Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Governo Montenegro: o carrasco do planeamento, o vendilhão da especulação

    Governo Montenegro: o carrasco do planeamento, o vendilhão da especulação


    Como se pode constar numa das notícias da edição desta semana do PÁGINA UM, portugal parece viver, com trágica naturalidade, imbuído num estranho torpor, uma espiral de decisões políticas que corroem décadas de princípios de ordenamento do território, num processo que não só despreza os fundamentos ambientais como abre portas a um verdadeiro carnaval de especulação e corrupção. A recente flexibilização da lei dos solos, que permite urbanizar terrenos rústicos para habitação “acessível”, é um dos mais perigosos capítulos desta história. Onde está a esquerda que apregoa a sustentabilidade? E onde está a imprensa para denunciar este atentado ao planeamento?

    A medida, apresentada como resposta à crise habitacional, é na verdade uma machadada sem precedentes na coerência do ordenamento do território. Em vez de resolver problemas estruturais de habitação, lança uma rede de oportunidades para negociatas municipais, especulação de terrenos e cedências à ganância imobiliária. Quem quiser agora urbanizar, não vai aceder sequer a terrenos urbanizáveis; procura comprar terrenos rústicos, mais baratos, e depois tentará obter autorizações camarárias. Aquilo que antes eram negociatas criminosas antes das aprovações dos planos directores municipais (PDM) será agora ‘legalizado’ em três tempos.

    Mais grave, tudo isto sob o beneplácito de partidos políticos que, com a mão no ‘coração ambiental’, têm apregoado uma fé tardia sobre os perigos das alterações climáticas, mas calam perante questões essenciais, passivamente assistindo à destruição dos pilares do planeamento sustentável.

    A urbanização de terrenos rústicos não é apenas uma ameaça à biodiversidade ou à proteção de solos agrícolas e florestais – que já são recursos escassos e essenciais num país vulnerável à desertificação. É um ataque frontal à lógica do planeamento urbano. Sem critérios claros, esta medida abre espaço para uma expansão urbana descontrolada, criando periferias desordenadas, dependentes de transporte automóvel, com infraestruturas precárias e uma qualidade de vida degradada.

    Além disso, como serão definidos os terrenos rústicos a urbanizar? Que garantias existem de que as áreas críticas para agricultura ou ecossistemas valiosos serão preservados? A resposta parece óbvia: nenhuma. Este diploma cria uma abertura tão ampla que entrega aos autarcas – frequentemente permeáveis à pressão económica e política – o poder de decidir o destino de terrenos cujo valor pode disparar com uma simples canetada.

    Os partidos que se dizem preocupados com o ambiente – especialmente os da dita esquerda – deveriam estar na linha da frente a criticar esta medida. Mas não. Permanecem num silêncio cúmplice, reféns de narrativas fáceis que confundem flexibilização com progresso. Mostra-se mais conveniente alinhar com soluções populistas que prometem resolver a crise habitacional do que enfrentar a complexidade do problema e sugerir alternativas sustentáveis.

    A imprensa mainstream, por sua vez, mostra uma passividade desoladora. Aliás, onde estão as notícias ou opiniões sobre os riscos de corrupção e especulação associados a esta medida? Onde estão os alertas para os impactes ambientais e sociais de urbanizar à pressa zonas não infra-estruturadas e protegidas da ânsia do betão fácil? A narrativa dominante centra-se na “necessidade de habitação”, sem escrutinar os efeitos desastrosos que esta decisão pode ter no longo prazo.

    Há formas eficazes e sustentáveis de responder à crise habitacional sem abrir mão de terrenos rústicos e sem comprometer décadas de planeamento. Algumas das alternativas são óbvias, mas ignoradas em nome de soluções fáceis. Vejamos, rapidamente, algumas, que estão nos compêndios:

        1.    Requalificação urbana: Portugal está repleto de edifícios abandonados ou subaproveitados em áreas urbanas. Por que não canalizar esforços para a sua recuperação e adaptação para habitação acessível?

        2.    Revitalização de zonas urbanas degradadas: Melhorar a qualidade de vida em áreas urbanas subaproveitadas poderia evitar a pressão para expandir para terrenos rurais.

      3.    Densificação inteligente: Embora esta solução tenha de avançar com uma política de mobilidade forte e coerente em zonas urbanas, a construção em altura pode ser uma solução interessante em zonas de urbanização mais recentes. Cidades como Amsterdão ou Copenhaga são exemplos de como a densificação, acompanhada de espaços verdes e uma boa e funcional rede de transportes públicos, pode oferecer soluções habitacionais sem sacrificar terrenos agrícolas ou florestais.

        4.    Mapas de aptidão do solo: É urgente identificar e proteger áreas críticas para conservação, agricultura e biodiversidade, evitando que a “flexibilização” se transforme numa licença para destruir. A Reserva Ecológica Nacional e a Reserva Agrícola Nacional (que está anacrónica por se basear sobretudo na aptidão para cereais) são instrumentos jurídicos que não podem estar sempre a ser sacrificados por simples despacho ministerial ao sabor das conveniências.

    Por tudo isto, a flexibilização da Lei dos Solos é, na verdade, um presente envenenado de efeitos futuris inqualificáveis, que somente poderia sair da cabeça de um primeiro-ministro que também ‘flexibilizou’ em seu benefício uma construção nova ‘travestida’ de reabilitação para poupar 100 mil euros. Em vez de resolver a crise habitacional, esta medida do Governo Montenegro, a avançar, exacerba a especulação imobiliária, aumenta a corrupção e compromete recursos fundamentais para as gerações futuras. O silêncio da esquerda ambientalista e a passividade da imprensa, a mante-se, serão cúmplices neste desastre anunciado.

    Se queremos verdadeiramente um país sustentável e justo, não podemos permitir que decisões tão graves passem sem escrutínio. Este diploma não é progresso. É um convite à destruição.


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  • Guimarães 1.0 (seguido de Bolonha 0.0)

    Guimarães 1.0 (seguido de Bolonha 0.0)


    A delícia do futebol é, na verdade, ser um reflexo da vida, e esta constatação vai muito além do cliché que se repete nas bancadas ou em mesas de café. É o teatro do improvável, a vida ou o futebol, uma peça onde o destino brinca com o esperado para introduzir o inesperado, transformando as certezas irrefutáveis em poeira no primeiro sopro de surpresa.

    Se a vida é uma luta constante entre a ordem e o caos em cima de uma bola chamada Terra, o futebol é a sua recriação mais fiel mas curta, em 90 minutos, de drama humano condensado em passes, golos, falhanços e, claro, nesta imprevisibilidade esperada que nos faz voltar, semana após semana, para ver como o capítulo seguinte será escrito.

    (e cheguei atrasado ao estádio, o que não é, certamente inesperado; salva-se que, no meio disto, esgotaram-se as doses de farnel, donde resultou que me desenrascaram apenas um pacotinho de batatas fritas, uma água e, vá lá, uma bifana verdadeira)

    Continuemos. Vejamos o exemplo do Glorioso e do seu arqui-adversário da Segunda Circular. Ainda há pouco mais de um mês, a Liga portuguesa arriscava ser um imerso marasmo. O Sporting de Amorim limpava tudo com uma surpreendente facilidade, cabazadas a eito, e o Benfica em estado de letargia tão desinspirada que já nem a mais fervorosa das águias acreditava numa reviravolta.

    Sob a direção de Roger Schmidt, nem um pingo de pressão, muito menos de criatividade, parecia ter perdido o fôlego, arrastando-se por uma sequência de exibições que fazia os adeptos suspirarem pela próxima época como a única salvação possível. Mas, como no futebol e na vida, as coisas nunca são tão simples nem tão lineares. E eis que assim se Schmidt, e o Sporting viu o seu treinador de sucesso rumar ao Manchester United – e num picar de olhos, a realidade altera-se. O Benfica feito carta fora do baralho, já está em posição de líder virtual, ‘bastando-lhe’ sair vitorioso deste Vitória e do jogo em atraso contra o Nacional, se os nevoeiros se escafederem em nova visita, que o ex-benfiquista João Pereira tratou de escavacar os lagartos depois da debandada de Ruben Amorim para a Velha Albion.

    (e gooooooooooloooooooooooo!!! Benfica… Aktürkoğlu, ao minuto 29, a desbloquear o nulo; isto estav a difícil, com as ofensivas muito afuniladas; venham mais agora, que já temos luz verde para a vitória)

    De facto, há algo profundamente filosófico neste jogo de incertezas. Heraclito dizia que “tudo flui”, que nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio. No futebol, é certo que nunca se joga duas vezes o mesmo jogo, mesmo quando o adversário é o mesmo e as equipas tenham as mesmas caras. O golo inesperado, o erro do árbitro (ou do VAR), o ressalto fortuito – tudo contribui para esta dança do imprevisível que transmuta o futebol num espelho tão claro da existência humana. E é nesse fluxo constante, nessa impossibilidade de prever o que vem a seguir, que encontramos o fascínio deste desporto.

    Mas não é só a filosofia que encontra eco no futebol. Também a História, com as suas vitórias e derrotas inesperadas, parece partilhar da mesma lógica. O futebol, nesta imprevisibilidade que tanto o define, reflecte o melhor e o pior da vida. A narrativa do Benfica encontra – exagero, claro! – paralelos históricos que mostram como os momentos de maior adversidade podem ser os precursores de vitórias inesperadas.

    (intervalo, e espero que o descanso dê mais alento ao Benfica, que me parece ago inquieto com este atrevido Guimarães)

    Enquanto o descanso dos guerreiros decorre, um pouco de História: lembremo-nos do desembarque de Dunquerque, durante a Segunda Guerra Mundial. Em Maio de 1940, as tropas britânicas e aliadas estavam cercadas pelas forças alemãs na costa francesa, e a situação era desesperante, e a derrota inevitável na apoarência. Mas, num acto de coragem e engenho, a Operação Dínamo mobilizou civis e militares para uma das mais extraordinárias evacuações da História. Mais de 300 mil soldados foram salvos, um feito que, embora não fosse uma vitória no sentido convencional, representou uma viragem moral e estratégica que mudou o curso da guerra. Foi um exemplo claro de como a resiliência, a esperança e a acção coletiva preparam aquilo que seria uma derrota iminente num triunfo inesperado.

    (e começa a segunda parte)

    Continuemos… e isto para, evitando mais exemplos bélicos, não introduzir aqui em detalhe a Batalha de Inglaterra, que se seguiu a Dunquerque. A Royal Air Force, em inferioridade numérica face à Luftwaffe, conseguiu defender os céus britânicos dos contra-ataques devastadores, demonstrando que a determinação e a coragem podem superar probabilidades aparentemente intransponíveis. O futebol, tal como a História, está, pois, repleto destes momentos em que o improvável se torna possível, em que as narrativas são subitamente invertidas, mudando o desespero em esperança e a fraqueza em força.

    Por isso, quando o Sporting decidiu apostar num treinador novato como João Pereira, muitos riram-se da ousadia ou da ingenuidade. E, no entanto, essa decisão, aparentemente inocente, foi o catalisador para que o Benfica encontrasse espaço para se reerguer. O futebol, como a vida, tem destas ironias deliciosas. Pequenos gestos, pequenos desvios, podem gerar mudanças monumentais. É a teoria do caos em acção: o bater de asas de uma borboleta em Manchester pode mesmo gerar um cataclismo em Lisboa.

    (ui… o Florentino a inventar, bola a ressaltar para o Guimarães, e nem sei como não foi golo nem sei, mesmo com repetição na televisão, se o corte do Otamendi, in extremis, pode ter sido feita sem as mãos; o VAR é soberano!)

    Mas o futebol nem é só isto que eu estava aqui a dizer. É também uma celebração do presente, uma pausa na lógica e na racionalidade do dia-a-dia para vivermos o agora em toda a sua intensidade. Quando estou no estádio, entre cânticos e gritos, embora eu seja bastante comedido na Varanda da Luz, ou os leitores e leitoras em frente à televisão a sofrer pelo golo que tarda em chegar, não há ontem nem amanhã. Há apenas aquele instante, aquele momento de esperança, de angústia ou de êxtase puro. É por isso que o futebol, mais do que um desporto, é uma experiência existencial. É, como diria Camus – não sei bem se disse, ouvi dizer –, o lugar onde “aprendemos que uma bola nunca vem para nós como esperamos”.

    E o Benfica, nesta temporada, mostra-nos como o futebol e a vida se entrelaçam. Não há finais garantidos, não há glória sem risco, não há narrativa que não possa ser reescrita. É a incerteza que dá sabor às vitórias e torna as derrotas suportáveis. Ser líder virtual não é ser campeão, e os próximos meses serão uma montanha-russa emocional onde tudo pode acontecer. Mas, para já, o Benfica é a prova viva de que, no futebol como na vida, nunca se deve subestimar o poder do improvável.

    E é isso que faz do futebol uma delícia. Porque, no final, o que nos prende ao jogo não é a previsibilidade, mas a promessa do inesperado. O golo que surge contra todas as probabilidades, o passe mágico que desarma a defesa, o falhanço que nos faz rir e chorar ao mesmo tempo. É no futebol que encontramos a essência da vida – essa mistura de caos e beleza, onde cada segundo é uma oportunidade de redenção. E, no fundo, é isso que nos mantém vivos. E a sonhar.

    (lá em baixo, o jogo anda vivo, mas eu gostava que estivesse morno, porque o Guimarães me parece mais próximo do empate do que o Benfica de marcar mais um)

    Não desejo cantar já vitória, mas a trajetória do Benfica nesta temporada ganhará, se vencermos, uma dimensão quase épica. Há poucos meses, os adeptos pareciam estar num estado de luto antecipado. Num piscar de olhos, a lógica foi subvertida, e o caos organizou-se em algo que parece agora uma caminhada rumo à glória. A liderança virtual não é ainda o título, mas é uma lembrança poderosa de que no futebol, tal como na vida, a única constante é a mudança.

    Mas continuemos a filosofar, enquanto ali o jogo caminha para o final, com alguns estrebuches do Vitória que me estão a pôr nervoso. O futebol é, por outro lado, também uma celebração do presente, algo que o distingue de quase todas as outras áreas da vida. Quando um golo é marcado no último minuto, nada mais importa. Não há passado nem futuro, apenas aquele momento puro de emoção. É por isso que este desporto, além de ser um reflexo da vida, é também uma lição sobre como viver. Na Varanda da Luz, ou em frente à televisão, os adeptos não pensam no amanhã; vivem o agora com uma intensidade que transcende o racional.

    (eu já só quero que isto acabe, porque não há crónica do que aquela que nasce com o rei na barriga, ou seja, com a vitória antecipada e, depois, redunda num desastre, e eu quero mesmo ir a Alvalade, com o Carlos, no dia 29, com o Benfica à frente do campeonato)

    Esta será a maior delícia do futebol: a sua capacidade de nos lembrar que a vida é feita de momentos. Momentos que, como o desembarque de Dunquerque ou a Batalha de Inglaterra, nos mostram que nem tudo está perdido, mesmo quando tudo parece estar contra nós. O Benfica, nesta temporada, é mais do que uma equipa de futebol; é um símbolo da resiliência e da força do improvável. Porque, no fundo, no futebol como na vida, nunca se deve subestimar o poder da surpresa – é nela que reside a verdadeira magia.

    E o jogo acabou e eu estou aliviado… Acho que quarta-feira só aqui venho, para assistir ao jogo contra o Bolonha, apenas para descontrair. Até porque ainda estou a lembrar-me daquela desgraça que foi contra o Feyenoord.


    E sobre o jogo contra o Bolonha, não há muito a dizer. Foi uma nulidade. Um nulo, de que pouco ou nada se deve dizer.


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  • Teolinda Gersão

    Teolinda Gersão

    Na vigésima sessão da BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com a escritora Teolinda Gersão.



    Reconhecida e consagrada como uma das grandes vozes da literatura contemporânea portuguesa, Teolinda Gersão tem construído uma obra marcada pela sensibilidade e pela capacidade de explorar os meandros mais profundos da experiência humana. A Literatura, em si, é mais do que um veículo de expressão pessoal; é uma ferramenta para dar forma às múltiplas dimensões da vida, onde memória, história e identidade convergem.

    Embora oficialmente a sua estreia seja apontada ao ano de 1981 com “O Silêncio”, romance logo amplamente elogiado pela crítica, Teolinda Gersão teve uma juvenil incursão, aos 14 anos, com um livro de contos, ‘Liliana’, em 1954, cujo exemplar está patente na Biblioteca do PÁGINA UM, e que, embora não reconhecida na sua bibliografia, surge como um ponto de partida para esta longa, mas admirável conversa com Pedro Almeida Vieira.

    Teolinda Gersão fotografada no PÁGINA UM.

    Além de ser abordada uma carreira literária ímpar – que cruza fronteiras culturais e psicológicas, onde se destacam obras como ‘A Casa da Cabeça de Cavalo’, ‘Os Guarda-Chuvas Cintilantes’, A Cidade de Ulisses’ e o mais recente ‘Autobiografia não escrita de Martha Freud –, Teolinda Gersão fala do seu percurso de vida e da forma com a sua trajetória criativa se foi cruzando com o percurso académico, até lhe ter ganhado primazia.

    Nesta conversa, Teolinda Gersão revisita também as influências que moldaram a sua visão literária e pessoal, desde os anos que viveu em Berlim até à sua incursão pela literatura africana, e a visão que foi moldando sobre Portugal e os portugueses. E mostra sobretudo ser uma mulher de paixões, que se desvendam na forma como fala de determinados temas ou assuntos. Entre os romances patentes na Biblioteca do PÁGINA UM, Teolinda Gersão decidiu escolher ‘Adoecer’, de Hélia Correia, publicado em 2010, ‘Fanny Owen’, de Agustina Bessa-Luís, publicado em 1979, e a chamada ‘trilogia da mão’, de Mário Cláudio constituída por ‘Amadeo’. ‘Guilhermina’ e ‘Rosa’, publicados originalmente entre 1984 e 1986.

    Pormenor da biblioteca ‘caseira’ de Teolinda Gersão.

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  • Deana Barroqueiro

    Deana Barroqueiro

    Na vigésima primeira sessão da BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com a escritora Deana Barroqueiro.



    Autora amplamente reconhecida pela sua habilidade em transformar episódios históricos em narrativas vibrantes, Deana Barroqueiro tem vindo a afirmar-se como uma das grandes vozes da literatura portuguesa no romance do género histórico. Para a escritora, a História não é apenas um registo do passado, mas uma fonte inesgotável de inspiração literária e um veículo poderoso para compreender as complexidades do presente.

    Nascida nos Estados Unidos, mas assumindo-se como uma orgulhosa portuguesa a 100%, Deana Barroqueiro licenciou-se em Filologia Românica e foi durante várias décadas professora do ensino secundário, tendo feito a sua estreia ‘formal’ com um admirável conjunto de romances de aventuras (para todos os públicos) com ênfase, primeiro, nos Descobrimentos, mas centrando-se depois na figura de Pêro da Covilhã.

    Mas após essas obras foi consolidando a sua carreira literária sobretudo através de romances de grande fôlego e detalhe, entre os quais se destacam ‘O espião de D. João II’, ‘D. Sebastião e o vidente’, ‘Fernão Mendes Pinto e a Peregrinação’, e ‘1640’.

    À conversa com Pedro Almeida Vieira na Biblioteca do PÁGINA UM, Deana Barroqueiro reflecte sobre o seu percurso de vida e a sua abordagem ao romance histórico, partilhando como a pesquisa rigorosa e a escrita criativa se cruzam para dar vida às histórias que apaixonam os leitores.

    Deana Barroqueiro fotografada no PÁGINA UM.

    E também fala de uma outra das suas paixões, o mundo da gastronomia, que a fez escrever ‘História dos paladares’, com o qual foi galardoada com o Prix International de la Littérature Gastronomique 2021, pela Académie Internationale de la Gastronomie.

    Entre os romances patentes na Biblioteca do PÁGINA UM, Deana Barroqueiro recomenda ‘O bobo’, de Alexandre Herculano – inicialmente publicado em 1843 na revista ‘O panorama’, e em volume em 1878 –, ‘O regicida’ e ‘A filha do regicida’, de Camilo Castelo Branco – publicados em 1874 e 1875, respectivamente –, ‘A casa do pó’, de Fernando Campos – publicado em 1987 – e ainda ‘Índias’, de João Morgado, publicado em 2016.

    Pormenor da biblioteca ‘caseira’ de Deana Barroqueiro.

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  • O Novo Velho Mundo

    O Novo Velho Mundo


    Artur Matos ajeitou a gola da camisa pela terceira vez, como se o gesto pudesse aliviar uma ansiedade que insistia em instalá-lo na condição de réu. Não fazia calor; o nervosismo era mais interno, fruto de uma convocatória inesperada que chegara na véspera. Passara toda a tarde procrastinando a escrita de um ensaio ambicioso sobre os mistérios da Ordem de Cristo, projecto trazido de Lisboa, que ninguém pedira, que se destinaria, por certo, à prateleira dos esquecidos. Entretivera-se no YouTube, assistindo a cenas de gatos em situações hilariamente patéticas, como se aí encontrasse um reflexo de si mesmo, preso num ciclo de adiamento e auto-ironia.

    Agora, caminhava pelas ruas de Benguela, com o aroma pesado da cidade a invadir-lhe os sentidos: um misto de maresia, poeira e carne grelhada. Por entre edifícios coloniais, que ainda guardavam ecos de um passado nunca completamente resolvido, abeirou-se de uma construção de linhas rígidas, um testemunho do pragmatismo da arquitetura lusa. Era apenas a fachada. Procurou pela placa que indicava a editora AfroHistórias. Quando a encontrou, hesitou por instantes, a cabeça cheia de imagens difusas de historiadores coloniais e o peso de vozes críticas que ele próprio evitava ouvir.

    Enquanto subia a escadas reparou que o interior se modernizara, mesmo mantendo-se europeu, e tocou a uma campainha que trouxe o condão de lhe abrir a porta. O espaço da editora era uma síntese do pragmatismo contemporâneo: linhas limpas, decorações minimalistas e uma recepção dominada por cartazes coloridos com títulos como ‘Revoltas Submersas’ e ‘Nzinga: A História Não Contada’. O logotipo na porta de vidro fosco – o contorno de África coroado por uma águia imperial – parecia sugerir que aquele era um espaço para narrativas que alçavam voo sobre verdades negligenciadas.

    Ao entrar, Artur encontrou uma secretária baixa, em madeira polida, onde uma jovem de cabelos entrançados falava ao telefone num tom de autoridade natural. Não precisou de palavras para ser ordenado a aguardar; o gesto seco da mão foi suficiente para deixá-lo com a sensação de estar numa sala de espera de um dentista ou de um julgamento iminente. Não passara dez minutos, e a secretária, mascando pastilha, e quase sem o olhar, apontou uma porta. Entrou.

    Era uma sala de reuniões austera, quase monástica, com quadros de figuras históricas africanas que pendiam das paredes em poses heróicas. Amílcar Cabral, num canto, parecia olhar directamente para Artur, não com o desdém de quem despreza, mas com a severidade de quem espera. Quando Elias Mukuba entrou na sala, trouxe consigo uma aura de precisão e autoridade. Fácil se mostrou a Artur que era o editor – homem alto, de pele retinta e olhos penetrantes, que pareciam ter o poder de desarmar qualquer tentativa de dissimulação.

    – Matos, agradeço por ter vindo. – A sua voz era quente, mas desprovida de desperdício.

    Artur levantou-se, respondendo ao cumprimento com um aperto de mão. – O prazer é meu – disse, com a casualidade mal ensaiada de quem sabia que aquele não era o seu terreno.

    Mukuba não perdeu tempo.

    – Preciso mesmo de alguém para escrever ‘A História Verdadeira de Benguela’. Queremos uma narrativa que transcenda a tradição paternalista e colonial, mas que, ao mesmo tempo, respeite os factos. O seu nome foi-me recomendado, mas, confesso, hesitei quando soube que era… branco.

    A observação caiu na sala como uma granada silenciosa. Artur piscou os olhos, tentando avaliar se aquilo era uma armadilha ou apenas um teste. Mukuba não desarmou, sustentando o olhar como quem aguardava uma reacção.

    – Imagino que seja uma hesitação natural – respondeu, com um leve sorriso que escondia o desconforto. – Afinal, quando o assunto é História, todos preferem a voz de quem não tem culpa dos desastres.

    Mukuba riu, mas um riso seco, como uma faca que encontra resistência.

    – Não se trata de culpa, Matos. Trata-se de legitimidade.

    Os olhos do editor mantinham-se fixos, inabaláveis, como quem esperava uma confissão. Artur hesitou, não por falta de argumentos, mas por saber que não havia resposta que fosse suficiente.

    – Contudo – continuou Mukuba –, acredito que a legitimidade pode ser conquistada, desde que o trabalho seja feito com honestidade e rigor. Quero que escreva este livro, embora sem metáforas que disfarcem massacres como progresso. Sem paternalismos. Consegue fazer isso sendo português?

    Houve um silêncio carregado. Artur sabia que a questão não era apenas sobre História. Era sobre um peso que ele, na verdade, nunca carregara. Ainda assim, a alternativa era retornar ao conforto desconfortável do seu escritório e ao vazio do manuscrito inacabado.

    – Aceito – disse, sabendo que acabara de entrar numa arena onde o fracasso seria recebido com um júbilo silencioso.

    A quantia prometida, acrescido de um bom adiantamento, choruda, era irrecusável para Artur, ainda mais paga em dólares e sem recibo. E com uma única condição: teria de enviar o manuscrito inicial de cada capítulo na véspera de cada reunião semanal.

    Embrenhou-se, sem mais perda de tempo – os Templários foram engavetados – na complexidade dos documentos que foi vasculhando nas raquíticas bibliotecas de Benguela, nas pesquisas cibernéticas, páginas digitalizadas enviadas de Lisboa. Começou a escrever sobre as primeiras viagens de Diogo Cão, quando a costa africana era ainda um mistério habitado por monstros mitológicos, até à consolidação de São Filipe de Benguela como um pqueno posto avançado daquilo que nomeou ser a violência lusitana. Mas mesmo com esses detalhes linguísticos, cada momento se revelava um labirinto de interpretações possíveis como se a voz de Elias Mukuba lhe sussurasse nos neurónios. Artur sentia-se, por vezes, como Diogo Cão ao desembarcar pela primeira vez em terras africanas: perdido, vulnerável e consciente de que a sua presença não era bem-vinda.

    A tarefa revelou-se assim uma odisseia de desafios históricos e psicológicos. Cada linha escrita se impunha como uma luta entre a tentação de perpetuar a narrativa heróica e a obrigação de expor a crueza dos factos. E viu logo na primeira reunião que, apesar dos seus escrúpulos na escrita, Mukuba não lhe iria facilitar a vida.

    – “Os portugueses avançaram com temeridade”? – disparou Mukuba, logo à entrada desse primordial encontro entre autor e editor, impondo um tom que carregava o peso da crítica. – Temeridade? E o genocídio que acompanhava esses avanços, Matos?

    – Não se pode simplificar assim – rebateu Artur, ainda nem sequer se sentara. – Esses homens enfrentaram mitos e monstros imaginários. Isso é temeridade, não acha?

    Mukuba ergueu uma sobrancelha, impiedoso.

    – Não, Matos. Isso é o poder a subjugar vidas humanas. São narrativas como essa que mascaram tragédias.

    Artur sentiu-se numa corda bamba, tentando equilibrar a factualidade e a sensibilidade. Não ia correr nada bem esta aventura, cogitou. Manteve-se calado, enquanto o editor lhe foi fazendo comentários aqui e ali, mas a discussão atingiu o clímax quando sugeriu adicionar uma citação fictícia para dar voz a um soba local.

    – Não posso fazer isso. Seria inventar História.

    – História inventada, Matos? E o que acha que significa “descobrir”? Os seus antepassados “descobriram” uma costa que já tinha sido habitada por séculos.

    Artur saiu da reunião desanimado, por um lado, animado, por outro. Mukuba acrescentara-lhe mais um pequeno adiantamento, que disse ser extra.

    – Envie-me o manuscrito alterado, e dou-lhe uma resposta antes de avançar para o seguinte.

    Mesmo deixando cicatrizes no ego, Artur refez o texto e o tom, desconstruindo o mito do Mar Tenebroso e mostrando como a História tinha sido, desde sempre, um jogo de manipulação. E deixou o manuscrito na editora. Dois dias mais tarde, recebeu um telefonema de Mukuba, aprovando a versão, mas acrescido de um comentário final que lhe pareceu mais uma adaga:

    – Ficou aceitável, Matos. Para um escriba europeu, não está mal.

    No momento em que desligou o telefone, Artur sentiu que acabara de sobreviver a uma batalha, mas não à guerra.

    [continua…]


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  • As asas de Mafalda Anjos: a hipocrisia e a incompetência, que minam o jornalismo

    As asas de Mafalda Anjos: a hipocrisia e a incompetência, que minam o jornalismo


    A crise da imprensa nacional não é de hoje. Também não nasceu da ascensão das redes sociais, ou da desinformação, que muitas vezes servem de bode expiatório para esconder as verdadeiras falhas que corroem as redacções e as suas lideranças. Não, o verdadeiro problema da nossa imprensa é interno e, por vezes, personificado por aqueles que ocupam as direcções editoriais.

    Directores que, sob o manto do jornalismo, colocam a promoção pessoal, o apadrinhamento político e as relações empresariais acima da integridade e da missão jornalística. O caso de Mafalda Anjos, directora da Visão e directora editorial (publisher) do grupo Trust in News durante vários anos – e que veio hoje ‘chorar lágrimas de crocodilo’ –  é exemplar, mas está longe de ser único.

    Mafalda Anjos fez, em Julho do ano passado, um exercício de indignação quando o PÁGINA UM abordou as dívidas colossais que a Trust in News foi acumulando desde 2018. Mafalda Anjos na sua prepotência escreveu que: “não me pronuncio sobre o conteúdo de artigos fantasiosos que versam as contas da TI nem permito que me citem em ON em qualquer artigo”.

    Printscreen do Instagram de Mafalda Anjos onde se ‘lamentou’ da situação da Trust in News.

    Mas hoje, com cerca de uma centena de jornalistas em risco de despedimento, a Trust in News está mergulhada numa insolvência que surpreende apenas os desatentos ou cúmplices. A recente publicação de Mafalda Anjos nas redes sociais pinta um retrato desconfortável da gestão editorial em Portugal. Escreveu ela que a Visão e as submarcas de nicho deram, até 2023, “uma margem de contribuição positiva para o grupo”. Isto é de uma incompetência; é de um ultraje, é de uma hipocrisia. Sem limites.

    Ao demarcar-se dos actos de gestão da Trust in News, tentando apagar o seu papel no descalabro, Mafalda Anjos confia na ignorância ou boa-fé dos incautos leitores.

    Não se pode esquecer – e Mafalda Anjos tem obrigação de saber, pelos seus lamentados largos anos em cargos de liderança em órgãos de comunicação social – que a Lei da Imprensa é clara, no seu artigo 20º: o director tem o direito de “ser ouvido pela entidade proprietária em tudo o que disser respeito à gestão dos recursos humanos na área jornalística, assim como à oneração ou alienação dos imóveis onde funcionem serviços da redacção que dirige” e ainda de “ser informado sobre a situação económica e financeira da entidade proprietária e sobre a sua estratégia em termos editoriais”.

    Se Mafalda Anjos não quis exercer esse direito ou até teve mas nada entende de demonstrações de resultados, deveria, em qualquer dos casos, ter batido com a porta logo no primeiro ano de liderança da Visão. Mas ela esteve como directora desta revista entre 2016 (antes ainda da chegada de Luís Delgado) e final de 2023. Foi publisher de todas as revistas do grupo de Luís Delgado entre Janeiro de 2018 e Dezembro de 2022. Só saiu de tudo quando o barco estava a afundar, mas tratou antes de conseguir para si um acordo de rescisão de 54 mil euros, tendo o karma lhe concedido, em troca, (mais) um calote do Luís Delgado.

    Statetement de Mafalda Anjos no Instagram sobre a manifestação de trabalhadores da Trust in News na Praça Luís de Camões, em Lisboa.

    Portanto, posto isto, se a situação da Trust in News chegou ao ponto de implosão, onde estavam a vigilância e a responsabilidade de quem liderava uma das suas principais publicações? É possível que a ex-diretora da Visão tenha ignorado, durante anos, os sinais evidentes de insolvência, confiando cegamente numa administração que foi acumulando paulatinamente 32 milhões de euros de passivo e com as dívidas ao Estado a subirem ao ritmo de 3 milhões ao ano? Ou será que a narrativa de “vítima de má gestão” serve apenas para proteger a sua imagem, ao custo da verdade?

    A verdade, por mais dura que seja, precisa ser dita: o problema maior do jornalismo nacional não está nas redes sociais, que funcionam como veículos de informação, desinformação e opinião. Está dentro das próprias redacções, onde direções editoriais, travestidas de jornalistas, abandonaram a missão de informar para se dedicarem à promoção de interesses privados, políticos ou empresariais.

    A sobrevivência e a credibilidade da imprensa não se esfumam apenas com as quedas nas vendas de papel; esfumam-se, sobretudo, com a erosão da confiança do público. E como se pode confiar em directores que ignoram, ou fingem ignorar, os indicadores financeiros das suas publicações? Que, no silêncio ou na conveniência, contribuem para o desmoronamento das instituições que dizem defender?

    O caso de Mafalda Anjos é paradigmático, mas não isolado. É impossível não lembrar Rosália Amorim, cujo desempenho à frente do Diário de Notícias num grupo que está a caminho da derrota (a Global Media, com a transmissão dos direitos do Jornal de Notícias para uma nova empresa jornalística, não vai durar nem um ano), resultou numa ainda maior perda de credibilidade do jornal. Hoje, veste-se de nova roupagem, trabalhando na Ernst&Young (EY), onde não hesita em promover eventos com a imprensa e com figuras que antes bajulava nas páginas do jornal, como sucedeu ainda esta semana com Gouveia e Melo.

    E-mail de Mafalda Anjos de Julho de 2023 no seguimento das primeira notícias do PÁGINA UM, há mais de um ano, sobre a desastrosa situação financeira da Trust in News, muito antes da sua oficial ‘implosão’.

    Esta reciclagem de protagonistas, entre a imprensa e os negócios, é o reflexo de um ecossistema podre, onde interesses cruzados e falta de escrutínio corroem a base de um jornalismo independente.

    Os jornalistas nas redacções – que hoje são as principais vítimas em ‘parceria’ com os leitores que cresceram confiando na imprensa e hoje se sentem desiludidos –, em vez de lamentarem a perda dos empregos, o seu e o dos seus camaradas de profissão, devem sim reflectir sobre o verdadeiro papel das direcções editoriais na crise da imprensa portuguesa.

    A democracia precisa de jornalismo destemido, rigoroso e credível, mas esse jornalismo só pode nascer de redacções lideradas por profissionais verdadeiramente comprometidos com a verdade e a ética. Enquanto as redacções se mantiverem reféns de directores mais interessados na autopromoção e em carreiras políticas ou empresariais, o futuro da imprensa continuará hipotecado.


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  • Relatos do dono do Felício

    Relatos do dono do Felício

    Título

    Aventuras de um alferes em Angola

    Autor

    PEDRO BELTRÃO

    Editora

    Oficina do Livro (Julho de 2024)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Os testemunhos sobre guerras configuram um estilo literário singular, situado na confluência entre a História e a literatura, e ainda por vezes o jornalismo. Este género caracteriza-se por apresentar narrativas pessoais, frequentemente na primeira pessoa, que procuram documentar eventos marcantes de conflitos armados, oferecendo perspectivas humanas e íntimas sobre acontecimentos de dimensão colectiva. Estes textos transcendem muitas vezes o mero relato de factos, explorando as emoções, os dilemas éticos e os traumas vividos pelas pessoas comuns, soldados, vítimas civis ou até líderes políticos.

    Historicamente, os testemunhos de guerras têm servido como fontes primárias de valor inestimável para historiadores e leitores interessados nos conflitos que moldaram o mundo. No século XX, por exemplo, obras como o ‘Diário de Anne Frank’, que documenta o terror vivido durante a perseguição aos judeus na Segunda Guerra Mundial, tornaram-se ícones universais deste género. Outro exemplo é ‘Se isto é um homem’, de Primo Levi, que descreve com uma linguagem crua e profundamente reflexiva a sua experiência como prisioneiro em Auschwitz. Estes testemunhos não apenas relatam os factos, mas também humanizam as estatísticas de guerra, trazendo para o primeiro plano as vidas que se perderam ou foram irrevogavelmente alteradas.

    A literatura testemunhal de guerra em Portugal também tem os seus expoentes. Durante a Primeira Guerra Mundial ficou o testemunho de Jaime Cortesão, com o seu ‘Memórias da Grande Guerra’, como médico voluntário do Corpo Expedicionário, ou ainda ‘Nas trincheiras da Flandres’ e ‘Calvários da Flandres’, de Augusto Casimiro. Na Guerra Colonial (1961-1974), o último conflito militar com participação portuguesa, abundam os relatos, mas nem sempre com grande divulgação. Talvez o mais marcante seja ‘D’este viver aqui neste papel descripto’, compilação de cartas que o médico e escritor António Lobo Antunes escreveu à família durante a sua estadia em Angola. Estas cartas oferecem uma visão mais pessoal e directa do impacto emocional da guerra, complementando os seus romances.

    Podendo inserir-se neste género, o livro ‘Aventuras de um alferes em Angola’, que retrata a experiência de Pedro Beltrão, gestor e escritor – autor, por exemplo, dos romances do género histórico ‘Tempo de esperança’ e ‘O mordomo do rei’ -, em Angola entre 1963 e 1967, acaba por ser mesmo mais um livro de ‘aventuras’ do que um livro sobre a guerra, porque, ao longo das suas 190 páginas, há pouco de conflito (uns tiros e umas desmontagens de minas), e quando relatado, se faz sem grande emoção ou detalhe.

    Já no caso das ‘aventuras’, estas vão-se sucedendo ao longo do livro, ao ponto de o macaquinho Felício, que Pedro Beltrão comprou a um soba e chegou a trazer para Portugal no fim da comissão, se tornar mesmo um quase-protagonista, ou o ponto mais interessante.

    De leitura fácil, e num relato escorreito e bem escrito, o livro de Pedro Beltrão pode também servir como documento sobre um conflito que, pelo menos em Angola, aparenta não ter sido, pelo menos na zona onde Pedro Beltrão esteve, tão traumatizante. Mas, convenhamos, que lhe falta profundidade e substância. Grande história, sim, mesmo se ficcionada, daria a vida do macaquinho Felício que, depois de uma rocambolesca fuga na Estrada da Luz, acabou doado a um sanatório da Parede, onde foi mascote dos doentes durante muito tempo, mas sem que alguém lhe tenha dado testemunho. Essa sim seria uma grande história, a atender à ‘personalidade do bicho’ apenas aflorada por Pedro Beltrão nas suas ‘aventuras’ como alferes. 

  • Uma caminhada pela alma catalã

    Uma caminhada pela alma catalã

    Título

    Viagem a pé

    Autor

    JOSEP PLA (tradução: Helena Pita)

    Editora

    Tinta da China (Agosto de 2024)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    A recente edição portuguesa de ‘Viagem a Pé’, pela Tinta da China, é uma oportunidade de ouro para revisitar um dos nomes maiores da literatura catalã, Josep Pla (1897-1981), escritor prolífico e cronista perspicaz, conhecido pela sua capacidade em capturar o quotidiano com uma prosa simples, mas profundamente poética. Por isso mesmo, e pela quantidade assinalável de obras neste género, é considerado um dos mestres europeus da literatura de viagem.

    Esta obra em concreto, que inicialmente se diluía no vasto universo de textos deste autor, foi publicada apenas em 1949, e mais do que um relato de itinerância, é um exercício de contemplação.

    ‘Viagem a Pé’ reporta ao passado do autor, abordando uma caminhada do jovem Pla, ainda estudante de Direito, pelas paisagens da Baixa Empordà, sua terra natal. A Catalunha rural dos anos 1910, com as suas quintas, aldeias e gentes simples, é o pano de fundo da sua narrativa, num período de tensões políticas em Espanha, mas também de relativa estagnação económica em regiões rurais. Contudo, na viagem de Pla, não há espaço para discursos épicos sobre nações ou progresso; há apenas a terra, o céu, o vento e conversa

    No contexto da literatura de viagem, ‘Viagem a Pé’ não segue os moldes do aventureirismo em busca de espectáculo ou surpresas. Não há destinos exóticos nem episódios grandiosos. É, antes, um registo íntimo e descontraído, onde o acto de caminhar é uma forma de introspecção e de ligação à terra. Aliás, Pla tenta recuperar uma tradição literária que remonta ao filósofo Jean-Jacques Rousseau ou ao escritor Robert Louis Stevenson, para quem a caminhada não seria apenas um meio de locomoção, mas um exercício filosófico.

    Nesta breve narrativa, Josep Pla oferece-nos assim uma janela para a paisagem catalã e, sobretudo, para os seus habitantes. O leitor caminha ao lado do narrador, sente o cheiro das pastagens, ouve o silêncio das estradas poeirentas e percebe a dureza (e beleza) de uma vida simples. As descrições são feitas num estilo curto mas preciso, através de uma prosa despretensiosa que, por vezes, se assemelha a um diário. A obra destaca-se sobretudo pela capacidade de transformar o vulgar em arte, e por oferecer uma experiência literária onde o ritmo da leitura se confunde com o compasso da caminhada.

  • Mortes de bebés em 2024 atingem o valor mais elevado dos últimos cinco anos

    Mortes de bebés em 2024 atingem o valor mais elevado dos últimos cinco anos

    Apesar de uma meteorologia favorável e de um programa massivo de imunização contra o vírus sincicial respiratório (VSR), o mês de Novembro confirmou uma tendência de crescimento dos óbitos de crianças com menos de um ano de idade em Portugal. O PÁGINA UM analisou os dados do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), contabilizando já 240 mortes de bebés entre Janeiro e Novembro deste ano, superando assim os números registados em todos os meses de 2020, 2021, 2022 e 2023. Os valores deste ano, que previsivelmente se aproximarão dos 260 óbitos, ainda não são alarmantes à escala mundial, mas depois de vários anos com taxa de mortalidade abaixo dos três óbitos por mil nascimentos, observa-se uma inversão, e Portugal deverá superar de novo aquela fasquia em 2024.


    Ainda decorre 2024, mas já há uma infeliz garantia: este será o pior ano do último quinquénio em termos de mortalidade infantil. De acordo com a análise do PÁGINA UM aos dados do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), entre Janeiro e Novembro deste ano já perderam a vida 240 bebés com menos de um ano, sendo expectável que seja ultrapassa com o corrente mês de Dezembro a fasquia das 250 mortes, algo que não sucedia desde 2019, quando então perderam a vida 264 recém-nascidos que não completaram os 365 dias.

    Apesar deste valor não ser anormalmente elevado à escalda mundial – pelo contrário, Portugal continuará a ser um dos países mundiais com mais baixa taxa de mortalidade infantil, pouco acima dos dois óbitos por mil nascimentos –, os números de 2024 quebram claramente uma tendência, que ‘puxava’ as mortes de bebés para baixo das 200. No ano de 2020, os óbitos de bebés tinham atingido os 214, então o valor histórico mais reduzido.

    baby crawling on bed

    No ano seguinte ainda baixou mais para um valor inédito (195) abaixo dos 200. Contudo, estes foram anos anormalmente baixos em termos de nascimentos, por via do menor número de gravidezes concluídos como consequência da incerteza criada pela gestão da pandemia. Em 2022, o valor aumentaria para os 233, reduzindo para 219 no ano passado.

    Apesar do número de óbitos mais elevado do que nos quatro anos anteriores, o ano de 2024 não apresenta nenhum mês claramente atípico, ou seja, com uma mortalidade acima dos 30 para os menores de um ano, apesar do se ter aproximado dessa fasquia em Março (27) e em Novembro (26). Recorde-se que a partir de 15 de Outubro começou um programa de imunização massiva contra o vírus sincicial respiratório (VSR). A mortalidade causada por este vírus sempre foi residual ou mesmo nula em Portugal. Aliás, o PÁGINA UM já perguntou várias vezes, sempre sem resposta, ao Ministério da Saúde o número de óbitos causados por VSR, mas sempre sem resposta. Contudo, se o valor não é de zero, estará próximo.

    Com a melhoria das condições de vida, de acompanhamento médicos e de terapêuticas, a mortalidade infantil tem-se mantido relativamente estável, embora o valor de 2024 possa marcar uma inversão. Na última década, os meses de Verão (Junho, Julho e Agosto) tendiam a apresentar valores ligeiramente mais baixos de mortalidade infantil na maioria dos anos, observando-se aumentos moderados, em alguns anos, no Outono, especialmente em Outubro e Novembro.

    Evolução da mortalidade por ano entre 2014 e 2024 (até Novembro). Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.
    Evolução da mortalidade infantil por mês entre Janeiro de 2014 e Novembro de 2024. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Apesar deste aumento da mortalidade infantil em 2024, este tem sido um indicador de saúde que, além da questão humanitária, revela uma extraordinária evolução civilizacional. Há um século, um em cada quatro bebés não chegava em Portugal ao final de um ano de vida e a esmagadora maioria morria mesmo com menos de dois meses de idade. Uma época não assim tão longínqua em que o natural era os pais enterrarem os filhos.

    Há pouco mais meio século, o Estado Novo deixou uma situação um pouco melhor, mas ainda na cauda da Europa, com cinco em cada 100 recém-nascidos a falecerem antes dos 12 meses. A partir daí, as evoluções tecnológicas, as artes da Medicina e o desenvolvimento económico têm alcançado sucessos dignos, neste caso, de Primeiro Mundo. Ainda mais quando a margem de melhoria é agora bastante estreita face aos valores já muitíssimo baixos.

    O ano de 2023, como o PÁGINA UM salientou em Maio passado, ainda trouxe motivos de festejo. De acordo com dados revelados pelo Instituto Nacional de Estatística, a mortalidade infantil no sexo feminino – que sempre foi mais baixa do que a registada em meninos – foi de apenas 2,07 por cada mil crianças nascidas, o valor mais baixo de sempre. Este dado representou então uma descida ligeira face aos 2,43 em cada mil registados em 2022.

    a baby laying on top of a bed next to an adult

    No caso das crianças do sexo masculino, a taxa de mortalidade infantil situou-se no ano de 2023 em 2,81, um ligeiro agravamento face aos 2,80 registados no ano anterior. O valor mais baixo de mortalidade infantil masculina observou-se em 2020 com 2,49 óbitos em cada mil. Apesar da situação favorável nas meninas, a taxa de mortalidade infantil global fixou-se em 2,45, ligeiramente acima do mínimo histórico de 2,43 observado em 2021.

    Sendo expectável uma ligeira redução no número de nascimentos em 2024 – deverá ficar pouco acima dos 84 mil, contratando com os 85.764 do ano passado –, a taxa de mortalidade infantil em redor dos três óbitos por mil nascimentos, o que a confirmar-se será o valor mais elevado desde 2018.


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  • Cristina Ferreira: de 112 mil revistas vendidas a menos de três mil em 10 anos

    Cristina Ferreira: de 112 mil revistas vendidas a menos de três mil em 10 anos

    Os tempos mudaram, e a revista da apresentadora da TVI, que em Janeiro de 2020 confiava vir a ter hipóteses de um dia se candidatar à Presidência da República, está em vias de fechar as portas. O PÁGINA UM analisou as contas da empresa de Cristina Ferreira que gere a sua revista, a Treze7, e não há outra solução se não fechar portas. Há pelo menos uma boa notícia: ao contrário de outros grupos de media, a empresa não tem dívidas ao Estado. Pelo menos até ao final de 2023.


    Na edição deste mês da revista ‘Cristina’, a taróloga Joana Dias anunciava um artigo sugestivamente intitulado “Como sobreviver ao mês de Novembro!” Por ironia, ou sinais dos tempos, será a própria revista fundada pela apresentadora Cristina Ferreira que não vai sobreviver ao final do ano. O anúncio ainda não é oficial, mas tem sido especulado o fim da revista de uma das apresentadoras mais mediáticas do país, que ainda há cerca de cinco anos colocava a hipótese de se candidatar à Presidência da República, mas que agora aparente ser uma estrela cadente em declínio.

    Seja como for, a análise da situação financeira feita pelo PÁGINA UM aos últimos anos à empresa Treze7, detida pela apresentadora da TVI, não deixa margem de manobra: 2024 deverá terminar em falência técnica, ou seja, com capitais próprios negativos. Se quisesse continuar, teria de haver uma forte injecção de capitais.

    Mesmo apesar da publicidade feita em plenos programas da TVI, a revista. Foto: DR

    Recorde-se que Cristina Ferreira é ainda sócia maioritária da empresa Amor Ponto, envolvida num litígio com a SIC, e que viu há uma semana o Tribunal de Sintra penhorar as suas contas. A decisão decorreu após uma iniciativa do Grupo Impresa após uma notícia do PÁGINA UM em Junho passado que revelou que a apresentadora da TVI andava a descapitalizar a empresa, tendo desviado 2,2 milhões de euros em dividendos porque não constituíra uma provisão para assegurar o pagamento da indemnização à SIC caso perdesse, como perdeu, o caso em tribunal.

    Ora, a situação financeira da empresa Treze7 é distinta, e deve-se exclusivamente à perda de élan da revista em consequência de um menor brilho da imagem da apresentadora. Criada em Março de 2015, a revista mensal Cristina tinha Oprah Winfrey como modelo, e de facto, à escala portuguesa, registou número de vendas muitíssimo interessantes. O primeiro número atingiu, de acordo com os dados da Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação (APCT), uns impressionantes 112.058 exemplares vendidos. Nos meses seguintes, os números decaíram, mas mesmo assim no quarto trimestre a revista atingiu vendas médias de mais de 53 mil exemplares. As vendas no ano seguinte foram variando, por trimestre, com números médios entre os 35 mil e os 55 mil exemplares. Neste período, Cristina Ferreira tinha uma produtora, a Masemba, que editava a sua revista, mas as relações negociais deterioraram-se e acabaram em tribunal.

    E foi em Janeiro de 2017 que Cristina Ferreira criaria a sua própria editora, concedendo uma quota simbólica de 1% à sua mãe, Maria Filomena Jorge. Apesar de ter deixado de auditar as vendas na APCT, os primeiros três anos da Treze7 não correm demasiado mal, com receitas totais sempre acima de um milhão de euros, mas com resultados líquidos, embora positivos, sempre a descer: em 2017 ainda foram de quase 184 mil euros, desceram para os cerca de 164 mil euros no ano seguintes, e quedaram-se nos 70.820 euros em 2019.

    Foto: DR

    No primeiro ano da pandemia, em 2020, as receitas quebraram 34% face ao ano anterior, mas mesmo assim as contas ainda ficaram no ‘verde’ com um lucro de um pouco mais de 35 mil euros. Porém, a partir daí somaram-se prejuízos consideráveis para a dimensão da empresa com as vendas da revista e a publicidade (e outras prestações de serviços) a despencarem. De acordo com as demonstrações de resultados analisados pelo PÁGINA UM ao último triénio da Treze7, mostra-se expectável que 2024 esgote o capital próprio positivo de quase 470 mil euros que Cristina Ferreira ainda detinha nesta sua empresa em 2020.

    Com efeito, em 2021, as receitas da Treze7 nem sequer chegaram ao meio milhão de euros, resultando assim no primeiro ano de prejuízos de quase 230 mil euros. Embora não existam indicações de números de exemplares da revista Cristina adquiridos por leitores, o montante das vendas rondou apenas 267 mil euros ao longo de todo o ano, o que significa, ao preço de capa, cerca de seis mil exemplares em média por edição mensal.

    Os números do ano seguinte não foram melhores; pelo contrário. O ano de 2022 contabilizou mais 273.676 euros de prejuízo, apesar de no Portal da Transparência dos Media este valor surgir, equivocadamente, positivo. Não se poderia esperar outra coisa com rendimentos totais de cerca de 465 mil euros, dos quais um pouco menos de 208 mil euros de vendas de revistas. Com o preço de venda ao público (PVP) de 3,70 euros, a revista Cristina terá vendido, em média, apenas cerca de 5.600 exemplares por mês.

    O ano de 2023 ainda viu os rendimentos totais subirem para os 665 mil euros, mas não trouxeram melhorias nos resultados líquidos. Pelo terceiro anos consecutivo, a Treze7 contabilizou prejuízos, sendo que no ano passado ficaram na casa dos 265 mil euros. Ou seja, em apenas um triénio, os prejuízos acumulados atingiram a cifra de quase 770 mi euros. Pior ainda, as vendas das revistas anunciavam números deploráveis, com receitas de apenas 129.339 euros, sendo que a parte restante dos rendimentos referiram-se a prestações de serviços. Deste modo, a revista Cristina terá vendido menos de 2.800 exemplares por mês ao longo do ano passado.

    Revista serviu como âncora de diversos projectos de marketing de Cristina Ferreira.

    Os números deste ano não estão apurados, nem Cristina Ferreira deu qualquer esclarecimento ao PÁGINA UM, mas não será de surpreendente se os 214.803 euros que ainda restavam de capital próprio no final de 2023 tenham sido ‘comidos’ completamente por mais prejuízos. Isto significa que a revista terá dado um prejuízo acumulado em quatro anos de cerca de um milhão de euros, apesar das contas, até 2023, estarem ainda sustentáveis. Ou seja, Cristina Ferreira não tinha dívidas bancárias nem devia valores relevantes ao Estado.

    Ontem, o Correio da Manhã adiantou que em Dezembro sairá, previsivelmente, a última revista Cristina, havendo ainda uma edição especial em Janeiro, com destaque para as capas, protagonistas e entrevistas. E acrescenta ainda a hipótese de se manter a versão digital. Apesar de Cristina Ferreira ter chegado, em Março deste ano, que trabalhavam diariamente 20 pessoas na produção da revista, na verdade os relatórios da Infomação Empresarial Simplificada (IES) apontam apenas sete trabalhadores com salários médios líquidos de um pouco mais de 2.000 euros.


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