Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Helicópteros: cunhado do ministro Leitão Amaro conseguiu, com um único empregado, lucrar 400 mil euros em 2023

    Helicópteros: cunhado do ministro Leitão Amaro conseguiu, com um único empregado, lucrar 400 mil euros em 2023

    “Estimados, Terei todo o gosto e interesse em esclarecer o vosso site pois acompanho á [sic] alguns anos e sempre apreciei a forma isenta como escrevem e por achar (e provo) que tem muitas incorreções achei de [sic] devia enviar este comunicado e também colocar-me ao dispor.”

    Foi através de correio electrónico que Ricardo Leitão Marques reagiu à notícia do PÁGINA UM, que revelava que a Gesticopter Operation, uma subsidiária da Gestifly, apenas tinha sido adquirida pela Helifinance Asset Management, detida pelo empresário casado com a irmã do ministro Leitão Amaro, em Março deste ano, ou seja, antes do contrato de 20,1 milhões celebrado apenas no mês passado, no dia 7.

    Na sua missiva ao PÁGINA UM, Ricardo Leitão Marques envia igualmente o comunicado divulgado no passado sábado pela generalidade da imprensa, no qual refere que já detinha a maioria do capital da empresa Gestifly desde Junho de 2023, o que significa que a transmissão da Gesticopter constituiu uma mera operação formal de reestruturação societária, sem efeitos substanciais de alteração no controlo efectivo. De facto, a Gestifly é agora detida, de acordo com o Registo de Beneficiário Efectivo, por Ricardo Leitão Marques através da Demeter, uma empresa com sede no mesmo local da Helifinance Asset.

    Porém, apesar dos posteriores pedidos de esclarecimento do PÁGINA UM, Ricardo Leitão Marques acabou por não responder às questões mais essenciais nem esclarecer algumas das syas ‘garantias’.

    Com efeito, no comunicado deste sábado, Ricardo Leitão Marques diz que a sua entrada na Gestifly em 22 de Junho de 2023 ocorreu quando a empresa “enfrentava sérias dificuldades financeiras e tinha acabado de ser seleccionada para três contratos públicos de aquisição de serviços de disponibilização e locação de meios aéreos para o dispositivo aéreo do DECIR de 2023”.

    Ricardo Leitão Machado, esta semana, em entrevista ao Diário de Notícias. Foto: DR.

    Efectivamente, apesar de constar no Portal Base que a Gestifly teve divulgados quatro contratos em 2024, três destes foram assinados ainda em 2023 para o fornecimento de 10 helicópteros, alguns dos quais para dois anos. O incompreensível atraso na divulgação dos contratos no Portal Base por parte da Força Aérea foi, aliás, detectado em primeira mão pelo PÁGINA UM em finais de Janeiro de 2024. O Estado-Maior da Força Aérea(EMFA) justificou então o atraso como “falha técnica”. Mas, na verdade, tratava-se de uma intencional ocultação de contratos durante meses, pois este era um problema crónico.

    Nessa altura, o PÁGINA UM analisara os 500 contratos mais recentes publicados pelo EMFA – que apanham um período desde 27 de Fevereiro de 2023 e 30 de Janeiro de 2024 – identificaram-se quatro contratos em que se demorou mais de 1.000 dias a inserir-se a informação no Portal Base, um dos quais a aquisição de um boroscópio de medição no valor de quase 31 mil euros à Olympus, adquirido em Agosto de 2020 e que só deu entrado no Portal Base em Agosto de 2023.

    Mas isto são só os casos extremos. Se se considerar os atrasos superiores a um ano, ou seja, 365 dias, encontravam-se 64 contratos, e aí o montante subia para os 69,2 milhões de euros. Com atraso superior a meio ano eram já 212 contratos, envolvendo um montante total superior a 100 milhões de euros. Contudo, considerando que os prazos de divulgação genericamente previstos no Código dos Contratos Públicos são de 20 dias úteis, o EMFA estava num cumprimento inferior a 20% dos contratos.

    Considerando os 15 contratos acima de um milhão de euros, de entre os 500 mais recentemente divulgados pelo EMFA, apenas em seis se cumpriram os prazos, sendo que nos restantes nove encontram-se três em que a demora foi superior a dois longos anos. Neste caso, destaca-se o contrato de fornecimento de combustíveis por cerca de três anos à Petrogal no valor de 57,3 milhões de euros. A celebração foi a 30 de Setembro de 2021, mas a informação só viu a luz no Portal Base no passado dia 16 de Janeiro. Portanto, uma demora de 838 dias.

    Mas regressando aos contratos com a Gestifly, após a afirmação de Ricardo Leitão Marques ter dito que a empresa enfrentava “sérias dificuldades financeiras” em 2023, o PÁGINA UM foi analisar as contas da empresa. Apesar de ter sido criada em 2021, nos dois primeiros anos a Gestifly não teve qualquer actividade e, por isso, os pequenos prejuízos foram irrelevantes.

    Em 2021, o prejuízo foi de apenas 4.060 euros e no ano seguinte de 7.122 euros — nada de dramático para um capital social de 50 mil euros, e para uma empresa que estava à procura dos primeiros negócios. Mas no final do ano de 2022 — ou seja, antes da data que Ricardo Leitão Marques diz ter tomado o domínio da Gestifly —, a empresa até ficou com uma elevada liquidez, porque conseguira um financiamento bancário de 1,6 milhões de euros, conforme se detecta no balanço das demonstrações financeiras desse ano consultadas pelo PÁGINA UM.

    Esse financiamento de 2022 terá permitido que a Gestifly se lançasse para finalmente começar a concorrer a concursos públicos de prestação de serviços de meios aéreos de combate aos incêndios rurais. E em 2023 — o tal ano que o cunhado de Leitão Amaro diz que esta empresa estava em “sérias dificuldades financeiras” —, a Gestifly conseguiu ganhar três concursos e acabar o ano com uma facturação de 6,4 milhões de euros. Uma grande parte das receitas (mais de 5,9 milhões de euros) serviram para pagar a subcontratação de serviços. Mesmo assim, sobraram 401.255 euros de lucro nesse ano, conforme as contas de 2023 consultadas pelo PÁGINA UM, que desmentem a alegada má situação financeira nesse ano.

    Na verdade, os resultados podem mesmo considerar-se excelentes, se atendermos que a Gestifly tinha em 2023… um único empregado. E nem se diga que era um, mas um que era um génio que valia por cem, porque o accionista principal, Ricardo Leitão Marques, apenas lhe pagou um salário bruto de 13.458 euros — ou seja, cerca de 960 euros por mês, o que é compatível com o salário de um contabilista mal pago.

    Em suma, e também considerando que o activo tangível da empresa em 2023 rondava apenas 1,4 milhões de euros —a Força Aérea comprou há três anos seis helicópteros de combate aos incêndios por 8,8 milhões de euros (com IVA) por unidade —, o negócio da Gestifly aparenta ser um simples intermediário: subcontrata os 10 helicópteros a outras empresas, subcontrata pilotos e manutenção, e fica com uma ‘comissão líquida’ de 6,4%. Assim, com um único empregado, a quem pouco mais pagou que o salário mínimo nacional, Ricardo Leitão Machado conseguiu uma produtividade de 400 mil euros por trabalhador, cerca de 20 vezes o valor médio nacional.

    Força Aérea adquiriu seis helicópteros em 2022, mas Portugal está dependente de empresas privadas para o combate aéreo aos incêndios rurais.

    Em 2024, a empresa terá facturado valores sensivelmente idênticos, mas apesar das insistências do PÁGINA UM , Ricardo Leitão Marques nas quis revelar esses dados financeiros.

    Em todo o caso, para justificar a relevância da sua entrada em 2023 na Gestifly — por alegadas “serias dificuldades financeiras” da empresa —, Ricardo Leitão Machado disse ao PÁGINA UM que, quando a adquiriu, esta “não tinha meios para cumprir os contratos que tinha ganh[ad]o, visto não ter tesouraria para as
    Garantias Bancárias a prestar e para o investimento para montar uma operação deste calibre”.

    Esta justificação não deixa de ser surpreendente sob duas perspectivas. Primeiro, pelo lado da Força Aérea, que atribuiu três vitórias a uma empresa sem histórico relevante e que, aparentemente, não deu garantias, na fase de concurso, de possuir capacidades operacionais e financeiras para cumprir contratos desta natureza.

    Por outro lado, no caso das garantias bancárias — exigidas como caução obrigatória em determinados contratos públicos (equivalente a 5% do valor adjudicado) —, a Gestifly já as tinha constituído antes da entrada formal do empresário, uma vez que esta ocorreu a 22 de Junho de 2023 e os contratos com a Força Aérea foram celebrados a 1 e a 16 desse mês. Além disso, convém referir que os custos das garantias bancárias, concedidas por instituições de crédito, rondam, por norma, 0,25% do montante em causa. Mesmo que essa percentagem fosse de 1%, os encargos nunca seriam verdadeiramente insustentáveis, tratando-se de três cauções que totalizavam 648 mil euros — o que corresponderia, nessa hipótese, a um custo real de pouco apenas 6.480 euros.

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    Saliente-se também que Ricardo Leitão Machado não esclareceu quantos meios aéreos próprios a Gestifly possui ou possuía nem qual o valor da transacção de um negócio que logo no primeiro ano, em poucos meses, lhe concedeu um lucro de 400 mil euros. Numa primeira fase, o empresário disse ao PÁGINA UM que “a empresa é proprietária de parte dos helicópteros que utiliza no
    dispositivo”, acrescentando que “os pilotos são todos prestadores de serviços, quer diretamente, quer através da empresa subcontratada”. Mas confrontado com o facto de o activo tangível da Gestifly ser pouco superior a um milhão de euros — o que, no máximo, daria para um helicóptero pesado em segunda-mão —, o empresário esquivou-se a dar uma resposta.

    E diz mesmo estar a sentir-se prejudicado nos concursos públicos mais recentes. Já com outra empresa, a Gesticopter, Ricardo Leitão Machado somente ganhou em 2025 um concurso público (um contrato de três anos no valor de 20,1 milhões de euros, com IVA), perdendo todos os outros os outros, mais de uma dezena, incluindo um para fornecimento de meios aéreos ao INEM. O empresário recusa também qualquer benefício familiar, porque os contratos da Gestifly em 2023 ocorreram ainda durante o Governo Costa.

  • O valor do jornalismo, o preço da independência

    O valor do jornalismo, o preço da independência


    Numa postura de transparência que sempre me impus no início do projecto do Página Um, em finais de 2021, apresentamos e divulgamos os resultados financeiros de 2024 da microempresa que gere este jornal. Quando os vejo, e tendo presente tanto os contratos despesistas do Estado como os balanços catastróficos das grandes empresas de media em Portugal, não posso deixar de sorrir — mas é um sorriso com amargura.

    O PÁGINA UM conseguiu, em 2024, mais um milagre. Sem publicidade. Sem parcerias comerciais. Com acesso livre a todos. Recebemos mais de 61 mil euros em donativos de leitores generosos e conscientes. Parece muito dinheiro — e é, tendo em conta o panorama actual da imprensa —, mas não é suficiente. O nosso orçamento mensal ronda os 5.000 euros, valor que cobre os custos operacionais do site, comunicações, despesas logísticas, renda da redacção, e o pagamento — em montantes que envergonhariam qualquer tabela sindical — de dois jornalistas fixos. Não há desperdício. Não há luxos. Não há salários dourados.

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    Todos os dias, ao consultar o extracto bancário do PÁGINA UM, agradeço em silêncio cada apoio que surge. Só a falta crónica de tempo — esse tempo que se gasta a investigar, confirmar, redigir, editar — impede que cada contributo tenha o agradecimento personalizado que merece. Mas todos os nossos apoiantes sabem que este jornal não seria possível sem eles. E sabem também que nunca fizemos dívidas, nunca apresentámos prejuízo.

    Com um capital social de apenas 10 mil euros, a empresa que detém o PÁGINA UM cumpre religiosamente todas as obrigações fiscais e sociais. O único valor registado no passivo de 2024 referia-se ao IRC — que, aliás, já está pago. Temos orgulho nesse rigor. Somos pequenos, sim, mas somos íntegros.

    Esse rigor é também o que nos permite apontar o dedo à promiscuidade e à irresponsabilidade reinantes noutros lados da imprensa. Veja-se o caso paradigmático da Trust in News. Com o mesmo capital social de 10 mil euros, conseguiu, não se sabe bem como, manter uma operação com mais de duas centenas de empregados — mas acumulou também um passivo superior a 30 milhões de euros, dos quais metade são dívidas ao Fisco e à Segurança Social. E o seu dono, Luís Delgado, continua serenamente a acumular dívida, enquanto atira a credibilidade do jornalismo português para a sarjeta.

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    No PÁGINA UM, recusamos esse caminho. Preferimos não crescer a qualquer preço. E essa decisão tem custos. Apesar de tudo aquilo que conseguimos construir nos últimos três anos — credibilidade, impacto, notoriedade — há uma frustração que persiste nos números. Temos hoje cerca de meio milhar de apoiantes regulares, que nos financiam com o que consideram justo e possível. É, na prática, a aplicação espontânea e honesta do conceito económico de willingness to pay — a disposição individual a pagar por um bem imaterial que se reconhece como valioso.

    Esse princípio, aliás, é uma viagem à raiz do mais puro e nobre jornalismo: um contrato de confiança entre quem informa e quem quer ser informado com rigor, isenção e coragem. Não temos paywalls. Não exigimos quotas obrigatórias. Confiamos no julgamento dos leitores. E por isso cada euro doado vale mais do que mil de publicidade: é uma demonstração de respeito mútuo.

    Mas os desafios são reais. O crescimento das visitas — temos tido sistematicamente mais de 300 mil acessos mensais, chegando nalguns meses a ultrapassar os 400 mil — traz consigo uma exigência acrescida. Chegam-nos denúncias sérias, sugestões fundamentadas, propostas de investigação com potencial noticioso. E nós, por falta de meios humanos, por absoluta escassez de tempo, não conseguimos sempre responder. Sabemos o quanto isso é frustrante para os leitores. É também frustrante para nós.

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    Estamos, pois, num dilema. Não queremos desarmar. Mas temos consciência de que será cada vez mais difícil sustentar um projecto que se recusa a vender a alma, mas que está a exigir-me os limites. Precisamos de encontrar formas complementares de financiamento, para conseguir aumentar uma redacção que tem limites físicos, sem ceder um milímetro nos princípios que nos trouxeram até aqui. E a todos os que nos leem, vos deixo uma garantia: no dia em que sentir que a independência jornalística do PÁGINA UM está em risco de ser trocada por sobrevivência, será também o dia em que encerrarei este projecto.

    Mas esse dia não chegou. e nem quero que chegue — se continuarmos a merecer a confiança dos nossos leitores. Por isso, este é também um apelo: continuem connosco. Ajudem-nos a resistir. Acreditem que vale a pena fazer jornalismo livre, mesmo num país pequeno e com tantos interesses instalados. E saibam que, enquanto tivermos forças, estaremos aqui. Porque há coisas que ainda precisam de ser ditas. E, mais importante ainda, há verdades que ainda precisam de ser contadas.

    Obrigado a todos.

    Pedro Almeida Vieira

  • Parlamento: deputados únicos do BE, PAN e JPP ‘sonham’ com primeira fila

    Parlamento: deputados únicos do BE, PAN e JPP ‘sonham’ com primeira fila

    Pela segunda vez em 17 legislaturas, a Assembleia da República vai sentar três deputados de partidos políticos sem grupo parlamentar, ou seja, deputados únicos. Amanhã, na primeira sessão da nova composição do Parlamento, Mariana Mortágua (Bloco de Esquerda, que viu o seu grupo parlamentar colapsar em apenas seis anos — elegeu 19 deputados em 2019), Inês de Sousa Real, do Partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN, que repete a experiência da legislatura anterior), e o estreante Filipe Sousa, do partido regional madeirense Juntos pelo Povo (JPP), não terão companheiros de bancada.

    Estes deputados vão partilhar assim a mesma solidão parlamentar vivida em 2019, quando, pela primeira vez, mais de dois partidos conseguiram eleger um único deputado: Joacine Katar Moreira (eleita pelo Livre, mais tarde independente), João Cotrim de Figueiredo (Iniciativa Liberal) e André Ventura (Chega). Curiosamente, todos os partidos então com representação unipessoal conseguiram ampliar a sua presença nas legislaturas seguintes, sendo que o Chega lidera hoje a oposição com 60 deputados.

    Porém, o PÁGINA UM sabe que Bloco de Esquerda, PAN e JPP vão, contudo, tentar quebrar uma duradoura praxe em Conferência de Líderes, ainda que a hipótese de sucesso seja escassa: um lugar na primeira fila do hemiciclo parlamentar.

    Apesar de o longo e detalhado Regimento da Assembleia da República, nos seus 265 artigos, ser totalmente omisso sobre a distribuição dos deputados no hemiciclo, essa competência cabe, por tradição, à Conferência de Líderes e, em última instância, ao Presidente da Assembleia. Por regra, nunca um deputado único conseguiu acesso aos lugares da primeira fila, pois assume-se que não possui representatividade suficiente para ocupar um dos 24 lugares dianteiros habitualmente disponíveis.

    Com efeito, se a atribuição dos lugares da primeira fila fosse feita com base estritamente proporcional — isto é, através de um critério aritmético rigoroso —, os partidos minoritários como o BE, o PAN e o JPP estariam manifestamente fora de qualquer expectativa de acesso a esse espaço. Mas o mesmo sucederia com outros partidos que, não obstante, terão presença na frente.

    Filipe Sousa, deputado do JPP: pela primeira vez, um partido regional elege para Assembleia da República.

    Num Parlamento com 230 deputados e apenas 24 lugares na primeira fila, o direito proporcional a um lugar dianteiro corresponderia a cerca de 9,58 deputados. Assim, apenas os partidos com pelo menos 10 deputados poderiam ambicionar legitimamente essa posição. Aplicando esse critério, a selecção tornar-se-ia inevitavelmente excludente — e não apenas para o BE, o JPP e o PAN. Só três partidos atingem esse limiar: o PSD, com 89 deputados; o Chega, com 60; e o PS, com 58.

    Todos os restantes ficariam automaticamente arredados da primeira fila: a Iniciativa Liberal, com 9 deputados, não atinge o mínimo necessário; o Livre, com 6, também não; e o mesmo se aplica ao PCP, com 3 deputados. Até o CDS-PP, que regressou ao Parlamento à boleia da Aliança Democrática com dois eleitos, ficaria fora desse espaço, se a lógica fosse puramente aritmética.

    Esta análise evidencia que, do ponto de vista estritamente matemático, permitir que partidos com uma expressão parlamentar reduzidíssima ocupem lugares de destaque na primeira fila constitui uma desproporção evidente. Um deputado único, que representa 0,43% do Parlamento, ao sentar-se na primeira fila — ocupando 1 em 24 lugares, ou seja, 4,17% do espaço visível — multiplicaria por quase dez vezes o seu peso real no hemiciclo.

    Contudo, a democracia parlamentar não se resume à aritmética. Colocar deputados únicos na primeira fila pode ser interpretado, mais do que como um acto injusto de concessão de privilégios desproporcionados, como a expressão de um princípio democrático de inclusão representativa. Num sistema como o português, que adopta o método de Hondt e favorece os partidos mais votados em cada círculo, a eleição de deputados únicos representa, em si mesma, uma superação notável de barreiras estruturais. Em muitos casos, essa eleição constitui um primeiro passo para afirmações políticas mais robustas — como se viu com o Chega, a Iniciativa Liberal e o Livre, que em 2019 tinham apenas um deputado e hoje ocupam posições reforçadas.

    Conceder-lhes maior visibilidade simbólica — através da sua colocação na linha da frente do hemiciclo — traduz-se, assim, num reconhecimento do pluralismo político e da legitimidade de minorias que, mesmo em desvantagem no sistema, conseguiram representação.

    De facto, a visibilidade atribuída a essas vozes solitárias não distorce a democracia; pelo contrário, reforça-a, ao garantir que nenhuma corrente legitimada pelas urnas seja remetida ao esquecimento visual ou ao silêncio institucional. Trata-se, pois, não apenas de uma questão de espaço, mas de princípio: assegurar que o Parlamento se veja a si próprio como espelho, ainda que fragmentado, da pluralidade nacional.

    Na reunião da Conferência de Líderes de 21 de Maio, três dias após as eleições e ainda com os deputados da anterior legislatura em funções, foi apresentada uma proposta provisória de distribuição de lugares no hemiciclo para a sessão inaugural. Contudo, José Pedro Aguiar-Branco — que deverá manter o cargo de Presidente da Assembleia da República — sublinhou que “a disposição definitiva de lugares na XVII Legislatura só será decidida” após a sessão desta terça-feira. Para já, ficou esclarecida a posição do JPP, que recusou ficar junto ao Chega, como se chegou a aventar inicialmente.

    Em 2019, então como deputado único, André Ventura foi relegado para a segunda fila, aproveitando sistematicamente o púlpito para ter destaque. Agora, seis anos depois, com 60 deputados, o Chega terá seis deputados em primeira fila.

    Assim, nesta terça-feira, o Chega ocupará, segundo apurou o PÁGINA UM, seis lugares na primeira fila, previsivelmente mais um do que o Partido Socialista. O PSD deverá sentar-se em oito lugares dianteiros, restando dois para a Iniciativa Liberal, um para o CDS-PP, outro para o Livre e outro para o Partido Comunista Português.

    Depois, será a política — e o bom senso — a ditar se a tradição se mantém ou se Portugal opta por inovar. Porque, nos parlamentos de diversos países europeus, dificilmente o JPP, o Bloco de Esquerda e o PAN arrecadariam uma cadeira da frente. Veremos se Portugal decide olhar mais para os princípios ou para as proporções.

  • Gouveia e Melo: um populista de farda como epitáfio da democracia

    Gouveia e Melo: um populista de farda como epitáfio da democracia


    Portugal vive hoje sob um regime político que se apresenta como democrático, mas que já não o é. Persistem as eleições, os parlamentos, os jornais, os partidos, os discursos inflamados na Avenida da Liberdade para comemorar o 25 de Abril. Não há perseguições nem presos políticos. Mas falta-lhes todo o resto. Falta já a substância.

    A democracia portuguesa – e, por extensão, a de toda a União Europeia – tornou-se um teatro de sombras, onde os actores se movimentam obedientes a um guião traçado por interesses supranacionais, alheios à vontade popular. A liberdade política esvai-se sem tiros nem quarteladas, numa erosão subtil, mas implacável, em que o cidadão comum é reduzido a figurante.

    Gouveia e Melo com Isaltino Morais.

    Tal como em Matrix, os portugueses continuam a acreditar que vivem numa democracia porque ainda votam, ainda discutem política, ainda protestam de vez em quando. Mas já não mandam. Já não decidem. Já não influenciam. O poder efectivo – aquele que determina o rumo da Economia, os modelos de governação, os critérios de financiamento, as regras sociais, os limites da acção individual e colectiva – reside noutras mãos. Mãos frias, cinzentas, instaladas em Bruxelas, Estrasburgo e Frankfurt. Mãos de burocratas não eleitos, ou eleitos por cliques governamentais sem qualquer representação directa de vontades nacionais. A Comissão Europeia, hoje desprovida de qualquer sentido de solidariedade ou humanismo, tornou-se uma instância autocrática que olha para os cidadãos como carne para canhão, peças sacrificáveis num tabuleiro de xadrez onde só importa proteger o rei e os bispos.

    Onde antes se vislumbrava um projecto de desenvolvimento económico e social, temos agora um modelo de gestão tecnocrática e autoritária, que invoca a “governança” para justificar a opressão fiscal, a vigilância digital, a neutralização da dissidência e o esvaziamento do Estado-Nação. Em nome da estabilidade, da transição ecológica, da saúde pública ou da “resiliência”, tudo é permitido – menos resistir.

    A comunicação social mainstream, falida e dependente cada vez mais do ‘oxigénio’ das corporações e do Estado – porque os seus clientes tradicionais, os leitores, já não lhe concedem a credibilidade e o valor económico de outrora –, traiu os seus princípios. Neste novo cenário, deixou de ser watchdog para ser o petdog, abanando a cauda a cada migalha do poder.

    Portugal, outrora nação soberana, é hoje um protectorado sem identidade política – mais submisso aos ditames dos comissários europeus do que o foi à Coroa espanhola entre 1580 e 1640. A diferença é que, ao menos, o domínio filipino não disfarçava a sua natureza. Hoje, os nossos dirigentes sorriem, assinam, bajulam e até agradecem por sermos tutelados. E não são apenas os burocratas estrangeiros os culpados: são, sobretudo, os nossos próprios políticos, que cedo perceberam que em Bruxelas há mais poder, mais visibilidade e melhores poisos do que em São Bento. De Durão Barroso a António Costa, temos assistido a uma sucessão de ambiciosos que trocaram a lealdade à pátria pela ascensão nas hierarquias internacionais. Portugal serve já apenas como trampolim.

    E, no entanto, os tempos difíceis não surgem apenas do exterior. A deriva antidemocrática alastra também no plano interno, disfarçada sob novas roupagens. Se muitos se escandalizam com o Chega – e bem, diga-se, pois a retórica populista não oferece soluções, apenas ressentimentos –, poucos se apercebem de que o verdadeiro risco está na emergência de uma nova direita pretensamente respeitável, que nasce das borralhas de um antigo PSD e CDS e que se tenta reabilitar à boleia de uma figura tão popular quanto perigosa: o Almirante Gouveia e Melo.

    Há quem trema com os apoiantes do Chega. Eu tremo tanto ou mais com os que se juntam, discretamente, em redor de Gouveia e Melo. Começa-se pelo novo BFF (best friend forever) do Almirante: Isaltino Morais, o velho cacique que gere Oeiras como um paxá num feudo medieval. Junte-se-lhe Rui Rio, o ex-presidente do PSD, agora mandatário da candidatura a Belém, com contas a ajustar com os seus ‘fantasmas’ que o impediram de ser primeiro-ministro. Adicione-se ‘senadores’ reformados do PSD ou derrotados do CDS, bem da vida por terem aproveitado da rede de contactos políticos uma existência inteira, mas saudosistas das luzes da ribalta, como Ângelo Correia, António Martins da Cruz e Francisco Rodrigues dos Santos. Esta frente discreta, mas não menos inquietante, de figuras em busca de redenção ou vingança compõe um coro de sombras que encontra em Gouveia e Melo uma âncora, um novo D. Sebastião vestido de almirante. É isso que tentam vender.

    Gouveia e Melo com Rui Rio.

    Aliás, de entre os sete fundadores e membros da direcção de apoio ao AlmiranteHonrar Portugal, que curiosamente repete uma denominação com laivos de Estado Novo de um grupo de pensamento do Chega no Facebook –, não é de admirar que haja quatro especialistas em marketing, porque Gouveia e Melo é um produto apenas com embalagem: Carlos Sá, Catarina Santos Cunha, Manuel Vaz e Tiago Mogadouro. De facto, bem precisam de vender um senhor que de carisma tem zero, sem um pensamento teórico, político ou social minimamente estruturado sobre assunto algum, que lê o teleponto como um boneco de cera – talvez seguindo as recomendações de Tiago Mogadouro, que é director-geral do Museu Madame Tussaud, em Nova Iorque.

    Mas mais preocupante ainda é ver neste grupo avançado de lugares-tenentes de Gouveia e Melo – que se tornou conhecido por ter sido o director logístico de um produto (vacinas contra a covid-19) durante três trimestres – uma constitucionalista, Teresa Violante, que já defendeu, sem pudor, que houve, sim, atropelos constitucionais durante a pandemia, mas que tal problema se resolve facilmente: basta mudar a Constituição. Talvez também queira mudar a Constituição para que os atropelos cometidos por Gouveia e Melo, na sua sanha justiceira a bordo do NRP Mondego, se tornem legais.

    É este o perigo de se embarcar em populistas – que é exactamente aquilo que Gouveia e Melo é. Se a lei incomoda, muda-se a lei. Se os direitos atrapalham, cortam-se os direitos. Tudo pela eficácia – e ele já defendeu ser contra a burocracia, porque, hélas, promove a corrupção. A democracia, com os seus equilíbrios, os seus freios e contrapesos, os seus incómodos, é hoje vista como um obstáculo.

    O problema da crise dos partidos tradicionais, que fizeram crescer os populismos e os extremismos, faz também ‘nascer’ este tipo de figuras que, tal como André Ventura, querem mudança – mas essa mudança vem acompanhada de veneno. Em vez de vir revestida de ideias, vem mascarada com palavras como “modernização”, “responsabilidade” ou “realismo”. Traz, na verdade, um conteúdo bem mais sinistro: menos democracia, mais controlo.

    Gouveia e Melo é o rosto ideal para esta operação – e será talvez o mais desejado aliado, mesmo que involuntário, de André Ventura. Se Gouveia e Melo for eleito para Belém, aí teremos um populista sem ideias – ou com ideias feitas por outros –, mas com farda e voz grave. Um produto de marketing, com teleponto e conselheiros. Um símbolo de autoridade artificial, que seduz quem anseia por ordem, mas não percebe que está a abrir caminho ao autoritarismo. A ascensão de Gouveia e Melo não representa apenas um risco político: representa um sinal de desespero democrático. Quando o povo deposita as esperanças num almirante vazio de pensamento, é porque já perdeu a confiança nos partidos, nas instituições, na democracia em si mesma.

    Portugal vive, pois, um tempo de simulacro: simulacro de soberania, simulacro de debate, simulacro de escolha. E como em todos os simulacros, o espectáculo continua – com Gouveia e Melo em Belém seguirá, pois, em agonia, já sem alma, sem sentido e sem verdade.

  • Expo 2025 Osaka: Contrato de 220 mil euros feito à pressa para resolver ‘invisibilidade’ mediática

    Expo 2025 Osaka: Contrato de 220 mil euros feito à pressa para resolver ‘invisibilidade’ mediática

    Poucos dias depois de o PÁGINA UM ter revelado que a participação de Portugal na Expo 2025 Osaka estava a sofrer uma invisibilidade mediática, subalternizando a própria língua portuguesa, a Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) deu uma resposta robusta — pelo menos no orçamento: vai gastar 220 mil euros pelos serviços de uma das mais relevantes agências de comunicação mundiais, a sueca Kreab.

    O contrato, assinado ontem com o escritório japonês desta empresa fundada em 1970 em Estocolmo, foi realizado com carácter de urgência e ao arrepio do Código dos Contratos Públicos, uma vez que as normas de execução do Orçamento do Estado para 2025 permitem que, na exposição no Japão, a AICEP tenha ‘carta branca’ para gastar em prestação de serviços, a seu bel-prazer, e para escolher quem quiser, até ao limite de 221 mil euros. Portanto, curiosamente, o valor acordado entre a AICEP e a agência de comunicação ficou no limiar dessa fronteira a partir da qual as normas comunitárias obrigariam à realização de um concurso público.

    Pavilhão de Portugal na Expo 2025 Osaka. Foto: AICEP.

    Sem se conhecer, até agora, qualquer plano público de promoção da presença portuguesa no certame — na semana passada tinha também sido contratada a agência de João Libano Monteiro, mas ‘apenas’ por 19.500 euros —, a AICEP apressa-se para uma desesperada operação de cosmética mediática.

    Apesar de a Expo 2025 Osaka ter sido inaugurada em 13 de Abril — ou seja, há mais de um mês e meio — e de encerrar no final da primeira quinzena de Outubro, o contrato vai durar até ao final do ano, porque a AICEP quer agora maximizar a presença portuguesa junto da comunicação social nipónica. As actividades previstas incluem a organização de conferências de imprensa, produção de vídeos promocionais, elaboração de conteúdos para redes sociais e publicação de publirreportagens pagas na revista Nikkei Business, considerada a principal publicação empresarial do Japão.

    Mas está também implícita a ‘sedução’ de jornalistas porque, segundo o contrato, a Kreab está obrigada a conseguir a publicação de entrevistas com o embaixador português Gilberto Jerónimo e com a comissária-geral Joana Cardoso ou com o próprio presidente da AICEP, Ricardo Arroja, bem como a apresentar “propostas aos media económicos”.

    À esquerda, Joana Gomes Cardoso, comissária-geral do pavilhão português: contrato com agência sueca visa também conseguir-lhe uma entrevista num jornal nipónico.

    As entrevistas devem ter como foco a sua publicação “nos principais jornais diários e no influente [sic] Nikkei Shimbun”. Este jornal, considerado um dos periódicos financeiros mais influentes do mundo, conta com duas edições diárias (matutina e vespertina) e tem uma circulação total superior a 2,8 milhões de exemplares.

    Embora a AICEP — que foi a entidade escolhida para organizar a presença portuguesa nesta exposição, que é sobretudo um encontro de culturas — mostre que a sua prioridade são os negócios, acaba por colocar como primeiro dos três eixos da narrativa, para envolver os jornalistas nipónicos, a interacção entre Portugal e o Japão. Porém, de forma patética, o contrato comete logo um erro histórico ao afirmar que “Japão e Portugal têm interagido através do Oceano há mais de 500 anos”.

    Ora, essa alegação é anacronicamente redonda e imprecisa: o primeiro contacto entre os dois países ocorreu apenas em 1543, quando três portugueses chegaram à ilha de Tanegashima a bordo de um navio chinês, ou seja, há pouco mais de 480 anos.

     Imagem mural da Catedral de Kagoshima que mostra São Francisco Xavier com Anjiro, um samurai convertido ao cristianismo.

    E mais: essa interacção foi esporádica, dependente das condições políticas internas japonesas e da presença missionária jesuíta, que se iniciou com São Francisco Xavier em 1549, tendo cessado a partir de 1614, com a proibição do cristianismo, e quase por completo com o encerramento do Japão ao exterior a partir de 1639 — o qual se prolongou até meados do século XIX. Por isso, falar de uma interacção contínua “há mais de 500 anos” é, pois, uma construção ficcional mais próxima do marketing do que da História. Ou da ignorância.

    Mas isso é apenas um pormenor — embora maior, por se tratar de ignorância histórica e cultural — numa exposição que ficará marcada pela subalternização da língua portuguesa: na parte principal da exposição, os visitantes são confrontados com uma imersão de luzes e cores, com referência a Portugal e ao mar, mas apenas com legendagem em japonês e inglês. A língua portuguesa ficou — e aparentemente vai ficar, porque eventualmente custaria mais 220 mil euros — submersa. No esquecimento.

  • O Fado, o VAR e os queixumes do Enes

    O Fado, o VAR e os queixumes do Enes


    Trazem-lhes os deuses — ou talvez tenha sido o Fado, essa entidade fatalista e caprichosa — a triste sina de nascerem com o coração tingido de verde e um irracional afecto por um felino de juba, mais talhado para rugir em peluches infantis do que para caçar campeonatos. Refiro-me, pois claro, aos sportinguistas, essa confraria de sofredores que, desde os tempos do senhor Salazar (e vá lá saber-se se não desde o domínio filipino), vagueiam pelo mundo a carpir mágoas de um presumido martírio futebolístico.

    Dizem-se vítimas de roubos. Mas não de carteiristas comuns — não, nada disso. Falam de assaltos metafísicos, conjuras cósmicas, espoliações transcendentes que transformam cada árbitro num Torquemada e cada fora-de-jogo num auto-de-fé. Gritam que lhes tiram campeonatos a ladro, como quem clama que o Olimpo lhes manda pragas. Só que, curiosamente, os roubos só ocorrem quando perdem. Se ganham, foi justiça divina.

    Ora, desde que apareceu o VAR, esperava-se que esses lamentos ancestrais fossem metidos num armário, junto com as faixas de campeão de 1982 e os cartazes do Balakov. Mas não. Agora que têm um olho extra em cada canto do campo, os sportinguistas passaram a desconfiar é do próprio VAR — acusando-o de ser um cíclope manhoso, a ver só para um lado. Aquiles, com o seu calcanhar exposto, queixava-se menos.

    E lá tenho andado com o Carlos Enes, bom camarada de ofício, sportinguista de pergaminhos, daqueles que faz da auto-comiseração um desporto paralelo. Nestes últimos dois anos, o Enes tem vivido num estado de euforia comedido — ganhando títulos atrás de títulos como quem apanha cerejas, sempre a medo de que o árbitro apareça a cobrar IVA desportivo no fim da partida.

    Pois bem, a caminho do Jamor para assistir à final da Taça, lá vinha o Enes no seu modo habitual: voz grave, semblante carregado, como um oráculo de Delfos depois de três cafés. “O VAR é o Tiago Martins”, murmurava ele com a solenidade de quem anuncia um eclipse total. “Está encomendado. Vai ser entregue ao Benfica de bandeja.” Ora, o Tiago Martins — e confirma-se, era mesmo ele — não é propriamente nome de quem inspire, nos sportinguistas, confiança. Diziam-me. Mas adiante. Eu já tinha ouvido história semelhante com o João Pinheiro, que afinal me saiu um João Pinacácia há duas semanas.

    Chegados ao Jamor, sol a prumo e cachecóis ao vento, o jogo começou com aquele nervoso próprio das finais em que há muito mais em jogo do que um troféu: há honra, há vingança, há memes por fazer. E o que vi em campo foi isto: um Benfica personalizado, bem organizado e, surpresa das surpresas, prejudicado em lances capitais — todos com a assinatura silenciosa do senhor do VAR, sim, esse mesmo: o Tiago Martins, o furta-leões.

    Corria o minuto 11 da final da Taça de Portugal, quando Luís Godinho, árbitro da partida, assinalou aquilo que, à primeira vista e aos olhos do comum mortal, parecia ser um penálti inequívoco a favor do Benfica. Bruma remata, Gonçalo Inácio interpõe-se com o braço esquerdo — e o apito soa como quem marca um destino. O gesto do árbitro parecia selar o castigo máximo, daqueles que em finais se escreve com letras maiúsculas e se discute nos cafés durante semanas.

    Mas não. As musas do Jamor, que agora têm nome técnico — VAR —, intervieram. E quem o árbitro Godinho ouviu no auricular foi o senhor Tiago Martins, homem de bastidores e ecrãs, daqueles que só existem verdadeiramente quando o jogo pára. A decisão foi revertida: antes de Bruma rematar, muito antes de Inácio meter o braço onde não devia, já tudo estava manchado pelo pecado original — um fora-de-jogo de Kökçü, que recebera a bola do flanco esquerdo em posição irregular. Sem o VAR que pilha leões, o Benfica teria inaugurado o marcador.

    Minuto 19. Dahl, veloz e ousado, entra na área do Sporting e cai. O árbitro, célere no gesto e firme no juízo, levanta o braço e castiga o benfiquista com cartão amarelo por simulação. Mas, como convém nestes tempos de escrutínio digital, o VAR deveria ter acordado para rever o lance com olhos de lince, porque parece mesmo — nas imagens — que Hjulmand tocou no pé de Dahl. Mas o VAR, qual dorminhoco numa tarde primaveril, não interveio. Nada viu. Afinal, pensei, o Tiago Martins até aprecia os leões.

    Minuto 50. Bruma marca e a nação benfiquista explode de alegria com o segundo golo, que mataria o jogo — por breves instantes, entenda-se. Pois bem, veio o VAR, o tal do senhor Tiago Martins, com o seu bisturi digital, cortar o lance até à raiz e encontrou-se um fóssil de falta na origem da jogada: Carreras terá entrado de pitons sobre o tornozelo de Trincão no acto da recuperação da bola. Um toque, um gesto, uma pisadela do passado — e zás! Golo anulado, falta marcada, cartão amarelo exibido com a elegância de um carimbo notarial.

    Tudo correcto, dizem. Mas ficou legitimado que se pode anular um golo se, algures no processo de construção — talvez numa posse de bola anterior, ou numa jogada que envolva uma troca de olhares suspeita — se encontrar uma falta esquecida, omissa ou até metafísica. E o Carlos Enes a queixar-se do Tiago Martins…

    Minuto 90+5. O jogo já vivia os seus estertores finais. O desespero leva Matheus Reis — talvez possuído por algum espírito guerreiro das estepes — a encerrar a tarde com um gesto digno de arte marcial. O benfiquista Belotti, caído no chão, pôs-se a jeito de servir de almofada ao pé esquerdo do brasileiro, que desceu com zelo e pontaria sobre a cabeça do adversário. Apagam-se cigarros com pisadelas mais suaves.

    Conduta violenta? Evidente. Lance de cartão vermelho? Óbvio. Intervenção do VAR? Pois… aí entra o mistério. O nosso querido vídeo-árbitro, tão atento às solas de Carreras e às sobrancelhas de Kökçü em fora-de-jogo milimétrico, entrou aqui em modo contemplativo — talvez em meditação transcendental.

    Nem um sussurro no auricular. Nada. Tiago Martins em silêncio sepulcral, como quem contempla o pôr-do-sol em paz interior.

    Se calhar, Matheus Reis pisou a cabeça do adversário com força insuficiente para activar os sensores do VAR. Ou talvez o protocolo não preveja agressões à cabeça se forem em tempo de descontos e em estilo zen.

    Depois disto, que resta mais para escrever? Que foi bonita a festa do Jamor? Que o Lage vai dar uma curva? Que o Rui Costa vai de vela? Que o Benfica deve procurar construir uma equipa decente? Que o Carlos Enes nunca mais invocará o VAR em vão?

  • Correio da Manhã recebe 147 mil euros para organizar dois eventos de promoção de Carlos Moedas

    Correio da Manhã recebe 147 mil euros para organizar dois eventos de promoção de Carlos Moedas

    “Hoje vivemos realmente tempos muito estranhos.” Esta frase foi usada hoje por Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, numa conferência sobre segurança, mas sintetiza também, involuntariamente, o estado actual da promiscuidade entre o poder político e certos grupos de media.

    O evento em causa decorreu sob a chancela do ciclo “Uma Cidade para Todos”, apresentado como uma “iniciativa do Correio da Manhã e da CMTV” — órgãos de comunicação social detidos pela Medialivre de Cristiano Ronaldo — em “parceria e apoio” da Câmara Municipal de Lisboa, mas que, afinal, não passa de um contrato de prestação de serviços no valor de 147.600 euros, IVA incluído, pago integralmente pela autarquia.

    Quem assistiu hoje à conferência talvez pensasse que eram sinceras as palavras de Moedas nos agradecimentos à Medialivre “por ter escolhido este tema [a Segurança], um tema fundamental na sociedade”. Contudo, o que o edil lisboeta não disse — e também não foi dito por Carlos Rodrigues, director editorial do Correio da Manhã e da CMTV, que discursou no arranque do evento — é que essa escolha temática veio devidamente contratualizada com dinheiros públicos.

    A narrativa da “parceria” cai, aliás, por terra com o contrato celebrado anteontem pelo vereador Filipe Anacoreta Correia, eleito nas listas de Moedas, que prevê dois debates pagos: o de hoje, sobre segurança, e outro agendado para a próxima semana, dia 4 de Junho, sobre imigração. Um debate anterior, em Fevereiro, também inserido neste ciclo, não está abrangido por nenhum contrato conhecido.

    Cada evento, segundo o contrato, rende assim à Medialivre 73.800 euros, incluindo a produção de conteúdos antes, durante e depois da conferência — desde peças de enquadramento até vídeos de resumo (wrap-ups) a serem difundidos pelos canais da empresa. Em troca, a Medialivre comprometeu-se a usar todos os meios humanos e materiais necessários, assumindo os encargos associados, inclusive os direitos sobre marcas e licenças. Entre os meios disponibilizados contam-se pelo menos três jornalistas com carteira profissional — prática que, para além de antiética, viola claramente o Estatuto do Jornalista.

    Carlos Rodrigues, director do Correio da Manhã e da CMTV, deu as ‘boas-vindas’ em conferência paga pela autarquia de Lisboa, e Daniela Polónia foi a ‘mestre-de-cerimónias’: eis as novas funções, cada vez mais banalizadas, de jornalistas num mercado em que os reguladores tudo permitem.

    A abertura do evento, com transmissão em directo nos canais digitais da Medialivre, foi conduzida por Daniela Polónia (CP 6296), jornalista e pivot da CMTV, que actuou como mestre de cerimónias institucional, anunciando os oradores e, em alguns casos, simultaneamente patrocinadores, no caso do “engenheiro Carlos Moedas”.

    O próprio Carlos Rodrigues (CP 1575) deu as boas-vindas aos participantes, num momento de cumplicidade discursiva com Moedas. Os dois painéis seguintes — sobre policiamento comunitário e paradigmas da segurança urbana — foram moderados por João Ferreira (CP 802), também jornalista do grupo. De entre os participantes no debate, não esteve presente qualquer vereador da oposição — não houve, assim, lugar a polémica. Carlos Moedas teve, aliás, direito a um discurso, sem contraditório, de 22 minutos.

    Mais do que um mero conflito de interesses, este é mais um caso flagrante de perda de equidistância jornalística e de instrumentalização de profissionais da comunicação para fins promocionais. O silêncio sobre a natureza comercial do evento — nenhuma menção explícita a patrocínio, prestação de serviços ou publicidade nos conteúdos divulgados — acentua o carácter enganador desta operação.

    João Ferreira, jornalista há mais de 30 anos, e pivot da CMTV, ganha agora a vida também como prestador de serviços em contratos entre a Câmara Municipal de Lisboa e a sua empresa empregadora, a Medialivre.

    A situação não é inédita, nem isolada — e está a surgir uma ‘normalização’ da mercantilização do jornalismo, em que já se duvida sobre se apenas algumas ou todas as notícias têm uma compensação financeira directa ou indirecta por parte dos interessados, o que mina a confiança dos cidadãos perante a imprensa. Ainda este mês, a ERC concluiu que dois eventos organizados pelo jornal Público — pagos pela Câmara de Penafiel e pela Ordem dos Médicos Dentistas — configuravam publicidade, aplicando uma multa simbólica de 3.500 euros, bastante inferior ao valor dos contratos anómalos. O denominador comum com o evento da Medialivre: no caso do Público, além de jornalistas, o actual director do jornal da Sonae, David Pontes, teve participação activa na prestação de serviços.

    Tal como agora com Carlos Rodrigues, a actividade de publicidade dos jornalistas do Público não foi assumida como prestação de serviços, nem respeitou o Estatuto do Jornalista. Mas os processos prescreveram para efeitos disciplinares, uma vez que a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) não agiu atempadamente. O regulamento disciplinar dos jornalistas determina a prescrição ao fim de dois anos.

    A passividade da CCPJ, aliada à lentidão crónica da ERC, tem criado um cenário de impunidade que favorece a mercantilização da profissão. O resultado é a banalização de práticas proibidas por lei, mas toleradas na prática pelos reguladores e pela classe jornalística.

    Helena de Sousa, presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social: perante a promiscuidade, o regulador das media pega em casos pontuais, tarde e a más horas, e agora começa a aplicar coimas simbólicas que funcionam como ‘taxas de promiscuidade’, porque o ‘crime’ compensa financeiramente.

    Na conferência de Lisboa de hoje, até se assistiu, na sessão de encerramento, ao vereador social-democrata Rui Cordeiro agradecer ao Correio da Manhã o “convite” para participar num evento que, na verdade, foi pago pela própria Câmara. E os jornalistas servem de prestadores de serviços contratados por entidades externas, mascarando uma acção de comunicação política como um gesto de jornalismo independente. E tudo isto sob a cobertura de um contrato que, embora público, tenta disfarçar-se de parceria editorial.

    Num país onde a ética jornalística é muitas vezes tratada como uma nota de rodapé, a promiscuidade está a ganhar estatuto de normalidade. De facto, como dizia Moedas, “vivemos tempos muito estranhos”. De facto, vivemos.

    Este artigo teve um direito de resposta de Carlos Rodrigues, director-geral do Correio da Manhã e da CMTV, que pode ser lido aqui.

  • Portugal apaga o português na Expo 2025 Osaka: uma vergonha diplomática, um acto de ignorância desmedida

    Portugal apaga o português na Expo 2025 Osaka: uma vergonha diplomática, um acto de ignorância desmedida


    Na Exposição Universal de Osaka, em pleno 2025, sobre a qual hoje escrevi para falar dos gastos, fiquei estupefacto com uma constatação: o pavilhão de Portugal optou por apresentar-se ao mundo sem uma única mensagem em português. Nas projecções que “recebem” os visitantes, apenas se lêem mensagens em japonês e em inglês. Presumo que a palavra Portugal apareça como Portugal porque assim se escreve em inglês.

    Esta aberração num projecto de quase 26 milhões de euros — que é o que custará aos cofres públicos a presença portuguesa em Osaka — não se trata de um lapso trivial. Trata-se de uma vergonha. Uma vergonha diplomática. Uma vergonha cultural. E, sobretudo, um acto de ignorância desmedida da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) sobre a própria História de Portugal — precisamente no Japão, um país onde o português foi, durante décadas, a língua da diplomacia, da fé, do comércio e da ciência.

    Ricardo Arroja e as “alminhas” da AICEP podem não saber da riqueza histórica entre Japão e Portugal, nem sempre pacífica quando mundos se contactam pela primeira vez. Mas, se tiveram mais de 13 milhões de euros para montar um edifício com 10 mil cordas, talvez por meia dúzia de patacas (não as de Macau, que isso é China) pudessem contratar um historiador.

    Se tiveram 200 mil euros para contratar a Ernst & Young para lhes fazer a contabilidade, poderiam ter contratado a decência para lhes explicar que, quando se promove Portugal, só se promove com a língua portuguesa, porque, como escreveu bem Fernando Pessoa (ou Bernardo Soares), “minha pátria é a língua portuguesa”.

    Num país que se envergonha pelo que faz no presente, parece agora querer vilipendiar o passado. Quer apagar da História Universal que o primeiro grande contacto da Europa com o Japão moderno foi feito por intermédio dos portugueses. Em 1543, três navegadores — António da Mota, António Peixoto e Francisco Zeimoto — ancoraram nas ilhas nipónicas, dando início a uma relação de trocas e fascínio mútuo que marcaria profundamente ambos os povos.

    Fernão Mendes Pinto, na sua Peregrinação, misto de verdade e ficção, reclama para si um lugar nesse feito inaugural, descrevendo com minúcia a sua chegada ao Japão, o assombro dos locais perante as armas de fogo portuguesas e o espanto recíproco perante os costumes e a cultura. É dele um dos primeiros retratos europeus do Japão — colorido, cheio de admiração e revelador de um encontro entre civilizações.

    Na sua narrativa, refere a entrega de espingardas a um senhor feudal japonês e o impacto profundo que esse gesto teve, ao ponto de modificar para sempre o modo como os japoneses concebiam a guerra. Mais do que uma crónica de aventuras, a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto é um testemunho vivo da presença portuguesa no Japão do século XVI. E é, também, um monumento literário que dá voz à nossa língua nas lonjuras do Oriente.

    Recorde-se ainda que Francisco Xavier, missionário jesuíta português, foi um dos primeiros evangelizadores do arquipélago. A cidade de Nagasáqui foi doada aos jesuítas portugueses. A primeira gramática da língua japonesa foi redigida por um português. A imprensa de tipos móveis foi introduzida por missionários portugueses. A língua portuguesa foi, até ao século XVII, o veículo oficial da comunicação dos japoneses com o mundo. Que país mais poderá reivindicar tal feito no Japão?

    E como poderemos honrar, com esta postura, esse insigne vulto que foi Wenceslau de Moraes, que nos deixou um legado sobre o Japão em tantos escritos? Logo ele que, por lamentável ironia, até foi cônsul em Osaka…

    E, no entanto, o Portugal de 2025 apresenta-se no Japão ignorando a sua própria língua — como se o português fosse um fardo do passado, um acessório irrelevante, uma relíquia a esconder. Como se a língua de Camões e de António Vieira, de Eça e de Pessoa, não merecesse aparecer agora num dos países que primeiro a escutaram no Extremo Oriente. Este apagamento não é casual. É sintoma de um Estado que já não se entende como Nação, que prefere o inglês da conveniência ao português da identidade.

    Numa era em que o multiculturalismo é brandido como bandeira, Portugal é dos poucos países que insiste em esconder a sua Cultura para parecer moderno. Mas não há modernidade possível sem memória. E não há presença internacional digna quando se abdica da própria língua — sobretudo quando essa língua é um dos maiores legados da presença portuguesa no Japão.

    O pavilhão português em Osaka já não é apenas um edifício; é uma metáfora da forma como o Estado português se vê a si mesmo: envergonhado da História, ignorante do seu papel no Mundo, submisso aos ditames de uma comunicação global onde tudo se quer nivelado, uniformizado, sem raízes.

    Não sou dado a sentimentalismos patrioteiros nem a arroubos diplomáticos, e muito menos me comovem cortejos de bandeiras ou salamaleques culturais. A minha pátria — como bem disse Pessoa — continuará a ser a língua portuguesa. Não me indigno demasiado com quem tropeça no português por ignorância — isso tem cura. Mas o que já me enoja é a opção consciente de apagamento da língua que nos define, como se se varresse Camões para debaixo de um tapete institucional ou se riscasse Pessoa das vitrinas da História.

    Com a indiferença burocrática dos que não percebem que se pode vender um país em silêncio, bastando para isso omitir-lhe a fala, a AICEP não cometeu apenas um deslize administrativo — trata-se de um acto simbólico de rendição cultural. E a rendição, quando feita sem disparar um só alfabeto, é ainda mais vergonhosa — porque já nem é traição: é desistência.

  • Osaka 2025: invisibilidade mediática mas com despesas generosas… e estranhas

    Osaka 2025: invisibilidade mediática mas com despesas generosas… e estranhas

    Discreta, mas generosa na despesa — assim se pode descrever a participação portuguesa na Exposição Mundial de Osaka, no Japão, organizada pela Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP). Para resolver a questão da invisibilidade mediática, a AICEP contratou ontem os serviços de assessoria da agência JLM – João Líbano Monteiro & Associados, por 19.500 euros. Já no que respeita ao despesismo, a solução não será tão simples.

    Inaugurada a 13 de Abril e a decorrer até Outubro deste ano, a Expo 2025 realiza-se na ilha artificial de Yumeshima, na região japonesa de Kansai. Embora tenha passado praticamente despercebida à opinião pública nacional, a representação portuguesa já consumiu mais de 20 milhões de euros com IVA incluído. Segundo informação oficial da AICEP, o valor total da participação deverá rondar 25,83 milhões de euros (correspondentes a 21 milhões acrescidos de IVA), conforme autorizado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 149/2022, do governo de António Costa.

    O principal encargo individual é um contrato de 13,6 milhões de euros, adjudicado à empresa japonesa Rimond Japan para a concepção, construção, manutenção e desmontagem do Pavilhão de Portugal. Este contrato, lançado por concurso público, absorve mais de 70% da despesa já contratualizada. Recorde-se que, em 2023, a escolha do arquitecto japonês Kengo Kuma — preterindo arquitectos portugueses — foi alvo de críticas da Ordem dos Arquitectos, que sublinhou tratar-se da primeira vez que um pavilhão nacional numa Expo Mundial não teria assinatura portuguesa. O edifício concebido pelo arquitecto japonês destaca-se sobretudo pelas cerca de 10 mil cordas suspensas e redes recicladas, num total de mais de 60 toneladas, que compõem uma fachada translúcida que reage à luz e ao vento, remetendo para a fluidez das ondas.

    No interior, o pavilhão divide-se em dois núcleos complementares: um dedicado à partilha de conhecimento, onde se explora a relação histórica entre Portugal e o Japão desde os primeiros contactos marítimos há quase cinco séculos, e outro centrado na inovação e na sustentabilidade, com destaque para projectos e tecnologias que promovem a protecção dos oceanos e o uso responsável da energia. Apenas com projecções e jogos de luzes, há outra coisa que se destaca na exposição: as mensagens surgem apenas em japonês e em inglês. A língua portuguesa ficou à porta. Camões e Fernando Pessoa ‘estrebucham’.

    Acrescem outros encargos vultuosos associados à obra, com destaque para os 407.590 euros destinados à empresa Vítor Hugo – Coordenação e Gestão de Projectos, responsável pela fiscalização da obra; 29.300 euros à 3dLab – Comunicação e Gestão de Imagem, encarregue dos módulos expositivos da sala multiusos; e 42.000 euros pagos à Associação Nacional das Indústrias de Vestuário e Confecção para o fardamento oficial dos trabalhadores.

    Kenga Kuma, arquitecto japonês revistiu o pavihão português com cerca de 10 mil cordas.

    O contrato com a GL Events Japan também se destacam pelo valor: 1,29 milhões de euros para a operação e apoio técnico ao pavilhão durante os seis meses da exposição. Porém, poucos dias depois da celebração deste contrato, foi celebrado outro, no valor de 322.500 euros, adjudicado por ajuste directo e sem contrato escrito, alegando-se “urgência imperiosa”. Segundo a AICEP, este segundo contrato visou garantir o arranque inadiável do pavilhão, dada a exigência de pessoal fluente em japonês e inglês, porque houve atrasos na tramitação do contrato principal junto do Tribunal de Contas. No entanto, a AICEP garante que não haverá duplicação de pagamentos.

    No que respeita ainda ao funcionamento do pavilhão, foram ainda adjudicados 222 mil euros com IVA à empresa Francisco Pestana Unipessoal para fornecimento de merchandising, e dois contratos à Nippon Express Portugal, totalizando 97.000 euros em serviços logísticos.

    A vertente cultural da presença portuguesa, embora ainda sem programa final conhecido, já motivou diversos contratos. A concessão do restaurante português foi entregue à empresária Hazuki Shioya por 63.080 euros. Na música, a empresa Aruada recebeu 38.000 euros para assegurar a actuação de Dino D’Santiago e Branko. Seguem-se contratos com o japonês Kazufumi Tsukimoto (40.390 euros) — conhecido como TUMI e promovido como embaixador do fado no Japão —, André Pimenta e Casa Nic e Inês (17.500 euros), Rute Marcão e Leonor Wagner (13.500 euros) e Bruno Pernadas e José Soares (12.500 euros).

    Na curadoria arquitectónica, a AICEP contratou Alexandre Vicente por 18.000 euros para a exposição Related Paths & Architects, e Carlos Quintãs Eiras por 11.000 euros para coordenar a mostra dedicada a Siza Vieira. Uma exposição de design gráfico foi adjudicada à empresa Barbassays, por 9.990 euros.

    Com a “procissão ainda no adro”, há contratos que causam estranheza. Apesar da presença permanente da AICEP no Japão e da existência de dois representantes na embaixada portuguesa em Tóquio, a agência pública contratou o advogado Luís Verde de Sousa, actual presidente do Conselho de Justiça da Federação Portuguesa de Futebol, para prestar “consultoria jurídica em contratação pública”. Os dois contratos por ajuste directo com este jurista somam quase 115 mil euros com IVA.

    Também o contrato com a Ernst & Young (EY), no valor de 192 mil euros com IVA, suscita dúvidas. A AICEP justifica a contratação com a ausência de conhecimentos internos sobre legislação fiscal japonesa. Porém, a agência tem experiência acumulada no país e dispõe de um departamento de contabilidade habituado a processar despesas internacionais. A contratação externa abrange relatórios mensais de contabilidade analítica, demonstrações financeiras, controlo de royalties e outros indicadores financeiros.

    Apesar das críticas e dos valores elevados, a AICEP insiste que “cumpriu plenamente os princípios da contratação pública” e que todos os contratos estão sujeitos a controlo do Tribunal de Contas. Uma coisa parece certa, em suma: a Expo 2025 Osaka, embora ainda mal conhecida em Portugal, está já a marcar presença no erário público. E a factura — para já — já vai longa. Mas, com os serviços do assessor João Líbano Monteiro, talvez se convençam os portugueses do contrário.

    N.D. Sobre a ausência da língua portuguesa no pavilhão de Portugal em Osaka, leia aqui o editorial.

  • Pedro Andersson multado por actividade publicitária incompatível com o jornalismo

    Pedro Andersson multado por actividade publicitária incompatível com o jornalismo

    O jornalista Pedro Andersson, rosto bem conhecido da SIC pelas suas reportagens sobre poupança e finanças pessoais, foi sancionado pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) com uma coima de 200 euros por violação do Estatuto do Jornalista, nomeadamente por exercer “funções de angariação, concepção ou apresentação de mensagens publicitárias”.

    Esta prática é expressamente proibida para quem mantém o título profissional de jornalista, por comprometer a independência e imparcialidade que devem nortear a actividade.

    Pedro Andersson num workshop organizado pela autarquia de Cabeceiras de Basto no passado dia 16. Foto: CMCB.

    A sanção, ainda que de valor simbólico — e claramente abaixo dos mínimos legais, que fixam as coimas entre 500 e 5.000 euros —, é, por si só, um gesto pouco comum e de forte carga simbólica. Além disso, reveste-se de carácter infamante num meio que, apesar de cada vez mais permeável a relações comerciais e patrocinadas, continua, pelo menos na letra da lei, a reclamar uma independência estrita face a entidades económicas.

    A informação da sanção consta do registo público de contra-ordenações da CCPJ, tendo sido aplicada no mês passado, mas nem Pedro Andersson nem o próprio órgão de disciplina profissional responderam aos pedidos de esclarecimento dirigidos pelo PÁGINA UM. Ignora-se, assim, quais os factos concretos que fundamentaram esta pouco comum sanção, ainda mais relevante por se tratar de um jornalista conhecido.

    Contudo, segundo apurou o PÁGINA UM, o processo contra Andersson foi iniciado em 2024, ainda sob o mandato do anterior Secretariado da CCPJ, presidido por Licínia Girão, e a decisão final coube já ao actual Secretariado, cuja liderança permanece interina, dado o impasse na eleição de um novo presidente. Em todo o caso, Pedro Andersson tem tido uma intensa actividade extra-jornalística, promovendo podcasts e workshops, que podem ser considerados como tendo uma componente comercial. Além disso, é autor de diversos livros de literária e aconselhamento financeiro,com grande sucesso editorial, embora essa actividade não seja incompatível com o jornalismo, estando enquadrada nos direitos de autor.

    Pedro Andersson / Foto: D.R.

    De acordo com o Estatuto do Jornalista, é considerada incompatível com o exercício da profissão qualquer actividade de natureza publicitária. Este diploma especifica ainda que constitui violação a “angariação, concepção ou apresentação de mensagens publicitárias” e, de forma mais subtil mas igualmente punível, o “recebimento de ofertas ou benefícios que, não identificados claramente como patrocínios concretos de actos jornalísticos, visem divulgar produtos, serviços ou entidades através da notoriedade do jornalista”. Isto aplica-se mesmo quando não há um pagamento explícito, bastando que a acção do jornalista consubstancie um acto de marketing.

    A actividade pública de Pedro Andersson tem sido, aliás, frequentemente alvo de críticas — ainda que sem consequências disciplinares até agora — pelo modo como apresenta produtos financeiros e serviços bancários nas suas reportagens e nas plataformas digitais associadas ao seu nome. No seu site pessoal Conta Corrente, com ligações directas a conteúdos publicados pela SIC e por outros órgãos do grupo Impresa, Andersson declara que ali se exprime como “consumidor” e não apenas como jornalista. Reivindica, por isso, o direito de falar de “marcas, serviços e pessoas” quando considerar útil, assegurando que nenhum artigo é patrocinado.

    “Para mim isso não é publicidade — é informação útil”, escreve Andersson, defendendo que elogia ou critica empresas apenas com base na sua utilidade para os consumidores. Apesar disso, o próprio Estatuto do Jornalista é claro: a noção de publicidade incompatível com o jornalismo não se restringe ao patrocínio explícito, abrangendo qualquer forma de divulgação que possa beneficiar terceiros através da notoriedade do jornalista.

    O jornalista num workshop sobre finanças pessoais, no El Corte Inglés de Gaia, em Janeiro de 2024. / Foto: D.R.

    Mesmo após a multa, Pedro Andersson continua a constar na base de dados da CCPJ como titular do título profissional de jornalista. No entanto, a lei determina que, verificada uma incompatibilidade — como sucede neste caso —, o jornalista “fica impedido de exercer a respectiva actividade” e “deve depositar o seu título de habilitação”, que só poderá ser devolvido mediante prova da cessação da situação que motivou a incompatibilidade.

    Em relação à apresentação de mensagens publicitárias, o Estatuto impõe um período mínimo de afastamento de seis meses e exige que o jornalista demonstre, documentalmente, que cessou qualquer vínculo de cedência da sua imagem, voz ou nome a entidades promotoras de publicidade.

    Não é claro, neste momento, se Pedro Andersson entregou o seu título profissional — como seria legalmente exigível — nem se a CCPJ, que aplicou a sanção, fiscalizou o cumprimento dessa obrigação. Tal silêncio contrasta com o dever de transparência e rigor a que está obrigada a CCPJ, sobretudo num caso que envolve um jornalista com forte presença pública e que actua precisamente num domínio sensível como o da literacia financeira, onde a confiança do público é particularmente crítica.

    Pedro Andersson apresenta o programa ‘Contas Poupança’ na SIC e é autor de diversos livros sobre finanças pessoais. / Foto: Captura de imagem de vídeo de um programa ‘Contas Poupança’

    O caso Andersson reacende, assim, o debate sobre os limites entre jornalismo e marketing, num tempo em que a promiscuidade entre informação e promoção comercial se torna cada vez mais difícil de detectar — e, talvez por isso mesmo, mais necessária de sancionar. Ao aplicar uma sanção, mesmo modesta, a CCPJ reconhece formalmente que Pedro Andersson ultrapassou essa linha.

    Fica, agora, por esclarecer se a resposta institucional estará à altura da gravidade legal do acto praticado, ou se o caso será abafado sob o pretexto do serviço público. Afinal, o que está em causa não é apenas a conduta de um jornalista, mas a credibilidade de uma profissão já fragilizada por excessivas cedências e promiscuidades.