Vale a pena começar pelo básico. A poluição é um termo em Ecologia associado ao processo de introdução de substâncias ou energia no Ambiente que causem efeitos negativos nos ecossistemas e na saúde humana, desregulando-os, tanto a curto como a longo prazo. Nessa medida, somente nas últimas décadas, o dióxido de carbono passou a considerar-se um poluente, em sentido lato, não por causar um efeito imediato ou ser tóxico, mas pela influência que terá no clima.
Porém, antes disso, os processos de combustão – as principais fontes de emissão de dióxido de carbono, havendo também outros gases com o chamado ‘efeito de estufa’ – não devem ser olhados apenas nessa perspectiva climática. É um erro crasso – e por eu, que comecei a minha actividade jornalística nos anos 90 sobre questões ambientais, exaspero-me agora, e irrito-me deveras, com o monotema mediático das alterações climáticas no contexto ambiental, como se nada mais houvesse, ‘sequestrado’ que foi por políticos e empresas que encontraram aí ‘fermento’ para o ‘greenwashing’, transformando a Ecologia num negócio e numa espécie de culto onde vale mais parecer do que ser. A Ecologia passou a ser política. E na política usam-se demasiadas vezes artimanhas de desresponsabilização, sendo que um dos truques é encontrar bodes expiatórios.
Se houvesse, globalmente, políticas sustentáveis de promoção de tecnologias, de eficiência energética, de mobilidade e transporte, de produção industrial, de comércio internacional e de planeamento urbanístico – onde os políticos falham redondamente – não seria preciso estar constantemente a ‘massacrar’ as pessoas de que vem aí o ‘diabo’, e de criar bodes expiatórios. Com boas políticas feitos com bons políticos, a redução das emissões de gases de efeito não seriam o objecto mas a consequência de um uso sustentável, equilibrado e eficiente dos recursos.
Mas nada disso tem interessado.
Tem interessado, sim, criar um circo mediático, de que a Conferência das Partes na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP), já na vigésima nona edição, é o símbolo máximo da inépcia e do faz-de-conta. E criar sobretudo bodes expiatórios.
O renovado bode expiatório chama-se Donald Trump. Nada há a dizer de muito favorável ao próximo presidente dos Estados Unidos em termos de políticas e sensibilidades ambientais. No seu primeiro mandato, entre Janeiro de 2017 e Janeiro de 2021, era conhecido o seu (mais do que) cepticismo sobre a causa humana das alterações climáticas e quis mesmo abandonar a ‘mesa de negociação’ do Acordo de Paris. Não quero discutir aqui esse aspecto, mas tão-só relativizar (e enquadrar) a sua acção: nos anos do seu primeiro mandato, os Estados Unidos até registaram uma redução relevante nas emissões (-7,3%), passando de 6,07 Gton em 2016 para 5,63 Gton em 2020. Os valores conhecidos nos primeiros dois anos da Administração Biden mostram, hélas, um crescimento de 13%, passando para 6,0 Gton em 2022. Quem diria, não é?
Mas a questão essencial, que todos procuram ignorar, é a existência de um gigantesco elefante no meio da sala – e que, por pudor, receio ou interesse comercia, os políticos não falam, porque convém diabolizar Trump: a China.
Em 1970, a China emitia apenas 1,83 Gton de gases de efeito de estufa. Duas décadas depois subiu para as 4,41 Gton, superando os Estados Unidos em 2004 como o país com maiores emissões. Nesse ano, em virtude do forte crescimento económico baseado na queima de carvão e no aumento das exportações, a China emitiu 7,03 Gton. Uma ‘coisa’ de nada, se observarmos que 18 anos depois, em 2022, as quantidades tinham mais do que duplicado, para impressionantes 13,94 Gton, mais do que os três países juntos nas posições seguintes: Estados Unidos (6,0 Gton), India (4,05 Gton) e Rússia (2,29 Gton).
Por esse motivo, paradoxalmente, a intenção de Donald Trump de reduzir o fluxo de exportações da China para os Estados Unidos poderá, afinal, ter um impacto significativo nas emissões de gases de efeito de estufa, especialmente se considerarmos o peso do país asiático no comércio global e em tecnologias, frequentemente obsoletas e poluentes, que utiliza nas suas cadeias produtivas. Aliás, diversas análises confirmam que as exportações da China para os Estados Unidos representam um défice de custos ambientais para o país asiático, já que os produtos chineses, de menor valor agregado e alta intensidade de carbono, custam àquele país 74% mais emissões por unidade económica do que os bens que os Estados Unidos exportam para a China.
Num mundo globalizado, a produção e o transporte de mercadorias acarretam também custos ambientais elevados. Grande parte dos produtos exportados pela China utilizam métodos de produção intensivos em carbono, com uma pegada ecológica que abrange desde a extracção de matérias-primas até o transporte.
Reduzindo-se as exportações a partir da China, e promovendo a produção local (leia-se, Estados Unidos), de forma “acidental” estará Trump também a contribuir para uma redução global nada negligenciável na redução dos gases com efeito de estufa. Não apenas porque os Estados Unidos têm tecnlogias mais limpas, mas também porque se reduzirá o transporte marítimo, responsável por cerca de 3% das emissões globais de gases com efeito de estufa. Assim, uma redução do volume de importações da China para os Estados Unidos até poderia aumentar as emissões do país americano, mas reduziria o impacte directo global, por ‘cortar’ nas emissões do transporte e da produção chinesa com maior pegada ecológica.
Deste modo, numa perspectiva de descarbonização, Trump arrisca ser um autêntico ambientalista, mesmo se acidental. Para desespero de muitos, que jamais apontam o dedo à China. Afinal, convém manter bem alimentados um bom bode expiatório, enquanto também se ‘culpam’ as pessoas, e os políticos continuam a passear-se ‘verdejantes’.
N.D. Foi feito um pedido expresso, que decidimos acolher, para divulgar um pequeno mas relevante manifesto de um grupo de pessoas que trabalharam ou colaboraram em publicações do actual grupo Trust in News. Os subscritores iniciais são os seguintes: João Gobern, José Silva Pinto, Inácio Ludgero, Fernando Dacosta, Manuel Vilas-Boas, Rui Pregal da Cunha e Carlos Oliveira Santos.
Os signatários, tendo trabalhado ou colaborado com publicações atualmente integradas no grupo Trust In News, vêm manifestar a sua indignação pela incúria e irresponsabilidade a que chegou este importante grupo de comunicação social, e solidarizam-se com os seus trabalhadores, desejando a positiva continuidade das respetivas publicações.
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Cheiinho de razão estava o espanhol Ortega y Gasset, que, apesar do nome, era um só: “Eu sou eu e a minha circunstância, e se não a salvo a ela, não me salvo a mim”. De facto, também eu sou a interdependência entre mim e o ambiente que me rodeia. Por muito que me jugue capaz, eu, tal como os demais, sou moldado, condicionado e influenciado pelas circunstâncias em que vivo, ou seja, pelo contexto social, histórico, cultural e material em que me insiro. Isto, no geral; porque, no particular, sou mais moldado, condicionado e influenciado por pequenos acasos, pequenas circunstâncias, pequenos condicionalismos, pequenos nadas.
Por exemplo, se por natureza tenho uma inclinação, que muito me prejudica, em andar a correr atrás do tempo – isto é, a lutar in extremis para não chegar atrasado –, hoje está cheguei bem cedo aqui à Varanda da Luz, mas por razões circunstanciais associadas, hélas, a um atraso. Quer dizer: na perspectiva do Benfica, cujos (simpáticos) serviços consideraram que eu me atrasara no envio no pedido de acreditação, e na troca de e-mails do dá ou não dá, e investido do Estatuto de Jornalista na mão, como um Camões de manuscrito de ‘Os Lusíadas’ na mão, decidi vir para os lados de Benfica para, se necessário fosse, tirar desforço. Não valeu a pena, porque, enfim, me enviaram, entretanto, mensagem electrónica confirmando a acreditação, donde se conclui que, por força de um (alegado) meu atraso, as circunstâncias precipitaram uma chegada antecipada. E mesmo assim dando tempo – ou seja, aproveitando o tempo, para não o perder noutra circunstância – de ir antes do jogo à Estrada de Benfica por mor de uma investigação em curso… sairá na próxima edição, assim espero.
Por esta (afinal) feliz circunstância de chegar mais cedo (uma hora), garantido está que não vou perder, em princípio, qualquer golo, como amiúde sucede quando me agacho para meter a ficha do computador na tomada, já no decurso do jogo. Já perdi dois golos, pelo menos, à conta disso… Hoje, já está tudo a carregar bem carregado… Também estou com fé por ter entrado, desta vez, pela via do Colombo, e não pelo Alto dos Moinh. Pelo menos, a ‘paisagem’ foi diferente.
(… e, entretanto, começou o jogo…)
Por falar em dois golos: como é possível o Sporting de Braga ter estado a ganhar por dois golos a zero, e depois levantar quatro ‘secos’ do Sporting na segunda parte? Credo! Ainda bem que o Ruben Amorim vai para as terras de Manchester! E já vai tarde…
E por falar em dois golos e no Sporting…
(goloooooooo. Benficaaaaa: Alvaro Carreras, o espanhol, com um belo remate, antecedido de um passe de trivela, estranho pela posição, de Tomás Araújo; assim já can um!)
Isto já está a animar. Mas continuemos…
Estava eu a falar – ou, melhor dizendo, a escrever – sobre golos desperdiçados e sobre o Sporting, e isto é um déjà vu: há dias, enfim, fui até Alvalade, esperando ser presenteado com uma sandes de leitão de Negrais, enquanto assistia a uma cabazada fornecida aos lagartos por Bernardo Silva & Ca., para assim me rir na cara do Carlos Enes, mas tudo se esfumou por obra e graça de Santo Amorim’. Não, a sandes, que essa, afinal, nunca chegou. Aquilo que se esfumou foi a possibilidade de assistir in loco, a uma reviravolta épica sob a batuta de um benfiquista. E tudo porque não houve sandes de leitão, coisíssima nenhuma, nem uma bolachita de água e sal.
Aliás, aqui me penitencio, desde já, por andar, há muito, a ironizar, com sarcasmo, em redor do famigerado farnel do futebol (FFF), ofertado pelo Benfica aos jornalistas, e que, de ordinário (no sentido, de ser vulgar ou comum), consiste numa sande de conteúdo interior (relativo ao panificado) nem sempre identificável, em uma singela peça de fruta (hoje foi maçã), de uns acepipes (hoje saiu batata frita em pacote pequenino) e garrafinha de água (de pH básico, próximo da lixívia).
(chiça! Mas o Otamendi agora lembra-se que jogou no Porto, e faz mais uma fífia de tudo o tamanho; e sai um golo para os tripeiros)
E chega o intervalo, e continuemos…
Ora, aqui, com o FFF, não corro, digo já, o risco aqui no Estádio da Luz de ter de sair para comprar umas asas de frango a um qualquer McDonald’s, como sucedeu com o Carlos Enes. Resultado: perdemos dois golos, porque não deu para fazer todo o percurso antes do início da segunda parte. Hoje, não vou perder nenhum. Mas tenho esperança de que o resultado seja similar: 4-1, depois estar também 1-1 ao intervalo.
(e recomeça o jogo)
… E estou aqui a ver que não vamos repetir o feito do Amorim. Já passaram quase 10 minutos, e nada…
(… e golooooooo. Angel Di Maria!!! Já está!!!)
E eu hoje, estou como estive noutros jogos, com pouca vontade de escrever e com mais vontade para assistir… Vou ver se isto agora vai encarreirar…
(… e encarreirou!!! Bastaram seis minutos, e já entrou mais um; nem sei se foi golo do Benfica ou auto-golo do Porto; pouco interessa: já está 3-1)
Deixa-me ver se encontro no WhatsApp o especialista do PÁGINA UM também em comentário desportivo, sobretudo do Benfica, corrosivo quando correm mal: Tiago Franco…
Estou já a meter-lhe uma cunha…
… e está garantido um textinho, a ser metido aqui nesta crónica. Posso então meter o computador no saco… Ou não. Tenho de meter aqui o próximo golo do Benfica, para meter o treinador do Porto com o ‘melão’ do Pep Guiardiola em Alvalade…
(e é penalty para o Benfica… Di Maria para marcar e… marca: 4-1. Caramba, espero ainda mais!)
Mas não houve mais, embora pudesse haver. Uma noite perfeita, muito similar aos quatro ‘secos’ metidos ao Atlético de Madrid, não fosse a fífia do Otamendi.
Concedamos, então, agora, o merecido espaço à análise do Tiago Franco, que percebe da poda muitíssimo mais do que eu, o que não seria difícil, uma vez que eu percebo zero… Por isso mesmo, disfarço com estas crónicas…
“Esta era a noite do primeiro grande teste a Bruno Lage. A Liga dos Campeões permite alguns fogachos aos clubes portuguese, que, na melhor das hipóteses, terminam nos quartos de final. Portanto, é no campeonato e, em especial, contra o maior rival deste século, que se vê o que se pode esperar desta equipa.
Vítor Bruno deu uma ajuda a Bruno Lage, deixando Pêpê no banco, e apresentando um 11 onde o perigo se resumia a Samu e Galeno. O Benfica apareceu com o seu melhor 11 e dominou do princípio ao fim, ficando a dever a si próprio a possibilidade de uma goleada histórica. O golo de Samu surge de um erro de Otamendi, e depois de uma pausa de jogo forçada, num momento em que o Benfica carregava na área do Porto…
Aqueles adeptos especiais, que lançam tochas, quando a sua equipa está por cima do jogo, deveriam ter direito a um subsídio do Governo para a compra de capacetes e esponja de parede.
Falando em gente especial: sempre que vejo este miúdo Carreras a correr, driblar adversários, marcar golos e iniciar jogadas de ataque, lembro-me de tempos não muito distantes em que ele se sentava naquele banquinho, ali ao lado, a ver o Morato a chutar contra os adversários. Bruno Lage não é o meu treinador de eleição, mas é um treinador, algo que já não havia na Luz há dois anos. Tem um plano de jogo, estuda os adversários, mexe a partir do banco. Passou o teste, era este o teste.
Vítor Bruno com um plantel fraco, tal como Sérgio Conceição, não mostra a mesma arte deste em meter aquela gente a espumar da boca mal avistam o Colombo. O Porto joga pouco, as soluções não abundam. O Benfica também não enche o olho, convenhamos, mas tem uma equipa consideravelmente melhor e, parece-me, mais competência no banco.
Di Maria é, na realidade portuguesa, ainda um extraordinário jogador. O trio de meio-campo é este, com Florentino na recuperação e Kökçü e Aursnes na saída. Não é preciso inventar, basta meter os 11 melhores. Foi o que Bruno Lage fez, mas com uma chamada de atenção a Otamendi: está a precisar de banco, e o Benfica está mesmo a pedir aqueles dois miúdos no centro da defesa.
Uma nota final para dizer que, embora o Porto seja o tradicional rival neste século e portanto, a vitória é saborosa, a competição este ano será contra o Sporting. E esses, até ver, estão uns furos acima de Benfica e Porto. Rezemos pelo fim do efeito Ruben. Sem acento.“
E em Dezembro há mais.
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Na décima oitava sessão da BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com o jornalista e também escritor Nicolau Santos.
Muito mais conhecido pelo seu passado jornalístico, que iniciou no final dos anos 70, tendo passado pelas direcções do Público e do Expresso, Nicolau Santos é actualmente presidente do Conselho de Administração da RTP, depois de ocupar posição similar na Agência Lusa.
Mas a conversa na Biblioteca do PÁGINA UM, com Pedro Almeida Vieira, incide sobretudo numa vertente menos conhecida de Nicolau Santos, mas que que (com)vive com indisfarçável entusiasmo: a Literatura. Depois de diversas incursões pela poesia (em alguns livros em parceria com António Costa Silva, ex-ministro da Economia), Nicolau Santos estreou-se agora no romance, com ‘Amarelo tango’, uma saga familiar que retrata a história da sua própria família, tendo como contexto inicial a ida do seu avô para Angola.
Uma oportunidade também para conversar sobre as ‘dificuldades’ e aprendizagens da escrita, sobre a realidade e a ficção, e sobre o processo de colonização e descolonização, tendo sempre Angola como epicentro.
Nicolau Santos
Apesar de uma promessa inicial para não se abordar temas relacionados com a RTP, esta longa conversa acabou (e bem) por ‘resvalar’, a partir do minuto 70, para a situação (de crise) da imprensa, e sobre as suas causas e soluções, bem como sobre o serviço público da imprensa (e da televisão e rádios públicas).
Entre as obras patentes na Biblioteca do PÁGINA UM, Nicolau Santos recomendou os romances ‘Equador’, de Miguel Sousa Tavares, publicado originalmente em 2003, e ainda ‘A Rainha Ginga’, de José Eduardo Agualusa, publicado em 2014.
Pormenor da biblioteca ‘caseira’ de Nicolau Santos.
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Na décima sétima sessão da BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com a escritora Cristina Carvalho.
Nasceu e cresceu num ambiente cheio de Literatura e de saber: filha de professor e divulgador Rómulo de Carvalho (que, na poesia, assinava com o pseudónimo António Gedeão) e da escritora e arquivista Natália Nunes, Cristina Carvalho tem-se consolidado como uma das mais consistentes escritoras das últimas duas décadas, centrando a sua produção literária sobretudo no romance biográfico e para o público juvenil.
Apesar desse ambiente familiar, ou talvez por causa disso, a sua estreia foi tardia: à beira de fazer 40 anos, com ‘Até já não é adeus’, em 1989, publicando somente mais quatro obras até 2008. Mas a partir daí tem-se mostrado imparável, publicando a um ritmo de impressionante quantidade e qualidade, que já lhe mereceu duas distinções: o Prémio SPA/RTP 2016, com ‘O olhar e alma: romance de Modigliani’, e o Grande Prémio de Literatura Biográfica Miguel Torga 2021, com ‘Ingmar Bergman: o caminho contra o vento’.
Conta também mais de uma dezena das suas obras no Plano Nacional de Leitura, tendo também sido nomeada para o Prémio ALMA em 2023, o mais prestigiado prémio internacional de literatura juvenil.
Cristina Carvalho fotografada no PÁGINA UM.
Numa conversa descontraída com Pedro Almeida Vieira, também fruto de uma já longa amizade, Cristina Carvalho fala do seu percurso literário, das suas escolhas e viagens, das suas amizades, das suas opções e entusiasmos na escrita e na divulgação das suas obras.
Entre as obras patentes na Biblioteca do PÁGINA UM, Cristina Carvalho recomendou os romances ‘As pessoas invisíveis’ (2022), de José Carlos Barros; ‘Rio Homem’ (2010), de André Gago; ‘A febre das almas sensíveis’ (2018), de Isabel Rio Novo; e ainda ‘O magriço’ (2020), de Tiago Salazar.
Pormenor da biblioteca ‘caseira’ de Cristina Carvalho
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As intervenções em plenário são apenas uma das partes do trabalho parlamentar, embora a mais visível e mediática. O PÁGINA UM foi analisar quem mais interveio nas diversas sessões de plenário, desde o início da legislatura, a partir de Março até Setembro, e constatou que, apesar de terem menos tempo regulamentar, são os deputados dos pequenos e médios partidos que mais possibilidades têm de exercer o múnus de tribuno. Nos três principais partidos – PSD, PS e Chega –, a estratégia já é diferente. Enquanto nos socialistas e social-democratas, existe uma maior distribuição dos tempos, e há assim poucos tribunos assíduos, no Chega o seu líder (André Ventura) e o presidente do grupo parlamentar (Pedro Pinto) praticamente esgotam a possibilidade de outros brilharem.
Os deputados são considerados actores políticos, na acepção das ciências políticas, mas se o Parlamento, e em particular o plenário, fosse um palco, a ‘artista’ mais requisitada seria, por agora, Inês Sousa Real. Até 20 de Setembro passado, de acordo com a análise do PÁGINA UM aos registos contabilizados pelos serviços da Assembleia da República, a única representante do PAN é quem mais vezes interveio – 72 –, bastante mais do que os dois deputados que fecham o pódio: Paula Santos (58), líder parlamentar do PCP, e o centrista Paulo Núncio (49). Um pouco mais atrás, surge ainda, ex aequo, com 48 intervenções, outro comunista, António Filipe, e o líder do Chega, André Ventura.
O facto de Inês Sousa Real surgir muitas vezes não signifique que seja a ‘estrela da companhia’, porque os tempos detidos pelo PAN são bastante escassos face aos outros partidos, embora proporcionalmente ao peso político saía com vantagem. Por exemplo, num debate com o primeiro-ministro, o PAN tem apenas dois minutos, quando o PSD e PS podem contar com 11 minutos e 30 segundos. Mas isso faz com que tanto com a deputada única do PAN como com os deputados dos partidos mais pequenos, haja mais espaço para brilharem em comparação com os deputados dos dois principais partidos (PSD e PS), mesmo confrontando as intervenções dos parlamentares de primeira linha.
inês Sousa Real: quase sempre com um ou dois minutos de intervenção, mas a deputada do PAN, por ser única, lidera a lista dos oradores mais assíduos em plenário.
Com efeito, mesmo sem contar com o PAN (uma deputada) e o CDS-PP (dois deputados), os partidos de média dimensão têm tendência a distribuir o ‘trabalho’ das suas intervenções no plenário pelos deputados disponíveis. Mesmo havendo uma maior preponderância de alguns deputados sobre outros, quase sempre é o líder parlamentar que se destaca mais entre os seus pares, embora com excepções.
Por exemplo, o líder parlamentar do Bloco de Esquerda, Fabian Figueiredo, é, com 40 intervenções, aquele que mais vezes já falou em plenário em nome do seu partido, bem à frente de Mariana Mortágua (25). No Partido Comunista sucede o mesmo: Paula Santos (58 intervenções) destaca-se de António Filipe (48) e Alfredo Maia (16), num grupo que tem contado com um quarto deputado, em parte do tempo pelo líder comunista Paulo Raimundo, que se já procedeu, por diversas vezes, à suspensão temporária do mandato.
No caso do Livre, a líder parlamentar Isabel Mendes Lopes está em perfeita sintonia com Rui Tavares, com quem, aliás, partilham a liderança também deste partido. Ambos contam 41 intervenções em plenário, bem à frente dos outros dois ‘camaradas’: Paulo Muacho (27) e Jorge Pinto (23).
A Iniciativa Liberal acaba, assim, por ser a excepção dos partidos de média dimensão, uma vez que a presidente do grupo parlamentar, Mariana Leitão, conta apenas 18 intervenções, estando assim atrás de Mário Amorim Lopes (31), Carlos Guimarães Pinto e Rui Rocha (19, cada).
Subindo de degrau, para os três maiores partidos, André Ventura, o líder do Chega – que nesta legislatura conta 50 deputados – é, de longe, aquele que mais surgiu a falar no plenário, com 48 intervenções, sendo mesmo o quarto parlamentar de todo o hemiciclo com mais aparições. André Ventura supera bastante o número de ‘aparições’ do líder parlamentar do Chega, Pedro Pinto (35), havendo apenas mais dois deputados com mais de nove intervenções: Filipe Melo (11) e Rui Afonso (10). Mesmo algumas ‘estrelas da companhia’ de Ventura no Chega têm pouca presença em plenário: Cristina Rodrigues (ex-deputada do PAN) conta nove intervenções, enquanto Rita Matias e Gabriel Mithá Ribeiro têm oito, cada. Este último parlamentar, que ocupa a mesa da Assembleia da República, intervém, geralmente, para apresentar votos de pesar pelo falecimento de diversas personalidades.
São muitos os que se sentam, mas poucos os que falam muitas vezes em plenário. Foto: DR.
Se nos pequenos e médios partidos não se vislumbram deputados com ‘vida parlamentar’ minimalista, no Chega já se evidenciam muitos. Com efeito, mantendo estável o grupo de deputados – não se registou ainda qualquer substituição por suspensão de mandato –, encontra-se um parlamentar do Chega do qual ainda não se ouviu um pio em plenário: Henrique Rocha de Freitas. O antigo deputado social-democrata e secretário de Estado de Paulo Portas no Governo de Durão Barroso (2002-2004), eleito por Portalegre, não fez ainda qualquer intervenção. Em serviços mínimos estão seis deputados, cada um com uma só intervenção em plenário ao longo de cerca de sete meses, havendo ainda 11 com duas intervenções e mais 10 com três intervenções. No total, estes 28 deputados do Chega somam 57 intervenções em plenário, muito menos do que a soma das intervenções de Ventura e Pedro Pinto juntas (83).
Este não é apenas um ‘problema’ do Chega. No caso do PS e do PSD, ambos com grupos parlamentares de 78 deputados, existe também uma grande dispersão de intervenções em plenário, e o número de parlamentares que se sentaram durante esta legislatura no Parlamento sem qualquer intervenção é muito mais significativo. No entanto, sobretudo no caso do PSD, o número de deputados sem voz deve-se ao facto de muitos só se terem sentado fugazmente nas cadeiras do plenário, antes de assumirem funções no Governo, como são os casos do próprio Luís Montenegro, ou ainda dos ministros Miguel Pinto Luz, António Leitão Amaro, Ana Paula Martins e Rita Alarcão Júdice. Na verdade, com ficha de deputados social-democratas nesta legislatura, mesmo se apenas por poucas horas, surgem já 98 nomes.
Em todo o caso, até 20 de Setembro, somente se contam dois deputados do PSD com mais de 30 intervenções em plenário: Aguiar-Branco, muito por via das suas funções de presidente da Assembleia da República, e o líder parlamentar Hugo Soares, com 34. Com mais de nove intervenções contam-se apenas mais quatro sociais-democratas: Jorge Paulo Oliveira (20), António Rodrigues (14) e Hugo Carneiro e João Vale e Azevedo (10 cada).
Deputados com maior número de intervenções em plenário na XVI Legislatura, entre 26 de Março e 20 de Setembro de 2024. Fonte: Assembleia da República.
No caso do Partido Socialista, a lista de deputados também vai bastante longa, por força das substituições, embora haja alguns que ainda não tiveram, ou não quiseram, ou não lhes deram oportunidade de serem oradores no plenário, sendo os nomes mais sonante os de Sérgio Sousa Pinto e dos ex-ministros Fernando Medina, José Luís Carneiro e Manuel Pizarro. Nenhum fez ainda uso da palavra em plenário nesta legislatura. Mas nem o próprio secretário-geral dos socialistas costuma ser orador: Pedro Nuno Santos apenas interveio em plenário por nove vezes, sendo mesmo assim o quarto, ex aequo com Miguel Matos e a ex-ministra Marina Gonçalves. Acima da dezena de intervenções em plenário, na bancada do PS, encontra-se apenas Pedro Delgado Alves (23), a líder parlamentar Alexandra Leitão (14) e Joana Lima (13).
Deste modo, são os partidos com menor representatividade – e com menos tempos para intervir – que acabam por ter tribunos com maior assiduidade. Com efeito, se se colocar como fasquia as 10 intervenções, todos os deputados do PAN, do CDS-PP, do Bloco de Esquerda, da Iniciativa Liberal e do Livre a ultrapassam facilmente. Nos comunistas, três dos quatro deputados ultrapassam-na. Quanto ao Chega, somente três dos 50 deputados são tribunos com mais de 10 intervenções, enquanto no PSD encontram-se quatro e no PS apenas três, sendo que cada um conta com 78 assentos no Parlamento.
Contabilizando os deputados com 20 ou mais intervenções, apenas se encontram 21 nomes, sendo que destes somente André Ventura (Chega, 48), Aguiar-Branco (PSD, 38), Pedro Pinto (Chega, 35), Hugo Soares (PSD, 34), Pedro Delgado Alves (PS, 23) e Jorge Paulo Oliveira (PSD, 20) integram os três maiores partidos, que, no conjunto, ocupam 206 dos 230 assentos parlamentares, ou seja, cerca de 90% do total.
Paula Santos é a líder de um grupo parlamentar com maisa intervenções em plenário.
Se se considerar a relevância das intervenções no seio do respectivo partido, a primeira posição cabe, como seria óbvio, a Inês Sousa Real (por ser deputada única), sendo seguida pelos dois deputados centristas, Paulo Núncio e João Almeida, com 52% e 47%, respectivamente. A soma não chega a 100% porque Nuno Melo ainda interveio uma vez antes da formação do Governo Montenegro. A seguir a estes três deputados, seguem-se dois deputados do PCP (Paula Santos, com 45%, e António Filipe, com 37%), depois dois deputados do Livre (Rui Tavares e Isabel Mendes Lopes, ambos com 31%), fechando o top 10 um deputado do Bloco de Esquerda (Fabian Figueiredo, com 26%), e um deputado da Iniciativa Liberal (Mário Amorim Lopes, com 23%) e mais um deputado do Livre (Paulo Muacho).
Nos três maiores partidos, apenas André Ventura, líder do Chega, tem relevância significativa no seio da sua bancada (18% do total das intervenções), ocupando a 12ª posição no ranking global, logo atrás de Marisa Matias, do Bloco de Esquerda (que esteve algumas semanas ausente nesta legislatura por motivos de saúde). No caso do PS e do PSD, os tribunos mais assíduos – respectivamente, Pedro Delgado Alves e Hugo Soares (excluindo assim Aguiar-Branco, pelas funções que detém) – têm um peso significativamente menor. Nenhum deles atinge sequer 10% das intervenções dos seus partidos. Em suma, estar num partido pequeno representa uma maior probabilidade de intervir em plenário, o que, consoante os objectivos de cada deputado, pode ser coisa boa, ou má.
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De boas intenções está o inferno cheio. E também com alegadas boas intenções se criam oligopólios ilegais. A Comunidade Intermunicipal das Beiras e Serra da Estrela (CIM-BSE) achou por bem que poderia montar um sistema de transportes públicos em zonas mais periféricas, bastando distribuir ajustes directos por empresas da região. Só nos últimos dois meses foram assinados oito contratos convenientemente distribuídos por empresas da região, um dos quais de quase quatro milhões de euros. A fundamentação para tantos ajustes directos remete para uma norma que não é sequer aplicável, ou seja, é falsa. A CIM-BSE é uma estrutura criada por 15 autarquias dos distritos da Guarda e Castelo Brranco, sendo presidida pelo social-democrata Luís Tadeu, presidente da Câmara de Gouveia, que, no ano passado, foi condenado por prevaricação a três anos e meio de prisão, com pena suspensa.
A Comunidade Intermunicipal das Beiras e Serra da Estrela (CIM-BSE) celebrou desde Setembro oito contratos de contratação de transporte rodoviário de passageiros no valor total de mais de 9 milhões de euros (IVA incluído), através de estranhos ajustes directos, em vez de lançar concurso público global ou por lotes. Se se considerar o período de 2024, o número de ajustes directos sobe para 18, envolvendo mais de 11,3 milhões de euros, e beneficiando apenas sete empresas da região, que compartilham o ‘bolo’ num evidente oligopólio. A entidade pública, liderada pelo social-democrata Luís Tadeu, simultaneamente presidente da Câmara Municipal de Gouveia, nem sequer se deu ao trabalho de esclarecer ou comentar o PÁGINA UM sobre estes avultados contratos de ‘mão-beijada’ que colidem com os princípios mais básicos da contratação pública e da transparência e boa gestão dos dinheiros públicos.
Recorde-se que, em Abril do ano passado, Luís Tadeu foi condenado pelo crimes de prevaricação a pena de prisão de três anos e meio, suspensa sob condição do pagamento de 25 mil euros, por causa de parcerias público-privadas com a e empresa MRG. Na altura dos factos, Tadeu era vice-presidente da autarquia então liderada por Álvaro Amaro, também condenado na mesma pena. No processo foram também condenadas outras pessoas, entre as quais Júlio Sarmento, antigo presidente da Câmara de Trancoso, que apanhou uma pena efectiva de sete anos por prevaricação de titular de cargo político, corrupção passiva e branqueamento de capitais. Este histórico militante social-democrata foi ainda sentenciado a devolver ao Estado 552 mil euros.
Luís Tadeu, presidente da Câmara Municipal de Gouveia e da Comunidade Intermunicipal das Beiras e Serra da Estrela. Foto: DR.
Pessoa colectiva de direito público de natureza associativa, a CIM-BSE agrega as 15 autarquias dos distritos da Guarda e Castelo Brranco (Almeida, Belmonte, Celorico da Beira, Covilhã, Figueira de Castelo Rodrigo, Fornos de Algodres, Fundão, Guarda, Gouveia, Manteigas, Mêda, Pinhel, Sabugal, Seia e Trancoso), e como tem vindo a suceder na última década têm assumido, mesmo com a regionalização a marcar passo, protagonismo político, com investimentos quase sempre financiados com dinheiros comunitários. Desde 2017, a CIM-BSE já estabeleceu 225 contratos no valor de quase 17,7 milhões de euros, mas no presente ano os gastos têm aumentando consideravelmente.
De acordo com um levantamento no PÁGINA UM, desde Janeiro foram assinados 47 contratos para diversas aquisições de bens e serviços, com os compromissos financeiros a atingirem, sem IVA incluído, quase 10,2 milhões de euros. Globalmente, de entre os 17,7 milhões de euros ‘despachados’ desde 2014, mais de 12,5 milhões de euros (69% do total) foram entregues em 157 ajustes directos. Por concurso público somente foram celebrados 55 contratos envolvendo pouco mais de 2,7 milhões de euros (15% do total).
Desde Setembro, a ‘rotativa’ tem aumentado. Os oito contratos de ‘mão-beijada’ assinados nos últimos dois meses, no âmbito de um projecto de mobilidade entre povoações dos concelhos do CIM-BSE (MobiFlex.BSE), têm a particularidade de incluir três com valores acima de um milhão de euros, que dificilmente terão enquadramento para a escolha ser feita de forma arbitrária e com ajuste directo.
O maior contrato foi assinado com a Transdev Interior, uma empresa de Castro Daire que recentemente incorporou a Caima. Sem pestanejar, a CIM-BSE entregou-lhe um contrato por ajuste directo de 3.213.596,18 euros, sem IVA, incluído. Com esse imposto, aproxima-se dos quatro milhões de euros. No Portal Base surge uma ligação às peças do procedimento, mas o sistema dá erro: ou seja, a ligação é falsa, não se ficando assim, a conhecer o caderno de encargos nem sequer o serviço a executar durante os 12 meses da prestação de serviço. A fundamentação indicada para a escolha pelo ajuste directo também é falsa: refere-se o artigo 11º do Código dos Contratos Públicos, que diz respeito a pormenores sobre o acto público. Mas não é o único contrato este ano.
A Transdev Interior foi a mais beneficiada por uma distribuição suspeita de ajustes directos por empresas da região.
A empresa ‘sacou’ mais dois contratos com o mesmo expediente: o primeiro em Abril, por serviços de 30 dias por quase 260 mil euros; o segundo no mês seguinte, com duração de dois meses, pelo qual arrecadou 410 mil euros. Com IVA, a transportadora já facturou este ano à CIM-BSE quase 4,8 milhões de euros em contratos de ‘mão-beijada’.
A fundamentação errada para a opção por ajustes directos num mercado fortemente concorrencial é extensiva aos restantes contratos. O segundo ajuste directo mais chorudo ficou noutra empresa da região: a Auto Transportes do Fundão. São quase 1,5 milhões de euros por serviços de transporte que não se percebe quais serão, porque as peças do procedimento também não estão disponíveis. A este contrato podem também adicionar-se mais três ajustes directos celebrados este ano: em Junho passado foram dois, que totalizaram cerca de 375 mil euros, e em Setembro ‘caiu’ mais outro por quase 159 mil euros. Em todos os casos a fundamentação para os ajustes directos é falsa.
Num dos contratos de Junho existe um caderno de encargos disponível no Portal Base, ficando-se a saber os percursos de transporte previamente definidos. Cada quilómetro percorrido teve um custo para a CIM-BSE de 2,74 euros por quilómetro, um valor consideravelmente elevado.
A empresa Marques Lda., com sede em Viseu, foi outra das ‘felizes contempladas’ com um ajuste directo milionário: o contrato estipula a entrega de cerca de 1,2 milhões de euros, sem se conseguir saber a tipologia dos serviços a prestar. Também neste caso, não há caderno de encargos disponível. Em Junho, esta empresa já conseguira outro ajuste directo no valor de 222 mil euros.
Em menor valor, a Empresa Berrelhas de Camionagem – originalmente de Penalva do Castelo, mas que mudou a sede para Viseu em 2022 – teve ‘direito’ a um ajuste directo de um pouco mais de 601 mil euros agora em finais de Setembro, mas contentara-se com 75 mil euros de outro ajuste directo em Junho por serviços de três meses.
Sem regionalização, autarcas encontraram nas comunidades intermunicipais um expediente para distribuir contratos públicos por ajuste directo.
Além destas quatro empresas, a empresa Viúva Monteiro & Irmão, com sede no concelho do Sabugal, não tem motivos para ‘chorar’, porque também teve direito a dois ajustes directos: em Setembro, no valor de 396 mil euros, e em Junho, no valor de 103 mil euros. Com menores direitos a ‘comer do bolo público’, sem o incómodo da livre concorrência e transparência, encontram-se ainda mais duas empresas no sector dos transportes, também da região: a Lopes & Filhos, com sede em Figueira de Castelo Rodrigo – com dois contratos no valor total de 194 mil euros – e a União do Sátão & Aguiar da Beira, com sede no Sátão, que ficou com dois contratos de apenas 160 mil euros.
Saliente-se que o ajuste directo, uma medida que permite a contratação sem concurso público, destina-se geralmente a casos excepcionais, como situações de emergência ou quando o fornecimento dos serviços envolve pequenos montantes ou existem direitos especiais. No entanto, no sector de transportes, a concorrência é forte, e existem empresas que poderiam estar interessadas em exercer essa actividade em novos mercados a preços mais competitivos e benéficos para os clientes.
Estes novos contratos de transporte estarão associados ao programa de transporte flexível MobiFlex.BSE, promovido pela CIM-BSE. Este programa, que visa proporcionar uma solução de mobilidade ajustada às necessidades das populações mais isoladas, começou a ser implementado em Seia e no Fundão. Criado para complementar o transporte público regular, o MobiFlex.BSE é uma solução de transporte flexível que permite aos cidadãos marcar viagens com antecedência, operando em dias específicos e ligando localidades mais periféricas aos centros de concelho.
Exemplo de um dos serviços de transporte pagos por ajuste directo pela Comunidade Intermunicipal das Beiras e Serra da Estrela.
No concelho de Seia, por exemplo, o programa integra circuitos experimentais, como Sabugueiro – Seia e Vide-Cabeça-Loriga, que se destinam a colmatar a falta de transporte regular e garantir mobilidade inclusiva. O serviço é assegurado por táxis, e o sistema de reservas é feito através de uma linha telefónica gratuita, com os preços dos bilhetes variando entre os 3,65 e os 1,65 euros, numa tabela tarifária semelhante à do transporte público convencional.
O PÁGINA UM enviou um conjunto de questões à presidência da CIM-BSE, mas Luís Tadeu nem sequer respondeu. Em todo o caso, a acta de uma reunião desta entidade, no passado dia 10 de Setembro, revela um ‘truque’ usado para justificar os chorudos ajustes directos: a CIM-BSE estará a manifestar avanços para vir a lançar um concurso público internacional para estes serviços de transporte – tendo sido aprovadas as peças do procedimento –, mas logo no ponto seguinte foi votado um parecer de Agosto no sentido de ser não se avançar por um concurso público por lotes. E, em seguida, de imediato, passou-se então a análise, discussão e votação para se avançar para os ajustes directos milionários. Tudo aprovado por unanimidade.
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A lei prevê compensação para as distribuidoras de electricidade por cada factura que enviem aos seus clientes com a cobrança da contribuição para o audiovisual com o objectivo de financiar o serviço público da RTP. Nos últimos 15 anos, as distribuidoras de electricidade, sobretudo a EDP, arrecadaram 40,3 milhões de euros apenas por incluírem nas facturas dos clientes aquela cobrança. Empresas de electricidade só não ganharam mais com a medida porque no tempo da ‘troika’ o valor que estão autorizadas a ‘reter’ em cada factura de cliente caiu para metade. Ainda assim, só em 2023, as eléctricas puseram no bolso mais de 2,2 milhões de euros. Na prática, 1,18% da contribuição para o audiovisual não chegou à RTP porque ficou nas mãos das distribuidoras de electricidade. Ainda assim, no global, já entraram nos cofres da empresa pública de televisão 2,44 mil milhões de euros provenientes das contas da luz, desde 2009.
Uma fatia da contribuição para o audiovisual nunca chega à RTP. Isto porque as distribuidoras de electricidade retêm um ‘taxa’ como compensação por terem de incluir nas facturas dos seus clientes a cobrança daquele apoio que visa financiar a empresa pública de televisão. Nos últimos 15 anos, um total de 40,3 milhões de euros ficaram ‘retidos’ nos cofres das empresas de electricidade, segundo a análise do PÁGINA UM aos relatórios e contas da RTP.
A EDP, a maior empresa do sector, com mais de 4,7 milhões de clientes em Portugal, tem sido a que mais tem ‘amealhado’ com a medida prevista numa lei de 2003, que aprovou o modelo de financiamento do serviço público de radiodifusão e de televisão. Segundo este diploma, “as empresas distribuidoras de electricidade serão compensadas pelos encargos de liquidação da contribuição através da retenção de um valor fixo por factura cobrada”.
Em 2023, as eléctricas viram entrar em ‘caixa’ um total de 2.243.170 euros apenas por terem cobrado aos clientes a contribuição para o audiovisual, e entregue depois o valor à RTP. Por cada factura em que seja cobrada esta contribuição, as distribuidoras e comercializadoras de energia podem tirar para si o valor de 0,0333 euros.
Segundo a legislação, quem decide quanto podem reter as eléctricas por prestarem este ‘serviço’ é o Governo, por meio de despacho conjunto do Ministro das Finanças, do ministro responsável pela área da comunicação social e do Ministro da Economia. O valor inicial até chegou a ser mais elevado do que actualmente: 0,06 euros por cada factura de cliente, por via de um despacho conjunto de Janeiro de 2004. Posteriormente, em 2011, foi actualizado para 0,0666 euros, uma subida de 11%, mas a crise de dívida e a ‘troika’ levou a que, em 2012, o valor fosse cortado para metade, ficando nos 0,0333 euros. O valor mantém-se desde essa data.
Mas, se para uma empresa lucrativa, como a EDP ou a Galp, esta receita possa parecer ‘peanuts‘, sabe a pipocas, porque é dinheiro ‘limpo’ e garantido em caixa. E é uma excepção ao modelo de cobrança de taxas e impostos. Por exemplo, a Galp não recebe qualquer montante por gerir os fluxos do Imposto sobre os Produtos Petrolíferos (ISP), nem, claro, as empresas e os particulares por serem ‘cobradores’ de IVA. Pelo contrário, se falharem ou se atrasarem no envio desse dinheiros para a ‘máquina estatal’ arriscam pesadas coimas ou mesmo penas por crime de abuso de confiança fiscal.
Receitas das eléctricas com a cobrança da contribuição para o audiovisual: 40,3 milhões desde 2009. Valores em euros. Fonte: RTP
Segundo o levantamento feito pelo PÁGINA UM, através de uma análise aos relatórios e contas da RTP nos últimos 15 anos, entre 2009 e 2012 as empresas de electricidade conseguiram ‘sacar’ mais de quatro milhões de euros por ano à conta da contribuição para o audiovisual. Só com a chegada da crise e o pedido de ajuda financeira externa do país, houve um travão nesta receita fácil, e os valores recuaram para valores próximos dos dois milhões de euros por ano. No ano passado atingiram um pouco mais de 2,2 milhões de euros, o valor mais elevado da última década.
Este crescimento nas receitas advém directamente do aumento do número de consumidores de electricidade no país. Segundo o mais recente boletim da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, em Portugal Continental estão registados um pouco mais de 6,5 milhões de consumidores do mercado retalhista de eletricidade, entre mercado liberalidade e mercado regulado. O bolo da comissão pela ‘taxa audiovisual’ é distribuído pelos 35 comercializadores a operar no país, mas a EDP mantém-se como a ‘rainha’, uma vez que detém ainda64% de quota de mercado.
No meio de tudo, quem tem perdido são os consumidores que são obrigados a pagar, nas suas facturas da luz, a verba para financiar a RTP, sendo discutível que a empresa presta sempre serviço público, como seria suposto. Por exemplo, a empresa empregou, a peso de ouro, apresentadores para serem estrelas em programas de entretenimento de gosto debatível, além de outros casos de possíveis ‘desperdícios’ de dinheiro dos contribuintes. Por outro lado, em alturas de crise, como foi o caso da pandemia de covid-19, alinhou com a ‘linha’ oficial do Governo, sem questionar algumas das medidas radicais impostas no país com resultados trágicos, os quais são observáveis no excesso de mortalidade recorde registado desde 2021 e no aumento do nível de pobreza no país.
Contribuição para o audiovisual que entrou nos cofres da RTP. Valores em milhões de euros. Fonte: RTP
Ao todo, a RTP encaixou, somando os valores contabilizados nos diversos relatórios e contas, cerca de 2,44 mil milhões de euros nos últimos 15 anos pagos pelos consumidores através das faturas da luz. Dava para construir quase três pontes Vasco da Gama. O ano em que a RTP recebeu menos verba foi em 2010, quando ‘só’ arrecadou 109,6 milhões de euros. O valor mais alto registou-se no ano passado: 190,1 milhões de euros. A empresa explicou, no seu relatório e contas de 2023 que o aumento daquela ‘receita’ em 2,7% face a 2022, é justificado “maioritariamente pelo aumento do número de consumidores de eletricidade” no país.
Apesar de os montantes arrecadados de ‘taxa audiovisual estarem a subir, não significa que a RTP tivesse menos dinheiro do Estado há alguns anos, uma vez que existia a prática de injectar financiamento extraordinário através das denominadas “indemnizações compensatórias”. Por exemplo, em 2010, a indemnização compensatória de 121 milhões de euros chegou a ser superior à ‘taxa audiovisual’ (109,6 milhões de euros). Em 2023 não houve este tipo de ‘compensação’.
A contribuição para o audiovisual tem, actualmente, um valor fixo mensal de 2,85 euros, a que acresce o IVA à taxa de 6%. Ou seja, só em IVA o Governo encaixou no ano passado mais 11,46 milhões de euros. Para clientes que cumprem certos critérios, como estar em situação de desemprego, a contribuição é de 1 euro, mais IVA. Este ‘imposto’ sobre os consumidores de electricidade é cobrado 12 vezes ao ano, a cada mês. Apenas os contratos com consumos menores de 400 kWh por ano estão isentos do pagamento deste ‘imposto’ para financiar a RTP.
Este ‘imposto’ cobrado aos clientes das eléctricas para financiar a RTP continua a ser polémico, sendo considerado anacrónico, por obrigar os consumidores de electricidade a ‘sustentar’ uma empresa da qual podem nem ser ‘clientes’, que não valorizam ou cujo desempenho não apreciam. Certo é que, mesmo sendo considerada uma taxa, por prestação de um serviço, ninguém pode recusar o pagamento.
A lei determina que nenhuma comercializadora de electricidade pode passar factura ou aceitar pagamento de um cliente sem somar aos custos dos consumos de electricidade e demais serviços este ‘imposto RTP’. Assim, o consumidor, se quiser ter luz em casa, tem mesmo de financiar a RTP. E, à boleia, acaba a dar uma ‘gorjeta’ forçada às eléctricas.
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Durante anos, a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) – que detém, directa e indirectamente, 12 rádios locais, dois periódicos, um canal televisivo – tentou que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) a desobrigasse de revelar os indicadores financeiros de uma actividade religiosa, assente numa mera associação privada do tipo clube, que movimentou 209 milhões de euros entre 2017 e 2022. Nunca conseguiu. Até este ano. Sem sequer qualquer deliberação conhecida, o novo Conselho Regulador da ERC decidiu que, afinal, bastava a IURD divulgar dados parcelares e não validados, passando a esconder as informações financeiras globais. Sustentação legal para esta acção do regulador dos media, presidida por Helena de Sousa, não existe. A ERC diz que a actividade de comunicação da IURD é secundária, o que se mostra bastante questionável, tanto mais que também detém uma ‘holding’ de empresas de rádio, a Global Difusion, que em 2022 tinha dívidas de 58 milhões de euros e estava em falência técnica. E não registou ainda as contas do ano de 2023.
A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), presidida por Helena de Sousa, aceitou este ano que a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) não divulgasse os seus dados financeiros reais de toda a sua actividade, permitindo-lhe, ao arrepio da lei, que inserisse na Plataforma da Transparência dos Media somente algumas informações financeiras não validadas respeitantes às actividades de comunicação social, que incluem dois periódicos e um canal televisivo por cabo (UniFé TV), que entrou em actividade em Agosto de 2022. Essa documentação não está acessível nem sequer é validável, por a IURD se tratar de uma associação privada.
Nos últimos anos, a IURD andou insistentemente a tentar obter a confidencialidade dos dados financeiros, com sucessivos requerimentos, mas o anterior Conselho Regulador, presidido pelo Sebastião Póvoas, recusou por sistema essa pretensão, conforme documentos consultados pelo PÁGINA UM após a intervenção do Tribunal Administrativo de Lisboa, confirmado por um acórdão ‘demolidor’ do Tribunal Central Administrativo de Lisboa. Recorde-se que o PÁGINA UM teve uma ‘luta’ de quase dois anos contra o regulador que se opunha a identificar as entidades que solicitavam confidencialidade na transmissão do reporte financeiro exigido pela Lei da Transparência dos Media.
Domingos Siqueira, o ‘homem forte’ da IURD em Portugal. Foto: DR.
Para tentar não divulgar publicamente qualquer informação, a IURD alegava, segundo os documentos consultados na ERC, “que, por se tratar de uma associação de carácter religioso sem fins lucrativos, as suas contas não se encontra[v]am sujeitas a um dever de publicação” e que desenvolvia uma actividade “que vai muitíssimo além da publicação periódica da qual é detentora, actuando neste prisma de empreender de forma meramente acessória por referência ao seu escopo principal”. E defendia que, deste modo, “a maioria dos dados financeiros inseridos na Plataforma da Transparência não está relacionada com a sua actividade de comunicação social”. Contudo, o sector da comunicação social na IURD, com uma estratégia de compra tem aumentado substancialmente nos últimos anos, detendo directa e indirectamente dois periódicos, um canal televisivo e 12 rádios locais.
De entre essas largas dezenas de entidades que pediam confidencialidade destacava-se a IURD, bem como as empresas de rádios regionais integradas na holding Global Difusion, detida a 100% por esta igreja evangélica de origem brasileira, e ainda a RecordTV. Este canal televisivo integra a holding de Edir Macedo, o fundador e líder da IURD no Brasil.
Em anos anteriores, a ERC recusara sistematicamente essa pretensão de obscuridão por parte da IURD, até porque uma autorização abriria uma caixa de Pandora. Ou seja, qualquer investidor ou fundo poderia passar a deter um ou vários órgãos de comunicação social sem divulgar publicamente a informação, bastando ‘provar’ que a actividade de media era completamente acessória. No limite, os próprios partidos políticos que detêm os seus periódicos oficiais deixariam de ser obrigados a transmitirem dados financeiros no Portal da Transparência dos Media, bem como centenas de outras entidades, entre as quais algumas de carácter religioso ligadas à Igreja Católica, sindicatos, instituições de solidariedade social e diversas empresas privadas, ou até mesmo fundos financeiros.
Desde Agosto de 2022, a IURD fez um forte investimento numa televisão por cabo, com uma programação mista, entre a informação ao estilo da CMTV, com jornalistas profissionais, e programas associados à divulgação do culto da igreja evangélica. A ERC optou por ‘aligeirar’, sem sustentação legal, as obrigações de transparência da IURD.
Até ao ano passado, mesmo se até houve um ano em que os serviços técnicos recomendaram o deferimento dos dados financeiros da IURD, o Conselho Regulador da ERC foi intransigente, indeferindo sempre os pedidos de confidencialidade dos dados financeiros, apenas permitindo a ocultação dos sócios da IURD em Portugal, que é uma associação privada do tipo clube apenas acessível aos ‘bispos’, e que vive dos chorudos donativos dos fiéis. Por esse motivo, através do Portal da Transparência dos Media era possível conhecer tanto os rendimentos, como o activo total, o capital próprio e o passivo da IURD. Consultando essa informação, fica-se a saber que a igreja evangélica conseguiu arrecadar 209 milhões de euros entre 2017 e 2022, passando o activo, que inclui edifícios de culto, para os 184,5 milhões de euros, mais 110 milhões do que em 2017.
Com as novas ‘contas’, alegadamente referentes apenas à componente associada à comunicação social, a IURD inscreveu apenas rendimentos de 1,4 milhões de euros, reportando também prejuízos de 1,38 milhões de euros e capitais próprios negativos de 2,7 milhões de euros. Mas em anos anteriores essa informação discriminada não existirá.
Confrontada com esta situação, o Conselho Regulador da ERC alega que “as entidades proprietárias de órgãos de comunicação social, mas cuja actividade principal não é a comunicação social (como é o caso da IURD) quando inserem as suas informações na Plataforma da Transparência podem optar por inserir os indicadores relativos à atividade global ou apenas os indicadores financeiros relativos à actividade de comunicação social”, acrescentando que “neste enquadramento, até 2022 inclusive, os dados inseridos pela IURD dizem respeito à actividade da igreja como um todo”, mas que, “em 2023, passaram a apresentar os indicadores financeiros para a actividade de comunicação social isoladamente”.
Nos noticiários da UniFé TV existem mesmo debates e comentários, mas o actual Conselho Regulador da ERC passou a tratar a IURD como sendo uma entidade com actividade irrelevante na comunicação social.
A ERC acrescenta ainda que a informação reportada pela IURD “está devidamente documentada”, mas defende que “a prova dos indicadores financeiros não é documentação de domínio público”. Esta é mais uma interpretação abusiva por parte do regulador, uma vez que, estando essa informação em sua posse, em formato analógico ou digital, passa a constituir imediatamente o ‘estatuto’ de documento, acessível ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos. Aliás, o PÁGINA UM já requereu hoje a consulta formal desses documentos.
Mas o acesso á documentação é somente um pormenor, porque, na verdade, a liberalidade do regulador constituiu uma ilegalidade. Com efeito, a ERC até tem o poder arbitrário de conceder confidencialidade às empresas – e somente em condições muitos especiais o fez, como o PÁGINA UM teve oportunidade de conferir em mais de uma centena de processos consultados nas instalações do regulador até ao final da passada semana –, mas não pode alterar as normas da Lei da Transparência dos Media, uma vez que esta é uma incumbência exclusiva da Assembleia da República.
Ora, na lei de 2015 e no regulamento subsequente que estabelece as regras de reporte financeiro, aprovado em 2020, não existe a mínima referência à possibilidade de se indicar apenas a parte alegadamente respeitante a uma suposta componente minoritária associada à comunicação social. Nesse aspecto, os deputados que aprovaram a Lei da Transparência dos Media em 2015 foram taxativos: a lei da transparência aplicava-se às agências noticiosas, às pessoas singulares ou colectivas que editem publicações periódicas (quaisquer que fossem), aos operadores de rádio e de televisão (incluindo emissão por via eletrónica), às “pessoas singulares ou colectivas que disponibilizem ao público, através de redes de comunicações eletrónicas, serviços de programas de rádio ou de televisão, na medida em que lhes caiba decidir sobre a sua seleção e agregação”, bem como às “pessoas singulares ou colectivas que disponibilizem regularmente ao público, através de redes de comunicações eletrónicas, conteúdos submetidos a tratamento editorial e organizados como um todo coerente”.
A única excepção seria para os casos em que não há, por razões de dimensão financeira, contabilidade organizada, algo que jamais se pode aplicar à IURD que movimentou mais de 200 milhões de euros desde 2017.
Certo é que desde que tomou posse no ano passado, o novo Conselho Regulador da ERC, presidido por Helena de Sousa, tem mostrado interesse em ‘escurecer’ a Lei da Transparência dos Media, justificando a intenção com o cenário de crise financeira do sector. Em Julho passado, numa polémica proposta de revisão desta legislação, sob a forma de deliberação, a ERC propôs à Assembleia da República um autêntico repositório de alterações e subtracções das obrigações das empresas de media em termos de identificação dos titulares directos e indirectos dos órgãos de comunicação social, bem como um aligeiramento das penalizações em caso de não indicação (ou lacunas e erros) de indicadores financeiros.
Por outro lado, nessa proposta, a ERC ainda manifestava o desejo de se ocultar o acesso a acordos parassociais – escondendo assim formas de controlo indirecto sem ser sob a forma de quotas ou acções – e também a possibilidade de isenção do cumprimento das normas de transparência sobre os meios de financiamento e o relatório organizacional por parte das “entidades que prossigam actividades de comunicação social a título acessório, em que a actividade de comunicação social tenha comprovadamente um peso diminuto nos rendimentos e um alcance residual ao nível das audiências”.
A ERC nunca determinou, nesta deliberação nem em outros documentos, os critérios para determinar o que é “um peso diminuto nos rendimentos” ou ainda “um alcance residual ao nível das audiências”, mas, conforme o PÁGINA UM alertava há três meses, claramente esta norma, a ser acolhida numa alteração legislativa na Assembleia da República, isentaria os partidos políticos, sindicatos, associações e diversas instituições religiosas, como a IURD, de mostrarem contas, sobretudo por não serem ‘empresas convencionais’ obrigadas a registo e depósito das demonstrações financeiras na Base de Dados das Contas Anuais, gerida pelo Instituto dos Registos e do Notariado (IRN).
O novo Conselho Regulador da ERC continua a tomar decisões arbitrárias que aniquilam a transparência num sector onde cada vez mais impera a desconfiança nos investimentos.
Ou seja, o Conselho Regulador da ERC – a entidade que, muitas vezes, aplica coimas aos órgãos de comunicação social que cometem infracções legais – está a agir, no caso concreto da IURD, completamente à margem da lei, usando de um poder discricionário incompatível com o seu estatuto de entidade somente reguladora. O PÁGINA UM pediu, aliás, que a entidade presidida por Helena de Sousa dissesse que norma (a existir) em concreto, com indicação do artigo da Lei da Transparência dos Media, que sustenta a ‘benesse’ agora concedida à IURD para não revelar os dados financeiros principais de toda a actividade desta associação privada, como sucedeu entre 2017 e 2022. Hoje, ao final do dia, o Conselho Regulador da ERC respondeu ao PÁGINA UM, continuando sem indicar, em concreto, a norma da Lei da Transparência dos Media que poderia dar respaldo legal à benesse concedida à IURD.
O regulador diz que “31% das entidades registadas na Plataforma da Transparência não têm como atividade principal a comunicação social”, e que, desse modo, entende que “o reporte integral dos indicadores financeiros destas empresas [ou entidades] no Portal da Transparência, a par e passo com empresas cuja actividade é apenas a comunicação social, não só é desproporcional, como é comparada com informação que abrange um universo de atuação distinto – o da comunicação social exclusivamente”. E acrescenta ainda que, “ao permitir que empresas de outros sectores de actividade reportem informação financeira, quando o conseguem fazer, em exclusivo relativa à actividade de comunicação social, reforça a comparabilidade da informação e a sua relevância para a prática regulatória e para os objetivos prosseguidos pela Lei da Transparência”.
Mas esta interpretação abre também uma infinidade de problemas de transparência complexos, sobretudo porque, como sucede no caso da IURD, não há uma validação dessa contabilidade analítica. Aliás, a igreja evangélica sabe disso, razão pela qual nem sequer se mostrou interessada em colocar o canal televisivo UniFé na esfera da sua ‘holding’ Global Difusion ou criar uma empresa específica, que a obrigaria a contas mais rigorosas e transparentes.
Evento político coberto pela UniFé TV
O PÁGINA UM colocou também questões à IURD, que respondeu apenas através de Martim Menezes, advogado da sociedade Abreu Advogados, que tem vindo ‘facilitar’ diversos negócios no sector dos media associados à igreja evangélica, incluindo a aquisição de rádios locais, através da ‘holding’ Global Difusion. Aliás, a recente actividade empresarial desta sociedade anónima, detida a 100% pela IURD, é desconhecida, pois ainda não surgiu, como a lei estabelece, o registo da Informação Empresarial Simplificada (IES) relativa a 2023, que incluiu as demonstrações financeiras, na Base de Dados das Contas Públicas.
Mas a situação não era, em 2022, nada positiva. Pelo contrário, era mesmo muito negativa. Em Setembro do ano passado, numa análise às contas da Global Difusion – que detém, por sua vez, seis empresas que gerem 12 rádios locais –, o PÁGINA UM detectou dívidas de 58 milhões de euros e uma situação de falência técnica, com capitais próprios negativos de 20,8 milhões de euros. A existência de uma ‘holding’ de comunicação social detida a 100% pela IURD com dívidas de 58 milhões de euros é, além disso, uma prova de que este sector não é nada irrelevante para esta igreja evangélica.
Certo é que, efectivamente, esta estranha alteração de procedimentos foi mesmo autorizada, mesmo se de forma informal, sem qualquer sustentação por deliberação, mesmo sabendo-se que houve troca de correspondência entre a ERC e a IURD sobre esta matéria. Martim Menezes garantiu ao PÁGINA UM ser “totalmente falso que a situação [financeira] da Instituição [IURD] não seja óptima”, e que “a parte da comunicação social decorre sem problemas, mas é deficitária e cabe à Instituição suprir esse défice”. No entanto, recusou sempre enviar ao PÁGINA UM quaisquer documentos que validem contabilisticamente quer o desempenho financeiro da IURD, no seu conjunto, quer da Global Difusion.
O advogado em causa, Martim Menezes, assegura que a ERC autorizou que a IURD passasse a remeter apenas informação financeira relativa à comunicação social, e insiste que as contas de 2023 da Global Difusion “foram aprovadas e comunicadas à AT [Autoridade Tributária], embora, mais uma vez, o PÁGINA UM confirmou, mais uma vez hoje, que não foram enviadas à Base de Dados das Contas Anuais, o que é um processo extremamente expedito. O advogado da IURD coloca a hipótese de poder haver “algum problema informático dado o recente ataque à AT”. A debilidade nesta argumentação é exactamente o facto de o ataque informático ser muito recente, pois o envio da IES teria de ser feita obrigatoriamente até 31 de Julho passado, ou seja, há três meses.
Em todo o caso, a alternativa seria o envio da IES da Global Difusion ao PÁGINA UM, conforme pedido, mas Martim Menezes respondeu: “Não vejo qualquer interesse em enviar-lhe o documento. Se quer publicar algum dado especifico agradeço que o contradite antecipadamente pois a Igreja é muito vigilante quanto ao seu bom nome”.
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Nos últimos anos, o panorama mediático português, mimetizando a imprensa internacional que passou a ‘eleger’ temas e formas ‘correctas’ da sua abordagem – criando assim ‘narrativas’ –, tem-se deixado enredar num jogo perigoso. O distanciamento que antes marcava a sadia relação entre jornalistas e actores políticos (que não envolve apenas políticos), permitindo um espaço e tempo de reflexão crítica, deixou de existir: progressivamente, estamos perante um contínuo ‘campo de batalha’, onde se misturam convicções pessoais e posições ideológicas, convertendo-se, neste processo, a função primordial de informar numa plataforma de manipulação de opinião pública.
O caso mais paradigmático, e até vergonhoso, sucedeu com as recentes eleições norte-americanas, onde se repetiu o erro colossal de uma avaliação ideológica por parte da esmagadora maioria de jornalistas, a tal ponto esmagadora que condicionou o mero acto de informar. O jornalismo lusitano quis mesmo imitar o modelo da imprensa norte-americana, abandonando a missão de ser um autêntico Quarto Poder para se arrogar como formador de opinião e, pior ainda, como orientador de voto. Em Portugal, de uma forma ainda envergonhada, já se tinha assistido a essa faceta nas eleições legislativas, com a ‘diabolização’ do Chega, que afinal até ‘cavalgou’ a onda da vitimização e da ausência de apreciação crítica por parte da imprensa aos falhanços clamorosos das políticas dos partidos tradicionais (e pouco criticados pelo seu desempenho). O populismo cresce quando a imprensa adormece.
Um ‘sinal dos tempos’, uma terrível tendência, a enraizar-se perigosamente nas sociedades ocidentais, tudo agora se bipolariza e se dramatiza, e maniqueiza-se, se reduz a uma visão dualista e simplista de bem versus mal, certo versus errado, com que se parte assim para a ostracização da outra parte, diabolização da outra parte e, claro, assim se justifica uma ‘benéfica’ censura da outra parte. Adjectiva-se sempre. Rotula-se ainda mais. Isola-se para eliminar.
Viu-se esta abordagem no caso da pandemia da covid-19. Na invasão da Rússia à Ucrânia. Nas eleições brasileiras de Outubro de 2022. No conflito (agravado) de Israel e da Palestina. E agora, de uma forma absurda, nas eleições norte-americanas, exacerbadas a um nível de mediatismo jamais visto. E bastou ver isso nas manchetes, nas reportagens, nos debates e nas redes sociais, onde, diria, praticamente todos os jornalistas mostravam uma veemente posição anti-Trump, como se esta fosse uma medalha de honra e prestígio, colocando-o numa luz inteiramente negativa, e favorecendo (endeusando) uma narrativa pró-Kamala Harris, posicionando-a como símbolo de mudança e progresso.
As escolhas editoriais serão sempre inevitáveis em qualquer redacção; o problema não reside em reconhecer que cada jornal, e cada jornalista, tem os seus valores – mas sim na total falta de capacidade em discernir que um jornalista é mais do que a sua opinião; é sobretudo a sua função. Ele tem de saber distinguir entre a sua opinião – que pode dar – e a informação factual – que deve dar. Se assim não funcionar, como não funcionou no caso das recentes eleições nos Estados Unidos, o resultado será sempre uma visão distorcida da realidade.
Hoje, depois dos resultados das eleições, não está em causa os perigos inerentes à recuperação do poder por parte de Trump nos Estados Unidos – um país que, em todo o caso, sendo uma federação sólida, possui ‘defesas’ ao despotismo que a União Europeia não tem perante os burocratas não-eleitos –, mas sim as tristes reportagens, as desoladoras análises e os desastrados estados de alma pessoais transmitidos por tantos jornalistas que, por estarem presos a análise subjectivas, falharam rotundamente. A realidade tratou de destratar as certezas absolutas dos jornalistas; e isso sucedeu porque eles quiserem moldar as suas convicções a uma realidade virtual que desejavam. E isso mostra-se dramático para a credibilidade da imprensa.
Os últimos anos têm mostrado e demonstrado os erros da deriva da imprensa, que deixou de ser o watchdog (o vigilante sobre os excessos do poder) para se comportar como uma máquina ideológica amestrada (petdog), transformando-se numa força manipuladora que infantiliza o público, privando-o até de uma visão informada e multifacetada dos acontecimentos.
Ao optarem por esta via, os jornalistas desrespeitam o princípio da imparcialidade – essencial para uma informação credível –, abrindo as portas para uma profunda desconfiança por parte do público.
Este cenário mostra-se ainda mais grave quando se considera a formação de grande parte dos jornalistas e comentadores que dominam a imprensa mainstream e, especialmente, os canais de televisão. A proliferação de comentadores em espaços informativos sem preparação sólida ou conhecimento profundo dos assuntos abordados, que se repetem e são caixas de ressonância, constitui um fenómeno que agrava a componente enviesada dos jornalistas. Hoje, os comentadores são escolhidos não pela sua competência, mas pela sua capacidade de cativar a audiência quer com o seu estilo, quer com o seu visual, quer como um certo charme retórico.
Esta seleção, que se baseia mais na forma do que no conteúdo, contribui também para uma erosão, para um crescente desgaste da qualidade da análise e da informação oferecida ao público. Em vez de especialistas ou vozes críticas, informadas e diversificadas, temos frequentemente comentadores que falam com a mesma confiança sobre política, economia ou desporto, como se todos os temas se reduzissem a uma opinião simplista e pessoal.
Quando jornalistas, como Luís Ribeiro (Visão), perante eleições democráticas de um país com uma democracia sólida, observam tudo com um olhar maniqueísta, e o transmitem como jornalistas, a credibilidade da imprensa, e a sua função informativa e de watchdog, segue o seu curso a caminho do desastre.
Além disso, ao se preferirem comentadores ideologicamente alinhados – e não apenas política ou ideologicamente falando –, que reforçam as mesmas narrativas, os meios de comunicação estão a cooptar vozes que, em vez de alargarem o debate, o limitam, alimentando uma espécie de câmara de eco onde apenas se ouvem as opiniões que confortam uma certa visão do mundo.
Este círculo fechado de opiniões está a criar uma distorção da realidade que, inevitavelmente, afecta a percepção pública – e isto é manipulação, não informação. Quando o leitor ou espectador é confrontado somente com uma visão parcial e enviesada dos acontecimentos, perde-se a capacidade de analisar de forma independente e ponderada.
Ao fim de algum tempo – como sucedeu com a pandemia ou agora com as eleições nos Estados Unidos –, o público começa a duvidar da veracidade da informação que consome, percebendo a falta de neutralidade e objectividade. Vira-se para as fontes alternativas. Se se critica as redes sociais – onde, aliás, pululam jornalistas e comentadores que criticam essas mesmas redes sociais, mesmo se estas os promovem –, por terem passado a ser uma fonte (pouco credível) de informação, tal se deve á contínua perda de credibilidade da imprensa tradicional.
Para piorar, no decurso da campanha eleitoral nos Estados Unidos, até a imprensa portuguesa esboçou, talvez se preparando para uma mimetização de consumo interno, a postura de endossamento público de candidatos. Sendo algo comum na imprensa norte-americana, seria uma novidade em Portugal – e um grave erro estratégico e ético. Ao assumirem posições partidárias e, em alguns casos, ao endossarem explicitamente candidatos, os meios de comunicação colocam-se numa posição insustentável: como podem, depois, assumir-se como fiscalizadores de um Governo ou de uma política que anteriormente apoiaram?
Em suma, a imprensa sempre que quiser ser agente político – como quis ser um agente de saúde pública na pandemia – perde, em toda a linha, a sua independência crítica, tornando-se prisioneira de alianças ideológicas que comprometem a sua capacidade de escrutínio. A eventual transição de uma imprensa informativa para uma imprensa orientadora de voto é de uma extrema gravidade para a sustentação democrática, pois compromete a relação de confiança entre os jornalistas e o público.
Se o jornalismo no século XXI insistir em ser uma espécie de ‘educador’ ou ‘orientador moral’ da sociedade – como o Estado Novo fez com a criação do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) e depois com o Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI) – coloca-se numa posição que desrespeita a inteligência e a autonomia dos cidadãos, tratando-os como incapazes de formar as suas próprias opiniões.
Ora, dos cidadãos, os jornalistas só têm de saber que lhes exigem um trabalho de rigor e de objectividade, que lhes permitam estar informados e capazes de formar opiniões fundamentadas e consequentes acções daí derivadas. Por isso, nunca será de mais avisar que quando o jornalismo falha nesse papel, e se torna um actor ideológico, corre o risco de perder a sua essência.
A imprensa deve ser um espaço de liberdade e de questionamento, onde todas as vozes têm lugar, e não uma arena de proclamações e julgamentos morais. A missão de informar implica responsabilidade, somente possível com distanciamento crítico, imparcialidade e o compromisso com a verdade. Substituir esses valores por convicções pessoais e por uma postura militante é desvirtuar a própria natureza da profissão. Muitos jornalistas já nem percebem isso, porque nunca ‘encarnaram’ essa função.
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Há um novo ‘desporto nacional’ sustentado nas redes sociais, por vezes tão abominadas pelas cliques, mas por elas usadas para auto-promoção: a filantropia dos ‘influencers’, supostamente sérios – isto é, comentadores da imprensa –, usando o dinheiro dos outros para auto-promoção. A mais recente campanha é protagonizada por Helena Ferro de Gouveia, uma ex-jornalista, ex-administradora da Lusa por via de uma empresa (Global Notícias, que era uma das principais devedoras dessa mesma empresa pública), comentadora televisiva e assessora da presidente da autarquia de Almada.
Lançou ela, por estes dias, uma campanha de angariação de fundos para apoio ao motorista da Carris, de nome Tiago, vítima dos tumultos após a morte de Odair Moniz. E vai de vento em popa, tendo mesmo já ultrapassado o objectivo inicial de arrecadação fixado nos 33 mil euros, contando, a meio da tarde, mais de 1.600 donativos.
Nada tenho, muito pelo contrário – até porque o PÁGINA UM nasceu e mantém-se através de financiamentos voluntários –, qualquer aversão a este tipo de campanhas, mas causam-me, por um lado, estupefacção, e por outro, aversão, quando se direccionam para o apoio a vítimas.
A estupefacção advém do facto de, sendo eu defensor do Estado Social, não possa conceber para os infelizes e lamentáveis casos como os do motorista da Carris que o Estado possa faltar ou possa sequer ser ineficiente. No seu sofrimento, que jamais poderá ser compensado, acredito eu (e tenho quase a certeza, porquanto o contrário seria uma desilusão imensa) que a sustentabilidade financeira deste motorista da Carris (e a da sua família) só pode já estar mais do que assegurada pela função social e solidária do Estado, sem necessidade de peditórios públicos nem de ‘esmolas’ protagonizados por influencers ou outros entes.
Acredito – e isso é extensível a outros trabalhadores – que exista um seguro com uma indemnização suficientemente avultada para compensar de forma decente e justa o motorista da Carris por aquilo que lhe sucedeu, independentemente do apuramento de responsabilidade civis e criminais sobre os autores. E mesmo que o seguro privado não seja suficiente, deve o Estado, e genericamente as entidades públicas, garantir-lhe a compensação devida. Concebo o Estado sobretudo para esta função – e saber que ela existe e é exercida ajuda-me a compreender a justeza dos impostos e da máquina burocrática do Estado.
Por esse motivo, uma angariação de fundos desta natureza, para apoiar vítimas, protagonizada por pessoas como Helena Ferro de Gouveia (e o mesmo se aplicaria se fosse a Madre Teresa de Calcutá) causa-me estupefacção: a sua própria existência significa uma fortíssima percepção de que, para os cidadãos e contribuintes, o Estado Social não dá respostas dignas, eficazes e rápidas, e que tem de ser a iniciativa ‘privada’ a fazer aquilo que o Estado e Governo são incapazes de fazer. Não podemos sentir isso do Estado nem é admissível que os representantes do Estado – ou seja, um Governo – o permitam.
Já a minha aversão a este tipo de campanhas advém mais, neste caso, das pessoas que a protagonizam e também, em casos concretos, às pessoas que fazem donativos. Por exemplo, ver Helena Ferro de Gouveia como ‘protagonista’ isolada desta campanha causa-me ‘urticária’, porque a sua visão da vida humana – esparramada nos seus comentários televisivos e nas redes sociais nos últimos anos – não ‘casa’ com uma angariação de fundos de cariz humanitário. A intolerância e o enviesamento das suas opiniões são o azeite que não se consegue misturar na água. Por outro lado, fico abismado por ver, entre os doadores, e de entre aqueles que não quiseram manter-se no anonimato, um senhor chamado Marco Belo Galinha, nada mais nada menos do que o líder da Global Notícias, a empresa de media que no ano passado devia 10 milhões de euros ao Estado. Deu 200 euros.
Se calhar, digo eu, se os senhores Marcos Belos Galinhas desta vida quiserem mesmo ajudar o Estado a ser Estado Social, talvez o passo fundamental seja pagar os impostos que devem. Depois disso, podem ficar de consciência tranquila e com os 200 hipócritas euros no bolso.
P.S. O Chega está, cada vez mais, numa estratégia de abutre. Cada morte envolvendo um acto de violência, que possa envolver directa ou indirectamente questões étnicas, lhe serve para galgar um discurso de radicalização, que já ultrapassa os limites da contenda política. Mas também aqui, tal como sucede com as campanhas de angariação em relação ao Estado, não deve ser uma petição de milhares de pessoas a fazer com que o Ministério Público intervenha; deve ser a Procuradoria-Geral da República, com eficácia e rapidez, a determinar por motu proprio se é ou não susceptível de penalidade criminal aquele tipo de (lamentável) linguagem.
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