Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Lisboa e Porto: os únicos distritos onde a democracia funciona para os pequenos partidos

    Lisboa e Porto: os únicos distritos onde a democracia funciona para os pequenos partidos

    Perante a aproximação das eleições do próximo domingo, o PÁGINA UM decidiu avançar com uma análise — ou, para sermos mais precisos, uma prospectiva — que permitirá compreender a real eficácia da representação parlamentar no sistema eleitoral português, com base nos resultados das legislativas de Março de 2024. O estudo assenta numa metodologia rigorosa que visa escrutinar a proporcionalidade do método de Hondt nos diversos círculos eleitorais, avaliando se os votos dos cidadãos têm, de facto, o mesmo peso em todo o território nacional.

    a person is casting a vote into a box

    Este trabalho incide assim sobre oito parâmetros fundamentais:

    1. Quociente Limiar: corresponde ao número de votos que, na prática, foi necessário para eleger o último deputado num círculo. A fórmula usada é simples — divide-se o total de votos válidos pelo número de mandatos mais um —, mas o seu valor revela muito sobre o grau de exigência eleitoral em cada distrito.
    2. Votos em falta para partidos sem representação: calcula-se a diferença entre os seus votos e o quociente limiar. Este indicador revela quão próximo (ou quão distante) um partido esteve de eleger, o que permite afinar estratégias políticas.
    3. Votos desperdiçados: somam-se todos os votos dados a partidos que não elegeram nenhum deputado, revelando a ineficácia prática desses votos no actual modelo. A percentagem destes votos face ao total permite aferir a frustração potencial do eleitorado.
    4. Limiar real de entrada: é a percentagem mínima de votos que permitiu, efectivamente, eleger um deputado em cada círculo. Em alguns distritos, bastam pouco mais de 3%; noutros, exige-se o dobro.
    5. Análise da distorção da representação: através do cálculo do Índice de Gallagher, mede-se o desvio entre a percentagem de votos e a percentagem de mandatos obtida por cada partido. Quanto mais elevado este índice, maior a distorção democrática.
    6. Comparação de círculos para partidos pequenos: identifica-se onde estiveram mais próximos de eleger, e onde os votos tiveram menor eficácia. Esta análise interessa, sobretudo, a formações políticas emergentes ou com implantação territorial desigual.
    7. Estimativa de votos necessários para eleger: calcula-se, por partido, o número adicional de votos que teriam sido necessários para garantir representação em cada círculo, aferindo cenários realistas de crescimento.
    8. Simulações de métodos alternativos: são realizadas simulações com o método Sainte-Laguë, mais favorável à proporcionalidade, para permitir comparações com o actual sistema de Hondt.

    O objectivo desta iniciativa é clarificar, com base em dados concretos e fórmulas matemáticas simples, a arquitectura real da representação política em Portugal, questionando se o sistema eleitoral serve, de facto, os princípios da proporcionalidade e da igualdade do voto. Esta análise será publicada em várias partes até ao dia das eleições, acompanhando os círculos eleitorais com especial destaque para os chamados votos “desperdiçados” e as barreiras invisíveis à entrada de novos partidos na Assembleia da República.

    Começar por Lisboa e Porto é, mais do que uma escolha editorial, uma imposição da aritmética eleitoral. Estes dois círculos reúnem quase um terço dos mandatos da Assembleia da República (88 em 230), sendo determinantes tanto para a formação de maiorias como para a diversidade política do Parlamento.

    Com base nos resultados das eleições legislativas de Março de 2024 e aplicando a Metodologia Eleições, é possível traçar um retrato nítido das oportunidades, barreiras e distorções presentes no sistema eleitoral português. E, como sempre, é nos números que a democracia revela as suas virtudes e as suas imperfeições.

    Sala das Sessões da Assembleia da República. Foto: Carlos Pombo / AR.

    O distrito de Lisboa, com 1.289.608 votos válidos nas legislativas de 2024 e 48 mandatos atribuídos, apresentou um quociente limiar de 26.319 votos, com o último deputado eleito pelo PAN, que reuniu 32.829 votos (2,55%). O desperdício de votos foi reduzido (2,8%), sinal de um voto eficaz, concentrado em partidos viáveis.

    O distrito do Porto, com 1.089.429 votos válidos no ano passado e 40 mandatos, teve um quociente limiar semelhante (26.571 votos), com o último eleito a ser o PCP-PEV, com 26.343 votos (2,42%). No entanto, o desperdício foi ligeiramente superior: 5,67% dos votos válidos foram atribuídos a partidos sem qualquer representação.

    Olhando para os partidos sem representação parlamentar, constata-se que, tanto em Lisboa como no Porto, há forças políticas muito próximas de entrar. O PAN no Porto ficou a apenas 3.156 votos do limiar, e o ADN, quer em Lisboa (7.245 votos de distância) quer no Porto (6.986), mostra viabilidade aritmética.

    Esta informação, invisível para o eleitor comum, pode ser decisiva na estratégia de campanha, sobretudo para partidos que tentam consolidar ou alcançar representação parlamentar. Todos os outros partidos não eleitos — como R.I.R, Volt, PCTP/MRPP, JPP, MPT.A, entre outros — estão em situação díficil, com mais de 20 mil votos de distância face ao limiar.

    Quanto aos partidos com representação, a análise do PÁGINA UM permite identificar quem está em risco e quem pode crescer com reforços marginais. No caso de Lisboa, o PS poderá perder um deputado com uma quebra de apenas 2.600 votos, enquanto o Livre pode conquistar um terceiro com mais 6.800 votos, e a IL um quarto com cerca de 18.400 votos adicionais. No Porto, a IL precisaria de 13.000 votos para um terceiro mandato, e o Livre, com um deputado, está muito longe de um segundo (mais de 26 mil votos em falta).

    Esta análise demonstra que a matemática da eleição não se esgota na contagem directa de votos, mas joga-se também nos restos, nos limiares e nas sobras de distribuição. É aí que o método de Hondt se revela: proporcional, sim, mas com inclinação clara para favorecer os partidos grandes.

    Para aferir o grau de distorção deste favorecimento, o PÁGINA UM recorreu também ao Índice de Gallagher, um indicador reconhecido internacionalmente que mede a diferença entre a percentagem de votos e a percentagem de mandatos obtida por cada partido. O resultado foi relativamente baixo — 2,23 em Lisboa e 1,97 no Porto — o que atesta uma proporcionalidade aceitável nestes grandes círculos.

    Mas quando se simula a distribuição de mandatos pelo método Sainte-Laguë, mais justo para forças médias, as mudanças são reveladoras. Em Lisboa, o Livre elegeria três deputados em vez de dois, enquanto o PS perderia um mandato. No Porto, o IL conquistaria um terceiro deputado à custa de um mandato retirado ao PSD/CDS. Estas simulações mostram que o sistema português, mesmo em círculos grandes, penaliza os partidos médios mais do que seria desejável num modelo de democracia proporcional.

    A conjugação destes indicadores permite traçar um mapa das oportunidades e fragilidades de cada força política. Partidos como o PAN e o ADN têm hipóteses reais de representação se ultrapassarem o limiar dos 27 mil votos em Lisboa e Porto. Partidos já eleitos, como o Livre ou o IL, têm margens curtas e podem crescer (ou cair) com variações mínimas na votação. O PS e o PSD/CDS continuam a beneficiar da estrutura do sistema, mas mesmo eles enfrentam zonas de risco em mandatos marginais.

    city landscape photography during daytime

    Em suma, os dados de Lisboa e do Porto mostram que a representação em Portugal é proporcional, mas não equitativa, e que as sobras do método de Hondt não são neutras. A democracia parlamentar portuguesa continua dependente de quocientes, restos e limiares — e é por isso que uma análise técnica é indispensável para interpretar correctamente os resultados.

    O PÁGINA UM continuará, até à véspera das eleições, a publicar relatórios detalhados de todos os círculos do continente e das regiões autónomas. Porque só compreendendo a mecânica do sistema é possível avaliar se este representa, de facto, a vontade plural dos cidadãos — ou apenas a sua tradução estatística.


    📘 Relatório técnico – Círculo Eleitoral de Lisboa


    🔎 Dados gerais

    • Votos totais válidos: 1.289.608
    • Mandatos totais no círculo: 48
    • Quociente limiar (QL): 26.319 votos
    • Votos do último eleito: 32.829 (PAN)
    • Limiar real de entrada (LRE): 2,55 %
    • Votos desperdiçados (VD): 36.073
    • Percentagem de votos desperdiçados: 2,8 %

    📈 Observações analíticas

    O círculo de Lisboa é, a par do Porto, o mais inclusivo do sistema proporcional português, com 48 mandatos atribuídos. Este volume permite uma distribuição alargada e representativa. Elegeram deputados sete partidos: PS, PPD/PSD.CDS-PP.PPM (AD), CH, IL, Livre, BE, PCP-PEV e PAN.

    O limiar real de entrada situa-se nos 2,55%, permitindo a eleição de forças políticas com menos de 33 mil votos, como foi o caso do PAN. Ainda assim, partidos com votações entre os 15 e os 25 mil votos, como o ADN, ficaram de fora, o que mostra que Lisboa, embora generoso, continua a exigir concentração de voto e ultrapassagem da barreira prática do quociente.


    📉 Votos em falta para partidos sem representação e viabilidade de eleição

    O ADN é o único partido com alguma competitividade, mas ainda está a mais de 7 mil votos do limiar — um valor considerável mesmo em Lisboa. Todos os outros estão numa zona politicamente irrelevante em termos aritméticos.


    🧮 Eficiência de representação

    A eficiência por mandato oscilou entre 24.389 (PS) e 36.051 (Livre). PS, PSD, CH e PCP-PEV apresentam alta eficiência proporcional. IL, Livre, BE e PAN têm custos mais elevados por deputado, mas dentro dos limites da proporcionalidade do círculo.


    🌊 Desperdício eleitoral

    Com apenas 2,8% dos votos desperdiçados, o círculo de Lisboa garante uma representatividade quase plena. A esmagadora maioria dos eleitores votou em listas que elegeram deputados, o que revela forte eficácia do voto útil e uma oferta política bem estruturada.


    ⚖️ Conclusões técnicas

    • Lisboa mantém-se como um círculo de entrada possível para partidos médios, mas já não acolhe partidos com menos de 25 mil votos.
    • O limiar de entrada real (2,55%) está dentro da média histórica do distrito.
    • Apesar da grande dimensão, Lisboa não é um círculo “fácil” para forças pequenas ou de recente fundação — é necessária estrutura, voto urbano e mobilização digital.
    • A dispersão à esquerda permitiu manter IL, BE, Livre, PCP-PEV e PAN em representação, mas com custos elevados de entrada.

    📎 Recomendações estratégicas

    • O ADN é o único partido que pode aspirar à entrada se reforçar a sua base urbana em Lisboa, com pelo menos mais 7.500 votos.
    • Coligações entre partidos ambientalistas, liberais e moderados (PAN, ADN, R.I.R, Volt, etc.) seriam necessárias para alcançar representação.
    • Campanhas com voto concentrado e mobilização dirigida a jovens urbanos poderão fazer diferença nos limiares abaixo dos 30 mil votos.
    • Partidos com menos de 10 mil votos devem reavaliar a sua presença em Lisboa enquanto estratégia isolada.

    📘 Relatório técnico – Círculo Eleitoral do Porto


    🔎 Dados gerais

    • Votos totais válidos: 1.089.429
    • Mandatos totais no círculo: 40
    • Quociente limiar (QL): 26.571 votos
    • Votos do último eleito: 26.343 (PCP-PEV)
    • Limiar real de entrada (LRE): 2,42 %
    • Votos desperdiçados (VD): 61.718
    • Percentagem de votos desperdiçados: 5,67 %

    📈 Observações analíticas

    O círculo do Porto, com 40 mandatos, garante uma elevada proporcionalidade e abre espaço à entrada de sete partidos com representação parlamentar: PPD/PSD.CDS-PP.PPM, PS, CH, IL, BE, Livre e PCP-PEV. No entanto, partidos com votação próxima dos 20 mil votos, como PAN e ADN, não conseguiram ultrapassar o limiar, ficando a poucos milhares de votos da representação.

    O limiar real de entrada ficou nos 2,42%, valor que continua abaixo da média nacional e que confirma o Porto como um círculo viável para forças médias, mas que não perdoa dispersão ou falta de concentração eleitoral.


    📉 Votos em falta para partidos sem representação e viabilidade de eleição

    O PAN foi o mais próximo de eleger, a apenas 3.156 votos do QL. O ADN ainda se manteve dentro da zona da competitividade. Todos os restantes estão fora de alcance num cenário normal de evolução eleitoral.


    🧮 Eficiência de representação

    A IL teve o custo mais elevado por deputado (mais de 32 mil votos), enquanto PSD/CDS e CH mostraram maior eficiência proporcional, elegendo com menos de 25 mil votos por mandato.


    🌊 Desperdício eleitoral

    O Porto apresenta um nível de desperdício relativamente baixo (5,67%), sobretudo tendo em conta a quantidade de partidos concorrentes. Isto indica que quase todos os votos se concentraram em forças elegíveis, revelando voto útil bem mobilizado.


    ⚖️ Conclusões técnicas

    • Limiar real de entrada abaixo de 2,5%, o que favorece a diversidade democrática.
    • PAN e ADN estiveram muito perto de entrar, mas não o conseguiram.
    • O Porto mantém-se como um dos círculos mais abertos do país, mas a barreira de 26.571 votos para o QL impõe-se com clareza.
    • A eficiência dos partidos grandes e médios foi elevada, com distribuição equilibrada dos mandatos.

    📎 Recomendações estratégicas

    • O PAN deve manter investimento forte neste círculo, com alta viabilidade de eleição em 2025.
    • ADN encontra-se no limiar de entrada e poderá entrar com ligeiro reforço.
    • O Porto deve ser estratégico para partidos médios, desde que concentrem o voto e evitem dispersão ideológica.
    • Coligações entre pequenos partidos ambientalistas ou populistas poderão tornar-se competitivas neste círculo.

  • Uma sacerdotisa dos fiordes (en)cantando em altar mourisco

    Uma sacerdotisa dos fiordes (en)cantando em altar mourisco

    O Campo Pequeno foi inaugurado, numa arquitectura a imitar o estilo mourisco, em 1893 para ser uma praça de corrida de touros, mas, ao invés de uma arena, transformou-se — mesmo que por breves (demasiado breves) momentos — em altar escandinavo na passada sexta-feira.

    E quem ali entrou, pés desnudados em passos de elfo e olhos de estrela, foi Aurora, uma espécie de sacerdotisa dos fiordes e das florestas encantadas, transportando, com ingenuidade e por vezes travessura, as dores do mundo. Não veio apenas cantar. Veio dizer, em tom de profecia gentil, que ainda há música capaz de sarar a linguagem — essa que já ninguém ouve — e de devolver ao palco o seu valor ancestral: o de câmara de iniciação.

    Desde o primeiro instante, com gestos que pareciam mais exorcismo do que coreografia, a norueguesa nascida em 1996 emergia, para os mais veteranos, como uma figura trans-histórica. Para quem viveu os anos oitenta e noventa, o espanto era redobrado: ali estavam todas as deusas fundidas numa só — a fragilidade orgânica de Kate Bush, o lirismo dilacerado de Sinéad O’Connor, o sussurro tribal de Enya, a excentricidade encantada de Björk, a espiritualidade de Loreena McKennitt, a braveza poética de Annie Lennox. E também David Bowie, pela sua plasticidade camaleónica, aqui já bem evidente quando canta Life on Mars (que não incluiu no Campo Pequeno). Mas tudo isso transfigurado, não por imitação, mas por reinvenção. Aurora é a sua própria linhagem.

    Inserido na promoção do seu novo álbum, What Happened to the Heart?, menos conceptual do que os anteriores, Aurora trouxe consigo uma mensagem para Lisboa, ainda que não verbalizada: a emoção não desapareceu, e a música não precisa de pirotecnia nem de outros artefactos da indústria pop, mas apenas de luz e carne, sombra e voz. E isso houve.

    E que voz! O timbre de Aurora, ao vivo, surpreende — sobretudo porque consegue algo que raramente se mantém na transição entre estúdio e palco: uma verdade vocal que não vacila. Ouvindo-a em disco, dir-se-ia tratar-se de mais uma voz bem produzida por software, encaixada num dream pop estilizado e polido. Mas bastam poucos segundos em palco para que essa impressão ceda lugar a algo mais raro: autenticidade vocal, domínio técnico e, sobretudo, uma capacidade de encarnar a canção, como se cada verso fosse, simultaneamente, lamento, encantamento e exorcismo.

    Aliás, bastaria ouvi-la nas variadíssimas versões ao vivo, disponíveis no YouTube (que vai desde isto até isto, passando por isto), que tem composto de Murder Song — essa elegia íntima à morte por amor, feita com uma beleza crua, e que deveria figurar num upgrade de Murder Ballads, curiosamente editado no ano do seu nascimento, mas com o Nick Cave remetido ao estatuto de backing vocals.

    O timbre de Aurora, embora de aparente tessitura leve e aguda, está longe de ser frágil. Pelo contrário: há nele uma firmeza cristalina, quase mineral, sem esforço. O vibrato, discreto mas natural, não é artifício — mostra-se como pulsação interna, sobretudo nas canções mais intimistas — como em The River, Exists for Love ou Invisible Wounds e, claro, em Murder Song —, porque nas produções mais ‘electrónicas’, por vezes, perdem-se esses detalhes.

    Não é o caso, porém, de canções como The Seed, que evoca uma festa pagã, onde o crescendo emocional não depende da batida nem da produção, mas do modo como a sua voz vai ganhando densidade. Ou em Runaway, talvez a sua música mais conhecida, mas não necessariamente a melhor, que se torna quase um hino à infância perdida, cantado com uma pureza que parece desafiar a lógica. No meio disto, apesar de extremamente expressiva e de preferir os gestos à dança — apesar de algumas correrias —, Aurora nunca parece estar a representar. Está, simplesmente, a ser.

    Aliás, chegou a ser desconcertante que se tenha queixado da vontade de urinar logo no início do espectáculo, ou tenha falado do seu rabo — não sendo uma artista que se queira destacar pela parte física, até por a sua beleza ser mais onírica —, ou que se tenha interrompido num repente em Invisible Wounds porque se lembrou de agradecer ao seu guarda-costas.

    Mas não há ali loucura, nem ingenuidade. Não há ali diva, nem estrela pop. Não há performer. Há uma rapariga que canta como se estivesse sozinha ou em redor de uma fogueira na tundra.

    Há em Aurora algo de paradoxal: ao mesmo tempo que nos lembra todas as deusas do passado — de Kate Bush a Sinéad O’Connor, de Enya a Annie Lennox —, ela subverte todas essas influências, criando algo que não se pode arquivar em nenhuma prateleira. Não é pop, nem folk, nem new age. Não se gosta de tudo, mas tudo é revelação — música para depois do fim do mundo.

    O público presente no Campo Peqeuno, maioritariamente jovem e feminino, com o espiritualismo e o gótico bem representados, mostrou-se grande. Cantou, gritou e até coreografou luzes com as cores da bandeira nacional. E Aurora agradeceu sempre com gentileza. No meio da sua actuação, agradeceu em português — “Muito, muito obrigada!” — não foi só um gesto de cortesia: foi a confirmação de que ela também sentiu a simbiose, embora em algumas músicas fosse preferível o silêncio e a contemplação.

    Mas ouvir em silêncio, isso já seria exigir em demasia: concertos como o que Aurora ofereceu em Novembro de 2017 na Catedral de Nidaros, quando tinha apenas 21 anos, não se fazem todos os dias. Aquilo são heresias dos deuses…

    Nota final: 5 em 5.

  • Pinacácia: um pinheiro enxertado de acácia

    Pinacácia: um pinheiro enxertado de acácia


    Portugal é, em muitos dias, um país soalheiro e tranquilo — pelo menos na aparência. Este sábado foi um desses dias mornos de primavera citadina, sem tempestade, sem alerta da Protecção Civil, sem o Rui Fonseca e Castro a querer fazer bifanas no Martim Moniz — mas revelou-se, afinal, um perfeito retrato da crónica inépcia lusitana.

    Em dia de campeonato ao rubro, com a possibilidade de se coroar o campeão nacional, eis que o Metropolitano de Lisboa decide… fechar. Encerrar. Trancar quatro estações mais de duas horas antes do apito final de um jogo que faria pulsar a capital. Dir-me-ão que foi uma questão de segurança. Pois sim. Mas de quem? Do bom senso? Mas que dizer, então, de uma falha de electricidade que parou o dito metropolitano em quase todas as estações logo às cinco da tarde? Já foi segurança ou incompetência? Portanto, ficámos, eu e o sportinguista Carlos Enes — cuja teimosia clubística já granjeou lugar nos anais da fé cega — à porta da estação dos Anjos, ou do Intendente, já não sei. Se foi do Intendente, bem que os administradores do Metropolitano de Lisboa mereciam levar com o Pina Manique, o verdadeiro.

    Enfim, a menos de uma hora do jogo do título e nós, dois homens feitos, jornalistas prevenidos, encontrávamo-nos a mendigar mobilidade. Valeu-nos o Uber, esse milagre pago a peso de ouro, malgrado a espera. Fomos levados pelo Malkit, classificação de 4,91 em 5, num Renault com uma curiosa matrícula iniciada por AD. Vinte minutos de jogo foram perdidos. Um pecado em dia de epifania futebolística.

    Mas a irritação, como se sabe, é uma erva daninha que se alastra. E o Carlos Enes, fiel ao seu evangelho leonino, não tardou em começar a vociferar contra o árbitro João Pinheiro ainda no Uber. Que ele era isto, que era aquilo, que o homem só via vermelho quando era para os verdes, que só marcava penáltis quando era contra Alvalade. Já ouvira tais lamúrias antes, mas ontem, confesso, o tom de queixa parecia vir com lastro estatístico.

    Apeteceu-me calar-lhe os protestos, mas decidi, em nome da paz do Uber e do método científico, consultar a inteligência artificial. Talvez a frieza algorítmica nos trouxesse alguma claridade. E assim foi. Lancei a pergunta com as estatísticas que cirandaram na semana passada pelas redes sociais: “Haverá razões estatísticas para desconfiar de João Pinheiro?” O ChatGPT, que já me havia esclarecido questões de Economia, Meteorologia e História, respondeu com inesperada contundência.

    Estatística ‘enxertou’ durante uma semana João Pinheiro.

    Disse-me que sim, a disparidade nos penáltis aplicados por João Pinheiro contra o Sporting (7 contra apenas 1 contra o Benfica) era improvável sob uma distribuição equitativa. Acrescentou que os cartões vermelhos (9 vs. 1) revelavam uma assimetria preocupante. E rematou: a percentagem de vitórias do Benfica com João Pinheiro (68%) superava em muito a sua média histórica em provas nacionais. Conclusão? O Sporting tinha razões fundadas para desconfiar. Nada disto prova dolo — sublinhava o algoritmo —, mas justifica uma auditoria independente. Uma espécie de VAR científico.

    Disse isto ao Carlos Enes, que rejubilou com a validação estatística do seu calvário. E, porque o destino gosta de ironias, vaticinei logo: “Então hoje vai compensar. A pressão é tanta que vai inclinar o campo… mas para o outro lado.” Não sendo versado em Psicologia, está nos livros. E não me enganei.

    É certo que perdemos os primeiros 20 minutos — entre os quais uma alegada falta do Otamendi sobre o Pote, aos 17 minutos, que Carlos Enes jurou depois ser penálti claro. Mas aquilo que vimos — quer dizer, eu vi; eles não — a seguir foi um festival. Um Pinheiro tão zeloso que parecia ter sido regado, adubado e podado pelos deuses de Alvalade durante a semana. Uma exibição tão florida que, mesmo sem rega ao intervalo, a todos espantaria pela exuberância botânica.

    Veja-se:

    Minuto 25: após canto de Di María, Otamendi cai na área e queixa-se de empurrão de Debast. O Pinheiro, sereno como um carvalho, ignora o VAR e resolve premiar o banco do Benfica com um amarelo pedagógico.

    Minuto 44: nova queixa do Benfica por mão na bola de Debast. Pinheiro, inflexível como uma sequoia, decide que o melhor é expulsar mais um elemento da equipa técnica encarnada. Didáctica com pulso.

    Minuto 60: Hjulmand deixa Aktürkoglu no relvado. O árbitro, talvez confuso pela brisa primaveril, interrompe o jogo e penaliza… Florentino, por uma falta anterior. Nada como viver em tempo elástico.

    Minuto 83: falta de Hjulmand sobre Kokçu. Os encarnados pedem o segundo amarelo. Pinheiro abana a cabeça como um salgueiro zen e prossegue, tranquilo, rumo à eternidade.

    Mas o mais notável nem esteve nestes lances, esteve nos sopros. Nos pequenos toques. Nas brisas que abanavam os gémeos dos jogadores leoninos. João Pinheiro via tudo. Sentia tudo. Apitava cada lamento dos sportinguistas como se escutasse a alma dos médios. E enquanto o guardião leonino Rui Silva se deitava, espreguiçava e perdia tempo com mais arte do que o cronómetro do Coliseu de Roma, Pinheiro deixava correr. A relva da Luz, então, parecia um relvado de piquenique para os lagartos que estiveram mais tempo deitados de barriga para cima do que com os dois pés no chão. E no fim, sete escassos minutos de desconto, como quem oferece um rebuçado a uma criança que perdeu o almoço.

    Não sou dado a falar de arbitragens. A maioria das vezes, os erros compensam-se ou desculpam-se com o factor humano. Mas neste jogo, neste particular sábado, viu-se algo raro. Um milagre agronómico. Sempre me disseram, nas aulas de Biologia do secundário, que as angiospérmicas não podiam ser enxertadas de modo a mudar de fisiologia. Mas ontem, caro leitor, assistimos a uma revolução científica. Um Pinheiro, árvore robusta, vertical e previsivelmente imune a enxertos, transformou-se. Enxertaram-lhe tantas durante a semana passada que João Pinheiro ganhou raízes de acácia. Sim, aquela árvore de copa larga, onde os leões descansam na savana, à sombra do vento e da complacência. No estádio da Luz, os leões tiveram um abrigo botânico único: João Pinacácia.

    De resto, ganhe quem ganhar o campeonato — e digo-o com o respeito clubístico que me é próprio —, o país precisa de mais do que árbitros compensadores. Precisa de transportes que transportem. De horários que se cumpram. De decisões que não nasçam da burocracia, mas do bom senso. Porque um país onde os jogos decisivos não se jogam de forma decente, os metropolitanos não andam ao sábado e os pinheiros ganham folhas de acácia… é um país que, mesmo ao sol, continua às escuras. Não nos admiremos pelos apagões eléctricos, mas sim por acharmos normal a anormalidade.

  • O regresso cego ao ‘business as usual’ e o preço da negligência energética

    O regresso cego ao ‘business as usual’ e o preço da negligência energética


    A cultura do business as usual é a mais insidiosa forma de irresponsabilidade institucional. Mais ainda no rescaldo de um apagão eléctrico que mergulhou Portugal na escuridão, depois de o MIBEL ter andado a ser ‘vendido’ como modelo de negócio com garantias de “segurança no abastecimento de electricidade”, ainda mais depois de Portugal ter encerrado a central a carvão do Pego, que embora causasse problemas ambientais, concedia inércia à rede electrica nacional, auxiliando o amortecimento de variações súbitas de frequência.

    Nas últimas duas semanas, a REN – a empresa monopolista de segurança e continuidade do serviço de eletricidade e pela gestão do sistema elétrico nacional – tem-se desdobrado em declarações à imprensa acrítica – sobre o apagão espanhol que colapsou Portugal como um baralho de cartas. Ouvem agora declarações de prudência e de monitorização “em permanência”, mas sem que se vislumbre uma explicação sobre as actuais fragilidades portuguesas e sem se mexer uma palha naquilo que verdadeiramente conta: a estrutura técnica do sistema. Enfim, fazem-se figas e toca a negociar de novo – em Portugal, o business as usual quer dizer irresponsabilidade.

    closeup photo of lighted bulb

    É certo que as investigações internacionais ainda decorrem e já há quem prognostique que as causas do ‘incidente’ do passado dia 28 de Abril demore meses – este prazo é muito conveniente para que a culpa se esqueça ou morra solteira. Mas não nos haja iluões: a morosidade processual é muitas vezes um biombo conveniente para adiar decisões e manter tudo como está – e confiar na sorte. E achar aceitável continuar a operar uma rede eléctrica com os mesmos erros que nos levaram, literalmente, ao colapso.

    Os sinais são, infelizmente, de um país a regressar tranquilamente à rotina. Portugal já retomou as importações de electricidade de Espanha, embora agora com supostas restrições nas horas de maior produção fotovoltaica. A medida, apresentada como prudente, nada resolve.

    Aliás, ao reduzir e condicionar a importação de electricidade fotovoltaica em função do período horário, a REN acaba por revelar, de forma implícita mas inequívoca, onde esteve a génese do apagão de 28 de Abril: na conjugação entre forte produção solar intermitente, demasiada importação de Espanha, baixa inércia do sistema nacional e ausência de mecanismos de resposta rápida. A própria REN, ao limitar agora as importações diurnas, indicia o risco que não ousa nomear frontalmente — e ao fazê-lo, reconhece tacitamente que o sistema eléctrico ibérico, e o português, não está preparado para absorver grandes fluxos renováveis sem ferramentas técnicas modernas.

    Limitar a importação solar, portanto, não é uma precaução neutra — é uma confissão técnica. E mais: é a manutenção deliberada de um sistema que falhou, à espera que falhe outra vez.

    Uma das grandes vantagens do apagão foi, em certa medida, permitir que muitos especialistas independentes pudessem expor as fragilidades do sistema eléctricio português, porque aparentemente temos uma Entidade Reguladora do Sector Energético que anda a vir navios.

    De entre as propostas que, não sendo eu especialista em detalhe nesta matéria – direi que ‘tenho umas luzes’ – se afiguram muito realistas e exequíveis, destaco as seguintes causas para estarmos continuamente sob risco de sucessivos apagões.

    Primeiro, a ausência de Fast Frequency Reserve (FFR), ou seja, de capacidade de injectar ou retirar potência da rede em milissegundos após uma perturbação. Esta reserva rápida, que actua como um “airbag” eléctrico, é hoje considerada essencial em redes com elevada penetração de renováveis. Portugal tem neste momento zero megawatts contratados, enquanto, por exemplo, a Irlanda opera com 330 MW e o Reino Unido gasta mais de 200 milhões de libras anuais para garantir este tipo de resposta.

    Foto: D.R./ REN

    Segundo, a persistência de relés de protecção mal calibrados, com valores de RoCoF (Rate of Change of Frequency) excessivamente conservadores. Com o actual limiar, variações superiores a 1 Hz/s disparam desligamentos automáticos de centrais e linhas devido à variação excessiva da frequência — uma resposta defensiva que, em vez de estabilizar, pode precipitar colapsos em cascata como o que ocorreu a 28 de Abril. A solução, consta, é simples e está estudada: reprogramar os relés para aceitar ±1 Hz/s, o que evitaria desligamentos prematuros. Mas nada foi feito.

    Terceiro, a actual baixa inércia do sistema, que se agravou com a substituição de centrais térmicas por fontes renováveis intermitentes. Esta fragilidade, não sendo recente, poderia ser mitigada com a chamada inércia sintética — conversores especiais ‘grid-forming’, baterias e até veículos eléctricos com tecnologia V2G. A REN sabe disto. O Governo também. E, no entanto, nenhuma meta foi definida, nenhum plano foi anunciado.

    Quarto, a ausência de digitalização e controlo dinâmico. A integração em tempo real de produção distribuída, pequenos produtores, veículos eléctricos e baterias requer uma infraestrutura de gestão moderna, com sistemas de gestão de energia (EMS) actualizados. Continuamos com uma infraestrutura pouco digitalizada e com baixa capacidade de resposta automatizada.

    light bulb

    Perante tudo isto, o mais grave é a tentativa de empurrar a responsabilidade para um vago “ainda não se sabe” ou para Espanha. Porque se sabe. Sabe-se, tecnicamente, que o sistema ibérico estava numa situação crítica às 11h33 de 28 de Abril.

    Sabe-se que houve uma quebra abrupta de 2200 MW na produção do sul de Espanha, provavelmente fotovoltaica, e que a ausência de FFR provocou uma queda de frequência tão rápida que os relés foram disparados em cascata. Sabe-se que os mecanismos de defesa do sistema — supostamente para o proteger — causaram precisamente o seu colapso.

    Se nada for feito, o próximo apagão é uma questão de estatística, não de surpresa. E, nessa altura, será lícito perguntar: quantas vezes precisa o país de cair para se lembrar de erguer os pés?

    black solar panels on purple flower field during daytime

    A REN, como operadora do sistema, tem a obrigação de preparar a rede para a realidade que já existe. E o Estado, como garante do interesse público, tem o dever de agir, regular e proteger. Aquilo que não pode suceder é continuar-se como se nada tivesse ocorrido, enquanto se esperam relatórios que apenas confirmarão o que os engenheiros e analistas já sabem de cor.

    Regressar ao business as usual serve os interesses dos operadores do MIBEL, mas é um luxo que portugueses já não podem pagar, até porque pagam já uma factura de electricidade já demasiada alta.

  • Depois de nove dias sem precisar de Espanha, rede eléctrica portuguesa volta a ‘pôr-se a jeito’

    Depois de nove dias sem precisar de Espanha, rede eléctrica portuguesa volta a ‘pôr-se a jeito’

    Ainda não existem explicações definitivas nem garantias de que não ocorrerá novo apagão no sistema eléctrico português, causado por uma dependência artificial de electricidade importada de Espanha. Mas hoje regressou o business as usual. Ao décimo dia do colapso da rede eléctrica nacional, registado pelas 12h30 do dia 28 de Abril, Portugal começou a importar electricidade de Espanha, como se nada tivesse ocorrido.

    De acordo com os dados consultados pelo PÁGINA UM numa plataforma da Red Eléctrica de España, até às 19 horas de hoje (hora espanhola), o sistema eléctrico português já importara do país vizinho um total de 12.845 MWh, tendo o saldo importador passado a ser favorável a Espanha desde as 8h20. À hora da publicação desta notícia, Espanha estava a exportar para Portugal cerca de 800 MW.

    Mas esta “normalização” — que esteve na origem de cerca de dez horas de apagão — levanta uma questão cada vez mais difícil de ignorar: se o sistema eléctrico nacional conseguiu manter-se durante nove dias completamente independente de importações de Espanha, entre 29 de Abril e 7 de Maio, qual foi afinal a necessidade de estar a importar 8.000 MW de potência instantânea no momento do apagão do dia 28 de Abril? Além disso, não se pode sequer afirmar que Portugal estivesse à míngua de electricidade. Também segundo dados da Red Eléctrica de España, durante os últimos nove dias, Portugal ajudou o sistema eléctrico espanhol a estabilizar, através da exportação regular de electricidade.

    Segundo cálculos do PÁGINA UM, entre 29 de Abril e 7 de Maio, o sistema eléctrico português exportou 85.966 MWh para Espanha, com um pico no passado dia 3 de Maio de 24.512 MWh — um valor que corresponde a cerca de 16% do consumo médio diário de electricidade em Portugal, demonstrando existir folga suficiente não só para garantir o abastecimento nacional como também para apoiar o país vizinho.

    Mas a 28 de Abril, pouco antes do colapso, Portugal importava cerca de um terço da electricidade que, nesse momento, estava a ser consumida, através das interligações com Espanha. Tecnicamente, isso não constituiria problema se existissem garantias de redundância e de reserva imediata. Porém, como se verificou nesse dia, uma quebra súbita na produção espanhola impossibilitou compensar a falha portuguesa, que, por sua vez, não tinha unidades em prontidão para iniciar rapidamente a produção. Esta dependência mútua, sem planos de resposta em tempo real, resultou numa queda sincronizada: Portugal desligou-se integralmente da rede ibérica, num fenómeno designado por grande perda de sincronismo.

    a lit candle in the dark with a black background

    A restauração de um sistema eléctrico após um colapso total exige um processo designado por black start, que consiste no arranque progressivo da rede a partir de unidades capazes de operar sem depender da energia da rede. Estas unidades, normalmente hidroeléctricas ou térmicas específicas, devem estar preparadas para reactivar segmentos da rede em sequência, garantindo a estabilidade da frequência e da tensão a cada passo. Em Portugal, como noutros países europeus, este processo é tecnicamente exigente e moroso — agravado, neste caso, por perturbações no acoplamento com Espanha, que dificultaram a sincronização das redes.

    Nos dias seguintes ao apagão, a REN informou que as trocas comerciais com Espanha estavam suspensas, sendo apenas admitidas em situações técnicas excepcionais. Contudo, os dados mostram que Portugal continuou a exportar para Espanha durante quase todo o período entre 29 de Abril e 7 de Maio. E o fornecimento não foi pequeno: num total de 85.965,5 MWh exportados neste período de nove dias, os valores diários oscilaram entre 999,3 MWh, logo a 29 de Abril, e 1.447 MWh no dia seguinte. Nos primeiros três dias de Maio, as exportações totalizaram 59.756 MWh, descendo para 23.764 MWh entre os dias 4 e 7 de Maio. Já hoje, Portugal teve apenas um pequeno período de exportação durante a madrugada, num total de 559 MWh. No mesmo intervalo entre 29 de Abril e 7 de Maio, Portugal apenas importou 1.729 MWh — um valor residual, justificado apenas por necessidades técnicas.

    Uma das razões para a “ajuda” de Portugal à rede espanhola nos últimos nove dias parece residir na morosidade do reatamento das centrais nucleares espanholas após o apagão. Só hoje, 8 de Maio, os diagramas de carga — os chamados diagramas técnicos de balanço diário — revelam que a produção nas cinco centrais nucleares espanholas está finalmente ao nível do período pré-apagão. E com essa estabilização, o sentido do comércio inverteu-se.

    Exportações para Espanha e importações a partir de Espanha do sector eléctrico português entre os dias 29 de Abril e 8 de Maio (até 19 horas de Espanha). Fonte: Red Eléctrica de España.

    Este regresso à ‘normalidade’, com electricidade a fluir com base em critérios estritamente comerciais, expõe um problema que permanece sem resposta pública: por que razão Portugal, com potência instalada mais do que suficiente para garantir os seus consumos internos, se coloca frequentemente numa posição de dependência, em tempo real, da produção espanhola?

    Se foi possível manter, durante nove dias, o abastecimento com recursos próprios — e ainda ajudar de forma significativa um vizinho em dificuldades —, talvez seja chegada a hora de rever as premissas operacionais do sistema eléctrico ibérico. Excepto se o objectivo futuro for continuar a andar sobre o fio da navalha… com ‘kits apagão’ em casa.

  • Justiça ‘torpedeia’ Gouveia e Melo: Supremo arrasa processos contra militares castigados

    Justiça ‘torpedeia’ Gouveia e Melo: Supremo arrasa processos contra militares castigados

    Fim de linha para o ‘justiceiro’ Gouveia e Melo. Um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), particularmente demolidor para a cúpula da Marinha, anulou todos os processos disciplinares que castigaram 11 militares do navio de patrulha NRP Mondego, que se recusaram, em Março de 2023, a cumprir uma missão alegando falta de condições de segurança.

    No acórdão de 230 páginas, os juízes consideram inválido o processo desde a sua origem, apontando múltiplas ilegalidades e violações de direitos fundamentais, incluindo o direito à defesa, à produção de prova e à imparcialidade do processo. E consideram que o Tribunal Central Administrativo do Sul agiu correctamente quando declarou nulo um despacho de 1 de Julho de 2024 proferido pelo Chefe do Estado-Maior da Armada, Almirante Henrique Gouveia e Melo, que indeferiu o recurso hierárquico apresentado pelos militares, confirmando os castigos impostos pelo Comandante Naval.

    Agora, o tribunal superior considera tão graves as falhas legais — e mesmo constitucionais — que nem sequer permite qualquer “apreciação e qualificação do comportamento dos militares da Marinha” nos polémicos eventos de 2023. Recorde-se que Gouveia e Melo chegou a deslocar-se à Madeira para uma repreensão pública aos militares, observada in loco pela comunicação social.

    Em 11 de Março de 2023, quatro sargentos e nove praças do NRP Mondego recusaram embarcar numa missão de vigilância a um navio russo ao largo do Porto Santo, alegando falta de segurança. Dezasseis dias depois, nova missão falhou: embora o Mondego tenha largado do Funchal rumo às Selvagens, para render elementos da Polícia Marítima e do Instituto das Florestas, acabou por regressar ao Caniçal por problemas técnicos e de segurança.

    Gouveia e Melo, mesmo antes de qualquer acção de apuramento dos factos, criticou os militares, que foram logo alvo de penas disciplinares, com suspensões de serviço a variar entre os 10 e os 90 dias, segundo a categoria, posto e antiguidade de cada um. Em causa estaria o incumprimento de deveres militares previstos no regulamento de disciplina em vigor.

    Primeira página do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo.

    Estas sanções seriam depois confirmadas pelo próprio Gouveia e Melo num despacho que indeferiu o recurso hierárquico interposto pelos advogados dos militares. Esse despacho do então Chefe do Estado-Maior da Armada foi agora arrasado pelos juízes-conselheiros do Supremo Tribunal Administrativo.

    No acórdão, o tribunal superior sublinha que o oficial instrutor do processo disciplinar esteve envolvido nos factos em causa — o que o tornaria legalmente impedido — e criticou ainda a recusa de provas requeridas pela defesa, bem como a ausência de informação aos arguidos sobre os seus direitos legais e constitucionais.

    O tribunal considerou também que o processo violou os princípios constitucionais do contraditório e do direito de audiência, impedindo um julgamento justo. Entre outras críticas, rejeita a recusa de reconstituição dos factos e de peritagens externas ao navio, bem como a argumentação da Marinha de que tal escrutínio colocaria em risco a segurança nacional. “A falta de informação aos arguidos, em sede de processo disciplinar militar, dos seus direitos e deveres, nomeadamente o direito a serem assistidos por advogado e o direito ao silêncio, constitui violação dos direitos de audiência e defesa”, salientam os juízes-conselheiros.

    NRP Mondego

    E dizem ainda que a existência de “diligências complementares de prova”, encetadas pela Marinha sem a garantia de defesa dos arguidos, constitui uma “nulidade insanável”.

    A decisão judicial, que aponta atropelos até constitucionais do ex-líder militar, coloca em ênfase a personalidade de Gouveia e Melo, quando se mostra cada vez mais evidente que apresentará uma candidatura à Presidência da República. Com efeito, a anulação do despacho de Gouveia e Melo e a declaração de nulidade de todo o processo disciplinar colocam em causa o exercício de autoridade do então Chefe do Estado-Maior da Armada num dos episódios mais mediáticos da sua liderança, abrindo também espaço para um debate sobre o respeito pelas garantias fundamentais no âmbito da justiça militar.

  • Comissão da Carteira de Jornalista admite que esteve a funcionar sem actas

    Comissão da Carteira de Jornalista admite que esteve a funcionar sem actas

    A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) reconheceu, num recurso entregue ao Tribunal Central Administrativo do Sul (TCAS), a contestar uma sentença favorável ao PÁGINA UM, que o seu Secretariado — o órgão colegial executivo e decisório composto, entre 2022 e o início deste ano, por Licínia Girão, Jacinto Godinho e Paulo Pinheiro — nunca produziu actas durante o mandato anterior, limitando-se a elaborar “ordens de trabalho”.

    Esta confissão, de enorme gravidade jurídica e institucional, demonstra que a CCPJ operou à margem da legalidade, violando de forma continuada o Código do Procedimento Administrativo (CPA) e os princípios estruturantes da Administração Pública.

    Foto: PÁGINA UM

    Com efeito, o Secretariado da CCPJ, enquanto órgão colegial de um organismo público, está sujeito à elaboração de actas em todas as reuniões com deliberações, as quais devem identificar os membros presentes, os assuntos discutidos, os votos emitidos e as decisões tomadas. Ora, nos órgãos colegiais, a única forma de exteriorizar validamente uma deliberação é a acta, pelo que a sua inexistência implica automaticamente a nulidade dos actos praticados, porque “care[ce]m em absoluto de forma legal

    A admissão pública da CCPJ de que o Secretariado deliberava sem quórum, sem registos formais e sem qualquer mecanismo transparente de controlo interno lança a suspeita sobre a validade de todos os actos administrativos por ele produzidos entre 2022 e 2025, incluindo emissões, renovações, suspensões e recusas de títulos profissionais de jornalista, bem como instauração de processos disciplinares e de contra-ordenação. O PÁGINA UM vai comunicar esta ilegalidade ao Ministério Público.

    Mas o escândalo institucional não termina aqui. A CCPJ — que aguarda a nomeação do seu novo presidente — não quer aceitar a sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa que determinou o acesso integral também às actas do Plenário da Comissão, composto por nove elementos, bem como aos processos disciplinares abrangidos pela Lei da Amninistia aquando da visita do Papa Francisco a Portugal em Agosto de 2023. Contesta essa decisão com o argumento inusitado de que deve poder apagar nomes constantes dessas actas, alegando pretensas questões de privacidade ou protecção pessoal.

    black video camera

    Na prática, a CCPJ — que se apresenta como garante do rigor e da ética jornalística — defende em tribunal o direito a manipular documentos administrativos e a reescrever documentos oficiais, apagando rastos de decisões tomadas e anulando o princípio da responsabilidade individual em actos administrativos que podem ter produzido danos concretos a jornalistas. A intenção de expurgar nomes das actas é justificada com o receio de que os membros da CCPJ fiquem sujeitos a críticas ou escrutínio público.

    Este argumento é particularmente preocupante vindo de uma entidade composta exclusivamente por jornalistas, cuja profissão exige, em princípio, compromisso com a transparência, a prestação de contas e o interesse público. Porém, a CCPJ chega a tentar convencer os desembargadores do TCAS de que, nos pedidos de acesso às actas e também a processos disciplinares amnistiados, o director do PÁGINA UM não demonstrou sequer deter qualquer interesse concreto, jornalístico ou noticioso, nem em nome próprio nem da comunidade, e que não justificou a relevância da questão para efeitos de escrutínio público ou jornalístico.

    Ou seja, jornalistas eleitos por jornalistas e por empresas de comunicação, cuja acção pode e deve ser fiscalizada por outros jornalistas, defendem agora o obscurantismo para sua própria defesa.

  • 19 hastes curvas encimadas por um ‘anel de rubi’ custam 406 mil euros

    19 hastes curvas encimadas por um ‘anel de rubi’ custam 406 mil euros

    Escultores da casa podem não fazer milagres, mas podem fazer ‘desaparecer’ cerca de 406 mil euros do erário público para celebrar os 51 anos de um acontecimento histórico português que, ironicamente, para além da liberdade, concedeu igualdade de oportunidades.

    Na pequena cidade de Cantanhede, no distrito de Coimbra, a autarquia local decidiu escolher, sem qualquer pré-selecção, por ajuste directo, um escultor da terra, Celestino Alves André, para executar um ‘monumento de celebração’ ao 25 de Abril, que passou a estar exposto no parque urbano local.

    Nascido em 1959, Alves André destaca-se sobretudo como medalhista e como ‘criador’ de bustos e estátuas em tamanho natural ou monumental, frequentemente fundidas em bronze. No entanto, esta encomenda da autarquia de Cantanhede, liderada pela social-democrata Helena Teodósio, foge completamente ao estilo do artista: trata-se de uma estrutura ascensional de metal composta por 19 hastes curvas e verticais, encimada por um ‘anel de rubi’ representando o brasão de Cantanhede, simbolizando as freguesias do concelho à data da Revolução dos Cravos. Para os mais incautos, parecerá uma estrutura para um ninho de cegonhas.

    Mas o mais surpreendente nesta obra colocada no Parque Urbano de São Mateus é o custo e também o seu faseamento. De acordo com o contrato publicado no Portal Base, que nem sequer contém o caderno de encargos – impossibilitando perceber se o ‘anel de rubi’ é de vidro ou de resina –, a obra teve um custo total de 405.900 euros, ou seja, 330 mil euros acrescidos de IVA. Este é um valor extraordinariamente elevado para obras de arte desta natureza, sobretudo quando se está perante um município de menos de 35 mil habitantes com escassos recursos finaceiros. A título de exemplo, os dois conjuntos escultórios de autoria de Francisco Tropa no terminal intermodal da Campanhã – “Penélope”, composta por quatro figuras em bronze, e “Dánae”, duas fontes em bronze –, também por ajuste directo, tiveram este custo total, pago pela empresa municipal Gestão e Obras do Porto.

    A escolha por ajuste directo, por um valor tão elevado, mesmo que seja invocado o carácter artístico, levanta questões sobre a transparência e os critérios de atribuição deste tipo de contratos, sobretudo tendo em conta o envolvimento de um artista com ligação ao município.

    Com efeito, Alves André tem estabelecido diversas parcerias com a edilidade de Cantanhede, realizando mesmo visitas guiadas promovidas pela autarquia ao seu ateliê na aldeia de Portunhos. Naquele município encontram-se também já várias esculturas da sua autoria, designadamente o Monumento ao Ourives Ambulante, inaugurado em 1990, em Febres; o Monumento ao bandeirante Pedro Teixeira, inaugurado em 1993, no centro da cidade; e a imponente estátua equestre do Marquês de Marialva, inaugurada em 1999, na praça que lhe é dedicada.

    No restante distrito de Coimbra, Alves André também tem ‘muita saída’. Na cidade do Mondego, o escultor assinou diversas obras de relevo, com destaque para o busto do pintor José Maria Cabral Antunes, inaugurado em 1987; a Tricana de Coimbra, estátua em bronze, colocada na Rua de Quebra Costas em 2008; a Guitarra de Coimbra, no Largo da Almedina, e a estátua da Irmã Lúcia, ambas inauguradas em 2013. No concelho de Mira estão mais duas: uma evocando o Infante D. Pedro, primeiro duque de Coimbra, erguida em 1996 na sede do município; e outra dedicada aos pescadores da Praia de Mira, inaugurada em 1998. Fora do ‘seu’ distrito, Alves André tem o busto de Francisco Stromp, junto ao Estádio de Alvalade, uma estátua em memória do Papa João Paulo II em Cascais e outra ao mesmo pontífice em Timor-Leste.

    Além do processo por ajuste directo, o contrato – que previa a “concepção, execução e instalação de obra de arte para espaço público evocativa do 50.º aniversário do 25 de Abril” – foi assinado apenas no passado dia 17 de Março, o que, considerando a complexidade do seu fabrico, mostra que, antes da adjudicação, já o escultor estava a trabalhar na peça.

    Helena Teodósio, presidente da autarquia de Cantanhede, cortou a fita na inauguração. Foto: CMC.

    Antes da escultura ao 25 de Abril com um custo de 405 mil euros, segundo dados consultados no Portal Base – que compila informação desde 2008 –, o artista tinha apenas dois contratos: o busto em bronze do Visconde da Corujeira, encomendado em 2021 pelo Município de Mira por ajuste directo, no valor de 17.500 euros, e uma obra escultórica de homenagem a Idalécio Cação, também por ajuste directo, pelo Município da Figueira da Foz, pelo montante de 8.500 euros.

    Apesar de a presidente da autarquia de Cantanhede não ter respondido às questões colocadas pelo PÁGINA UM, durante a cerimónia de inauguração, Helena Teodósio destacou que a obra “teve o envolvimento de todas as forças políticas com assento na Assembleia Municipal” e que visa “perpetuar o carácter emblemático da efeméride”, reforçando os valores do 25 de Abril junto das novas gerações. Na mesma cerimónia, de acordo com o transmitido pelo site do município, Alves André afirmou que a escultura “celebra os valores de Abril” e também “o desenvolvimento das freguesias do concelho”, destacando que se trata de “uma peça agradável, elegante e concebida a partir de elementos identitários locais”.

    Pese embora o contexto comemorativo e a intenção simbólica da obra, o investimento elevado e a forma desta contratação directa motivam interrogações quanto à gestão dos dinheiros públicos, sobretudo num momento em que muitas autarquias enfrentam constrangimentos orçamentais.

    Escultura de Alves André na Praia de Mira. A obra de arte sobre o 25 de Abril ‘foge’ ao seu estilo, mas permitiu-lhe facturar mais de 400 mil euros.

    O Código dos Contratos Públicos impõe os princípios da concorrência e da igualdade de tratamento, não existindo qualquer norma no articulado legal que permita beneficiar expressamente os artistas locais em procedimentos de contratação. A legislação portuguesa, alinhada com o direito europeu, proíbe qualquer discriminação com base na origem geográfica do concorrente, mesmo que essa preferência pudesse traduzir-se numa valorização do património cultural de uma comunidade.

    Ainda assim, os responsáveis políticos ou autárquicos dispõem de algumas margens de manobra. Nos contratos de menor valor, adjudicados por ajuste directo ou por consulta prévia, a escolha de artistas locais torna-se mais viável, desde que fundamentada com critérios objectivos e devidamente publicitada. Mas tal não se aplica a uma das obras de arte de valor mais elevado dos últimos anos encomendada por um município português.

    Em todo o caso, nos concursos públicos convencionais, a introdução de critérios de adjudicação que valorizem a ligação da obra à identidade local — desde que expressos com clareza e aplicados a todos os concorrentes — pode permitir a selecção de propostas oriundas da comunidade artística da região sem violar a lei. Mas a opção da autarquia de Cantanhede foi pelo contrato de ‘mão-beijada’.

  • Contar os minutos de desconto

    Contar os minutos de desconto


    Foi preciso descer, ou lateralizar, até à Linha de Cascais para confirmar que nem tudo no Estoril são mansões com vista para o mar — até há um estádio que, enfim, me fez recuar aos tempos em que assistia a jogos do Moitense na terceira ou quarta divisão dos distritais de Aveiro, nos anos 80. Exagero. Aquilo era um pelado, nem bancadas havia, e o mais entusiasmante era ver as cacetadas nas canelas e a ousadia dos guarda-redes a lançarem-se e a esfolarem-se todos na pedra solta.

    Mas enfim, a minha visita ao estádio do Estoril-Praia deu para saber duas coisas. A primeira foi que, pobre de mim, sou um desgraçado frequentador da Varanda da Luz — e, nos últimos tempos, com passagem pela Varanda do Varandas, uma ida ao Dragão, outra ao Montjuïc, em Barcelona, e uma outra (que terá repetição este ano) ao Jamor. Portanto, sou frequentador de estádios com História, ignorando as vicissitudes dos pequenos clubes, mesmo em regiões onde o metro quadrado de construção ultrapassa, em certos sítios, os dez mil euros.

    Por outro lado, fiquei finalmente a saber — mesmo se pouco — quem foi o António Coimbra da Mota. Pesquisei na Internet enquanto as equipas ainda aqueciam. Consta que terá sido um benemérito, cujos herdeiros devem estar agora a lamentar a doação — ou, pelo menos, a ponderar se o nome não merecia um estádio menos propenso a servir de abrigo ao vento e às sevícias meteorológicas do Guincho. Brincadeira, claro.

    Não me posso queixar da experiência. A começar por pensar, ingénuo de mim, que seria rápida e fácil a viagem até ao estádio: comboio até ao Monte Estoril e depois um breve passeio até ao recinto. Porém, o progresso em Portugal é daquelas coisas que complicam sempre a vida a quem tem planos simples — e, assim sendo, a modernização da Linha de Cascais, mais a expansão da rede de metro, levou à suspensão dos comboios entre o Cais do Sodré e Algés durante este fim-de-semana. Resultado: acabei por recorrer aos serviços ‘uberianos’ da Elisabete — e lá fiquei às portas do estádio, bem a tempo de sacar a acreditação e entrar logo ali, com passagem pelo relvado para uma fotografia que, aliás, nunca consegui tirar na Luz.

    Do jogo, verdadeiramente, pouco há a dizer. Ou melhor: o essencial foi dito pelo Tiago Franco. Acrescento, ainda assim, que nesta senda final de um dos campeonatos mais renhidos de que há memória (pelo menos desde que a memória dos benfiquistas se reduz à última jornada), procuro também disfarçar o meu nervosismo escrevendo sobre tudo e sobre nada.

    Vai-se, pois, destacando a arquitectura do estádio, adequado a adeptos à moda antiga, que aguentam as intempéries da chuva, do sol e do vento — porque está quase tudo destapado, ao contrário do que sucede com os jornalistas da imprensa escrita, enclausurados numa espécie de aquário envidraçado que, embora os proteja dos elementos, também os impede de sentir o ambiente dos adeptos. De resto, quase todos benfiquistas. E como se não bastasse, ficam acantonados na ala norte, o que significa que só vêem bem um dos ataques.

    No caso, porém, a sorte protegeu os envidraçados: tendo o jogo terminado com uma vitória por 2-1 do Benfica, e tendo o Estoril marcado na segunda parte, muito bem se viram todos os golos, mais a defesa salvífica de um penálti pelo ucraniano Trubin, que começa a ganhar lugar no coração dos adeptos.

    Não foi uma vitória fácil — no Dragão, há um mês, foi canja. Aliás, foi um daqueles triunfos que envelhece os treinadores cinco anos em noventa minutos e que obriga os adeptos a roerem as unhas até ao sabugo. Ao intervalo, tudo parecia encaminhado para mais um jogo de gestão: primeiro golo, de Aursnes, saído dos manuais de boas práticas da UEFA; o segundo golo, em mais uma bola parada — onde, milagrosamente, agora o Benfica começa a parecer equipa grande —, deu uma falsa sensação de tranquilidade. Mas, como já se vai tornando hábito, a segunda parte trouxe o lado B: o recuo inexplicável, o golo do Estoril e a sensação de que o Benfica joga contra o cronómetro, contra si próprio e contra a inevitabilidade da ansiedade.

    O Estoril, que é equipa bem orientada e com vontade de fazer mossa, cresceu. Os adeptos — ou, pelo menos, eu — sofrem, imploram que o tempo passe, e há sempre aquela sensação de que o árbitro irá dar sete, oito ou nove minutos de compensação. Mas tudo terminou em bem.

    Para a semana, é o jogo do título. É isso que se diz. Mas antes do jogo do título, é preciso que esta equipa perceba que ainda não ganhou nada. Que não basta marcar dois golos em trinta minutos e depois entregar o controlo do jogo como se estivesse tudo decidido. O futebol é implacável para quem dorme cedo demais. E o campeonato português tem essa virtude: castiga os distraídos e glorifica os persistentes.

  • 10 vezes mais casos de sarampo na Europa em 2024: e a culpa também foi do Trump?

    10 vezes mais casos de sarampo na Europa em 2024: e a culpa também foi do Trump?


    Apesar de se terem registado na Europa dez vezes mais casos de sarampo na Europa em 2024 face ao ano anterior, eis que nos últimos meses, com o previsível automatismo ideológico, os holofotes da comunicação social viraram-se para os Estados Unidos. Ou melhor, para Robert F. Kennedy Jr. e Donald Trump por via de diversos pequenos surtos que contabilizam 935 casos e três mortes, até ao passado dia 1, num país de 340 milhões de habitantes – uma incidência de 2,75 casos por milhão, o segundo valor mais elevado na década, depois de 2019 (1.274 casos).

    Se observarmos o relatório publicado na semana passada pelo European Centre for Disease Prevention and Control, nos 30 países do Espaço Económico Europeu houve 23 com uma incidência maior do que registada até agora nos Estados Unidos, em algumas nações com números anormalmente elevados. Por exemplo, a Roménia registou no ano passado 30.692 casos de sarampo, o que representa uma incidência de 1.610,7 casos por milhão. A Áustria registou 59,5 por milhão, a Bélgica de 44,9, a Irlanda de 39,6, a Itália de 17,9 e até Portugal, com 35 casos, teve uma incidência de 3,3, ou seja, superior à dos Estados Unidos este ano.

    A evolução do sarampo na Europa mostra-se preocupante: em 2020 registou-se uma incidência de 4,6 casos por milhão, desceu depois em 2021 e 2022,e cresceu para 9,1 casos por milhão em 2023 para depois atingir os 77,4 por milhão. Note-se bem: se os Estados Unidos tivessem no presente ano esta incidência contabilizariam mais de 26.300 casos, não os 935 casos que registam.

    Mas ninguém deseja olhar para os números quando se quer imprimir uma narrativa já escrita de antemão: a culpa dos surtos de sarampo nos Estados Unidos deve ser assacada a Trump, a Robert Kennedy Jr., aos “populistas”, à “extrema-direita”, aos “negacionistas”. Pouco importa que os dados, as evidências, os relatórios oficiais e os avisos prévios desmontem essa simplificação vergonhosa. No jornalismo do nosso tempo e numa “ciência” cheia de tiques missionários, a verdade vem depois da manchete. E, às vezes, nem chega a vir.

    É certo que Robert Kennedy Jr., ao longo dos anos, tem manifestado publicamente dúvidas sobre alguns ingredientes e potenciais efeitos secundários das vacinas infantis, embora nada disto tenha mudado a postura actual do CDC. Aliás, esta entidade mostra um gráfico no seu site, que aqui apresento, onde a eficácia das vacinas contra o sarampo se revela de forma marcante na redução drástica de casos desde os anos 60 do século passado. É igualmente verdade que Trump tem mantido uma postura ambivalente sobre temas científicos, misturando intuições com políticas erráticas. Mas será intelectualmente honesto responsabilizar estas duas figuras por surtos de sarampo que decorrem num país com 340 milhões de habitantes, numa era em que as políticas públicas são decididas por múltiplos actores e factores?

    Evolução dos casos de sarampo nos Estados Unidos desde a introdução da vacina. Fonte: CDC.

    A resposta é, obviamente, não. Sejamos honestos: por mais que se antipatize com o estilo e acções de Trump, o surto de sarampo em curso nos Estados Unidos surge num contexto onde a Administração Biden esteve no poder durante quatro anos consecutivos, período durante o qual os próprios Centers for Disease Control and Prevention (CDC) lançaram vários alertas sobre a diminuição da cobertura vacinal em múltiplas áreas. Em Outubro de 2024 — sublinhe-se, ainda sob a presidência de Joe Biden —, investigadores do CDC reportavam que a cobertura nacional com as vacinas MMR (sarampo, papeira e rubéola), DTaP (difteria, tétano e tosse convulsa), varicela e polio entre crianças em idade de jardim-de-infância tinha descido para níveis abaixo dos 93%, após uma década estável nos 95%. A cobertura com a vacina MMR caiu para 92,7%, a DTaP para 92,3%, e contra a varicela para 92,4%.

    Mais ainda: o relatório da CDC mostrava que 14 estados tinham no ano passado isenções vacinais acima de 5%, e que as excepções não-médicas representavam mais de 93% dos casos, revelando um fenómeno de desconfiança ideológica — não necessariamente religiosa ou científica — para com a vacinação em geral. Ou seja, muito antes de Trump voltar a ocupar o centro do palco político ou de Kennedy Jr. assumir qualquer papel relevante no debate institucional, já se verificava um declínio estatisticamente significativo da vacinação tradicional nos Estados Unidos. Os dados estavam disponíveis, públicos e sublinhados pela própria autoridade federal de saúde. Os surtos deste ano nos Estados Unidos não são o reflexo da eleições de Trump: surgem de trás.

    Então, qual a razão para não se discutir com seriedade as verdadeiras causas da retracção de uma vacina que apresenta, contra o sarampo, mais de 60 anos de sucesso? Porque seria necessário encarar, com honestidade, os efeitos colaterais da estratégia político-mediática durante a pandemia da covid-19. E isso não interessa nem ao jornalismo mainstream nem à elite político-científica que dela se alimentou.

    Evolução do número de casos de sarampo nos Estados Unidos desde o ano 2000.Valores de 2025 até 1 de Maio.Fonte: CDC.

    A verdade desconfortável — e já admitida timidamente pela CDC — é que existe uma transferência de hesitação vacinal da covid-19 para as vacinas tradicionais. E para compreender isso, é preciso fazer o que quase ninguém faz: distinguir o que é, tecnicamente, uma vacina tradicional daquilo que foram os ‘produtos farmacêuticos’ contra a covid-19.

    Durante mais de um século, a vacinação baseou-se na administração de agentes biológicos inactivados, atenuados ou purificados que imitavam a infecção natural e conferiam imunidade duradoura, frequentemente com um ou dois reforços. A vacina da poliomielite, por exemplo, usa vírus inactivado; a DTaP utiliza toxinas tratadas quimicamente; a MMR recorre a vírus atenuados. Estas vacinas não apenas conferem protecção pessoal, como também reduzem significativamente a transmissão, construindo o tal ‘escudo comunitário’ da imunidade de grupo.

    Em contraste, por muito que se tenha propalado inicialmente o contrário, as chamadas “vacinas contra a covid-19” de tecnologia mRNA (como a da Pfizer e Moderna) ou de vector viral (como a da AstraZeneca e Janssen) não usam qualquer forma do vírus inactivado ou atenuado, nem conferem imunidade duradoura no modelo tradicional. Mais importante: não impediram a infecção nem a transmissão viral — e lembremo-nos como se impôs o vergonhoso certificado digital para excluir não-vacinados, mesmo aqueles com imunidade natural adquirida —, tendo-se tornado evidente, ao fim de poucos meses, que seria necessário revacinar ciclicamente. Enfim, sabe-se hoje que, independentemente da discussão sobre eficácia e segurança, a natureza destes produtos é, na verdade, mais próxima de terapias profilácticas temporárias do que de vacinas clássicas.

    a baby being examined by a doctor and nurse

    Porém, a confusão incutida e mesmo alimentada foi tanta que, em 2021, o próprio CDC alterou a definição oficial de vacina, eliminando a referência a “imunidade” e substituindo-a por “protecção” — uma mudança sem precedentes, feita discretamente, para adaptar a linguagem institucional ao insucesso clínico da nova tecnologia quanto à componente da imunidade. Onde antes se dizia que uma vacina era “um produto que estimula o sistema imunitário a produzir imunidade contra uma doença específica”, passou a dizer-se que é “um produto que estimula a resposta imunitária contra uma doença”. É a diferença entre garantir e tentar.

    Esta manobra semântica — e politicamente conveniente — gerou um dano profundo no capital de confiança das vacinas como conceito científico e instrumento de saúde pública. Muitos cidadãos, perplexos com a multiplicidade de doses, a ausência de eficácia sustentada e os relatos de efeitos adversos (alguns graves, outros silenciados), passaram a questionar todas as vacinas, mesmo aquelas com décadas de provas dadas.

    E quando, por pressão política e empresarial, a definição de “vacina” foi alargada sem distinção clara entre tecnologias, arrastou-se para o descrédito todo o edifício construído em torno das vacinas tradicionais, que durante décadas demonstraram segurança, eficácia e aceitação pública.

    baby under purple blanket

    Hoje, enfrentamos as consequências dessa imprudência. Famílias expostos a meses de propaganda acrítica e depois a notícias de efeitos adversos das chamadas ‘vacinas contra a covid-19’ ocultados ou relativizados, passaram a desconfiar do conceito de vacina como um todo. Sucedeu em todo o Mundo — e sucedeu nos Estados Unidos, e aqui não porque tenham lido Robert Kennedy Jr. nem porque votaram em Donald Trump, mas porque sentiram na pele a quebra do contrato de confiança entre Ciência, política e cidadania.

    É esta quebra que a comunicação social se recusa a discutir. Prefere a narrativa do bode expiatório. Prefere a facilidade do insulto ao rigor do inquérito. Mas quem quiser, com seriedade, evitar futuros surtos — de sarampo ou de pensamento binário — deve começar por recuperar a distinção entre tecnologias, reconstituir a credibilidade perdida e, talvez o mais importante, reverter a redefinição oportunista do que é uma vacina. A confiança não se impõe por decreto nem se reconquista por censura. Constrói-se com transparência, memória e verdade. E, já agora, sem ‘ideologite’ e sabendo um pouco (ou muito) de Matemática.