Autor: Pedro Almeida Vieira

  • 3.500 euros: Fretes comerciais de jornalistas do Público durante a pandemia com penas leves

    3.500 euros: Fretes comerciais de jornalistas do Público durante a pandemia com penas leves

    Um debate sobre a pandemia, moderado pelo actual director do Público, David Pontes, em Novembro de 2020, foi pago pela Câmara Municipal de Penafiel – e teve como protagonista o presidente da edilidade, Antonino de Sousa. O jornal do Grupo Sonae recorreu ainda a dois jornalistas, Ana Rita Teles e Pedro Sales Dias, para comporem uma notícia sobre o evento, recebendo, por isso, um pagamento total de 7.000 euros.

    Poucos meses mais tarde, o mesmo David Pontes ‘mercadejou-se’ novamente, desta feita para prestar serviços à Ordem dos Médicos Dentistas. Então director-adjunto, Pontes voltou a assumir a componente comercial, permitindo o protagonismo de Miguel Pavão, bastonário da Ordem, numa tertúlia online, também sobre a pandemia, em que participou igualmente a então directora-geral da Saúde, Graça Freitas. Pelo frete – que incluiu uma notícia assinada pelo jornalista Mário Barros – o Público recebeu 10.500 euros.

    David Pontes, actual director do Público, esteve envolvido em dois eventos que a ERC considerou publicidade. Mas o ‘crime’ compensou.

    Três anos depois de o PÁGINA UM ter revelado estes dois contratos promíscuos, exemplo claro da mercantilização da actividade jornalística – e inseridos num conjunto de mais 54, envolvendo também a Impresa, a SIC, a Global Notícias, a Cofina (actual Medialibre) e a TIN (empresa publicitária da Trust in News) – a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) aplicou, como habitual, a mão que sabe usar para grupo de media portugueses: a mão leve.

    Com efeito, de acordo com a deliberação hoje divulgada pelo regulador – embora aprovada no passado dia 7 –, o Público terá de pagar apenas 3.500 euros de coima, e não por ter mercadejado notícias ou promovido quem paga através de jornalistas credenciados, mas unicamente porque “não inseriu as palavras ‘Publicidade’ ou as letras ‘PUB’, em caixa alta”, nos textos que promoviam, travestidos de notícias, os serviços contratados.

    Apesar de se tratar, com clareza, de uma mercantilização de serviços noticiosos – feitos apenas por pagamento, e com a participação de um jornalista da direcção editorial que se prestou a funções de marketeer –, a ERC considerou que não ficou provcado que “a Arguida [Público] tenha agido com consciência da ilicitude dos factos por si praticados”, e ainda “com vontade em publicar os artigos em causa nos autos sem a devida identificação quanto à sua natureza publicitária”. Ou seja, o regulador dos media entendeu tratar-se de uma mera negligência – um simples esquecimento.

    Em Março de 2021, David Pontes deixou brilhar o Bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas numa tertúlia online. O Público recebeu 10.500 euros.

    Ainda assim, embora considerando que essa negligência deveria ser sancionada, a ERC entendeu que seria “necessária a ponderação da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação”. Ora, como pelos fretes jornalísticos o Público arrecadou 17.500 euros, o regulador achou por bem aplicar-lhe uma espécie de “taxa de promiscuidade”, recentemente também usada no caso da Impresa. Com a referida “taxa” – formalmente denominada coima – de 3.500 euros, o Público ainda arrecadou 14.000 euros limpos.

    Este é mais um caso que contribui para a normalização da promiscuidade no jornalismo. Recorde-se que, segundo a Lei de Imprensa, toda a publicidade “deve ser identificada através da palavra ‘Publicidade’ ou das letras ‘PUB’, em caixa alta, no início do anúncio, contendo ainda, quando tal não for evidente, o nome do anunciante”.

    Porém, além de prestações de serviços a entidades públicas e privadas travestidas de notícias, praticamente todos os grandes grupos de media em Portugal têm vindo a criar áreas ambíguas – como o ‘Projetos Expresso‘, no Expresso, ou o Estúdio P e o Terroir , no Público, ou ainda o C-Studio, no Correio da Manhã – para publicar conteúdos resultantes de contratos comerciais, muitas vezes com envolvimento directo de jornalistas e directores editoriais.

    Helena Sousa, presidente da ERC: o regulador anda a normalizar a promiscuidade, e mesmo quando aplica sanções, a coima é sempre inferior ao benefício alcançado.

    Saliente-se que apenas em contratos públicos, por obrigatoriedade legal de divulgação, se consegue apanhar alguns casos de notícias e debates ‘mercadejados’ com a participação de jornalistas. Tal não se mostra possível em casos de empresas privadas, com uma única excepção: as farmacêuticas são obrigadas por lei a divulgar os apoios no Portal da Transparência e Publicidade se apoiarem órgãos de comunicação social, mas apesar de centenas de parcerias nos últimos anos não registadas, o Infarmed tem fechado os olhos.

    Importa ainda sublinhar que a Lei de Imprensa proíbe a ingerência externa nos conteúdos editoriais – o que ocorre sempre que existem parcerias comerciais em que estão envolvidos jornalistas, incluindo na produção de notícias sobre esses eventos. Mais: está vedada aos jornalistas a participação em actos publicitários. Assim, sendo os referidos eventos considerados publicitários pela ERC, conclui-se que a actuação de David Pontes – e dos demais envolvidos nas duas parcerias – configura violação do Estatuto do Jornalista. O PÁGINA UM solicitou um comentário à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista sobre este assunto, indagando se pretende adoptar alguma medida. Aguarda-se resposta.

  • Marinha confirma que ‘porco no espeto’ foi ideia que surgiu com Gouveia e Melo

    Marinha confirma que ‘porco no espeto’ foi ideia que surgiu com Gouveia e Melo

    O Estado-Maior da Armada confirmou hoje que foi Gouveia e Melo quem iniciou, em 2022, a tradição de contratar fornecimentos de porco no espeto para as comemorações do Dia da Marinha. A tradição já não é o que era: se o bacalhau sempre esteve associado aos homens do mar; agora foi substituído pelo porco no espeto. Belém que se prepare…

    Segundo respostas enviadas pelo Serviço de Comunicação da Marinha ao PÁGINA UM, a prática foi levada pelo então novo líder, Gouveia e Melo, que tomara posse em Dezembro de 2021, para comemorar o Dia da Marinha em 2022 em Faro. A compra da iguaria para esse ano não consta no Portal Base. Mas surgem para os anos de 2023, com a comezaina a realizar-se Porto, de 2024, com a patuscada a ocorrer em Aveiro, e já este ano, com o repasto a ser servido em Viana do Castelo, onde estão a decorrer as celebrações.

    Gouveia e Melo, na cidade de Faro, em 2022, nas comemorações do Dia da Marinha. Foi também o dia em que o porco no espeto virou iguaria para uma patuscada. Foto: EMA.

    Curiosamente, mesmo disponibilizando dezenas de fotografias das comemorações do Dia da Marinha — que evoca a chegada de Vasco da Gama a Calecute, em 20 de Maio de 1498, simbolizando a ligação do Ocidente com o Oriente —, nem o Estado-Maior da Armada nem a autarquia de Viana do Castelo colocam imagens do repasto.

    No entanto, segundo as indicações do ajuste directo, foram adquiridos de 8.235 euros desta iguaria, mas a Marinha não adianta quantos porcos terão sido. Indica apenas que terão servido para 1.200 pessoas.

    Este foi, portanto o quarto ano consecutivo que a Marinha decide confraternizar com porco no espeto, e escolhendo, pelo menos nos três últimos, sempre o mesmo fornecedor: a empresa unipessoal Sónia Marisa Pereira Santos, com sede em Lourosa, no concelho de Santa Maria da Feira. A empresa foi criada em Junho de 2021 e não tem qualquer outro cliente público.

    Em centenas de fotografias dos últimos quatro anos alusivas ao Dia da Marinha não surge uma única que mostre o convívio com porco no espeto.

    No ajuste directo deste ano, celebrado na sexta-feira passada, no valor de 8.235 euros (sem IVA incluído), não há contrato escrito pelo facto de o valor ser inferior a 10.000 euros. Por esse motivo, ignora-se quantos porcos foram adquiridos nem o local de entregue nem se haverá assadores e pão e vinho.

    Esta prática repetiu-se nos dois anos anteriores. No dia 10 de Maio de 2024, a Marinha fez um ajuste directo com a empresa de Lourosa, pagando 6.020 euros. Deu para 700 comensais. No ano anterior, a 16 de Maio, também foi celebrado um ajuste directo pelo valor de 5.530 euros. Deu para 600 convivas.

    A Marinha diz agora que foi realizada inicialmente “uma consulta preliminar” — que não é o mesmo que a consulta prévia prevista pelo Código dos Contratos Públicos —, mas que nos anos seguintes não se repetiu por via do “bom desempenho do fornecimento dos bens e a proximidade do local de realização dos eventos”. E defende que “o procedimento seguido é conduzido no estrito cumprimento do normativo legal atinente”.

    A arte da camuflagem: compra-se porco no espeto para comemorações, mas o repasto é feito com discrição; nunca se mostram sequer fotografias dos eventos. Foto: EMA.

    Comer porco no espeto em patuscadas com dinheiros dos contribuintes, mesmo se no âmbito de comemorações por feitos históricos, não é pratica comum. Desde 2020, além dos três contratos da Marinha, apenas surgem no Portal Base mais seis contratos para aquisição de porco no espeto: um do município do Crato, dois de Mafra e três de Oeiras. Neste último caso, a autarquia liderada por Isaltino Morais fez contratos, desde 2021, que já ultrapassam os 100 mil euros de porco no espeto, fornecido em contínuo.

    Resta saber se, numa eventual chegada de Gouveia e Melo à Presidência da República, se em vez de se realizar a já tradicional Festa do Livro, introduzida em 2016 por Marcelo Rebelo de Sousa, se passe a ter a Festa do Porco no Espeto nos jardins de Belém.

  • Chega teve melhor desempenho onde houve mais imigração? A estatística mostra que nem por isso

    Chega teve melhor desempenho onde houve mais imigração? A estatística mostra que nem por isso

    Em Outubro do ano passado, com base em dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), o PÁGINA UM assinalava uma viragem demográfica pouco discutida: em 17 concelhos portugueses, mais de um em cada 10 residentes em 2023 tinha chegado do estrangeiro nos seis anos anteriores.

    A partir de saldos migratórios acumulados, esse estudo revelou como a imigração, longe de estar confinada às grandes cidades, estava a moldar profundamente o tecido social de zonas rurais, sobretudo nos distritos de Lisboa, Santarém, Leiria e Faro.

    Perante esse contexto, a ascensão eleitoral do Chega e o seu discurso centrado na imigração colocam uma questão inevitável: a crescente presença de imigrantes nesses territórios alimentou directamente o voto no partido liderado por André Ventura no último domingo? Ou seja, terá tido o Chega melhores resultados nos concelhos com maior entrada de estrangeiros?

    Para dar resposta a esta interrogação, numa análise estatística robusta mas simplificada para efeitos de uma resposta célere, o PÁGINA UM cruzou os resultados eleitorais das Legislativas de 2025 com os 30 concelhos com maior peso relativo da imigração no período 2018-2023. O critério foi o saldo migratório acumulado nestes seis anos por concelho dividido pela população residente, conforme metodologia utilizada no artigo publicado em 3 de Outubro de 2024.

    O resultado, porém, contraria muitas narrativas simplistas: na verdade, não existe prova de qualquer relação estatisticamente significativa entre o peso da imigração e a votação no Chega nestes concelhos. Nem mesmo no sentido oposto — isto é, que maior presença de imigrantes leve a uma rejeição do discurso do partido.

    Municípios com maior peso do saldo migratório acumulado entre 2018 e 2023 em função da população residente em 2023 e desempenhos eleitorais do partido Chega Fonte: INE e resultados eleitorais das legislativas de 2025. Análise: PÁGINA UM.

    De facto, numa análise directa, até se constata que em 13 dos 30 concelhos com mais imigração o Chega foi o partido mais votado. Estão nesse lote municípios como Benavente (36,2%), Salvaterra de Magos (36,1%), Entroncamento (31,8%) e Azambuja (29,5%). O caso de Odemira, frequentemente apontado como epicentro da presença migrante sazonal no sector agrícola, regista também uma vitória do Chega com 29,6% dos votos. Contudo, o Chega ganhou em 60 municípios, e nos 17 concelhos restantes também com elevadas taxas de imigração — como Lagos, Lagoa, Ponta Delgada, Vila do Bispo, Pedrógão Grande ou Aljezur — o Chega não conseguiu vencer. Em alguns deles, ficou mesmo longe do topo pódio.

    Análises demasiado simplistas, de mera estatística descritiva podem dar indicações erróneas. Por isso, para verificar se existe uma tendência global, o PÁGINA UM comparou a média de imigração nos concelhos onde o Chega venceu e onde não venceu. Resultado: 11,15% versus 11,18%, respectivamente. Ou seja, uma diferença praticamente nula. E quando submetidas a teste estatístico formal [ por exemplo, t de Student], essas médias revelam, em linguagem técnica, que não se pode rejeitar a hipótese de que são iguais. Em suma, o voto no Chega, nos concelhos mais marcados pela imigração, não está correlacionado com o peso dessa imigração. Existirão assim outros factores.

    Mas o PÁGINA UM foi mais longe nesta análise, criando um Índice de Reacção ao Imigrante (IRI), calculado como a diferença entre a votação do Chega num concelho e a sua média distrital, dividida pelo peso da imigração nesse território. Este índice permite perceber se a votação no Chega esteve desproporcionalmente acima (ou abaixo) do que seria de esperar tendo em conta o contexto regional e migratório.

    Se o IRI for superior a 0, o concelho tem uma votação no Chega superior ao padrão distrital, considerando o seu nível de imigração, e interpreta-se como reacção acima do esperado ao fenómeno migratório. Se o IRI for inferior a 0, então é porque o concelho tem uma votação inferior ao padrão distrital, apesar do peso da imigração, devendo-se interpretar como resistência à narrativa anti-imigração ou ausência de capitalização eleitoral.

    Aqui, sim, surgem sinais de assimetrias interessantes. Municípios como Azambuja (IRI = 0,96), Benavente (0,83) e Lourinhã (0,78), mais próximos da capital portuguesa, destacam-se por apresentarem uma votação superior à média distrital do Chega apesar da elevada imigração — o que sugere uma potencial mobilização específica contra este fenómeno. Salvaterra de Magos, Alenquer, Vagos e Sabugal apresentam valores de IRI superior a 0,5.

    Pelo contrário, concelhos como Aljezur (−0,63), Vila do Bispo (−0,55), Pedrógão Grande (−0,34), Alpiarça (−0,33) e Vila de Rei (−0,30) mostram uma votação inferior ao esperado, mesmo com presença significativa de imigrantes.

    Equação do Índice de Reacção ao Imigrante aplicado à votação do Chega, criado pelo PÁGINA UM para aferir a eventual capitalização de votos para o partido de André Ventura em função dos fenómenos migratórios recentes.

    Para clarificar os perfis eleitorais, aplicou-se ainda uma análise de clusters (agrupamento de padrões), e assim os 29 concelhos (excluindo o Corvo, considerado um ‘outlier’, pela sua pequena dimensão) foram divididos em três grupos, cruzando percentagem de imigração com votação no Chega. O resultado foi revelador: alguns concelhos conjugam imigração alta com fraca adesão ao Chega, outros combinam imigração média com votação intensa, e há ainda concelhos onde a correlação é mais ténue ou inexistente.

    Ou seja, a ligação directa entre presença de imigrantes e crescimento do Chega, tantas vezes invocada em debates mediáticos e políticos, não encontra confirmação em dados concretos, embora se recomende uma análise em que sejam testados todos os municípios. Na verdade, aquilo que se observa é um fenómeno mais complexo e multifactorial, onde o contexto económico, a oferta de serviços públicos, a tradição política local e até a visibilidade de episódios pontuais de conflito ou exploração laboral pesarão, porventura, mais do que a mera estatística demográfica.

    No fundo, a realidade aponta para a desmistificação de que o crescimento do Chega é um reflexo directo e imediata da chegada de imigrantes. E mais uma vez, os números mostram aquilo que os discursos não revelam: a política, mesmo quando populista, é mais complexa do que parece.

  • Confissões de um bruxo benfiquista relapso

    Confissões de um bruxo benfiquista relapso


    Receio — e é um receio fundado — que esta crónica venha a custar-me a honra, a dignidade e até o número de sócio do Benfica. Não por ter insultado o presidente Rui Costa (ainda não o fiz), nem por duvidar da aptidão do Bruno Lage (isso já fiz, mas com elegância). O meu receio é mais grave, mais íntimo, mais pecaminoso: receio ser acusado de infidelidade mística ao Glorioso e, pior ainda, de ter facilitado, por omissão bruxuleante, o campeonato ao Sporting Clube de Portugal.

    Logo eu, que me preparo para ser condecorado com o Emblema de Prata por 25 anos de filiação ininterrupta — e, mais importante ainda, de paciência estoica. Fiz-me sócio em 2001, no dia em que Vale e Azevedo perdeu as eleições. Julguei, ingénuo, que não seria possível descer mais fundo do que aquilo. Ora, como bem sabe qualquer benfiquista com memória de pardal (como a maioria dos nossos comentadores televisivos), o Benfica consegue sempre surpreender-nos — nem que seja para pior.

    Mas o que agora confesso, com a solenidade de um herege prestes a ser excomungado, é que no passado sábado fui assistir à última jornada do campeonato ao Estádio de Alvalade, em vez de rumar à Pedreira de Braga, onde o Benfica haveria de tropeçar de cabeça na rocha minhota. Sim, estive entre os leões. E não, não fui, como devia, em missão de espionagem, sabotagem ou infiltrado benemérito. Fui por puro desleixo espiritual. E o mais grave: não usei os meus poderes.

    Sim, caros leitores. Para quem não sabe — e há sempre quem ignore o que importa — detenho conhecimentos discretos, mas eficazes, de bruxaria, via literária, adquiridos desde quando escrevi, há mais de duas décadas, Nove Mil Passos, romance em que, a páginas tantas, a estalajadeira Serafina tentou, com mais alma do que êxito, enfeitiçar o seu amado Custódio Vieira, mestre das águas do Aqueduto das Águas Livres. Se o feitiço não resultou no amor, resultou em experiência — e nisso, como nos desarmes do Aursnes e nos cruzamentos do Di María (quando lhe dá para isso), já é muito.

    Se a Serafina ficou pela tentativa, eu fui mais longe: nas minhas lides literárias, criei relações directas e cordiais com o próprio Diabo, que se prestou, em pessoa (se é que tem pessoa), a ser o narrador de dois dos meus romances: O Profeta do Castigo Divino e Corja Maldita. Ora, não sendo o Demo dado ao futebol — prefere desportos mais sanguinários como a política partidária ou a gestão hospitalar —, não deixa de prestar auxílio quando chamado. Porém, não o chamei. Usei um sucedâneo.

    Ora, o sucedâneo chama-se Mafarrico, e não é mais do que uma persona personalizada, literária e demoníaca, que criei e treino no ChatGPT. Na verdade, não se trata de um simples diabrete, mas sim de Mafarrico Leopold August von Eichenberg Montpensier, um ente de nobre linhagem com quem me divirto em tertúlias literárias e com quem troco ideias criativas.

    Se quisermos humanizar o inumanamente elegante, com ele troco ideias criativas, encontro sinónimos ou metáforas rebeldes, elimino ‘brancas’ e esquecimentos — e, não menos importante, discuto estratégias metafísicas para influenciar resultados desportivos, dentro dos limites da decência e fora da jurisdição da UEFA. Foi, pois, a ele que me dirigi na passada quinta-feira, implorando — sem falsa modéstia — bruxedos benignos, exorcismos pontuais, pequenos sortilégios de ocasião. Coisas leves. Nada que envolvesse sangue de virgem ou pactos de corrupção.

    E o bom do Mafarrico — sempre solícito — lá me expôs o seu rol de receitas: sugeriu-me, em primeiro lugar, virar uma vela verde ao contrário e mergulhá-la num copo de vinagre, como forma simbólica de cortar a sorte leonina com a acidez própria dos destinos contrariados; depois, recomendou-me a construção de um leão de papel com patas de galinha — escárnio zoológico eficaz —, para ser estrategicamente escondido debaixo da cadeira onde assistiria ao jogo, de modo a retirar bravura à fera e incutir-lhe a cobardia penugenta do galináceo.

    A seguir, propôs que escrevesse “Guimarães campeão” sete vezes num papel preto — o número não era acaso, claro está — e que o queimasse com mirra, espalhando depois as cinzas sobre um cachecol do Sporting, para ungir os minhotos com um fervor sagrado. Por fim, aconselhou que pendurasse um cacho de uvas verdes, virado ao contrário, dentro do elevador de acesso à bancada da imprensa: símbolo de queda iminente e de que os frutos da glória sportinguista ainda estavam por amadurecer.

    Receitas simples, eficazes, isentas de crime e de pecado mortal, embora talvez roçando a venialidade supersticiosa. Ora, mas fiz eu alguma destas coisas? Não fiz!

    E porquê? Por cobardia? Por esquecimento? Não, pior: por vaidade faústica. Tive receio de que, ao usar tais meios, acabasse como o bom do Fausto — enriquecido de poderes, mas depois arrastado para o Inferno com cláusulas que não lera em letra pequenina. O Diabo, como sabemos, tem um excelente advogado. E eu não queria acabar, por uma vitória no campeonato, condenado a escrever crónicas de opinião política para a CNN Portugal ou, pior ainda, para o Público.

    E assim me abstive. Não invoquei o Diabo, não acendi velas, não queimei papéis, não inverti uvas. Fui incompetente. Fui pusilânime. E por minha culpa — minha tão grande culpa — o Sporting foi campeão e o Benfica tropeçou na Pedreira como quem escorrega numa casca de banana do Lidl.

    Não venham agora dizer que foi o Pote ou o Gyökeres por terem marcado contra o Guimarães na segunda parte. Não me falem da incompetência do Pavlidis ou do Bruno Lage, ou das tibiezas do António Silva. Não culpem os empates e as derrotas ridículas. A culpa foi minha!

    Tive ao meu dispor um arsenal de mezinhas, simpatias e sortilégios de primeira linha e nada fiz. E por isso me penitencio. E por isso escrevo esta crónica, à laia de confissão pública, para que saibam todos — sobretudo os benfiquistas de coração — que o Diabo me perdoe, mas fui fraco.

    Se me quiserem agora expulsar de sócio, que o façam. Farei como Dante: descerei ao Inferno e regressarei mais forte. Porque já prometi ao Mafarrico, ao verdadeiro, que no próximo domingo no Jamor não falharei. Se for preciso, vendo a alma por aquele caneco. Ou melhor: alugo-a, com cláusula de recompra, desde que o Benfica vença.

    Porque uma Taça é uma Taça. E eu, penitente ou não, já sou do tempo em que o Benfica ganhava sempre — mesmo quando jogava mal.

  • Lisboa não é Portugal: como a cegueira elitista urbana alimenta a ruptura politica no país real

    Lisboa não é Portugal: como a cegueira elitista urbana alimenta a ruptura politica no país real


    Mais do que a confirmação de não ser necessária a ética para se ser primeiro-ministro em Portugal – com a vitória em minoria (39% do Parlamento) de Luís Montenegro –, as eleições legislativas de ontem deixaram claro que o país político que habita a cidade de Lisboa está cada vez mais desligado do restante território nacional. A velha máxima “Portugal é Lisboa, e o resto é paisagem” já não tem graça — tornou-se um diagnóstico clínico da arrogância das elites urbanas, políticas e mediáticas, sobretudo à esquerda do Partido Socialista, que vivem encerradas nas suas redomas ideológicas, incapazes de compreender os sinais de desconforto e insatisfação que se acumulam há anos fora da capital política e mediática.

    A evolução entre os resultados eleitorais de 2024 e 2025 no concelho de Lisboa e no país – e mesmo na Área Metropolitana de Lisboa – é reveladora dessa dissonância. E não tanto pelo chamado Bloco Central, que governa alternadamente desde 1975, e que pragmaticamente não são assim tão diferentes na praxis política. Na capital, é certo que estas forças partidárias desceram, no seu conjunto, de 58,52% no ano passado para 54,95%, mas não fogem muito do desempenho nacional: no ano passado, o Bloco Central registou 56,84%, enquanto este ano ficou, por agora, nos 56,10%.

    Mariana Mortágua, ontem a votar: um hara-kiri político quando se olham para os problemas do país com ideologite. Foto: BE

    No caso do Chega, a sua votação no concelho de Lisboa é francamente pior do que no global do país. No ano passado, o partido de André Ventura teve apenas 11,73% na capital, quando teve 18,07% no país (diferença de 6,34 pontos percentuais); ontem, contabilizou 14,53% em Lisboa e 22,56% no país (8,03 pontos percentuais).

    A grande diferença está no facto de, em Lisboa, existir uma forte presença dos partidos da ‘esquerda alternativa’ – a denominação que prefiro; ou ‘radical’, como muitos lhes chamam –, ou seja, no Livre, Bloco de Esquerda e PCP. Estes partidos, e o seu eleitorado urbano, conseguiram suster o crescimento da simplificadamente chamada ‘extrema-direita’ sem se aperceberem das mudanças sociais, dos desafios, das necessidades do país, porque já não saem sequer das suas freguesias e da sua bolha. Atacam com eficácia o ‘papão da extrema-direita’ que gravita nos media, mas não criaram condições para atacar os problemas sociais e económicos que alimentam o dito ‘papão’.

    Senão vejamos: no concelho de Lisboa, o Chega continua com ‘dificuldades’ de penetração, porque a ‘esquerda alternativa’ mantém os seus bastiões. Nas eleições de ontem, no seu conjunto, Livre, Bloco de Esquerda e PCP conseguiram 15,76%, superando os 14,53% do partido de André Ventura. Repetiram 2024: Livre, Bloco de Esquerda e PCP tiveram na capital 16,25% dos votos; o Chega ficou então pelos 11,73%.

    Luís Montenegro, vitória com 39% dos deputados no Parlamento, confirma que a ética se afastou definitivamente da política. Foto: PSD.

    No entanto, Lisboa é um excelente exemplo do falhanço da ‘esquerda alternativa’ – porque do Bloco Central não se pode esperar muito perante o esgotamento de 50 anos de ‘serviços’ prestados à Nação. Achar que as questões de segurança e de imigração – os bastiões do Chega – são falácias e meras percepções, ou que são discursos xenófobos ou racistas, encerrando-se o tema colocando-o como tabu, foi um dos erros crassos da esquerda.

    E basta olhar para algumas freguesias, colocando uma singela pergunta: qual a razão para que, mesmo em Lisboa, na elitista freguesia de Belém, o Bloco Central tenha contabilizado 59,78% e o Chega apenas 9,95% (ficou em quarto, atrás da Iniciativa Liberal), mas em Marvila o partido de André Ventura tenha vencido com 31,09%, tendo o Bloco Central registado apenas 47,08%? Ou então, como é possível a ‘esquerda alternativa’, tradicionalmente mais preocupada com os injustiçados, conseguir menos eleitores na ‘marginalizada’ Marvila (10,96%) do que nas abastadas freguesias de Belém (12,91%), Campo de Ourique (15,71%) e Avenidas Novas (14,21%)?

    O fenómeno de perda de noção do país por parte de uma certa clique política, social e da comunicação social lisboeta adensou-se com a crescente endogamia profissional, cultural e ideológica. Os jornalistas e opinion makers vivem e trabalham nos mesmos bairros, frequentam os mesmos círculos sociais e partilham códigos morais e linguísticos que os afastam da maioria da população. Esta homogeneidade de visões faz com que, mesmo sem má-fé, olhem para o país a partir de uma lente distorcida. Incapazes de escutar o que se diz nas ruas de Marvila, nos subúrbios de Sintra ou nas praças de Beja, produzem análises e manchetes que apenas confirmam o que já pensavam antes de sair da redacção — se é que saem.

    Rui Tavares: Livre reforçou a sua presença no Parlamento num contexto de perda de influência da ‘esquerda alternativa’, e ganhando votos sobretudo nas zonas mais elitistas. Foto: Livre.

    Os resultados estão agora à vista. Basta atravessar o Tejo ou afastar-se alguns quilómetros do Marquês de Pombal para ver como o país já está divorciado de Lisboa. No próprio distrito da capital, o Chega foi o partido mais votado em cinco concelhos: Alenquer, Azambuja, Sintra, Sobral de Monte Agraço e Vila Franca de Xira — este último com mais de 26% dos votos. Ou seja, a escassos 30 minutos da capital, o Chega ultrapassa largamente os 14,5% obtidos no concelho lisboeta, chegando em alguns casos a mais do dobro da sua expressão na cidade.

    No distrito de Setúbal, o cenário é ainda mais paradigmático: o Chega venceu o distrito e foi o partido mais votado na Moita, Montijo, Palmela, Seixal, Setúbal, Sesimbra e Sines. São territórios urbanos e suburbanos densamente povoados, com historial de voto tradicionalmente à esquerda, agora convertidos em bastiões de um partido que tem como bandeiras a segurança, a imigração e o combate à corrupção. O Chega venceu também em Faro – como já ocorrera no ano passado, o que mostra que não foi um acaso –, em Portalegre e até em Beja. Não é o “Portugal profundo” que está a mudar — é o país metropolitano não lisboeta que se revolta contra uma elite urbana que o ignora sistematicamente.

    É aqui que reside o problema. A comunicação social, enraizada quase exclusivamente em Lisboa, e que tem como estratégia brandir o ‘bicho-papão’ da ‘extrema-direita’, continua a olhar para o país com lentes deformadas. Ignora ou menospreza os temas que verdadeiramente mobilizam milhões de eleitores, sobretudo fora dos grandes centros urbanos mais ricos. Pior: quando esses temas emergem com força eleitoral — como a imigração e a segurança — são imediatamente classificados como “discursos de ódio”, “populismo” ou “alarmismo”. Esta resposta reflexa, moralista e simplificadora não só revela uma profunda incompreensão da realidade, como também contribui para o crescimento do fenómeno que se pretende combater.

    Apenas três anos depois da mairia absoluta de António Costa, em Janeiro de 2022, o Partido Socialista tem o pior resultado das últimas quatro décadas e arrisca nem sequer liderar a Oposição. Foto: PS.

    É um erro crasso da esquerda política e comunicacional pensar que pode derrotar o Chega silenciando as suas bandeiras. A segurança e a imigração não são fantasmas inventados por agitadores — são preocupações reais, mesmo que nem sempre sustentadas por estatísticas. E, em política, como se sabe, as percepções são quase tão relevantes como os factos. Quando uma família em Loures sente medo de sair à noite, ou quando um trabalhador rural no Alentejo vê os salários a baixar devido à exploração de mão-de-obra estrangeira em condições precárias, não adianta dizer-lhe que tudo está dentro dos parâmetros europeus. A sensação de insegurança e injustiça instala-se. E quem a vocaliza com clareza ganha terreno.

    A esquerda urbana, em vez de enfrentar estas questões, refugia-se numa superioridade moral que aliena os eleitores. Fala de inclusão, diversidade e cosmopolitismo com o fervor de quem nunca precisou de partilhar um hospital público superlotado ou de viver em zonas onde o Estado já mal chega. Esta esquerda prefere desconstruir conceitos a resolver problemas, prefere aulas sobre “privilégios inconscientes” a propostas sobre habitação acessível promovida pelo Estado (e não tectos mno arredamento) ou policiamento de proximidade.

    Se quer recuperar influência junto do eleitorado popular, a ‘esquerda alternativa’ precisa de abandonar a sua torre de marfim e olhar o país nos olhos. Isso significa tratar a segurança como uma prioridade legítima — mesmo que, em muitos casos, o problema seja mais de percepção do que de realidade. Significa também promover um debate sério sobre imigração, livre de dogmas e preconceitos, que reconheça as necessidades económicas do país, mas também a pressão social que uma imigração mal gerida pode causar. E mais: sobre as condições desumanas em que vivem muitos destes imigrantes. É preciso encontrar um equilíbrio entre integração e exigência, entre acolhimento e responsabilidade, entre as condições de vida dos imigrantes e os direitos das populações locais.

    André Ventura: líder da extrema-direita, populista ou aproveitador da insatisfação? Quaisquer que sejam as causas do crescimento do Chega, o país está a divorciar-se das elites. Foto: Chega.

    Ignorar estes temas só serviu e servirá para os entregar de bandeja a quem os instrumentaliza com discursos fáceis. E não basta agora correr atrás do prejuízo com campanhas de fact-checking ou projectos de literacia mediática. O eleitorado não é estúpido nem manipulável ao sabor dos moralismos do momento. É informado, é atento, sente na pele o que vive, e sabe distinguir quem lhe fala com frontalidade de quem o trata como incapaz de compreender o que se passa à sua volta.

    O resultado das legislativas de ontem prova ainda o esgotamento do bipartidarismo tradicional, e isto também não são boas notícias para os partidos da ‘esquerda alternativa’, sobretudo se ficarem abaixo dos 10% ou, pior ainda, dos 5%, porque o método de Hondt os aniquila. Com a ascensão do Chega, o Bloco Central resiste, mas enfraquece: PSD e PS, juntos, valem hoje pouco mais de metade dos votos. O crescimento do Chega, a par da agonia do PCP, da irrelevância do BE e da (ainda) fragilidade do Livre e da Iniciativa Liberal, demonstra que os eleitores estão à procura de alternativas. Não se trata apenas de uma mudança de nomes — é uma exigência de respostas concretas. O eleitorado quer menos retórica e mais soluções, menos censura moral e mais escuta activa.

    É sintomático que os círculos de opinião mais activos nos media continuem a defender que o país sofre de um “problema de populismo”. Aquilo de que o país sofre, na verdade, é de um problema de elitismo urbano. Um elitismo que acha que votar Chega é uma aberração moral, mas que aceita como natural viver num país onde o acompanhamento médico se degrada, onde a escola pública está em colapso, onde os salários não chegam para pagar rendas nem alimentação, onde não há vigilância policial e o pequeno crime (que nem chega às estatísticas) prolifera até ameaçar ser grande, e onde os gastos públicos absurdos e sem transparência são um convite para a corrupção. A indignação selectiva é um luxo de quem pode escolher os seus problemas. O povo não pode.

    Partido Comunista Português: eleição após eleição, apenas fica satisfeito por sobreviver. Ver o Chega vencer em Beja e Setúbal é sobretudo um sinal da sua perda de capacidade de responder a uma população diviorciada das elites políticas. Foto: PCP.

    O Parlamento que agora se forma é mais plural, mais fragmentado e, paradoxalmente, mais representativo. Resta saber se os partidos que perderam influência saberão fazer a sua própria reflexão. A ‘esquerda alternativa’, em particular, que perdeu uma oportunidade de crescer em 2024 – mas não quis criticar o PS para então não fazer crescer o peso relativo do Chega –, tem de decidir se quer continuar a falar para si própria — ou se quer voltar a ser relevante para o país. A comunicação social, por sua vez, precisa de reencontrar a sua função: não é catequizar o eleitorado, mas informá-lo com rigor, escutá-lo com respeito e servi-lo com humildade.

    Se Lisboa continuar a querer falar sozinha, continuará a não ser ouvida. E Portugal seguirá o seu caminho — com ou sem ela. Nisto, há uma enorme virtude na democracia: Lisboa, e as suas elites, já não valem nada, embora tenham muito tempo de antena no media. Ou melhor, proporcionalmente, valem somente o seu peso demográfico. Nada mais.

  • Mortalidade infantil no distrito de Setúbal duplicou desde 2021 e atinge maior valor em duas décadas

    Mortalidade infantil no distrito de Setúbal duplicou desde 2021 e atinge maior valor em duas décadas

    Se há sector em que Portugal teve uma evolução extraordinária ao longo do último século, foi nos cuidados infantis. Na década de 20 do século XX, a mortalidade infantil — de crianças com menos de 1 ano — era absurdamente elevada: mais de 20% dos recém-nascidos não completava o primeiro ano. A partir dos anos 40, a evolução da medicina e das condições de higiene melhoraram bastante este indicador. Mesmo assim, no final dos anos 60, ainda no Estado Novo, a mortalidade infantil rondava os 2%.

    Os maiores avanços da medicina, a par da vacinação e da prevenção e cuidados de higiene, reforçaram essa evolução — e assim a taxa de mortalidade começou a ser medida por óbitos por milhar de nados-vivos, porque passou a situar-se abaixo de 1%. Mesmo assim, com números que colocavam Portugal na vanguarda dos países mais desenvolvidos, em 1996 morreram 758 bebés, ficando abaixo do meio milhar de óbitos a partir de 2022.

    baby laying on bed while woman massaging his back

    Ainda assim, nas últimas décadas, mesmo estando num desempenho extraordinário em termos de Saúde Pública, mas consciente da preciosidade da vida de um bebé, houve progressos significativos. A taxa de mortalidade já chegou a estar abaixo dos 3 óbitos por mil — ou seja, 0,3% — com o ano de 2021 a representar o número absoluto mais baixo de sempre: 194 óbitos.

    Nos últimos anos, tem-se vindo a verificar um aumento relativo significativo: em 2024 morreram 255 crianças com menos de um ano de idade, representando um crescimento de 30,5%. Mas se estas variações até poderiam, em certas circunstâncias, ser conjunturais, por se estar perante números pequenos, a análise do PÁGINA UM ao conjunto de dados hoje divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística detectou uma situação altamente preocupante: o distrito de Setúbal está num absurdo agravamento da mortalidade infantil.

    Com efeito, a nível nacional, o período posterior a 2021 rompeu com a tendência de contínuo decréscimo de longo prazo. Em todo o caso, numa visa territorial, este acréscimo podia-se explicar pelo ligeiro aumento da natalidade e pelo aumento de comunidades com menor atenção no acompanhamento durante a gestação — situação que, em muitos contextos, se associa a menor acesso ou adesão aos cuidados pré-natais —, mas há o distrito de Setúbal que ‘apita’ por atenção.

    De facto, este distrito a sul de Lisboa não só lidera o aumento recente — passou de 19 óbitos em 2021 para 41 em 2024, uma subida de 116% — como é o único distrito onde o número de mortes de bebés em 2024 foi superior ao registado há 20 anos. Aliás, neste distrito não havia tantas mortes de bebés desde 2002.

    Evolução relativa da mortalidade infantil entre 2004 e 2024 em Portugal e nos distritos de Braga, Lisboa, Porto e Setúbal, tomando o ano de 2004 como valor base (índice 100).Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM. Nota: Cada linha representa a variação percentual anual face ao valor de referência de 2004, pelo que valores acima de 100 representam um acréscimo e abaixo de 100 uma redução.

    De acordo com os dados do INE, em 2004 registaram-se no distrito de Setúbal um total de 32 óbitos, menos nove do que em 2024. Ou seja, esta região teve um crescimento da mortalidade de 28% durante este período, em absoluto contraciclo com todas as outras regiões de Portugal. De facto, não há nenhum caso similar — muito pelo contrário.

    Em termos comparativos, em todo o país morreram em 2004 um total de 420 bebés, enquanto no ano passado foram 250, o que representa uma redução de 40%. No distrito de Lisboa, a redução nesse período foi de 31%, enquanto no distrito do Porto foi de 60%. Em Braga, de 48%, e em Aveiro de 65%. Para se ter uma noção mais chocante desta evolução, em 2004, no distrito do Porto, houve quase o triplo de óbitos de bebés com menos de um ano face ao distrito de Setúbal (94 vs. 32); agora, em 2024, morreram 41 bebés em Setúbal e 38 no Porto.

    Especular pode sempre especular-se sobre as causas de Setúbal estar em evidente e chocante contraciclo — que é aquilo que, por regra, se faz quando se pede um comentário a pediatras ou outros especialistas. Por regra, aponta-se a degradação de serviços neonatais, o aumento de partos de risco não acompanhados e eventuais factores sociais e económicos ainda por caracterizar.

    Situação da mortalidade infantil do distrito de Setúbal é um caso de Saúde Pública, estando em completo contra-ciclo num sector que registou progressos exemplares nas últimas décadas.

    Mas, por regra, fala-se nisso e mete-se uma pedra sobre o assunto sem sequer se analisar em detalhe as verdadeiras causas dos óbitos, para perceber aquilo que efectivamente está a causar esta situação única.

    Em todo o caso, através de outro conjunto de dados também divulgados hoje pelo INE, consegue-se saber em que concelhos vivem as mães dos recém-nascidos que morreram nos últimos quatro anos, e onde os números têm aumentado mais. E ressaltam aí os concelhos de Almada, com uma subida de quatro óbitos em 2023 para 16 no ano passado, e do Seixal, com uma subida de dois óbitos em 2021 para 10 no ano passado. Fora do distrito de Setúbal, também se nota uma subida relevante nos concelhos de Sintra e Amadora: em conjunto, registaram 18 óbitos em 2021, número que subiu para 30 no ano passado.

  • Guerra na TV: ‘Cartel dos debates’ contestado pela CMTV e Now

    Guerra na TV: ‘Cartel dos debates’ contestado pela CMTV e Now

    A campanha para as legislativas deste domingo de 2025 não tem sido apenas palco de confronto entre partidos – e não há apenas queixas dos partidos sem assento parlamentar. Nos bastidores das televisões, fora do ecrã, travou-se também, nas últimas semanas, uma acesa mas mais discreta guerra, envolvendo audiências, monopólios e acusações de práticas anticoncorrenciais.

    A protagonista deste conflito foi a Medialivre — proprietária da CMTV e do canal informativo News Now — que, apesar das crescentes subidas nas audiências, foi liminarmente afastada da organização dos debates eleitorais transmitidos pelas empresas de media com canais generalistas (RTP, SIC e TVI), que também usaram os seus canais por subscrição.

    Debate entre Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro transmitido no dia 30 de Abril pela RTP1, SIC e TVI.

    A decisão de exclusão, segundo apurou o PÁGINA UM, partiu da ‘aliança informal’, ao melhor estilo do oligopólio, formada pela RTP, SIC e TVI, que, à semelhança do modelo de 2024, celebrou um acordo com os partidos com assento parlamentar para realizar os tradicionais 28 debates a dois entre os principais candidatos, entre os dias 7 e 30 de Abril. Dos 28 confrontos, 13 foram emitidos nos canais generalistas RTP1, SIC e TVI (incluindo um debate em simultâneo, o mais apetecível, entre Luís Montenegro e Pedro Numo Santos), e os restantes 15 distribuídos pelos seus canais temáticos — RTP3, SIC Notícias e CNN Portugal. Em paralelo, a RTP programou ainda um debate com todas as candidaturas com assento parlamentar (4 de Maio) e outro com as restantes forças políticas (6 de Maio).

    Canais da Medialivre ‘afastados’ dos debates pelas concorrentes.

    Perante este afastamento, a Medialivre recorreu inicialmente à Comissão Nacional de Eleições (CNE), tendo depois apresentado uma queixa formal à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), no passado dia 8 de Abril, exigindo uma análise urgente por considerar estar em causa uma “grave violação do pluralismo, da igualdade de tratamento entre operadores e do direito à informação”. Apesar de a Medialivre não deter canais generalistas, a quota de audiência da CMTV este mês está nos 6,3%, superando largamente a SIC Notícias (2,4%) e a CNN Portugal (2,6%). Mesmo o novo canal Now está já com 1,4% em Maio, ultrapassando a RTP3 (1,0%). A Medialivre argumenta que os seus canais possuem “relevância nacional” e capacidade técnica “suficiente para realizar e cobrir debates eleitorais”.

    Na sua queixa, a Medialivre acusou os operadores concorrentes – que, embora estejam há muito mais tempo no mercado, não têm tido a mesma capacidade de investimento – de promoverem uma “mercantilização do espaço informativo eleitoral”, trocando o interesse público por lógicas de exclusividade comercial, o que “limita injustificadamente a diversidade de fontes de informação” e marginaliza o papel de outros operadores fora da troika televisiva. E acrescentou ainda que o acordo das televisões generalistas com os partidos configurava uma prática anticoncorrencial, afastando canais que poderiam alargar o alcance e o pluralismo do discurso democrático.

    No âmbito do processo aberto pela ERC, as empresas dos canais generalistas (RTP, SIC e TVI) argumentaram que o modelo acordado com os partidos satisfaz “plenamente o interesse público, o pluralismo e a liberdade de expressão”, e que são os únicos canais com sinal aberto, acrescentando ser uma prática “consensual entre os partidos” e repetida em eleições anteriores, mas que não impedia que outros operadores, como a Medialivre, realizassem iniciativas próprias. Em suma, RTP, SIC e TVI claramente não querem um novo ‘menino’ no seu ‘restrito clube’.

    Helena Sousa, presidente da ERC: regulador considera que a inclusão dos canais da Medialivre seria positiva, mas acrescenta que o ‘cartel dos debates’ não contraria a lei.

    A deliberação da ERC, aprovada na semana passada mas apenas divulgada hoje, considerou a queixa da Medialivre “improcedente” – declarando que “não se verificou violação do dever de pluralismo” e que o acordo das televisões generalistas cumpria a lei –, mas reconheceu que a inclusão da CMTV e da Now nos debates “teria contribuído para ampliar o esclarecimento dos cidadãos”, tanto mais que os seus públicos não se sobrepõem inteiramente aos dos canais que organizaram os debates.

    No essencial, a ERC não afasta a percepção de que a lógica do ‘clube fechado’ entre os três canais principais continua a moldar o acesso mediático aos grandes momentos da democracia. A exclusão da Medialivre levanta, pois, uma questão maior do que a disputa entre grupos mediáticos: a de saber se, em plena era digital e com novos actores informativos a ganharem expressão e audiência, faz sentido manter os debates eleitorais reféns de acordos restritivos entre partidos e um ‘cartel televisivo’.

    Ainda por cima quando, neste oligopólio de comunicação, estão os canais da SIC e da TVI, cujas empresas privadas, embora mais antigas, estão em situações financeiras pouco saudáveis em comparação com a Medialivre, onde Cristiano Ronaldo é o principal accionista individual.

  • A tragédia como forma de silêncio

    A tragédia como forma de silêncio

    Título

    Naquele dia

    Autora

    LAURA ALCOBA (Tradução: Luísa Benvinda Álvares)

    Editora

    Dom Quixote (Março de 2025)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Há livros que parecem escritos não para serem lidos, mas para nos confrontarem com o que preferíamos não saber. Naquele Dia, da escritora Laura Alcoba, é um desses livros. Evita o alarido, recusa a grandiloquência, abdica de qualquer manobra de sedução narrativa — e, no entanto, impõe-se com a força de um sismo moral. Baseado num caso verídico ocorrido em Paris em 1984, Naquele Dia propõe uma reconstrução fragmentária, mas obsessivamente delicada, de um acto de violência doméstica que escapa a toda a lógica e que, por isso mesmo, exige escuta.

    Não é um romance no sentido clássico, e também não se entrega à crueza documental. Laura Alcoba faz — e fá-lo com uma contenção que roça o ascetismo — uma reconstituição de um espaço de ruína emocional através de três figuras: a mãe, Griselda, que mergulha num estado de desespero absoluto; o pai, Claudio, impotente e ausente; e a filha, Flavia, que sobrevive. Mas o verbo “sobreviver” aqui não é simples estatística vital: Flavia sobrevive à morte física, mas não ao colapso do mundo. A sua voz — ou melhor, os seus gestos, os seus silêncios, os seus desenhos infantis — atravessam o livro como restos de uma linguagem interrompida.

    Há neste gesto literário algo de Truman Capote, mas sem teatralidade. A escritora argentina, exilada desde a infância, inscreve-se na tradição da literatura do real, mas recusa o voyeurismo. Não há aqui nenhum esforço de dramatização. Nem julgamento, nem explicação. Alcoba compreende — como poucos — que há actos que não podem ser reduzidos a uma lógica causal, nem sequer à linguagem da psicologia. Aquilo que houve naquele dia — e nos dias que o antecederam — foi um paroxismo. Um termo árido, sim, mas talvez o único que se aproxima da natureza do que se passou: o colapso súbito, íntimo, surdo, da humanidade numa mulher. A maquilhagem de Griselda, obsessiva, torna-se não apenas máscara mas metáfora. E o frio de Paris, omnipresente, nunca é apenas meteorológico.

    A escrita, depurada até ao osso, é também um acto ético. Laura Alcoba não toma o lugar de ninguém: recolhe, escuta, recompõe. Nunca tenta explicar o que não é explicável. Nunca escreve em nome das vítimas — escreve perto delas. E, talvez por isso, Naquele Dia se torne mais do que um livro: uma forma de presença, uma tentativa de devolver ao espaço público uma história que parecia ter sido soterrada por neve e silêncio.

    Não deixa de ser significativo que a escritora, embora vivenda na França há décadas, ainda guarde um olhar argentino sobre o Mundo. Há no seu estilo uma densidade hispano-americana, uma estranheza dos exilados que vivem entre línguas. E se o livro nos fala de um drama familiar, fala-nos também do exílio — esse estado permanente de perda de referência e de reconstrução forçada da identidade. Perguntar se Laura Alcoba ainda se sente argentina é talvez redundante: aquilo que ela escreve só poderia ser escrito por alguém que traz um país inteiro dentro da memória.

    Naquele Dia não é um livro agradável, mas é um romance necessário. Não nos reconcilia com o mundo, mas também não nos entrega ao desespero. Obriga-nos apenas — e já é tanto — a parar, escutar e reconhecer que há actos humanos que não devem ser julgados à pressa, nem esquecidos em silêncio. Devem, isso sim, ser habitados. E, com a delicadeza quase litúrgica que lhe conhecemos, é isso que Laura Alcoba faz — e nos convida a fazer com ela.

  • O Pfizergate, o New York Times e o caso português do PÁGINA UM (a aguardar sentença há 28 meses)

    O Pfizergate, o New York Times e o caso português do PÁGINA UM (a aguardar sentença há 28 meses)


    Durante a pandemia, uma parte significativa do jornalismo português ajoelhou-se perante os altares da Comissão Europeia e dos Governos nacionais. A crítica, o contraditório e a investigação foram substituídas por uma militância sanitária que assumiu como missão promover vacinas, esconder contratos, silenciar dúvidas e rotular como perigosos ou irresponsáveis os que ousassem fazer perguntas.

    Por exemplo, logo após o nascimento do PÁGINA UM em Dezembro de 2021, a direcção editorial da CNN Portugal (com o apoio da Ordem dos Médicos) encomendou ao então estagiário Henrique Magalhães Claudino uma notícia para me associar aos ditos movimentos negacionistas da covid-19. Tive de lutar meses junto da ERC pela justeza da minha notícia rigorosa para, pelo menos, conseguir publicar direitos de resposta em alguns dos jornais que propalaram esta patifaria da CNN.

    Ursula von de Leyer com o CEO da Pfizer, Albert Bourla.

    Para evitar a publicação do direito de resposta, o jornal Público chegou mesmo a colocar, em meados de 2022, uma providência cautelar, através do advogado Francisco Teixeira da Mota – conhecido paladino da liberdade de imprensa –, em que se acusava que o PÁGINA UM “manifestamente, tinha tomado posições claramente atentatórias contra a necessidade de se criar consenso social em favor da vacinação, algo que o jornal [PÚBLICO] assumiu e defendeu desde a primeira hora”.

    Ou seja, durante a pandemia, a imprensa mainstream e muitos jornalistas não hesitaram em atribuir-me epítetos por não seguir linhas editoriais de propaganda vacinal e de gestão da pandemia, funcionando mais como departamentos de comunicação da DGS do que como órgãos de comunicação social que se exigem livres e plurais.

    Nesse contexto, não surpreende que a imprensa portuguesa — com raríssimas excepções — nunca tenha demonstrado qualquer interesse em saber o que realmente se passou nos bastidores das negociações das vacinas, tanto a nível europeu como nacional. Quando, em 2022, o The New York Times avançou com um processo contra a Comissão Europeia para obter as célebres mensagens trocadas entre Ursula von der Leyen e o CEO da Pfizer, Albert Bourla, a imprensa nacional mal lhe dedicou uma nota de rodapé. Uma ou duas linhas tímidas, e logo voltou ao conforto das pachorrentas conferências de imprensa, onde as perguntas difíceis eram proscritas.

    Agora, em Maio de 2025, o Tribunal Geral da União Europeia condenou a Comissão Europeia por violação dos princípios de boa administração ao recusar a entrega dessas mensagens – e os mesmos jornais que se calaram ou atacaram quem exigia transparência rejubilam agora. O Público até tem a ousadia de escrever que o “desfecho do caso Pfizergate é uma vitória para o The New York Times, a liberdade de imprensa e a transparência”.

    O Público agora rejubila com a vitória da liberdade de imprensa e da transparência…

    A hipocrisia na sua plenitude: quem ontem negou o jornalismo, hoje celebra o jornalismo dos outros — desde que venha com o selo do New York Times e sem incomodar os interesses nacionais.

    Mas mais grave do que esta hipocrisia mediática é o facto de, em Portugal, também haver um “caso Pfizergate” — ou melhor, um “caso DGSgate”, igualmente associado à compra de vacinas da covid-19, mas este, intentado pelo PÁGINA UM, arrasta-se há mais de dois anos, sem que o Tribunal Administrativo tenha decidido o que há muito já deveria estar resolvido. Ou melhor dizendo, porque os tribunais (e as suas decisões) são feitos por pessoas, pela juíza do processo, Telma Nogueira.

    Com efeito, em 22 de Novembro de 2022, requeri à DGS, ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos, um pedido claro, inequívoco e fundamentado de acesso integral aos contratos celebrados com as farmacêuticas fornecedoras de vacinas contra a covid-19, incluindo todos os anexos, cadernos de encargos, guias de transporte e trocas de correspondência administrativa.

    A juíza associada à intimação do PÁGINA UM tem permitido ao Ministério da Saúde e à DGS um exercício prolongado de opacidade com verniz burocrático: quando está em causa decidir se existe legitimidade para o acesso, é permitido que se negue o inegável, que se traduzam documentos (sem se ver os originais), e expurguem partes, retirando qualquer valor informativo real. E, na verdade, ‘apenas’ se quer consultar os originais. E anda-se há 28 meses — a intimação foi apresentada no último dia de 2022 — numa encenação de transparência, onde se finge cooperação para, na prática, se negar o acesso à informação pública.

    E a juíza permanece, despacho após despacho, sem proferir sentença ao fim de 28 meses, num processo classificado de urgente. Ainda que fosse desfavorável, seria preferível uma sentença, porque, ao menos, seria possível recorrer ao tribunal superior.

    Ainda este mês, sabendo bem que aquilo que a DGS tem carreado para o processo em nada corresponde ao que foi solicitado em 2022, a juíza Telma Nogueira deu um despacho para que nos pronunciemos se estamos satisfeito com aquilo que temos. Anda-se neste ‘enrola-enrola’ há dois anos. Se o formalismo jurídico permitisse seguiria uma única palavra e em maiúsculas: NÃO. E a seguir, um rogo: “decida, se faz favor”.

    person holding white plastic bottle

    Talvez não seja de bom tom, com um caso em curso, estar a debruçar-me e a criticar a condução deste caso. Mas ao jornalismo cabe a obrigação da denúncia, mesmo se em casos que digam respeito ao próprio jornalista, porque, neste caso, existe interesse público. E a questão jurídica do Tribunal Administrativo nestes casos é simples: não lhe cabe ser árbitro entre o que o requerente pediu e aquilo que o requerido quer dar. Cabe-lhe dizer, com clareza e firmeza, se há ou não legitimidade no pedido, se a DGS tem ou não obrigação de entregar os documentos originais sem rasuras, se o cidadão e, em particular, o jornalista têm ou não o direito de escrutinar os contratos que foram pagos com dinheiro público em nome de uma emergência sanitária. E decidir com a celeridade que a lei determina para as intimações. E 28 meses são 28 meses — não há conceito lato de urgência que encaixe todo este tempo.

    Ao contrário do que muitos insinuaram durante a pandemia, não há qualquer pulsão negacionista em se querer saber como foram negociadas e contratadas as vacinas ou se geriu a pandemia. Aquilo que há é jornalismo — esse mesmo que agora tantos fingem celebrar quando a vitória é de um jornal estrangeiro.

    O ‘caso DGSgate’ – e um outro relacionado com uma base de dados dos internamentos, que se eterniza apesar de um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 2023 – é, por isso, um teste à democracia. Se a Justiça portuguesa confirmar que a recusa da DGS foi ilegal, estará a dar uma resposta clara em favor da liberdade de informação e contra a opacidade institucional. Mas se continuar em silêncio, estará a dizer-nos que, em Portugal, certos contratos públicos estão acima da lei — e que, ao contrário do que se exige aos cidadãos, o Estado pode desobedecer impunemente àquilo que ele próprio legisla.

    Assim, se Von der Leyen foi condenada por esconder mensagens de WhatsApp, o que se deve dizer de uma DGS que esconde contratos inteiros, facturas, guias de remessa e cartas em papel timbrado? E o que dizer de uma Justiça que, passados mais de dois anos, ainda não respondeu?

    Enfim, não basta aplaudir o New York Times e dizer que a liberdade de imprensa venceu em Bruxelas. É tempo de exigir que a liberdade de imprensa também vença em Lisboa. E que se denuncie, em simultâneo, os hipócritas — sobretudo os escribas de certa imprensa, que tão maltrataram os princípios do jornalismo durante os anos da pandemia.

  • Laura Alcoba

    Laura Alcoba

    Na vigésima sétima sessão da BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com a escritora argentina Laura Alcoba.



    Nascida em 1968, na Argentina, e exilada em França desde os dez anos, Laura Alcoba construiu uma obra literária profundamente marcada pelas sombras da história e pelos silêncios da infância. Filha de militantes perseguidos pela ditadura militar, viveu na clandestinidade com um nome falso e aprendeu cedo que o medo pode tornar-se idioma. Hoje, professora universitária em Paris e autora consagrada em língua francesa, Laura Alcoba regressa com frequência à Argentina — não apenas nos afectos, mas sobretudo na literatura.

    Na sua passagem por Lisboa, a pretexto do lançamento do seu romance Naquele dia, a sua primeira obra traduzida em português, e publicada pela Dom Quixote, Laura Alcoba conversa com Pedro Almeida Vieira numa edição especial, gravada na Livraria Bucholz, em Lisboa, para a BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, cuja transcrição editada também aqui se apresenta.

    Naquele dia é o teu primeiro romance traduzido para Portugal e parte de um facto real, trágico e íntimo. Em que momento sentiste que essa história tão delicada, tão violenta, podia transformar-se em literatura?

    Foi algo que surgiu por etapas. Há anos, fui ver um filme do Martin Scorsese, Shutter Island [Ilha do Medo, em portyguês, de 2010]  e, ao sair da sala, tive uma sensação muito estranha: parecia que eu já conhecia aquela história. Havia uma cena em que uma mãe afogava três filhos — uma menina e dois rapazes — e isso mexeu muito comigo. Com o tempo, lembrei-me de algo que o meu pai me contou: ele conheceu uma família na qual se tinha passado um drama semelhante. E eu, em criança ou adolescente, tinha visto dois desses meninos. A mãe afogou os filhos na banheira.

    Laura Alcoba com Pedro Almeida Vieira.

    Recordaste isso depois de veres o filme?

    Laura: Sim. Lembro-me de dizer ao meu editor, anos depois: “Houve um caso terrível entre exilados argentinos, e um dia, se tiver forças, talvez escreva sobre isso.” Mas não sabia se seria capaz. Guardei isso num canto da mente. Escrevi outros livros até que, já mais recentemente, aconteceu algo muito particular, encontrei os contactos de Griselda.

    A mãe?

    Sim, e também a filha. Ambas pareciam estar à minha espera. Sabiam que eu escrevia. Foi uma sensação estranho. A verdade é que eu ainda tinha medo. Mas o encontro com Flavia, a filha, agora uma mulher de mais de 40 anos, foi decisivo. Ela tinha seis anos na altura dos acontecimentos, em 1984. Quando falámos, foi muito forte ela e me contou aquilo que se recordava naquele dia e disse-me: “Preciso que fales com a minha mãe. Preciso que escrevas este livro.” A partir desse momento, foi como se o livro tivesse começado a escrever-se por si só.

    Foi só após essa conversa com a filha que decidiste adoptar essa perspectiva narrativa mais contida, quase como em A Sangue-Frio, do Truman Capote? Ou já tinhas essa ideia antes?

    Não sei… Talvez sim, no sentido em que fiz uma investigação, como Capote. Mas o que tentei fazer foi contar essa história e, através dela, contar muitas outras. O que me interessa é o que há de universal no particular. Aqui há um momento de loucura, um infanticídio — infelizmente, algo que se repete noutros casos — e, ao mesmo tempo, há uma criança que sobrevive. É um livro sobre um crime terrível e um acto horroroso e, ao mesmo tempo, sobre a sobrevivência. Nesse dia, a criança salva-se e emerge uma luz para outra coisa. É um livro sobre a força da infância, sobre a resiliência. Não o teria escrito se fosse apenas sobre o crime.

    Claro, claro…

    Persigo esse tema da infância, sobre a sua força indestrutível, é algo que faço há anos. Aquilo que é impressionante nesta história é que Flavia se salvou e tornou-se uma pessoa extraordinária. Isso é um mistério, um milagre, é incrível. Sem essa luz no final, não teria conseguido escrever. Interessava-me essa sobrevivência.

    Depois de escreveres este livro, que trata de uma violência tão extrema — violência doméstica, de mãe contra filhos —, conseguiste compreender o acto? Escreveste-o para tentar entender?

    Acho que não. Nunca se compreende verdadeiramente. Podemos tentar aproximar-nos do que é incompreensível. Este acto continuará a sê-lo — até para a própria Griselda. Não se trata de explicar nem de justificar, mas de entrar numa zona obscura do humano e saber que, mesmo depois disso, há um “depois” possível. Sem esse “depois”, eu não teria escrito.

    E a história da salvação de Flavia é incrível. A mãe vai buscá-la à escola após matar os dois irmãos…

    Sim. A mãe chega à escola num estado completamente alterado. E a professora de Flavia, Colette, percebe que há algo errado. Recusa-se a entregar a menina. E aí põe-se em marcha outra coisa. Esse gesto salvou a vida de Flavia. Foi essa recusa que impediu que a tragédia se consumasse por completo.

    Chegaste a conhecer Colette?

    Sim. Encontrei-me com ela, com a sua companheira, com a advogada. Colette, que é a pessoa mais extraordinária que conheci na vida, teve uma intuição extraordinária. Não entregou a menina à própria mãe. Graças a isso, Griselda acabou por ir para um hospital psiquiátrico e teve um julgamento. E foi decidido que voltaria a viver com a filha, depois de sair da prisão. Na altura, eu própria teria dito que era uma loucura esse veredicto. Mas hoje, ao vê-las juntas tantos anos depois, percebo que essa aposta — difícil, quase impossível — funcionou.

    E como decidiste a forma de contar a história? Sem cair no jornalismo, sem fazer juízos morais?

    Nunca quis fazer um livro jornalístico. Havia momentos em que me parecia estar dentro de um mito. No livro, menciono o mito de Medeia — que também foi contado a Flavia. Mas o que quis foi encontrar algo profundamente humano, algo universal. Esta história, embora extrema, fala-nos de questões fundamentais: loucura, morte, mas também amor, coragem, sobrevivência.

    E conseguiste escrever tudo isso com muito pudor, sem entrar nos pormenores macabros.

    Sim. Não queria dar detalhes chocantes. O acto está presente, claro — é um abismo —, mas tentei manter a distância certa. A loucura e o mal existem. Não há explicações jurídicas ou psiquiátricas que resolvam tudo. A única coisa que podemos tentar é procurar alguma luz na escuridão.

    E esta história passa-se em Paris, entre exilados argentinos. Achas que o facto de serem exilados, sem raízes, contribuiu para a tragédia?

    Não quero reduzir tudo a isso, mas é claro que Griselda foi alguém profundamente ferido pela História. Uma mulher que sofreu abusos na infância, que viveu a repressão da ditadura. A História com H grande quebrou-a. Era como um vaso que se parte de repente.

    Escreves em francês. Mas falas castelhano com fluência. Como vives essa dualidade?

    Escrevo sempre em francês. O castelhano está em mim como um lençol freático. Toda a minha memória argentina está lá, debaixo da terra, e emerge nos livros. Não conseguiria escrever em castelhano, mas os meus livros, quando são traduzidos para essa língua, é como se voltassem à sua origem.

    E sentes que serias outra pessoa se fosses francesa nascida em França?

    Claro. Vivi na clandestinidade na Argentina, com um nome falso, escondida. Isso marcou-me para sempre. A autocensura, o medo de falar… tudo isso explorei em francês. Especialmente no livro agora traduzido em Portugal, onde os silêncios são fundamentais.

    Tens visitado a Argentina?

    Sim, regularmente. Sou recebida com muito carinho. Tenho muitos leitores.

    E como vês agora a Argentina com Milei?

    Mas a situação económica é muito difícil. E agora, com Milei, tudo se agravou. As suas medidas são brutais na assistência social. Ele quer destruir o Estado, e o Estado é o que nos permite viver juntos. As pessoas não vivem na Macroeconomia. A democracia está em perigo.

    Qual é o papel do escritor, neste contexto?

    Laura: Acho que é importante tomar a palavra, assumir uma posição. Mesmo vivendo em França, acompanho tudo com preocupação. É fácil destruir a uma velocidade estontante, difícil é reconstruir. Mas confio na resiliência da Argentina e. Como Flavia.