Conselho Europeu Extraordinário numa emissão com alguns percalços devido a dificuldades de comunicação, que se iniciou às 14h23. O comentário em concreto, cujo trecho foi gravado por um aluno, decorreu entre as 14h25 e as 14h33, ou seja, durante nove minutos.

    Tiago André Lopes, licenciado em Comunicação Social com um doutoramento em Ciências Sociais, confirmou ao PÁGINA UM que fez ontem o comentário na CNN numa sala da Universidade Lusíada com alunos a assistir, mas que era “uma aula suplementar para realizar uma dinâmica pedagógica […] da unidade curricular de Organizações Políticas Internacionais”, acrescentando que o seu comentário “sobre uma reunião em curso no Conselho Europeu, que é um órgão político de uma Organização Internacional”, acabava por ser “matéria de aula”.

    O comentador da CNN Portugal diz também que não costuma “comentar durante as aulas”, por ser esse o acordo com o canal televisivo, defendendo que a sua entrada em directo ocorreu “antes do começo da aula”, propriamente dita, e teve “o consentimento de todos os alunos presentes”. E acrescenta que “se algum aluno tivesse objectado, o comentário não teria tido lugar”.

    Tiago André Lopes apareceu ontem por três vezes nas emissões da CNN Portugal, mas o canal televisivo ‘esqueceu-se’ de divulgar o comentário a partir de uma sala de aulas da Universidade Lusíada.

    O professor da Universidade Lusíada diz perceber que “a legenda que o aluno colocou, aluno esse que já pediu desculpas pela publicação do vídeo, dá a entender que a aula estaria em curso”, mas que “isso é apenas imputável a quem legendou mal aquele momento”, garantindo que “a aula começou mal terminou o directo” na CNN Portugal, ou seja, às 14h33.

    Esta aula de ontem da unidade curricular de Organizações Políticas Internacionais, leccionada por Tiago André Lopes, aparenta ter sido mesmo suplementar, uma vez que no horário semanal decorre às terças-feiras entre as 14h00 e as 16h00.

    Ainda em sua defesa, Tiago André Lopes diz que nem sequer costuma “levar portátil para as aulas” e que é “dos professores que gostam de livros em papel, pelo que fazer directos nas aulas não seria de todo possível”, sendo que o caso de ontem foi “excepcional”.

    Certo é que esta inaudita incursão de um comentador televisivo em plena sala de aula surpreendeu o próprio reitor da Universidade Lusíada, Afonso d’Oliveira Martins. Em declarações ao PÁGINA UM, diz que não houve “conhecimento prévio por parte dos órgãos competentes da Universidade” do uso do tempo de aula e de uma sala para a participação do docente num comentário televisivo em directo.

    Afonso d’Oliveira Martins diz ainda que, “em termos gerais, situações que se considerem extraordinárias devem ser sujeitas a autorização para que se possa averiguar a sua adequação”. E acrescenta que “a propósito do caso concreto, foi entretanto iniciado um procedimento de indagação, aguardando os respectivos resultados”.

  • Barcelona 0.1

    Barcelona 0.1


    Cheguei atrasado à Varanda da Luz – só se justifica ficar aqui escrito por ser uma crónica, e não uma notícia, porque só o raro é notícia. Nem vi a águia a voar e perdi todo o ritual que marca o início das grandes noites europeias. Que seja: promete chuva, mas nada como aquele dilúvio do inglório 4-5 de há um mês e meio. Interessa, sim, dizer que estou confiante. Hoje, há qualquer coisa no ar. Talvez seja por causa do Bruno Lage estar de volta, e o futebol ter sempre um fraco por histórias de redenção.

    (estranhamente, o estádio não está cheio, não sei se pelo preço dos bilhetes ou pela semana do Carnaval ter esvaziado Lisboa)

    Ou talvez seja, para criar hipóteses absurdas para justificar o meu optimismo, por ter avistado há pouco um adepto, atrasado como eu, com uma camisola do Poborsky, o que só pode ser um sinal de que esta noite terá algo de mágico. Ou ainda por ter ouvido um senhor hoje no café dizer que, em vésperas de jogos grandes, quando sonha com um golo de calcanhar do Benfica, a vitória está garantida. Ou, vá-se a ver, por ter esta tarde visto um tipo engasgar-se a beber um fino quando assistia à antevisão do jogo na CMTV, e dito, quando recuperou: “Isso foi um presságio. Mas não sei é se bom ou mau”.

    Enfim, sinais não faltam. Se resultam em golos, logo se verá.

    Em todo o caso, temos aqui um problema: é que o meu atraso custou-me caro. Esgotou-se o farnel. Nem a pão e água estou. Pensando bem, nem é de todo mau – há semanas que ando a adiar uma dieta, e talvez esta seja a deixa que precisava.

    No relvado, tudo calmo por agora. O Barcelona pode não ser o colosso de outros tempos, mas continua a ser adversário de muito respeito. Troca a bola com aquela paciência estudada, como quem acredita que mais cedo ou mais tarde vai encontrar um buraco para ferir. Mas hoje não quero sofrer. Basta o que eu vou sofrer na próxima semana – e mais não digo por agora…

    (boaaaaaa… cartão vermelho para o Pau Cubarsí, que rasteirou um afoito e isolado Pavlidis; e quase que dava o bónus de penálti)

    Mais confiança. Está no ar, digo eu, uma oportunidade de ouro. Vão ser quase 70 minutos em superioridade numérica. Sei que ainda há muito jogo pela frente, mas a minha intuição não me engana: hoje pode ser uma daquelas noites em que a Luz se transforma num inferno para quem vem de fora.

    Agora é não facilitar – daqui é fácil de dizer. O Benfica tem de fazer valer o homem a mais, e nada melhor do que marcar já, ou daqui a cinco minutos, ou a dez, ou quando calhar: tem é de marcar, que isto não acontece todos os dias.

    Porém, estranhamente, enquanto denoto a incapacidade de o Benfica sufocar o Barcelona – as equipas portuguesas jogam contra o Barcelona ou o Real Madrid sempre com mais medo do que o Leganés ou o Osasuna –, começo a fraquejar no entusiasmo. Conheço este filme: tantas vezes já vi equipas reduzidas a dez crescerem dentro do jogo, das tripas fazerem coração, enquanto a equipa em vantagem numérica hesita, falha passes, exibe demasiadas cortesias no momento do remate, e contenta-se em trocar bolas como se houvesse um prémio para posse de bola estéril. E os adeptos querem é golo, nem que seja aos baldões.

    (para estragar a festa, e o Benfica apanhar uma valente e justificada multa da UEFA, os tontos dos No Name Boys, ou quem sejam eles, lançam tochas e outros artefactos; nunca compreendo a razão de as direcções dos clubes permitirem estas diatribes)

    Lá em baixo, não estou a ver grandes melhorias – e, na verdade, o jogo está equilibrado, com o Barcelona a ganhar até cantos e a fazer alguns remates. Vou ter de me concentrar uns minutos a assistir ao jogo para ‘meter’ energias nesta malta para que cheguem ao intervalo em dupla vantagem numérica: jogadores e golos.

    (pois bem, ou mal, termina o primeiro tempo, e só há vantagem em jogadores, e não em golos…)

    E recomeça o jogo. Entretanto, a fome aperta. Já parece que me cheira a bifanas. E começo a convencer-me de que, se o Benfica não marcar nos próximos cinco minutos, terei de reavaliar a minha relação com a dieta. Tento distrair-me com o jogo, mas a combinação de estômago vazio e nervos em alta não está a ajudar. O Barcelona, mesmo com dez, começa a ter mais bola, e eu começo a ver fantasmas. Isto de ser benfiquista é viver, em constância, entre o aconchego do sonho e o medo do trauma.

    Não sei se os jogadores são muito dados a palestras, nem se o Bruno Lage tem queda para prelecções entusiásticas. Mas, às tantas, devia ter pedido ao ChatGPT para lhe compor um discurso onde se clamasse que a História pode ser escrita também com os pés. E que esta noite o Benfica não joga somente para ultrapassar o Barcelona, mas para dar a um país cansado um vislumbre de grandeza, um motivo para acreditar que ainda há feitos que engrandecem, para além daqueles que envergonham.

    Portanto, quando tudo à volta parece um pântano, onde se afundam valores e esperanças, eles e o futebol são a tábua de salvação. Eu sei que é filosofia barata, mas com falinhas e bolinhos se enganam os tolinhos.

    (mas que lindo serviço nos fez o António Silva: falha um passe e o ex-sportinguista Raphinha marca; isto só visto)

    Lá se vai o ‘meu discurso’ para emplogar jogadores. Aquele paleio de que devem consciencializar-se para jogarem não pelo salário ou pelo prémio de jogo, ou pela progressão na carreira ou por estatísticas pessoais – que devem jogam, sim, para resgatar um orgulho que se tem esbatido entre manchetes de escândalos e o cansaço de um país que já nem se surpreende com nada. Jogam porque, entre o golfe do Montenegro, as avenças e o teatro habitual dos poderosos, o povo precisa de alguma coisa que seja só emoção e verdade – e o futebol, no seu estado puro, ainda pode ser isso.

    Agora, está a ir esfumar-se uma noite glorisa..

    Vamos lá! A História exige coragem. E a questão, como sempre, é se há coragem suficiente para não se deixar adormecer pelo medo, para não se contentar com a mediocridade, para não hesitar quando for preciso arriscar. Porque o medo de falhar muitas vezes pesa mais do que a vontade de vencer – e já vimos demasiadas equipas portuguesas a jogar contra colossos com um respeito que roça a subserviência. A História não se faz com medo.

    E eu a encher já chouriços…

    Agora, o pior não é perder. Perder, todos perdem alguma vez na vida. O pior é perder sem ter dado tudo, sem ter lutado, sem perceber a grandeza da ocasião. E temo que seja isso que me arrisco a assistir esta noite, aqui na Luz: contra um Barcelona reduzido a dez durante 70 minutos e sem o Benfica capaz de assumir o jogo, sem a ambição crua e visceral que transforma uma equipa boa numa equipa histórica. E o futebol não perdoa àqueles que hesitam, e a História muito menos.

    (lá em baixo, ninguém com um rasgo de talento; e o guarda-redes polaco, cujo nome não sei escrever e muito menos pronunciar vai dando conta do recado)

    Caminha o jogo para o fim – e, pela segunda vez, o raio do Raphinha fez das suas. Mais um murro no estômago, mais um lembrete cruel de que quem não quer ganhar acaba sempre por perder.

    E pronto: apito final. Saio daqui da Varanda da Luz com fome e com azia. Tudo mau. E esta crónica tornou-se simplesmente um repositório de filosofia barata e de frustração. Para a semana, lá estarei em Barcelona – mas acho que só lá vou para fazer turismo…

  • Frequência e conteúdo dos relatórios da pandemia mostram que Instituto Superior Técnico quis manipular políticos

    Frequência e conteúdo dos relatórios da pandemia mostram que Instituto Superior Técnico quis manipular políticos

    Afinal, os 51 relatórios do Instituto Superior Técnico (IST) sobre a evolução da pandemia da covid-19 existiam. Ou, pelo menos, passaram a existir – e foram, finalmente, enviados, em papel, para o advogado do PÁGINA UM, depois de um kafkiano processo no Tribunal Administrativo. O envio apenas ocorreu após um pedido de execução da sentença, com solicitação de aplicação de uma sanção pecuniária compulsória ao presidente do IST, Rogério Colaço, uma vez que a instituição universitária pública não cumpriu os prazos estabelecidos pelo acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, emitido em Dezembro passado.

    Dura lex sed lex. E pese embora o caso ainda não estar encerrado, porque o IST expurgou indevidamente dados dos relatórios – há já questões pertinentes a revelar. Uma análise, ainda que superficial, aos 52 relatórios – que a própria instituição chegou a designar como “esboços embrionários que consubstanciam meros ensaios para eventuais relatórios” – revela, de forma inequívoca, que alguns não foram produzidos com o propósito de fazer ciência, mas sim de fazer política e gerar alarme público, sem sequer apresentar a metodologia ou os dados utilizados.

    Essa instrumentalização nota-se particularmente na frequência com que o IST produziu os relatórios, que, a partir de Julho de 2021, passaram a contar com o dedo da Ordem dos Médicos – e, em particular, do então bastonário e actual vice-presidente da bancada parlamentar do PSD, Miguel Guimarães, e do pneumologista Filipe Froes, um dos médicos com maiores ligações comerciais à indústria farmacêutica.

    Com efeito, numa primeira fase, os chamados Relatórios Rápidos tiveram uma frequência quase diária. O primeiro foi produzido a 19 de Março de 2021 – embora, estranhamente, a capa indique 19 de Maio de 2021 – e, até ao final desse mês, foram elaborados nove documentos. Em dois meses, até finais de Abril de 2021, o IST tinha já feito 23 relatórios rápidos. Em Maio, foram apenas elaborados quatro, e em Junho, cinco.

    Nessa altura, os relatórios tinham apenas uma circulação restrita, entre académicos – até porque a intenção inicial era modelar um índice pandémico usando diversos indicadores epidemiológicos. Isso fica evidente logo no primeiro relatório, no qual os autores do IST escreveram, em Março de 2021: “Estamos disponíveis para responder a qualquer solicitação possível na análise dos dados disponíveis da pandemia”. Uma frase irónica à luz do processo que se seguiu: o PÁGINA UM teve de percorrer um calvário de 31 meses, através de uma intimação no Tribunal Administrativo, para obter aquilo que, afinal, os investigadores diziam estar disponíveis a dar, se solicitado.

    Certo é que se torna evidente que foi a partir de Julho de 2021 que os relatórios se politizaram, com a entrada em jogo da Ordem dos Médicos. Através de uma parceria nunca oficializada documentalmente – mas apresentada numa conferência de imprensa –, a Ordem começou a divulgar esparsamente os relatórios, conforme as conveniências.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes na sede do Ordem dos Médicos, em Julho de 2021, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. A partir daí, os relatórios do Instituto Superior Técnico ganharam um cunho mais político e com uma frequência para influenciarem medidas políticas.

    O primeiro Relatório Rápido também com a chancela da Ordem dos Médicos foi publicado a 19 de Julho de 2021 e recebeu o número 35. Nesse mês, de baixa incidência da covid-19, foi apenas publicado outro, o número 36. Seguiu-se então um hiato de quase dois meses: somente a 17 de Setembro foi publicado o relatório 37. E quase dois meses mais tarde, a 15 de Novembro, surgiu um novo relatório – coincidindo com o aparecimento da variante Ómicron e com a desejada (pela Ordem dos Médicos) vacinação de adolescentes e crianças. A partir desse momento, os relatórios rápidos voltaram a aumentar de frequência, quase sempre com um tom alarmista e com fraca base estatística a sustentá-los.

    Assim, entre 15 de Novembro e as vésperas do Natal de 2021, a equipa do IST / Ordem dos Médicos produziu cinco relatórios. Com a entrada em 2022, os relatórios foram cirurgicamente publicados, surgindo acompanhados de notícias que tinham o claro objectivo de influenciar as diversas medidas restritivas ainda em vigor.

    Por exemplo, o Relatório Rápido número 46 foi produzido a 15 de Fevereiro de 2022 para coincidir com reuniões informais no Infarmed. O IST deixou escapar o relatório para a agência Lusa, onde, sem qualquer sustentabilidade científica e estatística, se afirmava que “ainda existe a possibilidade da introdução de novas mutações” do coronavírus SARS-CoV-2, sendo muito recomendável uma vigilância por amostragem dos viajantes vindos de zonas de maior risco epidemiológico.

    O relatório seguinte, número 47, serviu novamente para fazer política, pois, mais uma vez, foi deixado escapar para a Lusa – mas nunca divulgado publicamente –, avançando a tese de que se estaria a ver o desenho de uma sexta vaga de forma muito clara. Acrescentava-se ainda que “o risco pandémico ainda não é muito elevado, mas é necessário perceber como vai continuar a evolução dos números”.

    Relatórios em 2022 serviram sobretudo para alimentar, na comunicação social, um clima de alarme para prolongamento das medidas restritivas e da testagem em massa.

    E, mais uma vez sem a prudência que a ciência exige – pois não existiam dados estatísticos para corroborar essas recomendações –, os investigadores do IST escreveram que “deve ser mantida a monitorização, todas as medidas em vigor devem ser mantidas sem relaxamento e deve ser indicado à população que é necessário tomar cuidados individuais”. Argumentaram, ainda, que o seu indicador de gravidade estava “em nível de alerta, com forte tendência de subida, e que a protecção imunitária estava, segundo a evidência recolhida, a descer”.

    O grau de ingerência política por parte dos investigadores do IST, em colaboração com a Ordem dos Médicos, atingiu o seu apogeu a 28 de Julho de 2022, quando os relatórios 51 e 52 chegaram ao cúmulo de quantificar, sem qualquer base científica, o número de infecções (350 mil casos) que as festividades populares causariam. Para além disso, atribuíam mesmo um número concreto de mortes (790, das quais 330 associadas às festas populares de Junho), recorrendo a uma lógica contrafactual sem base científica, sustentada apenas no facto de não se ter mantido a testagem e o uso de máscaras.

    Foi por sentir que a ciência estava a ultrapassar os limites da seriedade mínima – com atitudes indignas de uma instituição científica com o estatuto do IST – que o PÁGINA UM decidiu solicitar a totalidade dos relatórios. E perante a recusa, lutou nos tribunais até que um catedrático, Rogério Colaço, descesse do seu pedestal e se convencesse que Portugal não é a sua ‘sala de aula’ onde pode ser um tiranete sem consequências.

    A Lusa noticiou, em 28 de Julho de 2022, as conclusões de um estudo do Instituto Superior Técnico sobre o suposto impacte das festividades em Junho desse ano na transmissão e mortes por covid-19. A instituição universitária, que faz Ciência, quis convencer o Tribunal Administrativo de que aquilo que fez não foi um estudo, mas apenas “um esboço embrionário”. Ou uma “mera abordagem embrionária”.

    O processo demorou 32 meses, mas conseguiu-se. E conseguiu-se também que o IST deixasse de fazer mais “relatórios rápidos” deste quilate – o que também foi outra vitória do PÁGINA UM.

    Nos próximos dias, dado ser necessário digitalizar quase quatro centenas de páginas dos 52 relatórios – o IST não quis enviar os documentos digitalizados -, o PÁGINA UM irá divulgar integralmente os documentos. E assim se poderá livremente expor e avaliar-se a qualidade da ciência portuguesa nos tempos em que investigadores da academia decidiram também fazer política. O relatório rápido 1 – com o curioso engano logo na data – pode já ser consultado AQUI.


    N.D. Este longo caso, com uma sentença e um acórdão, levou 33 longos, com muito trabalho de um dos advogados do PÁGINA UM, Rui Amores, que foi inexcedível. Mas também se deveu muito aos leitores que, desde 2022, têm suportado os elevados custos dos processos administrativos, através do FUNDO JURÍDICO. O PÁGINA UM está a retomar mais processos de intimação, dois dos quais serão revelados ainda esta semana.

    N.D. 2 – Desde já se declara que este artigo noticioso se baseia em factos, em análise preliminar dos relatórios e da interpretação dos factos e do contexto no espírito da liberdade de imprensa e de expressão defendida pela imprensa. Não existe, nem se justifica, o alegado direito ao contraditório sobretudo para uma entidade que nunca mostrou disponibilidade para disponibilizar os relatórios, contrariando os princípios da Ciência e mesmo aquilo que escreveu no relatório rápido. Em todo o caso, quem desejar, pode ler a interpretação de Rogério Colaço num texto de direito de resposta publicado AQUI.

  • A nova corrupção: nem malas nem envelopes; apenas avenças

    A nova corrupção: nem malas nem envelopes; apenas avenças


    A corrupção política, tal como a conhecíamos, tornou-se anacrónica. Já não se faz através de malas recheadas de notas, como nos tempos do antigo deputado António Preto – acusado de corrupção por causa de 40 mil euros em notas mas que acabou ilibado, quase quinze anos depois. Também não é mais uma questão de gabinetes ministeriais convertidos em cofres privados, pois nenhum espaço é seguro, nem mesmo o do próprio chefe de gabinete do primeiro-ministro, como bem aprendeu Vítor Escária.

    Os novos tempos exigiram novas formas de assegurar o tráfico de influências, a retribuição de favores e a manutenção de uma rede de lealdades. E estas formas são agora mais sofisticadas, legalmente blindadas e de difícil rastreio. Há três métodos principais para esta nova corrupção, que não precisam da tradicional troca de envelopes ou de contas bancárias na Suíça.

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    O primeiro método é o pagamento diferido, ou seja, o político exerce o seu cargo e, depois, é premiado com um lugar de gestão bem remunerado. Esta é uma prática antiga, mas altamente volátil, pois depende da continuidade da administração que corrompeu. Além disso, não há garantia de que a empresa que beneficiou se lembrará da “dívida” quando chegar o momento de pagar, excepto se o visado mantiver influência política.

    O segundo método é mais directo e eficaz: a criação de empresas por políticos ou testas-de-ferro, para as quais são canalizados pagamentos disfarçados sob a forma de contratos de consultoria, assessoria ou prestação de serviços. Esta estratégia tem várias vantagens. Primeira, o político não precisa de declarar os rendimentos da empresa como sendo seus, desde que não haja distribuição de lucros. Segunda, pode usar essa empresa para cobrir despesas do quotidiano sem levantar suspeitas. Terceira, os clientes que pagam pelos supostos serviços podem ser facilmente ocultados, tornando praticamente impossível provar que um determinado pagamento se trata, na realidade, de um suborno. Por fim, quarta, o corruptor ainda consegue uma factura para abater nos lucros, pelo que, de forma indirecta, o Estado contribui, sem saber, para esse acto de corrupção porque recebe menos impostos por causa dessa ‘despesa’.

    O terceiro método, muito apreciado por advogados, é o uso do sigilo profissional para ocultar clientes e transacções suspeitas. Em Portugal, a confidencialidade das relações entre advogados e clientes impede que se saiba quem paga a quem e porquê. Se um político se envolve na advocacia, qualquer pagamento pode ser justificado como honorários, sem que ninguém possa escrutinar a natureza do serviço prestado – ou sequer se esse serviço existiu. Aliás, aquilo que mais se destaca nas declarações de rendimentos dos políticos na Entidade para a Transparência é essa justificação. Basta ver a do presidente do Parlamento, José Pedro Aguiar-Branco.

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    Seja qual for a via escolhida, a verdade é que a nova corrupção tornou-se tecnicamente quase indetectável, mas não menos óbvia. E os sinais que emanam da Spinumvira são mais do que um mero problema político – são um problema judicial. A forma como a empresa de Luís Montenegro aceitou uma avença da Solverde, ainda mais a um valor quatro vezes superior ao praticado no mercado (avenças do género custam pouco mais de mil euros por mês), sem que se perceba quais os trabalhos efectivamente realizados, não pode ser vista como um detalhe irrelevante.

    Pior ainda, isto acontece num momento em que se aproxima um concurso público para a concessão de casinos. Mesmo que já nada tivesse a ver com a sua empresa familiar, há clientes que não podem ser aceites, porque, em certas situações, são sempre ‘tóxicos’. E se uma empresa for boa, pode dar-se ao luxo de prescindir de algumas propostas, aceitando outras.

    Ora, se António Costa se demitiu (e bem) pelas suspeitas que recaíam sobre o seu governo, o que justifica que Montenegro continue a brincar com moções de censura e de confiança, como se fosse apenas uma questão de gestão política?

    Entre o medo do PS de ir a eleições e os jogos estratégicos dos partidos e do Presidente da República, o problema essencial permanecerá: Montenegro não tem apenas uma questão política para resolver – tem uma questão judicial.

    Se há algo a discutir nas próximas semanas, não é se o primeiro-ministro tem condições políticas para continuar, mas sim se o país aceita reescrever a semântica da palavra “corrupção” para acomodar esta nova realidade. Se sim, então passemos a chamar-lhe outra coisa – avenças, consultorias, parcerias.

  • Será Montenegro o carrasco do PSD?

    Será Montenegro o carrasco do PSD?


    Luís Montenegro chegou ao poder como promessa de mudança, mas em poucos meses já colecciona episódios que colocam em causa a sua credibilidade e a confiança dos cidadãos. Depois das últimas semanas, em que uma alteração da Lei dos Solos descambou em revelações pouco éticas (ou mesmo ilegais) sobre o seu passado, envolvendo a empresa Spinumviva, a questão não é apenas se haverá uma crise política que leve a novas eleições legislativas. A verdadeira questão é a integridade política de quem governa o país.

    Pode-se confiar num primeiro-ministro que, até há bem pouco tempo, recebia avenças mensais de empresas ligadas ao jogo e de outras entidades com as quais manteve relações comerciais antes de assumir funções governativas? E, num plano mais abrangente, podem os políticos continuar a proclamar um regime de transparência quando, na prática, este mais não é do que um exercício de opacidade institucionalizada?

    Os contornos deste caso – e das relações pouco saudáveis de um primeiro-ministro – deveriam inquietar qualquer cidadão atento. O histórico de Montenegro não é um exemplo de sólida integridade, sobretudo quando se considera os sucessivos contratos públicos da sua sociedade de advogados. Enquanto líder da oposição, auferia remunerações regulares de entidades cujo sector depende, directa ou indirectamente, da regulação e acção do Estado. O conflito de interesses é evidente e a justificação, frouxa. O primeiro-ministro apressou-se a garantir que tudo foi feito dentro da legalidade, como se isso, por si só, bastasse para ilibá-lo do problema ético maior: a percepção de que, antes de se sentar à mesa do Conselho de Ministros, estava comprometido com interesses privados.

    E os problemas não ficam por aqui. Hoje mesmo, veio a público mais um caso. Segundo o Correio da Manhã, há discrepâncias nas declarações de rendimentos enviadas pelo primeiro-ministro à Entidade para a Transparência (EpT), nomeadamente na compra de dois apartamentos em Lisboa. Os imóveis, avaliados em mais de 715 mil euros, foram pagos a pronto, sem recurso a crédito bancário. Porém, na aquisição de um deles, há um montante de 226 mil euros cuja origem não foi possível apurar. Confrontado com estas dúvidas, Montenegro saiu-se com a habitual evasiva: “A origem do meu património foi o trabalho. Não existem dados ou meios ocultos.”

    E há mais. Muito antes do caso Spinumviva, Montenegro já acumulava episódios que lançam sombras sobre a sua conduta. O primeiro-ministro beneficiou de isenções fiscais na construção da sua vivenda em Espinho. O pedido foi submetido à Câmara Municipal quando esta era liderada pelo seu amigo Pinto Moreira – que, por coincidência, está a ser julgado por corrupção. O parecer favorável foi posteriormente emitido pelo sucessor, o socialista Miguel Reis. Oficialmente, a obra foi licenciada como uma reabilitação, mas o que aconteceu foi uma construção nova: uma moradia de seis pisos perto da Praia Azul, que resultou da demolição de uma minúscula casa. O Ministério Público arquivou o caso, mas deixou muitas perguntas sem resposta.

    E quem se lembra do Galpgate? Em 2016, Montenegro, então líder parlamentar do PSD, foi um dos políticos apanhados na polémica das viagens pagas pela Galp para assistir ao Euro 2016. Apresentou mais tarde comprovativos de pagamento, mas há suspeitas de que os cheques foram emitidos apenas depois de o caso ter sido denunciado, com datas duvidosas e, nalguns casos, fora de validade. O inquérito foi arquivado em 2021, mas o rasto de desconfiança permanece.

    O problema, agora, é que Montenegro está politicamente ferido. Em vez de assumir responsabilidade, parece preferir colocar-se no papel de vítima, aguardando uma moção de censura – desta vez aprovada (com apoio do PS) – ou sendo empurrado para uma moção de confiança que não conseguirá vencer.

    Seja qual for o desfecho, o primeiro-ministro, que quis vender-se como um líder credível e confiável, está profundamente fragilizado. O PSD, num Governo minoritário sem rumo claro, encontra-se numa encruzilhada, talvez rezando para que não surja mais um “elemento” que destrua o pouco que ainda resta da credibilidade de Montenegro.

    A partir de hoje, se um novo escândalo rebentar e o Governo de Montenegro cair com estrondo, o PSD não terá apenas um problema de liderança – poderá estar perante o início do seu próprio colapso. Entre a Iniciativa Liberal e o Chega, que se aproveitarão da ‘desgraça alheia’, e a habitual transição de votos para o Partido Socialista, a sobrevivência do PSD pode ficar seriamente comprometida.

    Montenegro entrou já na História como líder do PSD e primeiro-ministro. Resta saber se o seu nome não acabará também gravado na lápide do seu próprio partido.

  • Patrícia Reis

    Patrícia Reis

    Na vigésima quinta sessão da BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com a escritora e jornalista Patrícia Reis.



    Jornalista e escritora com uma carreira multifacetada, Patrícia Reis entrou em 1988 no semanário O Independente, tendo posteriormente trabalhado na revista Sábado e realizado um estágio na Time em Nova Iorque. De regresso a Portugal, integrou a equipa do Expresso, produziu o programa de televisão ‘Sexualidades’ e colaborou ainda com as revistas Marie Claire e Elle e com o jornal Público.

    Paralelamente ao jornalismo, dedicou-se à escrita literária, publicando romances como ‘Cruz das Almas’ (2004), ‘Amor em Segunda Mão’ (2006), ‘Morder-te o Coração’ (2007) – este último finalista do Prémio Portugal Telecom de Literatura –, ‘No Silêncio de Deus’ (2008) e ‘Antes de Ser Feliz’ (2009), ‘Morder-te o Coração’ (2015), ‘A Gramática do Mundo’ (2016, com Maria Manuel Viana), ’A Construção do Vazio’ (2017), ‘Da Meia-Noite às Seis’ (2019). Escreveu também biografias, incluindo as de Vasco Santana, Maria Antónia Palla, Simone de Oliveira e, recentemente, de Maria Teresa Horta. E também uma longa série de livros infantojuvenis. Tem também uma longa experiência editorial, sobretudo na revista Egoísta.

    Patrícia Reis fotografada no PÁGINA UM.

    Nesta longa conversa com Pedro Almeida Vieira – no dia seguinte à morte de Maria Teresa Horta –, Patrícia Reis fala do seu percurso profissional, da sua escrita e da escrita dos escritores (e sobretudo das escritoras) que ama e sobre a força da Literatura.

    Entre os romances patentes na Biblioteca do PÁGINA UM, Patrícia Reis recomenda os romances ‘A Voz dos Deuses’, de João Aguiar, publicado em 1984, e ‘A Corte do Norte’, de Agustina Bessa-Luís, publicado em 1987.

    Pormenor da biblioteca ‘caseira’ de Patrícia Reis.
  • Políticos e a hipocrisia da ‘transparência opaca’

    Políticos e a hipocrisia da ‘transparência opaca’


    Em mais um dos seus rasgos de hipocrisia em fim de festa, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, veio afirmar que “a comunicação social tem um papel a desempenhar”, que pode ser “desagradável para os titulares de poderes políticos, mas é um preço”. Claro que Marcelo, especialista em discursos flexíveis como um contorcionista de circo, gosta sempre de equilibrar o jogo: reconhece o papel da imprensa, mas logo relativiza, como se o escrutínio público fosse um incómodo inevitável, uma consequência desagradável da democracia, e não um direito fundamental dos cidadãos.

    Entretanto, o Governo, em coro harmonioso, anda a lamentar o suposto “voyeurismo” sobre os rendimentos dos políticos. A tese é brilhante: nunca há corrupção nem tráfico de influências, não há conflitos de interesse, jamais haverá favores encobertos – o problema é a obsessão dos jornalistas e do povo em querer saber demasiado. E, claro, José Pedro Aguiar-Branco, esse veterano da política e dos negócios, surge a fazer coro, alertando para o perigo de um clima onde, por “demagogia, inveja ou maledicência”, se anda demasiado preocupado com os interesses dos políticos. No limite, diz ele, corremos o risco de “só ficar com políticos sem interesse algum”. A ideia, subentendida, é que bons políticos precisam de um certo grau de opacidade, que os grandes talentos da política só sobrevivem se não forem demasiado escrutinados. Se não for permitido misturar negócios e política, se as perguntas forem muitas e incisivas, então só nos restará uma classe política medíocre.

    A falácia desta narrativa é que assenta numa inversão descarada de valores. Os políticos não são vítimas de um escrutínio excessivo – são, isso sim, os protagonistas de um sistema que se esforça ao máximo para evitar ser escrutinado. A ladainha do “voyeurismo” não é mais do que uma manobra de diversão, um pretexto para mascarar a falta de transparência e a aversão ao legítimo controlo dos actores políticos.

    Na verdade, a legislação sobre a transparência dos rendimentos e património foi desenhada pelos políticos para dificultar ao máximo o acesso a informações relevantes. E não para defender as vidas privadas, mas sim para esconder vícios privados com dinheiros públicos. Os mecanismos de consulta das declarações de rendimentos e interesses dos titulares de cargos políticos são deliberadamente burocratizados, e qualquer tentativa de furar essa barreira enfrenta obstáculos legais e acusações de perseguição mediática. Quando alguém exige mais rigor, a resposta é sempre a mesma: indignação, vitimização e apelos à moderação, como se o problema não fosse a falta de transparência, mas sim a ousadia dos jornalistas e cidadãos que insistem em perguntar.

    A Lei da Transparência dos detentores de cargos políticos, agora gerida pela Entidade para a Transparência, não passa de um exercício de cinismo político, um embuste cuidadosamente arquitectado para que a transparência continue a ser uma ilusão sem qualquer aplicação prática. O regime veste-se com as roupagens da ética e da prestação de contas, mas o corte do fato é feito à medida da classe política, com bainhas suficientemente largas para esconder o essencial e costuras reforçadas contra qualquer tentativa de escrutínio sério.

    A ilusão começa logo com a suposta abertura das declarações de rendimentos, património e interesses. Em teoria, tudo parece acessível, mas basta um olhar atento ao texto legal para perceber que os dados fornecidos são cuidadosamente depurados de qualquer utilidade para investigações jornalísticas. A lista de restrições é extensa: desde a justificada protecção de dados pessoais (como a morada) à exclusão de detalhes fundamentais sobre património e rendimentos. O resultado? Jornalistas e cidadãos são impedidos de cruzar dados de forma eficaz, deixando lacunas perfeitas para quem quiser ocultar informação sensível.

    Printscreen do registo de interesses de um deputados onde se considera que todas as cinco actividades, cargos ou funções que exerceu no ano anterior estão escondidas “devido a sigilo profissional”.

    Por exemplo, ao impedir a consulta detalhada de serviços prestados no âmbito de atividades sujeitas a sigilo profissional ou ao restringir o acesso a informações sobre rendimentos, participações societárias e aplicações financeiras apenas a valores totais, impossibilita-se qualquer verificação séria de potenciais conflitos de interesse. Um político pode ter realizado trabalhos em empresas que fazem negócios com o Estado, mas a lei assegura que ninguém terá acesso ao nome dessas empresas. Transparência? Só a fingir.

    E o grande truque desta encenação legislativa está na criminalização do escrutínio. A violação da “reserva da vida privada” é punida nos termos do Código Penal, o que significa que, em teoria, um jornalista que se atreva a publicar informações inconvenientes pode ser arrastado para os tribunais. E nem precisa de haver uma fuga de dados – basta que a divulgação não esteja formalmente autorizada para que o profissional da imprensa se veja transformado num réu. Como cereja no topo do bolo, há ainda um artigo que impede a publicação da declaração única na Internet ou nas redes sociais, tornando impossível que qualquer cidadão tenha acesso livre à informação.

    Portanto, documentos que, por definição, são públicos, não podem ser tornado verdadeiramente acessíveis, sob pena de punição. As imagens que decidi publicar a acompanhar este texto só não serão puníveis porque não identifico os deputados e posso alegar ser um “meio adequado para realizar um interesse público e relevante” – neste caso, denunciar uma fantochada.

    Mas a maior prova de que esta lei não passa de um embuste é a burocracia kafkiana montada para dificultar o acesso às declarações. Em vez de um sistema aberto e digitalizado, com dados acessíveis e pesquisáveis, impõe-se um sistema absurdo, onde cada pedido de consulta exige um requerimento formal e fundamentado, com registo individualizado, preenchimento repetitivo de formulários e um labirinto de códigos de acesso, reconfirmações e dificuldades informáticas.

    Prinstcreen de uma declaração de um político onde não se identificam as aplicações financeiras, que podem ser acções em empresas sob regulação ou intervenção do Estado.

    Para se ter uma ideia do grau de ridículo, demorei mais de seis horas – repito, seis horas – a concluir os 78 requerimentos das declarações dos deputados do PSD que resultaram nesta notícia. Sim, demorou-se mais tempo a fazer os requerimentos do que as consultas propriamente ditas. Quando tentei avançar com mais pedidos para cobrir todos os 230 deputados, o sistema informático da Entidade para a Transparência colapsou de novo. Desisti. Prefiro denunciar esta palhaçada. Para agravar, após a autorização – com registo –, o acesso expira ao fim de cinco dias, não sendo passível de se fazer a gravação em formato consultável.

    Se houvesse verdadeira vontade de garantir transparência, os dados estariam acessíveis online, sem restrições, e com a totalidade da informação relevante disponível. Não haveria necessidade de pedidos formais, nem registos de quem consulta, nem poderes discricionários para decidir quem pode ou não ver. Mas isso seria um problema para o regime – que criou esta obtusa lei, ainda mais restritiva do que a anterior, gerida pelo Tribunal Constitucional –, porque a transparência real implica responsabilidade, e responsabilidade é precisamente aquilo que a classe política portuguesa mais teme. Melhor mesmo é continuar a iludir os cidadãos com esta transparência de faz de conta, onde tudo parece acessível e tudo se esconde.

  • Mercado de trabalho qualifica-se com ‘voz feminina’

    Mercado de trabalho qualifica-se com ‘voz feminina’

    A força de trabalho em Portugal está cada vez mais qualificada, e este progresso tem sido impulsionado sobretudo pelas mulheres. Os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE), referentes ao 4.º trimestre de 2024, mostram que o número de trabalhadores com ensino superior atingiu um máximo histórico, fixando-se nos 1,821 milhões. Trata-se de um aumento de 51% em relação a 2014, quando o número de licenciados, mestres e doutores na população activa era de 1,287 milhões.

    O aumento líquido da população activa com pelo menos a licenciatura foi de 533,8 mil em apenas uma década, superando mesmo o crescimento da população activa absoluta que cresceu apenas 520,5 mil. Esta situação deveu-se ao facto de, por via da saída do mercado de trabalho das pessoas menos qualificadas, observarem-se reduções significativas. Assim, observou-se uma redução de 70,2 mil para 34,9 mil de trabalhadores no mercado de trabalho sem qualquer formação, enquanto aqueles que têm apenas o primeiro ciclo do ensino básico diminuíram de 652,2 mil para 354,1 mil, e os que têm o segundo ciclo diminuíram de 669,6 mil para 503,9 mil na última década.

    three women sitting around table using laptops

    Os únicos dois grupos que aumentaram foram os das pessoas com o ensino secundário e com o ensino superior, embora este segundo grupo tenha passado a dominar nos últimos dois anos. Se no final de 2014, representavam 50,5% da população activa, agora ultrapassam os 67%. Considerando apenas a população activa com ensino superior concluído, no final do ano passado representavam já 34% do total, uma subida de 9,3 pontos percentuais face ao último trimestre de 2014.

    Mas o aspecto mais marcante desta evolução da última década é o reforço da contribuição das mulheres na qualificação do mercado de trabalho em Portugal. Embora o peso relativo das mulheres se tenha mantido estável – passou de 49,2% para 49,6% ao longo dos últimos 10 anos –, o aumento em termos absolutos faz-se notar na formação. No quarto trimestre de 2014, de acordo com o INE, havia 750,6 mil mulheres com ensino superior; dez anos depois, esse número subiu acima de 1,1 milhões, um crescimento de 47%.  No caso dos homens, passaram de 488 mil para 772 mil, uma subida de 58%, mas em termos absolutos menos significativa do que a das mulheres. De facto, em termos líquidos, o aumento de 640 mil licenciados no mercado de trabalho veio de 356 mil mulheres e 284 mil homens.

    O peso feminino na força de trabalho qualificada é inegável. Enquanto os homens continuam a ser maioria nos níveis de escolaridade mais baixos, as mulheres já dominam o ensino superior. No total, 40,5% das mulheres activas têm um grau académico superior, contra 27,8% dos homens. Em finais de 2024, esses valores eram, respectivamente, de 30,6% e 19,2%. Ou seja, o fosso entre os dois sexos ainda aumentou mais 1,3 pontos percentuais, favorável às mulheres.

    Evolução da população activa em função do nível de ensino entre 2014 e 2024 (quarto trimestre de cada ano). Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

     Esta disparidade confirma um padrão que já se vinha a consolidar há décadas no sistema educativo português, onde as raparigas superam consistentemente os rapazes nos resultados escolares e na frequência universitária. A maior qualificação das mulheres no mercado de trabalho não é um fenómeno isolado. O sistema educativo português há muito que reflecte essa tendência, com as alunas a obterem melhores resultados escolares e a prosseguirem mais os estudos do que os seus colegas masculinos. Os números do INE confirmam que essa vantagem académica se traduziu, na última década, numa transformação estrutural da força de trabalho portuguesa.

    No entanto, este progresso ainda não encontra eco de forma proporcional nos salários ou mesmo no acesso a cargos de topo. A disparidade salarial entre homens e mulheres mantém-se, tal como a menor presença feminina em funções de liderança nas empresas e no sector público. O crescimento da qualificação das mulheres é, assim, um avanço inegável, mas que levanta novas questões sobre a efectiva valorização das suas competências no mercado de trabalho.

  • Regulador dos media não pode esconder dados financeiros da IURD, diz parecer da CADA

    Regulador dos media não pode esconder dados financeiros da IURD, diz parecer da CADA

    Helena Sousa, ex-jornalista e presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), e os seus colegas do Conselho Regulador, não podem continuar a proteger a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), permitindo a ocultação dos dados financeiros daquela associação religiosa. Quem o diz é a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), em parecer aprovado após queixa do PÁGINA UM.

    Em causa está o impedimento da ERC em permitir o acesso aos documentos financeiros que a IURD – tal como todos as entidades e empresas detentoras de órgãos de comunicação social – está obrigada pela Lei da Transparência dos Media a enviar anualmente ao regulador. Sem qualquer sustentação legal, e contrariando as directizes do anterior Conselho Regulador, a equipa de Helena Sousa permitiu que a IURD, que tem sido representada pela poderosa sociedade Abreu Advogados, deixasse de divulgar os seus dados financeiros globais, passando a reportar apenas informações não validadas e relativas à sua actividade mediática.

    A mudança ocorreu sob a presidência de Helena de Sousa, sem qualquer deliberação formal, permitindo à IURD ocultar as movimentações financeiras das suas actividades globais, que, entre 2017 e 2022, envolveram 209 milhões de euros. A ERC justificou a decisão alegando que a actividade de comunicação da IURD seria “secundária”. Um argumento que não tem uma base factual: a igreja evangélica de origem brasileira detém, directa e indirectamemnte, 12 rádios, dois jornais e um canal televisivo (UniFé TV), incluindo os meios de comunicação da sua ‘holding’ Global Difusion, que acumulava dívidas de 58 milhões de euros e estava em falência técnica em 2022.

    Face à habitual recusa da ERC em permitir acesso a documentos administrativos, com atitudes de reiterada prepotência, o parecer da CADA acaba por revelar mais uma vez a postura obscurantista do regulador dos media – algo que se tornou recorrente e de uma impunidade desarmante. Com efeito, de acordo com o parecer da CADA, embora a ERC possa determinar aquilo que pode ser revelado publicamente, esse acto não impede o acesso a outra informação em sua posse, que venha a ser solicitada, por exemplo, por um jornalista.

    “Uma coisa é o cumprimento de deveres de divulgação activa de informação no âmbito das competências da ERC, enquanto reguladora das entidades que prosseguem atividades de comunicação social; outra coisa é o direito de acesso aos registos e arquivos da administração pública”, salienta o parecer da CADA, agora presidida pela juíza conselheira Maria do Céu Neves.

    Helena Sousa, presidente do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

    Na argumentação, a CADA salienta que “o exercício do direito de acesso aos arquivos e registos administrativos não se confunde, não exclui ou colide com os deveres de divulgação activa que impendem sobre a ERC – nem vice-versa”. Ou seja, o regulador dos media até tem liberdade de divulgar o que lhe apetece, mesmo sem uma base legal, mas não pode depois impedir que alguém queira aceder aos documentos originais, incluindo troca de correspondência entre as partes. A CADA destaca, de forma clara, que mesmo se os elementos financeiros globais da IURD não sejam divulgados pela ERC, “não deixa de ser acessível por qualquer interessado no quadro da LADA [Lei do Acesso aos Documentos Administrativos”.

    Este é mais um episódio de um absurdo caso envolvendo as dificuldades de acesso a documentos detidos pela ERC, uma entidade ironicamente criada pela Constituição para defesa da liberdade de imprensa e acesso à informação. O PÁGINA UM já se viu mesmo obrigado a recorrer ao Tribunal Administrativo para que o regulador disponibilizasse documentos, mesmo de forma contrariada. Extrajudicialmente, a CADA já se pronunciou por seis vezes sobre as atitudes de bloqueio por parte da ERC, sempre de forma desfavorável a esta entidade, conforme se pode ver aqui (1), aqui (2), aqui (3), aqui (4), aqui (5) e aqui (6).

    Após este parecer, a ERC pode decidir acatar ou não o parecer da CADA, porque não é vinculativo. Em todo o caso, sobre este caso da IURD, e no decurso de uma notícia do PÁGINA UM em 30 de Outubro do ano passado, a ERC está ainda a analisar uma queixa apresentada pela Abreu Advogados como representante da igreja evangélica. O mais curioso dessa queixa, por alegada falta de rigor, é que a notícia visada envolve a actuação à margem da lei da própria ERC, que assim poderá vir a decidir em causa própria.

    Foto: PÁGINA UM

    Saliente-se que a ERC tem poderes, que usa de forma arbitrária, para apreciar queixas sobre a alegada falta de rigor dos órgãos de comunicação social, cuja análise é conduzida de uma forma muito sui generis. O director do órgão de comunicação social é ‘convidado’ a pronunciar-se sem saber qual a acusação em concreto, e depois é elaborada uma deliberação crítica sobre a qual o Conselho Regulador aceita ou não uma reclamação posterior.

    Como estas deliberações da ERC não implicam uma penalidade, não são consideradas actos administrativos – são assim meros bitates (embora possam ser usados para descredibilizar jornais e jornalistas incómodos) –, nem sequer são passíveis de impugnação judicial.


    N.D. O PÁGINA UM usou uma fotografia de Helena Sousa na “Galeria de Imagens” da ERC, onde surge uma referência a ser obrigatória uma autorização por escrito para o seu uso. Mais uma vez a ERC exorbita as suas competências e poderes. A ERC é um organismo público e, como tal, está vinculada ao princípio da transparência da Administração Pública e ao direito constitucional de acesso à informação. Nos termos da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (Lei n.º 26/2016), os documentos detidos por entidades públicas – incluindo fotografias institucionais que documentam a sua actividade – são de acesso livre e podem ser utilizados sem necessidade de qualquer autorização prévia, salvo se estiverem protegidos por excepções legais devidamente fundamentadas, como questões de segurança, privacidade ou sigilo legal.

    Além disso, nos termos do artigo 8º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, os textos e documentos oficiais produzidos pela Administração Pública não são protegidos por direitos de autor. Fotografias institucionais que servem para ilustrar a actividade da ERC, ou os seus membros, não podem, portanto, ser restringidas com base numa alegada necessidade de autorização, tanto mais se forem expostas no seu site.

    A imposição de uma autorização prévia para a utilização destas imagens constitui uma tentativa ilegítima de controlo sobre a circulação de informação pública e não tem qualquer fundamento legal. O PÁGINA UM não reconhece qualquer legitimidade a esta exigência e não aceita estar condicionado ao uso de imagens institucionais públicas.