Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Ainda de olho ao peito

    Ainda de olho ao peito


    Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, dizia Camões — e, valha a verdade, se o nosso épico não tivesse perdido um olho, talvez visse com mais nitidez o que esta crónica, de visão ainda turva, tem vindo a confirmar: a tradição já não é o que era, e quem de costume observa a bola da Varanda da Luz, anda mais dado a filosofias e quejandos do que à redondinha propriamente dita, aqui o garante.

    De facto, nos últimos jogos do Benfica na Liga, este vosso cronista habitual fez gazeta, primeiro porque foi lourear a pevide para Espanha, depois porque um bisturi decidiu meter-se em campo e substituí-lo sem aviso prévio. Ou seja, perdeu dois jogos no conforto da Luz, mas vá-se lá saber como, no último mês e meio, apareceu em Montjuic, foi a Alvalade ver a selecção e ainda teve a ousadia de ir ao antro do Dragão, onde o Benfica deu uma coça ao Porto.

    E tudo isto, nas últimas duas semanas, com um olho que vê mal ao perto e só agora começa a distinguir camisolas ao longe. E o outro está como estava: mal. Ja consigo ver os números nas costas dos jogadores, o que é um progresso — antes disso, via os jogos como quem lê prescrições médicas: de longe, com desconfiança e a torcer para não me enganar.

    Mas como o bom filho à casa retorna (ainda que tropeçando nos degraus e piscando os olhos ao ecrã como quem faz sinal à torre de controlo), eis que esta crónica volta à vida. Ou melhor, ressuscita com ajuda: o relato de hoje é da pena do Tiago Franco, que além de ver bem (ao que consta) ainda escreve com propriedade sobre futebol. Ficam mais bem servidos, não duvidem — porque se fosse eu a escrever, acabava-se a falar da teoria do caos, da filosofia dos penáltis, ou da geopolítica dos fora-de-jogo.

  • Montenegro e as ‘fake news’: a construção da impunidade

    Montenegro e as ‘fake news’: a construção da impunidade


    Luís Montenegro continua a esforçar-se, com notável insistência, por alimentar os piores tiques do trumpismo — mas sem o folclore nem o carisma. A cada nova revelação de dúvidas sobre questões essenciais das suas finanças e das finanças do PSD, atira-se à imprensa como quem cospe no espelho, acusando jornalistas de espalharem falsidades e exigindo-lhes “rigor”, ao mesmo tempo que tropeça em contradições e se esquece de que a verdade factual é sempre a primeira vítima da arrogância política. E usa a própria imprensa para lançar essas acusações — que as divulga, caindo no engodo.

    Desde que o caso Spinumviva — nome digno de um thriller político, mas enraizado nas práticas rotineiras do compadrio à portuguesa — fez cair o Governo, e Montenegro (e o PSD) se manteve disponível para ir novamente a eleições, torna-se evidente o que está em causa: deslegitimar a crítica e normalizar a impunidade.

    Quando Montenegro acusa jornais como o Expresso e o Correio da Manhã de difundirem “manipulações” e “mentiras”, não está apenas a defender-se. Está a lançar as bases para um novo modelo de governação em Portugal: aquele em que um governante se transformará em vítima perpétua, em mártir da verdade, em paladino de uma integridade assente na ocultação de relações, interesses e amizades bem posicionadas. Montenegro não é ingénuo — pelo contrário, é hábil. E aquilo que se tem visto nesta campanha é a preparação subtil de um escudo contra o escrutínio, onde qualquer denúncia de favorecimento, qualquer ligação embaraçosa, qualquer conta bancária mal esclarecida será imediatamente rotulada de “fake news”, ao estilo de Donald Trump, mas com sotaque de Vila Real e residência em Espinho.

    Estes episódios não podem ser vistos como um fait-divers de campanha. É um aviso, e dos fortes. Se Montenegro conseguir transformar a sua condição de suspeito recorrente em trunfo eleitoral, se for recompensado nas urnas não apesar das suspeitas, mas precisamente por se apresentar como o homem que enfrenta “a comunicação social”, então teremos dado um passo decisivo na erosão do jornalismo como instância de vigilância do poder. O primeiro-ministro que se queixa de perseguição não é novo, mas aquilo que é novo — e inquietante — é o grau de naturalidade com que o faz, ao mesmo tempo que se mostra incapaz de responder objectivamente às questões que lhe são colocadas.

    Na democracia, o escrutínio não é perseguição. A imprensa livre não é inimiga do povo. E uma democracia adulta não aceita que o chefe do Governo insinue que só ele é alvo, que só ele é injustiçado, que tudo à sua volta é “simplesmente falso”. Essa pose de santidade laica é, na verdade, a máscara da opacidade.

    É também revelador — e grave — que Montenegro tenha desvalorizado o pedido de esclarecimentos sobre as suas contas bancárias, afirmando tratar-se de “uma prestação de esclarecimentos banal”. Banal? Quando um candidato a primeiro-ministro é instado a explicar-se sobre movimentos bancários e possíveis conflitos de interesse, isso nunca pode ser banal. Só num país habituado à opacidade, onde os favores e as avenças se confundem com “relações familiares”, é que um político pode declarar, com impunidade, que essas ligações nada têm que ver consigo. E ainda ter a audácia de inverter os papéis: transformar-se de arguido mediático em acusador dos media.

    O padrão é claro: descredibilizar o mensageiro para desviar do conteúdo. A fórmula resulta — e Montenegro sabe-o. É por isso que insiste em falar de uma “pressão especial” sobre si. Ora, essa pressão não é mais do que o funcionamento normal de uma imprensa que ainda não perdeu por completo a vergonha.

    Mas, se Montenegro conseguir traduzir o seu vitimismo em votos, se vier a chefiar um novo Governo, então essa “pressão” passará a ser um incómodo a eliminar. E não tenhamos ilusões: será com uma sucessão de pequenas mudanças, com nomeações cirúrgicas, orçamentos cortados, pressões discretas sobre directores de redacção e legislação com nomes pomposos como “transparência da informação” que a liberdade de imprensa será laminada.

    Estamos perante uma verdadeira ameaça: não será a gritaria pontual contra um jornalista ou uma reportagem, mas a construção de um ecossistema de governação onde só há uma verdade — a do primeiro-ministro — e tudo o resto é ruído. O caso Spinumviva foi o primeiro sinal. O ataque aos jornais foi o segundo. O terceiro será o silêncio, se os eleitores não perceberem o que está em causa.

    Neste Portugal cada vez mais habituado à amnésia e ao medo de desagradar, Montenegro, o ainda primeiro-ministro português, aparece como o rosto sereno de um futuro inquietante. O seu sorriso é educado, o seu tom é moderado, mas o seu projecto é claro: fazer da impunidade um direito adquirido pelo voto. E isso, se acontecer, será a maior derrota da democracia portuguesa desde que temos memória.

  • VAR: 3 centímetros medidos por um engenheiro cartógrafo em cima de um touro mecânico

    VAR: 3 centímetros medidos por um engenheiro cartógrafo em cima de um touro mecânico


    Sou benfiquista, como se sabe — e no momento, no calor do momento, posso até ficar satisfeito com um erro de arbitragem que benefica o meu clube, mas a sensação de injustiça não me agrada depois da espuma dos dias.

    Porém, já me irrita deveras, e logo no momento, que, para se eliminar ou reduzir os erros dos árbitros de futebol. se tenha introduzido o VAR [Video Assistant Referee] para decidir foras-de-jogos de poucos centímetros.

    Pela segunda vez em poucos meses, o Sporting esteve envolvido em dois foras-dejogo por três centímetros, detectado com o rigor de um cirurgião oftalmologista a operar num sismo. Primeiro, em finais de Fevereiro, saiu beneficiado por um golo invalidado ao Gil Vicente ao minuto 88, que daria o empate numa elimimnatória da Taça de Portugal. Na passada segunda feira, saiu-lhe a fava contra o Braga, com um golo invalidado ao avançado Gyokeres por um milímetro fora de-jogo de três centímetros.

    Aquilo que um incrédulo como eu pensa, sem pestanejar — e, já agora, informa-se que o acto de pestanejar dura 100 a 400 milissegundos, ou seja, 0,1 a 0,4 segundos —, é que o universo VAR rege-se por uma física muito própria, onde a justiça se mede à régua de costureira e a verdade desportiva é desenhada a lápis óptico.

    Não sendo a arbitragem de futebol o meu forte — fui um sofrível árbitro de basquetebol algures nos finais dos anos 80 e princípios de 90, não passando da terceira divisão —, uma pergunta física se impõe: com os meios actuais, pode o VAR detectar um fora-de-jogo real de três centímetros? A resposta, para desgosto dos crentes na santidade da tecnologia, é não — a menos que se confunda precisão com ilusão. E é aqui que a ironia entra em campo.

    O sistema VAR trabalha com imagens captadas a 50 ou 60 fotogramas por segundo — o que significa que a cada 16 a 20 milissegundos temos uma nova imagem. Agora façamos um pequeno exercício de física primária (sim, aquela que não cabe na ficha técnica da Liga): um jogador a correr a 30 km/h percorre cerca de 17 centímetros entre dois frames. O Cristiano Ronaldo, no seu auge, sprintava a 34 lm/h. Ou seja, a incerteza temporal, só por si, pode ser bem superior a 15 cm. Mas eis que o VAR — como se fosse um oráculo digital com vista de falcão e paciência de relojoeiro — afirma com convicção que o jogador estava três centímetros adiantado. Exactamente três. Não dois, nem quatro. Três. Uma precisão que faz corar os fabricantes de microscópios.

    Mas o problema não é só o tempo. É também o espaço. Para desenhar a linha de fora-de-jogo, é preciso saber exactamente em que milésimo de segundo a bola foi tocada (com um frame que pode ter variância de 20 ms), identificar a parte mais avançada do corpo do jogador atacante que pode legalmente jogar a bola (ombro? joelho? cotovelo com intenção?) e alinhar isso com o penúltimo defensor, que por acaso também está a correr, a saltar, ou a escorregar. É uma coreografia de erros sistemáticos mascarada de infalibilidade digital.

    No fundo, o VAR tornou-se uma espécie de engenheiro cartógrafo em cima de um touro mecânico. Traça linhas rectas sobre jogadores curvos, determina momentos exactos em acções fluidas, e depois oferece-nos o resultado como se fosse uma epifania científica. O futebol, esse, vai aceitando. Com fé. Porque, como se sabe, três centímetros é um escândalo quando se trata de um dedo do Goykeres, mas uma irrelevância estatística quando se trata do orçamento do Benfica.

    Ironia das ironias: se a Liga (e os senhores da FIFA e UEFA) tivesse vergonha, já teria assumido que um fora-de-jogo inferior a 10 ou 15 centímetros é, na prática, uma ficção óptica com pretensões de exactidão matemática. E introduzia uma margem de erro, validando as jogadas em que essa distância (10 a 15 centímetros) se aplicasse. Mas não. Prefere-se manter o teatro da infalibilidade, como se o VAR fosse um algoritmo sacrossanto e não um operário de consola a clicar num ombro mal ampliado.

    No fim, sobra uma certeza: o VAR está para o futebol como a fita métrica está para a poesia. Não resolve, não encanta, e raramente acerta no espírito do jogo. Mas continua lá, à espera de outro golo de três centímetros para anular — e outro clube para “prejudicar” hoje e “beneficiar” amanhã. Com milimétrica imparcialidade. E eu só queria ver o Benfica campeão sem ser por causa do VAR… ou à custa de empurrar dívida, que um dia pode estoirar, com a barriga, através de sucessivas emissões de obrigações de milhões e milhões.

  • Março de 2025 foi o mais mortífero desde 2005. É uma má notícia? Não

    Março de 2025 foi o mais mortífero desde 2005. É uma má notícia? Não

    Foram 11.058 óbitos registados no passado mês de Março. Em termos absolutos, o valor impressiona: neste século, apenas foi superado uma vez, no ano de 2005, e tem de se recuar a 1951 para se encontrar outro Março acima da fasquia das 11 mil mortes neste mês de transição entre o Inverno e a Primavera. O valor deste ano até ultrapassa inclusivamente o de Março de 2020, quando a pandemia de covid-19 começava a ganhar expressão e inquietação pública, e durante o qual faleceram 10.582 pessoas em território nacional.

    Porém, por mais inquietante seja esse ‘flash’ temporal de 31 dias, o número de óbitos não pode ser interpretado como sinal inequívoco de anomalia. Na verdade, no contexto mais alargado do último Inverno – aqui definido como o quadrimestre que vai de Dezembro de 2024 a Março de 2025 – se se quiser apntar alguma anormalidade, então é à pouco usual ‘estabilidade letal’ do Inverno de 2024-2025, o período do ano em regra mais mortífero em Portugal.

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    Ao contrário do que é habitual em muitos anos anteriores, em que se registam picos abruptos num ou dois meses — muitas vezes em Dezembro e Janeiro ou em Janeiro e Fevereiro — seguidos de quebras marcantes em Março, o mais recente quadrimestre apresentou uma mortalidade notavelmente uniforme, com todos os meses a ultrapassarem os 10 mil óbitos e com uma diferença de apenas 857 mortes entre o mês mais e o menos mortífero.

    Esta variação interna é a sexta mais baixa dos últimos cinquenta invernos, o que demonstra não apenas a ausência de surtos concentrados, mas também uma persistência de risco distribuída ao longo de todo o Inverno. Esta regularidade é rara e pode ocultar o verdadeiro impacto da estação fria: quando não há um pico, há menos alarme — mas a mortalidade, diluída e silenciosa, soma-se com o mesmo peso.

    Esta uniformidade explica a razão para Março de 2025, apesar de ter uma mortalidade historicamente elevada, não representar aquilo que se chama um ‘outlier’ estatístico com preocupantes sinais epidemiológicos. Em linguagem comum, isto significa que o número de mortes, embora superior à média, não ultrapassa aquilo que seria previsível à luz da evolução demográfica e da sazonalidade das últimas décadas.

    Mortalidade no Inverno (quadrimestre Dezembro do ano N a Março do ano N+1) nos últimos 50 anos (LINHA AMARELA) e linha de tendência (TRACEJADO VERMELHO). Fonte: INE e SICO. Análise; PÁGINA UM.

    Para se perceber a relevância desta avaliação, o PÁGINA UM analisou os dados de uma forma mais sistemática. Considerando todos os períodos Dezembro-Março desde 1974, a mortalidade média situou-se em cerca de 40.745 mortes por quadrimestre. O total observado entre Dezembro de 2024 e Março de 2025 – as tais 44.107 mortes – fica cerca de 0,91 desvios-padrão acima da média, o que, numa leitura estatística convencional, é sinal de um valor elevado, mas não invulgar, e nem fugindo à tendência das últimas décadas.

    De facto, os dados das últimas cinco décadas apontam para um crescimento consistente da mortalidade no quadrimestre Dezembro-Março, com uma subida média anual de cerca de 160 mortes, mesmo considerando os picos de mortalidade entre 2020 e 2022, decorrentes tanto da mortalidade por covid-19 como pela gestão da pandemia. Esta evolução tem raízes sobretudo na alteração da estrutura etária da população portuguesa, cada vez mais envelhecida, e nas condições de saúde associadas a essa realidade.

    Assim, um Inverno com mais de 44 mil mortes já não surpreende – é, antes, o ‘novo normal’. Aliás, tem ultrapassado essa fasquia em todos os últimos seis Invernos. E desde o Inverno de 2011-2012, inclusive, contam-se nove anos a superarem esse valor, embora apenas um (2020-2021) subindo acima de 46 mil. Nesse Inverno, a mortalidade ascendeu a quase 55 mil óbitos, coincidindo com o pico da pandemia, uma vaga de frio em Janeiro de 2021 e com o colapso do Serviço Nacional de Saúde.

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    Curiosamente, a estabilidade intermensal da mortalidade do recente Inverno pode ser explicada por um fenómeno conhecido como “efeito harvesting” (literalmente, colheita), muito estudado em demografia e Saúde Pública. Quando os meses de Dezembro e Janeiro são especialmente severos em termos de mortalidade – como acontece com surtos fortes de gripe ou vagas de frio – é comum que os meses seguintes apresentem valores inferiores à média, porque uma parte da população mais vulnerável já sucumbiu antes.

    No Inverno de 2024-2025, pelo contrário, os meses de Dezembro (11.905 mortes) e Janeiro (10.201 mortes) não atingiram níveis extremos, o que terá deixado um maior número de pessoas vulneráveis vivas até Março – mês em que, por razões naturais, ou por agravamentos clínicos cumulativos, acabaram por falecer.

    Neste contexto, pode-se afirmar que, embora Março de 2025 tenha sido historicamente elevado, ele não foi anormal – mas sim o reflexo de um Inverno prolongadamente suave, sem grandes picos nem grandes quebras, como aliás se confirma pela ausência de descidas abruptas em Fevereiro.

    person walking on hallway in blue scrub suit near incubator

    Ainda assim, há um dado que deve merecer atenção redobrada dos responsáveis pela Saúde Pública. Quando se analisa o valor global do quadrimestre em função da tendência linear esperada, constata-se que a mortalidade até ficou ligeiramente abaixo do valor previsto para o ano de 2024 – cerca de 644 mortes abaixo da linha de tendência.

    Este desvio, ainda que pequeno, pode indiciar uma acumulação de vulnerabilidades que não se expressaram durante o Inverno, mas que poderão tornar-se críticas nos meses seguintes. Ou seja, as ondas de calor mais intensas podem ser particularmente letais para os mais idosos e doentes crónicos.

  • Tribunal manda repetir eleições da Ordem dos Psicólogos por irregularidades graves

    Tribunal manda repetir eleições da Ordem dos Psicólogos por irregularidades graves

    O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa considerou admissível a acção intentada por quatro candidatos da lista derrotada nas eleições da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), realizadas em finais de Novembro do ano passado. Sofia Ramalho, a actual bastonária, que tomou posse poucos dias depois do mais recente Natal, deverá ter de ir novamente a votos, sanando as «irregularidades graves» apontadas pelo juiz António Gomes da Silva na sentença de hoje, à qual o PÁGINA UM teve acesso.

    Na origem da acção estavam denúncias de falhas graves no processo eleitoral, promovida pela direcção da qual Soficaa Ramalho fizera parte – no mandato de Francisco Miranda Rodrigues –, com destaque para a gestão caótica da votação electrónica, que impediu muitos psicólogos de votarem. Segundo ficou provado, a empresa Multicert, contratada para gerir o sistema de votação, reenviou códigos de acesso (PINs) a 199 eleitores no próprio dia das eleições, mas apenas 12 destes conseguiram votar. Além disso, os critérios para esse reenvio foram alterados no decurso do acto eleitoral e aplicados de forma opaca.

    a man holds his head while sitting on a sofa

    O tribunal considerou que os autores – todos candidatos pela ‘Lista A’ e também eleitores – tinham legitimidade para impugnar o acto, frisando que a acção era tempestiva e juridicamente válida. Relevou igualmente que a Mesa Eleitoral integrava membros com vínculos directos a listas candidatas, o que levantava «sérias dúvidas sobre a imparcialidade» do órgão responsável pela condução do processo.

    Entre os episódios relatados consta ainda a violação do período de campanha eleitoral, com um candidato da lista vencedora a enviar mensagens de apelo ao voto no próprio dia da votação. O tribunal sublinhou que as eleições numa ordem profissional regem-se pelos princípios constitucionais do sufrágio universal, secreto, directo e livre, sendo exigida à OPP uma conduta administrativa irrepreensível.

    A decisão judicial do Tribunal Administrativo não invalida de imediato os resultados eleitorais, sendo passível de recurso, embora a análise do juiz António Gomes da Silva se mostre bem sustentada ao longo das 40 páginas da sentença.

    Sofia Ramalho, bastonária da Ordem dos Psicólogos, viu o Tribunal Administrativo anular o acto eleitoral por irregularidades graves.

    O juiz salienta que a acção de impugnação é «totalmente procedente, por fundada e provada», designadamente pela incapacidade de “pelo menos 218 eleitores” exercerem “o direito de voto com o código de acesso”. Registaran-se também casos de pedidos de reenvio do PIN por requerentes que nem sequer constavam da base de dados. E houve mesmo quem recebeu os códigos apenas dois minutos antes do encerramento do acto eleitoral.

    O até agora curto mandato de Sofia Ramalho tem sido pautado por outras polémicas, a última das quais a elaboração de um guia sobre desinformação, em estilo de catecismo, onde até se apontam consequências mentais. A bastonária, que antes ocupara o cargo de vice-presidente do Conselho Geral, vencera as eleições de Novembro com uma margem curta: obteve 2.834 votos contra os 2.704 da lista liderada por Ana Conduto e os 1.634 votos de Eduardo Carqueija. Ao contrário daquilo que sucede com as Ordens dos Médicos e dos Advogados, no caso dos psicólogos não é necessária segunda volta se o candidato mais votado obtiver a maioria no escrutínio.

  • O Dragão e o Lobo

    O Dragão e o Lobo


    Já percorri muitas varandas futebolísticas nos últimos dois anos, mais como um turista excêntrico — daquele tipo que percorre mosteiros barrocos — do que como jornalista. Escrevo crónicas que, em certa medida, compensem os meus poucos atributos sobre tácticas e estilos. Daí que houve, neste ínterim, dezenas de Varandas da Luz, umas Varandas do Varandas (com e sem Carlos Enes), uma do Jamor, outra em Montjuic — com vista para a nostalgia catalã — e até uma Varanda das Cinco Quinas, que soa mais a chá com bolinhos e um fora-de-jogo. Começava, pois, a ambientar-me à doce vida de cronista da bola: ver sem ver, escrever sem ver muito, e opinar com aquele à-vontade próprio de quem nunca treinou sequer um grupo de escuteiros e nunca calçou chuteiras, apesar de, como jornalista, dar muitas caneladas.

    Foto: PÁGINA UM

    Até que, no esplendor de uma convalescença ocular, desembarquei no Dragão. Não num cavalo branco, mas com a garantia de o Tiago Franco — benfiquista militante e erudito da táctica invertida com carapaus — me escrever a crónica, e assim, de smartphone em punho, dispus-me apenas a fazer o que qualquer jornalista faz quando não tem de escrever: tirar fotografias.

    Eis senão quando, surge uma senhora. Não uma senhora qualquer, mas uma zelosa representante da FC Porto Média, que em vez de um crachá trazia, presume-se, um faro treinado para detectar crimes audiovisuais. “Está a filmar o jogo?”, pergunta-me com a doçura de um fiscal tributário. “Deixe-me ver o seu crachá”, remata. Pasmo. Não estava a filmar. E digo-o. E repito. E entro, vá, numa altercação ligeiramente furibunda (com a suavidade de um cronista que só vê com um olho e mesmo assim vê demais) sobre que raio de coisa era aquela de estar a querer saber o que um jornalista em funções estava a fazer ou deixava de fazer. Não gravo a conversa, mas tirei fotografia ao seu crachá para memória futura…

    Foto: PÁGINA UM

    É verdade, confesso, dei demasiado nas vistas: quase gritei golo do Benfica ao primeiro minuto. Mea culpa. Não bati palmas a jurar fidelidade ao dragão nem entoei o hino com reverência litúrgica antes do apito inicial. Mas daí até ser tratado como um espião de bancada vai um salto… de vara.

    Enfim, se querem afastar o mito de que o FCP é um clube dado a tiques inquisitoriais, talvez não seja má ideia dispensarem o papel de Santo Ofício às suas zeladoras. Afinal, quem não quer parecer lobo talvez devesse reconsiderar o uso insistente de pele lupina.

  • Sondagens (ou palermices) no país da manipulação de massas

    Sondagens (ou palermices) no país da manipulação de massas


    Quando se afirma que uma sondagem foi feita com “rigor científico”, geralmente associada a uma reduzida margem de erro, espera-se, no mínimo, que esse rigor não se dissolva ao primeiro olhar sobre a ficha técnica. Mas o que o Público, a RTP e a Antena 1 aceitaram publicar por estes dias — com chancela ‘científica’ da Universidade Católica, via CESOP — não é uma sondagem: é uma palermice mascarada de estatística.

    E pior: é uma palermice perigosa, porque serve para manipular a opinião pública sob o verniz da respeitabilidade académica. Com a bênção silenciosa da ERC, essa entidade reguladora que há muito perdeu a utilidade e hoje apenas funciona como um armazém de pareceres burocráticos, incapaz de defender os cidadãos contra a intoxicação informativa.

    Comecemos pelo número mais escandaloso: a taxa de resposta desta suposta sondagem (que, como todas as outras nunca são validadas externamente) foi de 29%. Isto significa, de forma crua, que sete em cada dez pessoas recusaram participar na sondagem. Foram contactadas 4.177 pessoas, mas só 1.206 aceitaram responder. E, ainda assim, esses 1.206 são tratados como se representassem fielmente os mais de nove milhões de eleitores portugueses. Há aqui dois problemas gravíssimos que deviam invalidar qualquer pretensão de fiabilidade desta sondagem:

    1. Auto-selecção dos inquiridos: quem responde não é uma amostra aleatória pura, mas sim quem quis responder. Esse grupo tende a ser mais politizado, mais disponível e, muitas vezes, mais alinhado com os meios de comunicação que encomendam a sondagem. Há uma diferença enorme entre uma amostra aleatória de 1.206 pessoas com alta taxa de resposta e uma amostra de 1.206 extraída de um universo onde 71% recusaram participar. A Universidade Católica sabe isso; os directores dos órgãos de comunicação social talvez -mas todos participam na farsa que alimentará notícias, comentários e entrevistas até à próxima fraude.

    2. Distância entre método e realidade eleitoral: por mais que os ‘produtores’ destas ‘sondagens’ se defendam com “ponderações estatísticas”, o facto é que não se pode corrigir um viés de auto-selecção se não se conhece sequer o perfil dos que não responderam. A ilusão de representatividade criada pelas chamadas ponderações é apenas isso: uma ilusão. Ou, se quisermos ser mais justos, um embuste.

    Que uma universidade alimente este tipo de práticas já seria, por si só, um motivo de vergonha académica. Que meios de comunicação social com responsabilidades públicas, como a RTP, aceitem difundir os resultados como se fossem uma fotografia fiável do país — isso, sim, é escandaloso. E que a ERC assista e abençoe esta prática de manipulação de massas num regime democrático é uma prova da sua absoluta inutilidade e de uma indigência que mina a democracia. A ERC, que devia zelar pela integridade da informação difundida, transforma-se, com a sua cumplicidade, numa aliada objectiva da pura desinformação.

    Aliás, esta não é uma falha isolada. Há muito que os chamados estudos de opinião servem mais para formar percepções do que para retratar realidades. O objectivo não é saber em quem os portugueses tencionam votar, mas sim condicionar o voto dos indecisos com o argumento da viabilidade e da “preferência nacional”, construídas em cima de amostras frágeis e enviesadas.

    Não basta publicar a margem de erro (aqui 2,8%, como se isso tivesse algum valor real com 71% de não respondentes). A verdadeira margem de erro é outra: a do bom senso que se perdeu.

    Estamos perante um caso claro de abuso da credibilidade académica e jornalística para alimentar um ritual estatístico vazio. E, assim, quando o ritual substitui o rigor, a ciência cede o lugar à propaganda.

    Se ainda há quem leve estas ‘sondagens’ a sério, só pode ser porque prefere viver numa realidade fabricada a aceitar a verdade nua: a maioria dos portugueses recusa participar nestes exercícios porque já percebe, por instinto, que são uma fraude. E essa é, por ironia, a única sondagem verdadeiramente representativa: a cada vez menor taxa de respostas em sondagens.

    Há-de surgir o dia em que ninguém atenderá um telefone de uma empresa de sondagens – mas, lamentavelmente, serão sempre apresentados ‘resultados’ com rigor. Nem que se invente. Há gente para tudo, sobretudo quando a numeracia em Portugal ainda é pior do que a literacia.

  • Contratos Públicos: quando o conluio começa a ser a regra e a decência é a excepção

    Contratos Públicos: quando o conluio começa a ser a regra e a decência é a excepção


    A Operação Pactum, conduzida pela Polícia Judiciária e que envolve suspeitas de conluio e cartelização na aquisição de material informático por várias entidades públicas, revela — mais uma vez — que a bandalheira na contratação pública em Portugal não é um acidente, é um sistema. Em causa estarão, neste processo, vícios procedimentais com um valor acumulado “não inferior a 17 milhões de euros”, mas o que realmente interessa vai muito além de uma cifra avultada: está em causa o próprio sentido da legalidade e do interesse público.

    Ao longo dos últimos anos, o PÁGINA UM tem destacado, com persistência jornalística e rigor documental, largas dezenas de contratos públicos em que o abuso, a opacidade, a promiscuidade e, por vezes, a ilegalidade são práticas aparentemente correntes, dir-se-ia corriqueiras. Não se trata de meros erros administrativos ou de desatenções burocráticas.

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    Estamos a falar de estratégias recorrentes para contornar a lei e favorecer determinadas empresas, das pequenas aos grupos económicos — muitas vezes os mesmos, sobretudo em sectores sensíveis e de negócios apetecíveis como as tecnologias de informação, a alimentação (escolar e hospitalar), a segurança privada, a limpeza ou os transportes escolares e de doentes. E sempre com o mesmo pano de fundo: o assalto ao erário público com a conivência dos decisores políticos e administrativos, e a passividade de reguladores e fiscalizadores, com o Tribunal de Contas à cabeça.

    Vejamos alguns dos esquemas que se tornaram rotineiros e que o PÁGINA UM tem vindo a denunciar:

    a) Ajustes directos por “urgência imperiosa”, invocada a pretexto de atrasos provocados pelas próprias entidades adjudicantes, ou em prazos que de urgentes nada têm. A “urgência” é frequentemente fabricada para contornar os concursos públicos.

    b) Concursos públicos vazios ou com exclusão total dos concorrentes, seguidos de ajustes directos previamente combinados. Um clássico da concertação: quem ganha o ajuste directo raramente concorre — sabe de antemão que a concorrência será anulada.

    c) Adjudicações sucessivas à mesma empresa, por ajuste directo, sem que haja qualquer reacção da concorrência ou do mercado. Uma evidência de cartelização consentida. Em muitos casos, os ajustes directos ocorrem após terminar a vigência de um contrato após concurso público, não sendo sequer sensato que não se tenha lançado novo concurso público para evitar ajustes directos.

    d) Empresas que impugnam concursos que não venceram, mas que, enquanto aguardam decisão judicial, continuam a prestar o serviço por ajuste directo, mantendo de facto o monopólio.
    e) Consultoras e sociedades de advogados contratadas por ajuste directo, com a desculpa de que é “impossível definir critérios objectivos” para concurso, quando os serviços são perfeitamente quantificáveis. Escolhas pessoais travestidas de necessidade técnica.

    f) Contratações durante pandemia, muitas feitas sem cadernos de encargos, sem contratos escritos e muitas vezes com registo tardio no Portal Base — como no caso do Hospital de Braga, que demorou mais de dois anos a registar contratos de centenas de milhares de euros. Estou ainda aguardar que o Ministério Público fala buscas ao Hospital de Braga, cuja gestão durante a pandemia foi um verdadeiro ‘caso de polícia’, mas longe de ser o único.

    Perante este panorama, a única coisa verdadeiramente surpreendente é a escassez de buscas policiais, detenções e condenações. Os sinais de prevaricação e conluio são tantos e, por vezes, tão descarados que se justificaria, aqui sim, uma task-force permanente da Justiça só para a contratação pública. Há cerca de ano e meio, encaminhei uma participação com mais de duas dezenas de casos suspeitos para o Tribunal de Contas. Foi um teste. Não houve qualquer consequência visível. Não é só o sistema que está capturado: é também a fiscalização que parece paralisada.

    Torna-se assim imperioso adoptar uma política de mão-de-ferro na contratação pública, desde os ajustes directos de 19.999,99 euros (um ‘número mágico’ para entregar uns cobres aos ‘amigos do café’ sem concorrência) até aos contratos de milhões com cadernos de encargos a preceito ou a possibilidade de reajustes de preço. Isso significa, por exemplo:

    Transparência absoluta: contratos e cadernos de encargos publicados atempadamente, com prazos escrupulosamente cumpridos.

    Cumprimento rigoroso da lei: aplicação inflexível do Código dos Contratos Públicos e sanções reais para quem o violar.

    Responsabilização efectiva: penalizações monetárias a gestores públicos que façam adjudicações irregulares e demissões de responsáveis políticos sempre que se detetem práticas sistemáticas de atropelo à legalidade.

    Punição dissuasora de conluios e cartelizações: multas pesadas e, acima de tudo, exclusão temporária ou definitiva de empresas prevaricadoras da contratação pública.

    Mas o combate à corrupção não se faz apenas pela punição: faz-se também pela correcção das falhas de mercado. Quando sectores inteiros se viciam em práticas de cartelização e de ajustezinhos directos combinados, cabe ao Estado intervir com soluções públicas.

    Se, por exemplo, os concursos para fornecimento de alimentação escolar, de limpeza, de segurança privada ou de transportes continuam sistematicamente vazios — para depois surgir uma confortável adjudicação directa ao mesmo do costume —, talvez seja altura de o Estado ameaçar assumir directamente esses serviços, com empresas públicas dimensionadas e fiscalizadas. Não por ideologia, mas por defesa do interesse público e da concorrência verdadeira. Só o simples anúncio levaria a uma moralização de muitos sectores que vivem de esquemas em contratos públicos.

    É tempo de dizer basta. A Operação Pactum está muito longe de ser um caso isolado: é apenas a prova de que há muito tempo a excepção deixou de ser a corrupção — ela é, hoje, a norma. A decência, essa, é que se tornou rara.

  • Informática: Só nos útimos cinco anos houve 15 contratos públicos de mais de 5 milhões de euros

    Informática: Só nos útimos cinco anos houve 15 contratos públicos de mais de 5 milhões de euros

    Suspeitas de uma fraude em contratos no valor de 17 milhões de euros — e que levaram hoje a 75 buscas em organismos do Estado, escritórios e outras instituições — pode parecer montante chorudo, mas, no contexto dos contratos públicos no sector da informática e tecnologias de informação, acaba por ser uma parcela relativamente pequena.

    Embora a identidade das empresas visadas pela investigação não tenha sido tornada pública, algumas das entidades públicas alvo de buscas foram reveladas, entre as quais o Banco de Portugal, o Instituto dos Registos e do Notariado e a Secretaria-Geral do Ministério da Justiça, bem como a Agência para a Modernização Administrativa e a EPAL.

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    De acordo com um levantamento rápido do PÁGINA UM para uma primeira avaliação do mundo dos contratos públicos, recorrendo aos dados disponíveis no Portal BASE, este é um negócio que mobiliza centenas de milhões de euros. Apenas com uma simples pesquisa pela palavra “Informática” na descrição dos contratos, o lote dos 500 maiores contratos registados (todos acima dos 500 mil euros, sem IVA) atinge um montante total de 763 milhões de euros. Com IVA incluído, este valor ascende a aproximadamente 939 milhões de euros.

    Destes contratos, 225 têm valores unitários superiores a um milhão de euros, totalizando um valor global de 567,7 milhões de euros. Nos útimos cinco anos foram celebrados 15 contratos acima dos 5 milhões de euros, incluindo assim três com valores superiores a 10 milhões de euros. Estes valores demonstram o peso colossal deste sector na despesa pública.

    Perante este universo, a fraude agora sob investigação — embora relevante — representa uma ínfima fracção dos investimentos realizados nos últimos anos em serviços informáticos, software, licenciamento e infraestruturas digitais para a Administração Pública.

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    Uma análise detalhada aos contratos com valores acima de 500 mil euros permite ainda identificar os organismos do Estado que mais têm investido em tecnologias de informação. O Instituto de Informática, responsável por múltiplas plataformas críticas da Segurança Social, lidera de forma destacada com um total de 304.567.835 euros em contratos desta natureza. Segue-se a Autoridade Tributária e Aduaneira, com 79.904.388 euros, e os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, com 39.309.515 euros.

    A Secretaria-Geral do Ministério da Educação e Ciência surge com 31.262.054 euros, à frente do Banco de Portugal, com 19.992.006 euros, e do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP), com 18.119.608 euros. A Direcção-Geral de Infra-Estruturas e Equipamentos (16.274.541 euros), a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (15.326.438 euros), a Secretaria-Geral do Ministério da Justiça (13.447.001 euros) e o Instituto dos Registos e do Notariado (11.161.059 euros) completam o grupo das dez entidades com maiores investimentos no sector. Saliente-se que os valores serão superiores, uma vez que esta análise se circunscreve aos contratos acima de meio milhão de euros e não inclui aqueles que, mesmo sendo do sector da tecnologia de informação, não tenham a palavra “Informática” na denominação.

    O contrato de maior valor identificado pelo PÁGINA UM diz respeito à aquisição de computadores e outros equipamentos tecnológicos, no montante de 14,8 milhões de euros, adjudicado por concurso público à Informantem, em Dezembro de 2020, pela Secretaria-Geral do Ministério da Educação e Ciência.

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    Em segundo lugar, surge um contrato de 14 milhões de euros celebrado em Agosto de 2017 pelo Banco de Portugal, por concurso limitado por prévia qualificação, com um agrupamento de empresas liderado pela MEO, Claranet, Widesys e Altran Portugal. O terceiro contrato envolveu também a Secretaria-Geral do Ministério da Educação e Ciência, com um valor de quase 11,2 milhões de euros, beneficiando a Inforlândia em Outubro de 2020. Foi um contrato por ajuste directo para aquisição de computadores portáteis nos tempos da pandemia.

    Entre os contratos mais volumosos surgem também duas adjudicações da SPMS – Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, ambas datadas de 2022, e ambas por concurso público, com valores de 8.725.405,96 euros e 8.435.438 euros, atribuídas à WWS, Normática e Timestamp, para aquisição de licenciamento Oracle e respectivos serviços de suporte. A Autoridade Tributária e Aduaneira surge com múltiplos contratos milionários: em 2023, contratou por um pouco mais de 8 milhões de euros um conjunto de cinco tipos de software Oracle à Forecast IT e à Normática, e em 2021, por 8,6 milhões de euros, contratou à Timestamp e à WWS o upgrade das plataformas Exadata e BigData.

    Já em 2023, o Instituto de Gestão Financeira da Educação adjudicou à Normática e à WWS, por 4,1 milhões de euros, serviços de administração de bases de dados e clusters para a Plataforma Digital da Educação. Noutro caso, o IFAP – Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas contratou a Informática El Corte Inglés por 4,2 milhões de euros, em 2020, para implementação de um sistema de disaster recovery.

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    A Secretaria-Geral do Ministério da Justiça surge também com um contrato relevante: em 2023, adjudicou por quase 3,8 milhões de euros, por concurso público, a um consórcio liderado pela Accenture e pela Tech-Avanade, para serviços de desenvolvimento de software. Outro caso digno de nota é o do Instituto de Informática, que celebrou vários contratos por valores superiores a três milhões, incluindo um com a Unisys, em 2023, no valor de 3,4 milhões de euros, por ajuste directo, e outro com a CGITI Portugal, também em 2023, por quase 3,3 milhões de euros, ao abrigo de acordo-quadro.

    Apesar de existirem largas dezenas de empresas contratadas, algumas em consórcio, destacam-se algumas pelo volume de negócios com entidades públicas, entre as quais a Normática (que lidera), a MEO, a ATOS II, a Informantem e a Informática do El Corte Inglês. Porém, este é um sector multifacetado e especializado, pelo que em alguns contratos haja uma forte dependência da Administração Pública relativamente a grandes operadores.


  • Gaza transformou-se num ‘cemitério de jornalistas’

    Gaza transformou-se num ‘cemitério de jornalistas’

    São números avassaladores. Desde Outubro de 2023, a retaliação de Israel na Faixa de Gaza tornou-se o conflito mais letal para os profissionais da imprensa, registando um recorde impressionante de 232 mortes, das quais 37 num único mês. Estes números ultrapassam largamente os valores registados em grandes conflitos do século XX e transformam a Faixa de Gaza num verdadeiro “cemitério de jornalistas”.

    O relatório Costs of War: The Reporting Graveyard, assinado pelo jornalista e investigador Nick Turse, ontem revelado com a chancela do Watson Institute da Universidade de Brown, apresenta uma investigação aprofundada sobre a violência contra os trabalhadores dos media em zonas de guerra – e o sanguinário conflito de Gaza –, mesmo numa região com cerca de metade da superfície da ilha da Madeira, embora com mais de dois milhões de habitantes.

    Além das mortes, o relatório apresenta as crescentes pressões e formas de limitar a cobertura de conflitos por meio de uma variedade de mecanismos, desde políticas repressivas até ataques armados, fomentando uma cultura de impunidade e transformando zonas de guerra como a Síria e Gaza em “cemitérios de notícias”. De acordo com Nick Turse, a guerra em Gaza matou, desde 7 de Outubro de 2023, mais jornalistas do que a Guerra Civil dos Estados Unidos, as I e II Guerras Mundiais, a Guerra da Coreia, a Guerra do Vietname (incluindo os conflitos no Camboja e Laos), as guerras na Jugoslávia nas décadas de 1990 e 2000, e a guerra no Afeganistão pós-11 de Setembro. Mas não de forma isolada. Todas juntas. Segundo Turse, “é pura e simplesmente o pior conflito de sempre para jornalistas”.

    Com efeito, na Ucrânia estão, por agora, contabilizados 29 jornalistas mortos, incluindo o período da guerra no Dombass iniciada em 2014. As duas décadas de guerra no Afeganistão, entre 2001 e 2021, causaram cerca de sete dezenas de mortes, embora os números reais sejam incertos. As guerras resultantes do desmembramento da Jugoslávia também causaram largas dezenas de vítimas entre a imprensa, mas também muito aquém dos valores atrozes de Gaza. E mesmo conflitos de dimensão territorial vasta tiveram menos vítimas. Por exemplo, a II Guerra Mundial causou a morte a 67 jornalistas, enquanto as guerras do Vietname, Cambia e Laos provocaram a morte de 71 jornalistas estrangeiros e locais.

    O número decrescente de correspondentes experientes em zonas de conflito prejudica, destaca o relatório, o conhecimento crítico e facilita a elevada mortalidade dos profissionais da informação, quase todos da imprensa palestiniana. E sucede um efeito de bola de neve: quanto mais mortes, menos ‘apetecível’ se mostra enviar jornalistas da imprensa mainstream para esses locais. Em Gaza, por exemplo, a proibição israelita de entrada de jornalistas estrangeiros, aliada ao assassinato indiscriminado de repórteres palestinianos, significa que há muito menos jornalistas capazes de traduzir e relatar o que se passa naquela região ao público ocidental, especialmente ao norte-americano. Isto mostra-se particularmente problemático, considerando-se, como salienta o relatório e Nick Turse, que os Estados Unidos aprovaram cerca de 18 mil milhões de dólares em assistência militar a Israel no ano que se seguiu a Outubro de 2023.

    No que diz respeito a Gaza, o relatório evidencia que a política de restrição de acesso a correspondentes estrangeiros, imposta pelo governo israelita, tem agravado sobremaneira a situação dos jornalistas locais. Com os repórteres internacionais impedidos de aceder à região, o fardo da cobertura recai sobre profissionais locais – frequentemente desprovidos dos recursos e apoios necessários para enfrentar condições extremas. Esta “externalização do risco” implica não só a perda irreparável de vidas, mas também o enfraquecimento da qualidade e da imparcialidade da informação disponível ao público.

    Contudo, Turse amplia a análise para outros conflitos que também assinalam elevados níveis de violência contra a imprensa. O estudo aborda, por exemplo, as zonas de guerra no Iraque e na Síria, onde a prática de privar os jornalistas do apoio institucional e de garantir o acesso a áreas de conflito contribuiu para um elevado número de vítimas ao longo das últimas décadas. No Afeganistão, as condições extremas e a instabilidade política têm permitido que o trabalho de correspondentes seja marcado por um risco constante, onde cada reportagem pode significar a diferença entre a vida e a morte. Outras regiões, como a República Democrática do Congo e o Sahel, em África, também figuram na análise de Turse, que evidencia como a violência – muitas vezes perpetrada por milícias ou forças armadas sem escrúpulos – se torna um factor determinante na qualidade e na continuidade da cobertura jornalística.

    Além dos números devastadores, o relatório sublinha o impacto humanitário e psicológico dessa violência extrema. Histórias trágicas, como a do repórter Samer Abudaqa – gravemente ferido num ataque sem receber socorro atempado, vindo a sucumbir aos ferimentos – ilustram de forma pungente o custo humano de uma guerra que silencia vozes críticas. Cada vida perdida não é apenas uma estatística chocante; é o encerramento de uma narrativa que contribuía para a memória colectiva e para a promoção de um debate público fundamentado.

    Mortes de profissionais de imprensa nos principais conflitos bélicos. Fonte: Nick Turse.

    Outro aspecto crucial é a destruição de infraestruturas associadas à comunicação social. Em Gaza, cerca de 90 centros de imprensa foram eliminados pelas forças militares de Israel, prejudicando gravemente a capacidade de documentar e transmitir informações fiáveis e verificadas. Esta realidade alimenta a propagação de narrativas distorcidas e perpetua um ciclo de impunidade, uma vez que os responsáveis pelos ataques raramente são punidos, o que fragiliza a confiança do público na capacidade do jornalismo de servir de vigilante democrático.

    Adicionalmente, a investigação de Nick Turse denuncia uma crise estrutural que afecta a indústria jornalística global. A retirada progressiva dos correspondentes estrangeiros, aliada ao encerramento de redacções e à redução de postos de trabalho – fenómeno que tem originado verdadeiros “desertos de notícias” em territórios como os Estados Unidos – está a comprometer a existência de uma cobertura abrangente e imparcial dos acontecimentos.

    E, como se salienta no relatório, sendo por de mais evidente, esta crise não só empobrece o debate público como mina a função do jornalismo enquanto “quarto poder”, essencial para a fiscalização dos governos e para a salvaguarda dos direitos democráticos.

    Os números apontados pelo relatório de Nick Turse chegam a ser mais elevados do que aqueles apresentados hoje pelo Comité para a Protecção dos Jornalistas (CPJ) que indica pelo menos 173  jornalistas e profissionais da media estarão entre as mais de  dezenas de milhares de pessoas mortas em Gaza, Cisjordânia, Israel e Líbano desde o início da guerra. Destes, 165 eram palestinianos, dois israelitas e seis libaneses. O CPJ identificou ainda 13 jornalistas e dois trabalhadores da media como alvos directos de ataques israelitas que classifica como assassinatos, estando em investigação outros 20 casos com fortes indícios de segmentação deliberada.

    Na semana do aniversário da guerra, em Outubro de 2024, dois jornalistas foram mortos e três feridos, o que levou o CPJ a renovar o seu apelo pelo fim da impunidade. A organização documenta ainda 59 jornalistas feridos, dois desaparecidos, 75 detidos e regista uma multiplicidade de agressões, ameaças, ataques cibernéticos, censura e até assassinatos de familiares.