Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Tribeca & Moedas: o problema não foi o jantar; foi tudo o que se gastou e escondeu depois da sobremesa

    Tribeca & Moedas: o problema não foi o jantar; foi tudo o que se gastou e escondeu depois da sobremesa


    Durante meses, o único rasto visível nos contratos públicos sobre os gastos do município de Lisboa com o festival Tribeca Lisboa — uma franquia luso-adocicada do evento nova-iorquino apadrinhado por Robert De Niro — era um modesto registo no Portal Base: a aquisição de um jantar por 6.230 euros, adjudicado à empresa As Patrícias, ao abrigo de um ajuste directo.

    Nada mais. Nenhum contrato com a Impresa, a entidade organizadora, nenhuma nota explicativa sobre os reais encargos públicos, nenhuma referência aos montantes transferidos. O silêncio era ensurdecedor. E, não fosse o esforço persistente e meticuloso de um jornalista da revista Sábado, este caso permaneceria submerso no pântano burocrático onde se enterram, diariamente, os vestígios do despesismo estatal.

    Agora soube-se, por via de uma investigação persistente — e é uma pena haver tão poucas — publicada na revista Sábado, que afinal o jantar foi apenas o amuse-bouche. O verdadeiro banquete foi servido à Impresa, grupo privado de comunicação social que detém, entre outros, a SIC e o Expresso.

    Só daqui foram 500 mil euros retirados directamente dos cofres da Câmara Municipal de Lisboa, por empenhos operados a alta velocidade após instruções vindas do gabinete do presidente Carlos Moedas. Acrescem ainda mais 250 mil euros do Turismo de Portugal, que decidiu também financiar o festival — tudo para que a Impresa pudesse pagar os “direitos” do evento norte-americano e assegurar a presença simbólica de De Niro, mesmo que o actor tenha passado despercebido à maioria dos lisboetas.

    Em rigor, o que está em causa não é apenas a saloiice institucional de importar um festival nova-iorquino, ainda por cima mal organizado, para se tirar umas fotografias ao lado de um actor famoso. Nem tampouco o habitual enlevo provinciano de políticos que confundem política cultural com festas mediáticas. O que se passou com o Tribeca Lisboa é mais grave: é um exemplo cristalino de como se instrumentalizam recursos públicos para fins privados, com intermediação política e total opacidade.

    Note-se o padrão: o festival não foi uma organização municipal, nem promovido por qualquer entidade pública. Foi uma operação integral da Impresa, cujo objectivo era — como sempre — reforçar a marca e a influência do grupo. Mas, ao invés de procurar investidores ou assumir o risco financeiro do evento, recorreu-se à “via Moedas”: um atalho de poder que, em apenas três semanas, desbloqueou meio milhão de euros da autarquia. Sem concurso, sem critérios públicos conhecidos, sem transparência.

    Pior: com silêncios reiterados e recusa de entrega de documentos a jornalistas que, desde Novembro de 2024, tentam obter explicações junto da Câmara e da EGEAC.

    Este caso só não é escândalo maior porque o país político já se habituou à promiscuidade entre comunicação social e poder. Entrevistas “fofinhas” — como a de Daniel Oliveira a Carlos Moedas no Alta Definição — tornaram-se moeda de troca num sistema onde os favores circulam, os elogios se compram, e os interesses se protegem. A fotografia ao lado de De Niro — paga com o dinheiro dos lisboetas — resume bem o espírito da coisa: um marketing político montado para alimentar egos, seduzir audiências e garantir reverência jornalística.

    a person walking down a street holding an umbrella
    Tribeca é um conhecido bairro de Nova Iorque e o nome de um festival de cinema norte-americano.

    Se isto fosse apenas vaidade, poder-se-ia sorrir e passar adiante. Mas não é. Trata-se de um modelo de governo assente em peculato de uso: recursos públicos canalizados para eventos que promovem, em primeiro lugar, os próprios decisores. Um sistema que, por falta de escrutínio institucional, se normaliza e perpetua, onde cada euro gasto parece menos um investimento cultural e mais uma operação de auto-publicidade. Não há aqui qualquer racionalidade económica ou cultural, apenas um cálculo político e mediático.

    Pior: estes gastos são deliberadamente escondidos dos cidadãos. São dispersos por diferentes fontes (autarquias, empresas municipais, organismos do Turismo), canalizados por ajustes directos, ocultos sob rubricas vagas e não publicitados em tempo útil. É preciso escavar muito — como agora se viu — para expor o que deveria estar à vista de todos. E isso é, talvez, o sinal mais preocupante do estado a que chegou o exercício do poder local e central: a transparência converteu-se em slogan, não em prática. Carlos Moedas até criou um Departamento de Transparência — mas, ironicamente, nunca respondeu às perguntas sobre os apoios ao Tribeca Lisboa.

    O caso do Tribeca Lisboa mostra como o país político continua a comportar-se como se vivêssemos sobre um poço de petróleo. Gasta-se com ligeireza, distribui-se dinheiro como se nada fosse, sempre com a convicção de que o contribuinte pagará — e, no fim, ainda agradecerá, hipnotizado por uma selfie ao lado de um actor de Hollywood.

    Mas Portugal não é um poço de petróleo. É um país endividado, com escolas por requalificar, hospitais a colapsar e transportes públicos obsoletos, que pouco aposta verdadeiramente na Cultura. Cada euro entregue à Impresa — um grupo privado de comunicação que deveria viver dos seus leitores e espectadores — é um euro que falta noutro lado. Setecentos e cinquenta mil euros daria quase para uma longa metragem em Portugal. E o que Moedas fez não foi apoiar a Cultura. Foi financiar, com o dinheiro dos lisboetas, a vaidade de um festival e a máquina mediática que o serve.

    Em suma, o problema não foi o jantar. Foi tudo o que se gastou e foi escondido depois da sobremesa.

  • Carta aberta ao jornalista Luís Ribeiro, um serventuário

    Carta aberta ao jornalista Luís Ribeiro, um serventuário


    Luís Ribeiro,

    agradeço a deferência — embora algo envergonhada — com que me dedicas umas linhas no X, em resposta à coima que a ERC aplicou à tua empresa, a Trust in News, por difundir conteúdos de publicidade encapotada, usando jornalistas — entre os quais tu próprio és nomeado. A tua tentativa de desvalorizar o assunto, como se estivesses acima das suspeitas, é uma vã manobra para te descolar de uma realidade que, a cada passo, te envolve mais: a de ser jornalista ao serviço de uma empresa com mais dívidas do que escrúpulos.

    E agradeço, porque assim me deste incentivo para esta carta aberta, que para ti não terá préstimo — porque manifestamente não prestas como jornalista nem como pessoa —, mas poderá ter para outros, talvez os mais jovens jornalistas. Como aviso. Até porque, salvo erro, te conheço desde 2001.

    Trabalhas(te) para a Trust in News, um grupo editorial com um capital social de uns meros 10 mil euros — igual ao do PÁGINA UM, por isso nada contra. Mas olhas para o PÁGINA UM com um indisfarçável desdém. Compreendo: há uma grande diferença: PÁGINA UM não deve nada a ninguém, não faz fretes e exerce um jornalismo independente, enquanto o teu estimado empregador carrega um passivo superior a 30 milhões de euros, incluindo calotes ao Estado que ultrapassam os 15 milhões.

    Como se não bastasse, tem o dono e um dos gerentes (Luís Delgado) já uma condenação por abuso de confiança fiscal. É esta a entidade de referência do teu jornalismo — e não, não fui eu quem a classificou como tal, foi a própria Justiça.

    Foi nesse ambiente que, a pedido da tua directora e amiga, Mafalda Anjos, resolveste então deixar a dignidade profissional à porta da redacção e prestar serviço à causa do Ministério do Ambiente e da empresa pública Águas de Portugal, para lhe cuidares do marketing. A pretexto de uns Prémios Verdes, fizeste um fretes multicoloridos. Produziste então meia dúzia de artigos fofinhos, pintados de verde esperança e inocência editorial. E agora vens jurar que foste livre, que não recebeste nada além do salário, como se a ausência de suborno directo fosse um atestado de honra. Ora, Luís, isso não abona sequer da tua inteligência. Se mercadejas a tua pena, ao menos exige as trinta moedas de prata… Fica-te mal prostituíres a profissão e ainda por cima de forma gratuita.

    Tweet de Luís Ribeiro no X

    Não fui só eu que te chamei à pedra. A própria ERC — esse Conselho que dizes “estapafúrdio”, só porque, por uma vez, resolveu ver para além da espuma — referiu o teu nome cinco vezes na deliberação, onde conclui que a Trust in News difundiu conteúdos publicitários disfarçados de jornalismo. Isso tem um nome: publicidade encapotada. E o teu nome lá está, Luís, gravado com tinta que nem o teu desdém consegue apagar.

    Depois, num gesto pueril, resolves atirar contra mim — atacas o mensageiro —, aludindo aos meus “conflitos” com a ERC, como se isso te conferisse superioridade. Mas até aqui falhas o tiro. Sim, tenho conflitos com a ERC. Porque exijo melhor regulação, mais transparência e menos conivência com aldrabices editoriais e poderes instituídos.

    Mas sabes o que mais? Dois dos processos em tribunal foram sim interpostos por mim contra a ERC no Tribunal Administrativo de Lisboa por me negarem acesso a documentos administrativos. Ganhei ambos — vê lá isto! Um jornalista que não cede a um não institucional e até mete a entidade que o regula num tribunal. Perdeu-se o respeitinho, não é, Luisinho? Temos de ser bem comportadinhos, não é? Isso mesmo!

    Além disso, em quase quatro anos de PÁGINA UM, não fui alvo de uma única contra-ordenação, nem de qualquer processo judicial activo. Nem um. Apesar de toda a espuma e névoa que se tem colar contra o projecto editorial do PÁGINA UM inexiste uma qualquer falha, uma qualquer condenação.

    Portanto, falemos de fretes? Eu não faço. Prefiro perder leitores a perder a espinha. Tu, Luís Ribeiro, escolheste o caminho contrário: achaste normalíssimo ajoelhar diante das Águas de Portugal e do Ministério do Ambiente e servir de megafone a patrocinadores públicos, como se o jornalismo fosse uma extensão do gabinete de comunicação do regime. Depois bateste no peito, meteste um cravo à lapela, abriste o X para o mundo e, com solenidade revolucionária de funcionário público em hora extraordinária, proclamaste-te impoluto, livre e independente.

    Pois bem: e a tua consciência, essa, meteste-a no contentor azul — junto dos folhetos recicláveis que andas a assinar.

    O Luís Ribeiro fez artigos noticiosos para cumprir contratos de patrocínio, e ainda defende no X que “TODOS o fazem. A ERC não vive no mundo real”. São os jornalistas que matam o jornalismo.

    E agora ainda tentas, num chilique de vitimização, fingir que estás acima da polémica quando, na verdade, estás mergulhado até à raiz do teclado na lama de um jornalismo serventuário.

    E fica-te bem uma lição final: se não queres ser confundido com um mercador de notícias, então pára de te comportar como um.

    Pedro Almeida Vieira

  • Doenças cardiovasculares: cada minuto a mais até às urgências causa 567 mortes por ano

    Doenças cardiovasculares: cada minuto a mais até às urgências causa 567 mortes por ano

    No espaço de apenas um mês, foram divulgados dois conjuntos de informação que, apesar de não terem merecido uma única manchete nos jornais do regime, encerram uma tragédia silenciosa com implicações gravíssimas para a política de saúde pública e o ordenamento do território.

    Com poucas semanas de intervalo, o INE publicou, por um lado, os tempos medianos (no sentido de abranger 50% da população) no acesso em automóvel ligeiro ao hospital com urgência mais próximo, e, por outro, as taxas de mortalidade por doenças do aparelho circulatório (que por simplificação se denominará por doenças cardiovasculares), ambas discriminadas por concelho. São, ao todo, os 308 concelhos de Portugal.

    Patient in hospital bed with heart monitor showing blood pressure and heart rate.

    À primeira vista, parecem variáveis inconciliáveis — como quase tudo o que se publica com etiquetas burocráticas. A mortalidade cardiovascular, dirão os especialistas, depende de múltiplos factores: grau de envelhecimento da população, prevalência de diabetes, hipertensão, obesidade, estilos de vida, hábitos alimentares, níveis de pobreza, isolamento, rede de cuidados primários, acesso a medicamentos.

    Tudo verdade. Mas o PÁGINA UM colocou uma questão que parece, à partida, ingénua ou até simplista: e a distância até à urgência hospitalar — só por si — será um factor determinante, ou sequer relevante, para as variações da mortalidade por doenças do aparelho circulatório?

    A resposta estatística é directa e inegável: sim. E o que se segue é a demonstração dessa evidência — sem alarme gratuito, mas com o peso sereno dos números. Recorrendo aos dados disponíveis, o PÁGINA UM cruzou as duas variáveis — tempo de acesso às urgências por veículo para 50% da população (2.º quartil) e taxa de mortalidade por doenças do aparelho circulatório — e construiu um modelo de regressão linear simples.

    Distribuição do tempo mediano de acesso às urgências hospitalares e a taxa de mortalidade por doenças do aparelho circulatório nos concelhos portugueses. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    O resultado pode surpreendeu até os mais cépticos: a correlação (de Spearman) é estatisticamente significativa e robusta (ρ = 0,60), indicando uma associação moderadamente forte entre as variáveis, mesmo sem pressupor linearidade. E com outro modelo estatístico — o de regressão por mínimos quadrados — constata-se que o tempo mediano de acesso à urgência explica, isoladamente, 30,5% da variabilidade das taxas de mortalidade entre concelhos.

    Trata-se de um valor elevado, sobretudo tratando-se de um modelo univariado — ou seja, sem controlar factores como idade, rendimento ou prevalência de doenças crónicas. Em estudos populacionais, raramente uma única variável explica tamanha parte da variação. Este resultado revela, por si só, a força preditiva da distância até ao hospital.

    Traduzido em linguagem comum: a Estatística comprova que, quanto mais longe está o hospital com urgência, maior tende a ser a taxa de mortalidade por doenças cardiovasculares — como enfartes do miocárdio, tromboses ou acidentes vasculares cerebrais (AVC). E esta relação não é simbólica: é mensurável. Na prática, o modelo do PÁGINA UM mostra que cada minuto adicional no tempo de acesso está associado a um aumento médio de 0,053 mortes por mil habitantes por ano. Ou noutra perspectiva, mesmo se de forma simplista, cada minuto a mais na chegada à urgência ceifa 567 vidas por ano em Portugal.

    Mas se isto ainda parece uma visão abstracta, passemos ao concreto. Aplicando a taxa de agravamento calculada pelo modelo, é possível estimar o impacto dessa diferença em diversos cenários.

    Por exemplo, se todo o país tivesse tempos de acesso às urgências semelhantes aos da Grande Lisboa — cerca de 7,6 minutos —, a taxa de mortalidade por doenças do aparelho circulatório desceria de 2,8‰ para 2,53‰, evitando-se cerca de 2.900 mortes por ano. Pelo contrário, se os tempos se agravassem para os valores médios da Beira Baixa (29,7 minutos) ou do Baixo Alentejo (35,2 minutos), essa taxa subiria para 3,70‰ e 3,99‰, o que significaria mais 9.600 e 12.700 mortes anuais, respectivamente.

    Com efeito, os valores tornam-se ainda mais expressivos quando se observam as desigualdades territoriais. Muitos concelhos com elevadas taxas de mortalidade cardiovascular são aqueles onde o tempo mediano de acesso às urgências ultrapassa largamente os 30 minutos, em alguns casos mais de uma hora. De entre os 94 concelhos com taxas de mortalidade 50% acima da média nacional — ou seja, com taxa superior a 4,2‰ —, 53 têm tempos medianos de mais de 30 minutos. Ou seja, quase seis em cada 10 concelhos (56%) com taxas de mortalidade elevada para este tipo de doenças súbitas têm grande parte da sua população a mais de 30 minutos de uma urgência.

    brown concrete houses on mountain
    Viver numa aldeia pode ser paradisíaco, mas fatal em caso de doenças súbitas.

    Estes concelhos dispersam-se sobretudo entre o Alentejo profundo, as serranias do Centro, os vales raianos e as franjas da Madeira, e merecem destaque: Penalva do Castelo, Castro Daire, Montemor-o-Novo, Vila de Rei, Sátão, Resende, Portel, Redondo, Sertã, Estremoz, Nisa, Aljezur, Aljustrel, Gavião, Fornos de Algodres, Alvito, Manteigas, Arganil, Santana, Castro Verde, Vila Nova de Paiva, Almeida, Sabugal, São Pedro do Sul, Vieira do Minho, Vinhais, Coruche, Proença-a-Nova, Penamacor, Serpa, Idanha-a-Nova, Alandroal, Góis, Vimioso, Avis, Sousel, Oleiros, Porto Moniz, Monção, Ourique, Aguiar da Beira, Montalegre, Mêda, Mértola, Pampilhosa da Serra, Mora, Moura, Mogadouro, Sernancelhe, Figueira de Castelo Rodrigo, Alcoutim, Melgaço e Freixo de Espada à Cinta

    Têm em comum o mesmo fardo estrutural: o afastamento dos equipamentos de saúde. Mas o problema não é exclusivo de aldeias esquecidas. Mesmo concelhos de média dimensão — como Castelo Branco, Viseu, Évora, ou zonas periféricas de Coimbra e Leiria — enfrentam tempos medianos de acesso superiores a 30 minutos. A dispersão populacional, a escassez de serviços de atendimento permanente e o desinvestimento em redes viárias e extensões hospitalares contribuem para essa penalização.

    Em sentido inverso, a análise aos 63 concelhos com tempo de acesso inferior a 10 minutos confirma o efeito protector da proximidade: apenas 21 ultrapassam a média nacional de mortalidade (2,8‰), e destes só três — Elvas, Beja e Abrantes — apresentam taxas de mortalidade 50% acima da média nacional, ou seja, mais de 4,2‰. Ou seja, estes casos isolados não invalidam a tendência dominante.

    Silhouette of a person with a glowing red neon heart in the dark, symbolizing love.

    E essa tendência é ainda mais clara nos grandes centros urbanos. Lisboa com 4,3 minutos de distância mediana até ás urgências regista 3,1‰ de taxa de mortalidade é a excepção, embora seja um concelho bastante envelhecido (quase um quarto da população tem mais de 65 anos), o que permite aferir o desastre que seria se os tempos fossem maiores.

    De resto, todas as principais cidades estão abaixo da taxa de mortalidade e abaixo da média do tempo mediano: Porto (5,5 min), 2,7‰; Oeiras (6,0 min), 2,6‰; Coimbra (6,6 min), 2,5‰; Cascais (7,1 min), 2,6‰; e Vila Nova de Gaia (7,2 min), apenas 2,1‰. Mesmo com uma população envelhecida e elevada carga de doenças crónicas, estes concelhos têm mortalidade cardiovascular bastante abaixo da média nacional. A explicação é simples: chegam ao hospital mais cedo — muitas vezes, a tempo de serem salvos.

    Num país que se gaba de ter um Serviço Nacional de Saúde universal e igualitário, a geografia continua a ser um factor de desigualdade brutal. Viver em Alvito, Nisa ou Montalegre não devia ser, por si só, uma ameaça cardiovascular. Mas é. E essa ameaça não decorre apenas de heranças do passado: resulta de opções políticas recentes, de centralizações disfarçadas de modernização e de cortes orçamentais que não chegam à opinião pública, mas chegam às portas fechadas dos centros de saúde.

    black sand

    A distância, neste caso, mata. Mata com estradas estreitas, com ambulâncias em falta, com urgências encerradas, com extensões sem capacidade de estabilização. Mata com o silêncio estatístico da negligência. Mas os números não mentem. Nem se comovem. Apenas revelam.

    E estes apenas pelo PÁGINA UM servem para apelar para a necessidade análises estatísticas mais rigorosas e modelos mais refinados, de modo a se conseguir isolar outros factores determinantes da mortalidade, permitindo identificar com precisão onde as desigualdades são mais profundas e como podem ser eficazmente combatidas. Porque saúde pública não se faz apenas despejando dinheiro em medidas genéricas ou politicamente vistosas — faz-se, antes de tudo, com estudo, método e sabedoria na aplicação dos recursos.

    ***

    N.D. Os resultados apresentados neste artigo — com destaque para a associação estatisticamente significativa entre o tempo mediano de acesso às urgências hospitalares e a taxa de mortalidade por doenças do aparelho circulatório — assentam em modelos estatísticos simples e transparentes, construídos a partir de dados oficiais. No entanto, cumpre assinalar que se trata de um modelo univariado, ou seja, não ajustado para outros factores relevantes como o envelhecimento demográfico, a prevalência de doenças crónicas, a distribuição dos cuidados de saúde primários ou os níveis socioeconómicos locais.

    Neste sentido, a associação estatística identificada não deve ser confundida com uma prova de causalidade directa, embora a evidência científica internacional reconheça, de forma robusta, que a rapidez no acesso a cuidados médicos especializados é determinante na sobrevivência em situações de doença súbita, como enfartes agudos do miocárdio ou acidentes vasculares cerebrais.

    O objectivo desta análise foi, por isso, identificar padrões territoriais de risco que justificam estudos mais aprofundados, com modelos multivariados e abordagens geoestruturais, permitindo orientar a política pública com base em evidência e não apenas em pressupostos administrativos ou igualitarismos abstractos.

  • Afinal, o Benfica (ainda) sabe ser campeão

    Afinal, o Benfica (ainda) sabe ser campeão


    Confesso: há dois anos que não me entusiasmava verdadeiramente com um jogo de pontapé na bola — e isto depois de mais um balde de água fria sobre as águias, nos Estados Unidos. Talvez porque, sendo benfiquista, tenho coleccionado desilusões com mais afinco do que títulos. Entre um campeonato prometido em Setembro e um “estivemos quase” em Maio, o futebol do Benfica tem sido mais um exercício de fé do que de razão. Vai daí, num rasgo de insensatez que deve ter nascido numa escuta enviesada do podcast de Rui Miguel Tovar sobre o imortal Pimenta Machado — esse titã filosófico de Guimarães — decidi ir ver a finalíssima do campeonato de futsal… em pleno Pavilhão João Rocha.

    A ousadia teve cúmplice: o leonino Carlos Enes, autor de vários Da Varanda do Varanda — textos tão afiados como a língua de um Varandas em dia de comício — que, numa rara demonstração de civilidade interclubística, acedeu a fazer-se acompanhar por um benfiquista, desde que este, claro está, lavasse as mãos antes de entrar. O plano só não descambou num enredo ao estilo das comédias do Mel Brooks porque os deuses do futsal, ou talvez os funcionários do Sporting, mostraram alguma misericórdia.

    De facto, num intervalo entre escrever dois parágrafos sobre os despesismos com o Erário Público e a audição das memórias do homem que um dia terá dito que as verdades de hoje podem ser as mentiras de amanhã, dei por mim a preencher o pedido de acreditação… para o jogo Sporting – Guimarães em futsal. Um pequeno detalhe: o Vitória de Guimarães não tem equipa sénior de futsal — pelo menos, segundo reza o Google e uma rápida incursão pelo site da FPF. Descobri, no entanto, a existência do Futebol Clube Os Piratas de Creixomil e do Lokomotiv de Gondar — o que, convenhamos, só reforça a ideia de que a imaginação em Guimarães não morreu com D. Afonso Henriques.

    O caso ficou resolvido com algumas trocas de mensagens e telefonemas do Carlos Enes, que terá usado a sua credencial de cronista sportinguista como moeda de troca, prometendo que não levava um infiltrado, mas sim um “erudito em exílio futebolístico temporário”. Fomos admitidos. Chegados ao pavilhão, a primeira surpresa foi o próprio recinto: cheio, sim, mas mais pequeno do que esperava. A televisão faz milagres: dá profundidade a pavilhões e talento a jogadores medíocres.

    Confesso outro pecado: não domino as regras do futsal. Sou do tempo em que se chamava futebol de salão, e a bola pesada fazia menos barulho do que os chinelos da Educação Física. Até à irrupção de Ricardinho e da sua ginga patrocinada, o futsal passava-me ao lado. A única regra que trazia bem decorada era a do tempo cronometrado — duas partes de 20 minutos — que, como qualquer ex-árbitro medíocre de basquetebol e ex-jogador de andebol sabe, equivale a uma eternidade de bola a rolar sem desculpas para antijogo ou lesões imaginárias. Uma benesse.

    Mas vamos ao jogo, que é para isso que se foi. E começou mal. O Sporting marcou dois golos quase seguidos, com o primeiro a ser de um tal Zicky Té, nome que reconheci vagamente, talvez por me soar a personagem de anime com superpoderes. Parecia que os ‘lagartos’ estavam prontos para o penta. O Benfica ainda reduziu antes do intervalo, numa jogada que mostrou como uma pequena distracção pode, no futsal, ser penalizada com a precisão de uma guilhotina. Nem tudo parecia perdido.

    A segunda parte recomeçou com esperança: empate do Benfica, explosão na bancada. Mas o Sporting reagiu com o mesmo instinto predador com que o leão ataca a zebra no Serengeti. Voltou à vantagem, e aí temi que tudo estivesse perdido.

    E foi então que a ignorância me salvou da angústia. Não sabia que, no futsal, após uma expulsão, a equipa fica reduzida durante dois minutos — ou até sofrer um golo. E foi exactamente isso que sucedeu. O Benfica empatou de novo, numa jogada em que o guarda-redes leonino teve uma espécie de epifania inversa: em vez de defender, ofereceu-se à bola como um apóstolo do desespero.

    Pouco depois, quase a faltar apenas dois minutos úteis para jogar, o improvável aconteceu: um remate de meia-distância do guarda-redes do Benfica — que, julgo, terá partido de uns bons doze metros — encontrou as redes, com mais ajuda do guarda-redes do Sporting do que qualquer estratégia treinada. Golo! Benfica na frente.

    A comoção foi tal que, por breves segundos, temi que o meu coração me traísse ali mesmo no João Rocha — e que tivesse de ser levado em ombros não por glória, mas por aflição. No pavilhão, o operador do resultado, certamente um sportinguista, também não estaria em si: demorou larguíssimo segundos até admitir o 3-4.

    O jogo terminou, e o mais bonito veio depois. Os funcionários do Sporting montaram com dignidade o cenário para a entrega do troféu ao rival. O Rui Costa deve ter agradecido a poupança por a festa ter sido custeada pelo adversário .

    E os jogadores do Benfica, num gesto que honra mais do que mil vitórias, fizeram alas para os jogadores do Sporting receberem as medalhas de segundo lugar. E depois foram os sportinguistas que fizeram o mesmo para os campeões passarem rumo ao caneco. Um momento de fair-play raro — que, confesso, me emocionou quase tanto quanto o golo da vitória.

    Foi uma noite de festa, não só por termos vencido, mas por termos partilhado o jogo com quem pensa diferente. E o futsal ensinou-me uma coisa num só jogo: que mesmo num pavilhão onde tudo nos é adverso — regras, estatísticas, paredes em verde ácido — ainda é possível sair com um sorriso. E um título. E, sobretudo, com o sentimento de que, afinal, ainda vale a pena ir ao desporto só pela alegria do jogo. Ah! E ainda aguardo a crónica do Carlos Enes…

  • Um espectáculo em vez de um concerto

    Um espectáculo em vez de um concerto

    Perco-me na memória, o que, confesso, já não é difícil. Ela anda fraca, difusa, com os fios do passado a entrelaçarem-se nas brumas do presente. Mas julgo lembrar-me — ou talvez esteja já a confundir imagens com sonhos — dos tempos em que fui, na juventude, a concertos de estádio. Penso que um desses foi com os Genesis, já envelhecidos mas ainda imponentes, ou talvez tenha sido o Sting, não sei já bem. Em ambos os casos, no antigo Estádio da Luz. Recordo, isso sim com mais nitidez, o Nick Cave no Estádio do Dragão, em noite tripeira, como convém à sua figura gótica. Mas tudo isso foi há décadas.

    Nos últimos anos, tenho preferido os recintos mais comedidos, mais próximos do ouvido e do coração. Um concerto no Coliseu ou no Campo Pequeno sabe-me melhor do que a profusão de luzes e decibéis de um estádio. Já quase não vou a festivais. Acho que o último foi com o David Bowie no Passeio Marítimo de Alcântara em 1996 — e já nem me lembrava do ano.

    Foto: João Palhinha / Everything is New.

    E não é apenas por pudor de idade ou cansaço auditivo: é porque, cada vez mais, o que se apresenta num estádio é um espectáculo — e não um concerto. Um estádio é uma arena de imagens, de sons preparados ao milímetro, de efeitos que hipnotizam o olhar mas nem sempre tocam a alma. E tudo isso se confirmou com os Imagine Dragons.

    Na quinta-feira, frente a 64 mil pessoas no Estádio da Luz, Dan Reynolds e os seus companheiros ofereceram o que se esperava: um evento visualmente apoteótico, musicalmente eficiente, emocionalmente polido. Mas talvez fosse essa previsibilidade que me deixou um leve sabor a indiferença, como um prato servido com mestria mas sem surpresa.

    Cheguei ligeiramente atrasado ao concerto (não acontece apenas com os jogos do Benfica), mas também não fiquei na Varanda da Luz: fiquei num assento junto ao relvado, perto do sítio onde assisti à vitória de Portugal contra a Suíça no apuramento para o Mundial de 2018. Enfim, bom lugar para ver a parafernália e os ecrãs, mas difícil de saber onde parava o Dan, que ia percorrendo o catwalk, perpendicular ao palco principal. Perdi, segundo consta, Fire in These Hills, do último álbum, e apanhei-me no meio de Thunder, um dos hits da banda de Las Vegas, nascido em 2008, que fez vibrar as bancadas, e que funcionou, claro, como grande parte do repertório do grupo: porque já está no ouvido, porque tem refrão fácil, porque tem (boa) percussão.

    Foto: João Palhinha / Everything is New.

    Como disse, pela distância e porque andei a percorrer com os olhos as bancadas, não me dava conta por onde Dan Reynolds andava, já de tronco nu, porque o homem saltava, corria, agitava os braços com uma energia quase coreografada, ao mesmo tempo que bolas insufláveis invadiam o relvado e a pirotecnia estalava. Percebia-se logo que ali não se queria dar um concerto, queria-se causar impacto — até porque, por vezes, o som distorcia. E conseguiram: Bones, Take Me to the Beach, Shots, Whatever It Takes — pelo menos estas, que consegui, com maior ou menor dificuldade e apoio, desfilaram todas, uma após outra, como faixas de um álbum de êxitos empilhados sem pausas. Já ali há pouco ou quase nada de indie ou alt rock — é quase tudo pop.

    É verdade que houve momentos de pausa emocional. Quase no final, Dan Reynolds partilhou com o público a sua história pessoal de luta contra a depressão e a ansiedade. Falou da importância da terapia, do apoio, da vida partilhada. Foi genuíno — e nessa franqueza conseguiu o que raras vezes se alcança num estádio: silêncio. Mas, sendo já recorrente nos concertos da banda, esse momento de abertura emocional começa a resvalar para um ritual quase coreografado, uma catarse repetida que, podendo ser sincera e até incentivadora, já dá sinais de déjà vu.

    Tocará isto sempre os corações menos cínicos, é certo, mas roça perigosamente os contornos do marketing emocional — aquele ponto em que a intimidade parece mais ensaiada do que vivida, e em que o apelo à empatia se confunde com uma estratégia de retenção de público. Fica a sensação de que há ali verdade, sim, mas também conveniência.

    Entretanto, houve também momentos acústicos com Next to Me e I Bet My Life, num registo mais contido e sincopado. Talvez ali se tenha ouvido o grupo com maior nitidez — talvez ali se tivesse encontrado, por breves minutos, o que antes se chamava um concerto.

    Também I’m Sorry e Shots tentaram recuperar alguma densidade musical, e não faltaram solos — ora de guitarra, ora de baixo — para cumprir o protocolo técnico. Porém, a estrutura do concerto foi sempre a mesma: subida, explosão, breve pausa, nova explosão, apoteose. A música como cenografia.

    Já perto do fim, desfilaram os maiores sucessos: Bad Liar, Radioactive, Demons e Believer, este último encerrando a noite com pirotecnia em modo épico e Dan Reynolds enrolado numa bandeira da Ucrânia — símbolo de um mundo em que a política e o entretenimento partilham o mesmo palco, mesmo quando não se diz uma palavra sobre o assunto. Houve também uma guitarra com a bandeira trans empunhada pelo baixista Ben McKee, que, podendo ser sincera, também tem algo de marketing inclusivo. Até porque os Imagine Dragons têm recebido críticas pelo facto de tocarem em países pouco recomendáveis.

    Foto: João Palhinha / Everything is New.

    Por fim, durante Radioactive, Reynolds ainda subiu à bateria para um dueto com o baterista — e ainda pensei que fosse como Phil Collins: melhor baterista do que cantor — e depois sentou-se ao piano para Demons, para acabar por correr de um lado ao outro do palco. “Amamos-vos, Lisboa”, repetiu, até à exaustão. Mas foi um amor sem encore. E aqui, confesso, reside uma das minhas maiores perplexidades: um grupo que não faz encore, mesmo depois de duas horas de actuação, falha algo essencial.

    O encore não é apenas um apêndice: é uma praxe simbólica, um agradecimento final, um jogo de fingimento que reforça a ligação com o público. Recusar esse ritual é como recusar o brinde no final do jantar. E, por causa disso, os Imagine Dragons levam meio ponto a menos nesta crítica do que estavam para apanhar.

    Nota final: 3,5 em 5.

  • Estados Unidos: 199 mortes por relâmpagos numa década não dá para brincar

    Estados Unidos: 199 mortes por relâmpagos numa década não dá para brincar

    Pela segunda vez, um jogo do Benfica no Mundial de Clubes foi interrompido nos Estados Unidos devido à aproximação de uma trovoada. Depois da suspensão por cerca de duas horas ao intervalo da partida frente ao Auckland City, em Orlando, na Florida, foi agora o encontro de ontem frente ao Chelsea, disputado no Bank of America Stadium, em Charlotte, na Carolina do Norte, a ser interrompido — desta feita ao minuto 85 — e apenas retomado duas horas depois. O jogo, que acabou com a derrota do Benfica por 4-1, começou pelas 21h00 deste sábado e só acabou perto da 1h40 desta madrugada, hora de Lisboa, depois de um prolongamento..

    Tratou-se já do sétimo jogo suspenso por motivos idênticos nesta edição da competição. À primeira vista, sob uma perspectiva mediterrânica ou europeia, a ideia de interromper partidas por “relâmpagos ao longe” pode parecer um exagero ou uma excentricidade legal típica dos Estados Unidos. No entanto, este tipo de decisão – prática comum e tecnicamente obrigatória – está sustentada por dados meteorológicos e regras de segurança apertadas. O motivo é simples: nos Estados Unidos, os relâmpagos matam — e com frequência. Entre 2015 e 2024, segundo dados oficiais da NOAA – National Oceanic and Atmospheric Administration, morreram 199 pessoas nos EUA vítimas de descargas atmosféricas, num total de incidentes que atingiram quase todos os estados.

    lightning wallpaper

    A Carolina do Norte, palco da partida entre Benfica e Chelsea, surge em quarto lugar no ranking nacional, com 11 mortes por relâmpago durante esse período. Já a Florida, onde o Benfica enfrentara o Auckland dias antes, lidera de forma destacada, com 50 mortes em dez anos. Seguem-se o Texas (20 mortes) e o Alabama (15 mortes), estados do sul norte-americano com clima quente e húmido, onde o número de dias com trovoadas por ano ultrapassa largamente a média europeia. Surgem depois os estados da Carolina do Norte (11), Colorado (8), Nova Iorque (7), Pensilvânia (7) e Missouri (6). Mesmo estados considerados menos propensos, como a Louisiana, Ohio, Arizona ou Califórnia, registaram 4 a 5 mortes cada.

    Este risco não é apenas estatístico, mas também operacional. Por isso, em solo americano, qualquer sinal de trovoada nas imediações — mesmo sem chuva, vento ou relâmpagos visíveis — activa os protocolos de emergência. A chamada regra dos “30-30” estabelece que, se o tempo entre o avistamento de um relâmpago e o som do trovão for inferior a 30 segundos, todos os eventos ao ar livre devem ser imediatamente suspensos. A retoma só é autorizada 30 minutos após o último trovão audível.

    Estas regras aplicam-se de forma transversal: desde os campeonatos escolares e universitários até às grandes competições internacionais. E mais: nos estádios, a decisão não depende dos árbitros nem dos treinadores — cabe às autoridades meteorológicas locais ou aos oficiais de segurança, que dispõem de sistemas de monitorização em tempo real.

    Situação meteorológica em redor do Bank of America Stadium, em Charlotte, obrigou à suspensão do jogo entre Benfica e Chelsea deste sábado (que se prolongou por domingo).

    Em Portugal, o risco de trovoadas é muito inferior, e a cultura de prevenção quase inexistente. O número de mortes por relâmpago é muito baixo — menos de uma por ano, em média, e quase sempre em contextos agrícolas, montanhosos ou isolados. Nessa medida, não existe qualquer regulamentação específica para a suspensão de jogos devido a trovoadas, nem protocolos operacionais em eventos desportivos. Por isso, quando os adeptos portugueses vêem um jogo suspenso por “relâmpagos invisíveis”, a reacção instintiva é de espanto, quando não de troça.

    Nos Estados Unidos, a maioria das vítimas são homens, entre os 15 e os 45 anos, envolvidos em actividades ao ar livre: pesca, golfe, caminhadas, trabalhos agrícolas ou desportos. Mas também se registam mortes em eventos escolares e recreativos, incluindo treinos de futebol ou atletismo. Em muitos casos, a vítima não é atingida directamente, mas sim por correntes de solo, que podem propagar-se a dezenas de metros a partir do ponto de impacto, especialmente em terrenos húmidos ou em contacto com estruturas metálicas.

    A ideia de que a ausência de chuva torna o ambiente seguro é, de facto, um mito perigoso. A maior parte dos acidentes fatais ocorre antes da chegada da chuva, durante a chamada “fase seca” da trovoada. Os relâmpagos podem atingir o solo até 15 quilómetros de distância da ‘nuvem-mãe’, o que justifica o elevado nível de alerta meteorológico nos Estados Unidos.

    Interrupções por razões meteorológicas não depende das decisões dos árbitros.

    Por isso, aquilo que para muitos portugueses pareceu um excesso, ou um exagero americano, é, na verdade, o resultado de décadas de experiência, investigação científica e centenas de mortes que moldaram a política de prevenção. “When thunder roars, go indoors” — quando se ouve trovão, procurar abrigo — é mais do que um slogan: é uma medida que salva vidas. E, num país que regista quase 200 mortes por década, não há espaço para facilitismos.

    A suspensão dos jogos do Benfica — primeiro em Orlando, depois em Charlotte — deve, assim, ser entendida como o reflexo de um modelo de segurança pública que prefere adiar o espectáculo em vez de acelerar funerais. Um modelo que, apesar de estranho para os portugueses, tem um mérito inquestionável: reconhecer que nem sempre é o que se vê que mata — mas sim aquilo que se desvaloriza.

  • Negligência, crime & sangue nas políticas de Saúde Pública

    Negligência, crime & sangue nas políticas de Saúde Pública


    Desde 2022 que o PÁGINA UM trava uma batalha judicial aparentemente absurda – mas, na verdade, profundamente reveladora – contra a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). Lutamos pelo acesso à base de dados dos internamentos hospitalares, que é gerida por essa entidade pública. E lutamos não por um capricho jornalístico ou por qualquer fetiche com estatísticas, mas porque acreditamos, com convicção inabalável, que a informação é o primeiro antídoto contra a negligência e o primeiro instrumento da responsabilidade política.

    A base de dados existe – ponto final. O Tribunal Administrativo de Lisboa reconheceu, com clareza, o nosso direito de acesso. A ACSS recorreu, e perdeu. Voltou a recorrer, e voltou a perder. O Supremo Tribunal Administrativo, no Verão de 2023, encerrou o assunto com um acórdão cristalino. Mas em vez de cumprir, a ACSS decidiu trilhar o caminho do absurdo burocrático e da resistência kafkiana. Mais um processo arrasta-se agora para forçar os seus dirigentes a libertarem a informação, numa dança cínica de poder institucional contra o interesse público.

    black stethoscope with brown leather case

    E que informação é essa? Informação que poderia permitir avaliar a real incidência das doenças por região, identificar padrões de falhas no sistema hospitalar, detectar atrasos nos diagnósticos, comparar o desempenho entre hospitais, e até compreender melhor se os investimentos em saúde produzem resultados efectivos. Em suma, dados que, tratados com inteligência e independência, poderiam salvar vidas e corrigir injustiças. Mas, em vez disso, são mantidos num cofre institucional selado a sete chaves pela cultura opaca da nossa Administração Pública.

    A verdade, porém, é ainda mais perturbadora: Portugal não sofre de falta de dados. Sofre, isso sim, de falta de vontade – e de coragem – para os usar. Veja-se o exemplo do SICO – o Sistema de Informação dos Certificados de Óbito. Trata-se de uma ferramenta raríssima no panorama internacional: permite acompanhar, em tempo real, onde e porquê morrem os portugueses. Com esse sistema, poderíamos detectar rapidamente surtos epidémicos, falhas nos serviços de saúde, doenças com comportamentos anómalos. Poderíamos antecipar. Poderíamos agir. Mas não: usamos o SICO como se fosse apenas um notário da morte, e não como um radar da vida.

    Mais grave: quando os dados são usados, é muitas vezes para branquear políticas ou sustentar retóricas. A Escola Nacional de Saúde Pública tem-se especializado, com notável zelo, em cumprir este tipo de fretes institucionais. Em vez de ser um centro de pensamento crítico e estratégico, converteu-se numa agência de legitimação das decisões do poder. É uma traição silenciosa, mas perigosa, ao ideal de saúde pública.

    person lying on bed and another person standing

    De quando em vez, na solidão da investigação, detenho-me nos dados estatísticos de Saúde divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). Nem sempre trazem revelações imediatas, mas às vezes surgem indícios alarmantes. Como os dados ontem divulgados, entre informação sobre operações de caixas automáticas multibanco, sobre a taxa de mortalidade por tumores malignos em 2023, com base nos registos do SICO.

    A nível nacional, a taxa é de 2,7 por mil habitantes – um valor que parece aceitável, se olharmos apenas para a média. Mas as médias escondem tragédias, sobretudo quando se diluem em regiões vastas. É nos pormenores, nos concelhos pequenos, que a realidade grita mais alto.De facto, analisando os dados com maior detalhe, constata-se que, em 45 concelhos portugueses, a taxa de mortalidade por cancro em 2023 foi mais de 50% superior à média nacional, que se situa nos 2,7 óbitos por mil habitantes.

    Casos como Mora (7,4 por mil), Gavião (7,2), Lajes das Flores (6,9), Alcoutim (6,2) ou Vidigueira (5,4) revelam dramas locais quase invisíveis à escala nacional. Corrijo: para não relativizar nem suavizar esta realidade, importa aqui identificar todos esses 45 concelhos, onde a taxa de mortalidade por tumores malignos ultrapassa os 4,05 por mil habitantes – valor 50% acima da média nacional.

    Dados do INE revelados ontem. Ninguém os vai analisar. Ninguém analisa os dados do SICO?

    Eis a lista integral: Mora (7,4), Gavião (7,2), Lajes das Flores (6,9), Alcoutim (6,2), Vidigueira (5,4), Santa Cruz das Flores (5,3), Oleiros (5,3), Pinhel (5,3), Sabugal (5,1), Fronteira (5,1), Serpa (5,0), Belmonte (5,0), Crato (4,9), Manteigas (4,8), Alijó (4,8), Góis (4,7), Boticas (4,7), Corvo (4,6), Mêda (4,6), Melgaço (4,6), Almeida (4,6), Chamusca (4,4), Portel (4,4), Valpaços (4,4), Alfândega da Fé (4,3), Vinhais (4,3), Castro Verde (4,3), Santa Marta de Penaguião (4,3), Ferreira do Zêzere (4,3), Sardoal (4,2), Vila Nova de Paiva (4,2), Aguiar da Beira (4,2), Barrancos (4,2), Mértola (4,2), Torre de Moncorvo (4,2), Mação (4,2), Pedrógão Grande (4,2), Alcanena (4,1), Mortágua (4,1), Torres Novas (4,1), Estremoz (4,1), Seia (4,1), Sousel (4,1), Proença-a-Nova (4,1), e Fornos de Algodres (4,1).

    Como explicar estes valores? É certo que o envelhecimento populacional é uma variável relevante – e, em regra, onde há mais idosos, há mais incidência de doenças oncológicas. Mas esta explicação, só por si, é insuficiente. Há concelhos igualmente envelhecidos que registam taxas de mortalidade por cancro bem abaixo da média. A diferença não se resume à idade.

    Importa, por isso, levantar outras hipóteses. Poderão estar em causa factores ambientais, como a existência de antigas explorações mineiras abandonadas e mal descontaminadas, solos ou lençóis freáticos com presença de metais pesados ou substâncias cancerígenas, ou mesmo contaminação da água potável. Também a qualidade da alimentação – fortemente dependente de padrões económicos e culturais locais – pode influenciar o risco de doença oncológica, sobretudo quando associada ao consumo excessivo de carnes processadas, deficiente ingestão de vegetais frescos, ou exposição a pesticidas.

    man in white and black jacket and pants sitting on black surface

    Outros factores, de natureza sistémica, poderão igualmente estar a contribuir. A escassez de rastreios organizados em tempo útil, como os do cancro da mama, do colo do útero ou do cólon e recto, impede diagnósticos precoces. E quando o diagnóstico chega tarde, o prognóstico agrava-se. Acresce, em muitos destes concelhos, a distância significativa até unidades hospitalares com oncologia, radioterapia ou cirurgia especializada, criando barreiras de acesso que nem sempre se vencem com ambulâncias. O tempo e o custo das deslocações – muitas vezes em transportes públicos escassos ou inexistentes – funcionam como obstáculos reais ao tratamento.

    Mesmo os circuitos de referenciação médica podem falhar, ou ser excessivamente lentos, sobretudo quando os centros de saúde locais operam com falta de clínicos experientes, ou quando os doentes são deixados meses à espera por uma consulta hospitalar. E não é difícil imaginar que, nos meios mais isolados e envelhecidos, o desânimo ou a resignação perante a doença também contribuam para o diagnóstico tardio e para a morte precoce.

    Mas a pergunta essencial mantém-se: se os dados estão disponíveis, se os números denunciam estes focos de mortalidade excessiva, porque não se actua?

    Ana Paula Martins, ministra da Saúde.

    Porque não há, no seio da Direcção-Geral da Saúde ou das administrações regionais, uma estratégia específica de vigilância e intervenção dirigida a estes territórios vulneráveis? Quantas destas mortes seriam evitáveis com uma política pública de saúde baseada em evidência, em vez de assente numa gestão inercial de silêncios e rotinas?

    A resposta é dolorosamente simples: porque ninguém quer saber. Porque a saúde pública em Portugal continua refém de um paradigma burocrático, preguiçoso e ineficaz. Porque temos dados – dados extraordinários, únicos até – e não os usamos. E porque, acima de tudo, nos habituámos à ideia de que as mortes por doença são inevitáveis e, portanto, inquestionáveis.

    A verdade, porém, é que há mortes que podiam ser evitadas. Há vidas que podiam ter sido salvas. Se houvesse uma política de rastreios adequada em zonas de risco. Se houvesse vigilância epidemiológica baseada em dados reais. Se houvesse uma rede de saúde que respondesse proporcionalmente aos riscos de cada território. Se houvesse coragem para enfrentar a evidência e para corrigir erros.

    Em Portugal, acredita-se que se ninguém ouvir uma árvore a cair, então ela nunca caiu. É uma filosofia confortável, que iliba os responsáveis e embala as consciências. Mas a árvore caiu. E com ela, muitas vidas.

    person holding amber glass bottle

    A questão que importa agora colocar é esta: quantas dessas mortes foram provocadas, não por um tumor implacável, mas por um Estado indiferente? Quantos diagnósticos falhados? Quantas oportunidades perdidas de prevenir? Quantas mortes, afinal, foram produzidas pela inacção?

    E mais: quantas mais ainda virão? Porque, enquanto se esconderem os dados, enquanto se impedirem jornalistas, investigadores e cidadãos de saber o que se passa realmente, continuaremos a viver numa república em que o sangue escorre em silêncio pelas estatísticas. E a sua morte – sim, a sua – pode ser apenas mais uma célula neste organismo doente que se convencionou chamar sistema nacional de saúde.

  • Da ‘notícia’ do Correio da Manhã sobre um colaborador do PÁGINA UM

    Da ‘notícia’ do Correio da Manhã sobre um colaborador do PÁGINA UM


    Hoje, o Correio da Manhã, com difusão posterior pela CMTV, dirigido pelo jornalista Carlos Rodrigues, decidiu noticiar que a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista passou “cartão a ex-PJ cadastrado”, fazendo referência ao facto de essa pessoa se tratar de João Pedro de Sousa, que efectivamente obteve o título de Colaborador – título distinto do de Jornalista – a pedido do PÁGINA UM, e particularmente de mim.

    O passado de João de Sousa não é segredo nem ele o esconde – e disso mesmo temos falado no podcast ‘A Corja Maldita‘, em que, com a minha moderação, ele participa com o advogado Miguel Santos Pereira. A sua experiência, como consultor forense, será de enorme utilidade para o PÁGINA UM, sobretudo em temas de Justiça, e particularmente no acompanhamento de julgamentos relevantes, como o dos Anjos vs. Joana Marques (a sua crónica inaugural teve mais de 140 mil leituras) ou o de José Sócrates. Nesta fase, João de Sousa recolherá informação e escreverá crónicas ou artigos de opinião.

    Carlos Rodrigues, director editorial do Correio da Manhã e da CMTV, durante uma conferência em que a Medialivre prestou serviços à autarquia de Lisboa, usando jornalistas, a troco de quase 150 mi euros.

    Tenho perfeita noção dos bastidores da imprensa (e dos incómodos causados pelas nossas notícias nos grupos de media) e da Justiça, e por isso das intenções deste tipo de notícias. Mas não deixa de me suscitar cinco perplexidades ter a notícia sido publicada no Correio da Manhã (CM), e difundida na CMTV, órgãos de comunicação social aos quais hoje se remeteu um pedido de direito de resposta, ao abrigo da Lei da Imprensa.

    Primeira perplexidade: o CM foi o primeiro órgão de comunicação social a contar com João de Sousa como colaborador – justamente bem pago – ainda enquanto cumpria pena em 2015. Presumo que lhe reconhecia valor.

    Segunda perplexidade: o título e texto assinado por Miguel Azevedo (que saberá, presume-se, a diferença entre “jornalista” e “colaborador”) denotam um tom claramente depreciativo, sugerindo indisfarçada oposição à reabilitação e reinserção social. Ao invés, até prova em contrário, não discrimino profissionalmente quem procura recomeçar com dignidade. João de Sousa foi libertado em 2018 e não teve qualquer condenação a partir dessa data, sendo reconhecido como consultor forense.

    Terceira perplexidade: numa breve pesquisa encontra-se, entre os quadros da Medialivre, jornalistas com cadastro: Tânia Laranjo, Ana Isabel Fonseca, Eduardo Dâmaso. A primeira destas jornalistas até já foi condenada ao pagamento de uma coima pela Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) por práticas discriminatórias. A nenhum destes jornalistas foi retirada a legitimidade de deter o título de jornalista — mesmo se o crime foi cometido como jornalista.

    Quarta perplexidade: fui eu, enquanto director do PÁGINA UM, quem decidiu solicitar à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista a acreditação de João de Sousa como colaborador – e não como jornalista –, precisamente por uma questão de transparência, responsabilidade e acesso legítimo a fontes de informação. Ao contrário de outros, não temos ‘toupeiras’ nem ‘telhados de vidro’. A CCPJ limitou-se a aplicar a lei: negar-lhe a acreditação seria incorrer numa injustificada discriminação que seria legalmente inadmissível.

    Quinta perplexidade: o CM, que recorre com frequência aos seus jornalistas para executar contratos de prestação de serviços, pagos por entidades externas — situação manifestamente incompatível com o Estatuto do Jornalista —, não parece indignar-se com esse seu modus operandi. Mais surpreende, pois, que seja precisamente este jornal a criticar a emissão pela CCPJ de um simples cartão de colaborador do PÁGINA UM, usando uma página inteira.

    Pedro Almeida Vieira

    Director do PÁGINA UM

    N.D. Na notícia original, estava escrito o seguinte: “Terceira perplexidade: numa breve pesquisa encontra-se, entre os quadros da Medialivre, jornalistas com cadastro: Tânia Laranjo, Sónia Trigueirão, Ana Isabel Fonseca, Eduardo Dâmaso.

    No dia 3 de Agosto, recebemos o seguinte esclarecimento de Sónia Trigueirão: “Não sou quadro da Medialivre. Sai do Correio da Manhã no dia 31 de março de 2019 e ainda era da Cofina. Entrei no jornal PÚBLICO no dia 2 de abril de 2019, onde permaneci até ao dia 31 de março de 2025. Sou quadro da TVI desde o dia 1 de abril de 2025. Não tenho cadastro criminal. Fui condenada num processo cível, infelizmente, e é um facto, por uma notícia escrita no Correio da Manhã, mas tal não configura cadastro, nem tem implicações no exercício da profissão de jornalista. A associação do meu nome a essa lista é profundamente prejudicial e carece de fundamento. Solicito, por isso, que seja feita a correção dessa informação e que se evite a repetição deste erro em futuras comunicações.”

    De facto, tecnicamente, um processo cível não implica registo de cadastro, mesmo que de uma forma popular assim se possa considerar. No entanto, mesmo em processo cível, uma condenação não deixa de ser uma condenação, neste caso no exercício da profissão.

  • CMTV arrisca multa de 150 mil euros por ‘vender’ Lidl e aparelhos de audição

    CMTV arrisca multa de 150 mil euros por ‘vender’ Lidl e aparelhos de audição

    A fronteira entre informação, entretenimento e publicidade continua perigosamente diluída na grelha da CMTV, canal detido pela Medialivre – grupo de comunicação social com Cristiano Ronaldo entre os seus accionistas de referência. E, desta vez, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) decidiu não ficar indiferente: após analisar uma emissão do programa Manhã CM, transmitida em directo no passado dia 3 de Março, instaurou um processo de contra-ordenação por violação grave da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido (LTSAP).

    Em causa está a promoção encapotada da inauguração de um supermercado Lidl em Odivelas, sem qualquer aviso aos telespectadores de que se tratava de conteúdo publicitário. A coima prevista poderá atingir os 150 mil euros, conforme estipulado pela legislação aplicável.

    Num estilo de reportagem jornalística, a CMTV nem avisou os telespectadores de que se tratava de publicidade. A ‘brincadeira’, se a lei se aplicar com rigor, pode custar-lhe 150 mil euros.

    A rapidez da deliberação – cerca de um mês – é invulgar e revela a gravidade atribuída pela ERC à infracção. No documento a que o PÁGINA UM teve acesso, a entidade reguladora descreve em detalhe a forma como a CMTV transformou um suposto momento de entretenimento matinal numa acção promocional descarada. Em directo do novo espaço comercial, uma apresentadora do canal, com pose de jornalista, exaltou o local como “um espaço moderno, totalmente renovado”, afirmando ainda que “esta loja conta com um investimento de nove milhões de euros (…). Já sabe que é aqui que pode encontrar a melhor qualidade ao melhor preço”.

    Durante a emissão, a apresentadora entrevistou clientes visivelmente seleccionados, cujos testemunhos reforçavam o tom publicitário: “Está muito bem, está muito grande e com muita variedade de produtos”. As imagens mostravam o interior da loja, produtos nas prateleiras e respectivos preços, acompanhadas de mensagens no ecrã como “Lidl Portugal”, “Nova loja em Odivelas”, “Frutas e legumes sempre frescos” e “Investimento de 9 milhões de euros”.

    O programa não se ficou por aí. Pouco depois, foram exibidas imagens de um aparelho de audição da marca Philips, que ocupava cerca de metade do ecrã, com a legenda: “Audição com estilo? Sim, é possível”. Em momento algum foi identificado que se tratava de publicidade, colocação de produto ou ajuda à produção – exigências legais obrigatórias.

    A inauguração do Lidl de Odivelas em Março deste ano está ainda no medialivre Boost Solution, dedicado a publicidade, mas a emissão não avisou que era publicidade e ‘deu ares’ de se tratar de uma peça jornalística.

    A análise da ERC é taxativa: as referências exibidas tinham inequívoco carácter promocional, utilizavam linguagem elogiosa e destacavam vantagens comerciais. Mais grave ainda, essas inserções ocorreram sem qualquer enquadramento legal. O regulador recorda que a publicidade televisiva deve ser “facilmente identificável como tal e claramente separada da restante programação”. E sublinha que a colocação de produto “não pode influenciar os conteúdos e a sua organização na grelha de programas (…) de modo que afecte a responsabilidade e a independência editorial do operador de televisão”.

    Apesar da possível coima, o episódio parece antes indicar uma prática reiterada da Medialivre, que, sob pretextos informativos ou lúdicos, tem acumulado casos de ilegalidade e promiscuidade. Ainda recentemente, o PÁGINA UM revelou que, sob o disfarce de um ciclo de debates intitulado “Uma Cidade para Todos”, a Câmara Municipal de Lisboa pagou 147.600 euros à Medialivre por “serviços” que incluíram a presença do próprio director editorial do grupo, Carlos Rodrigues.

    A jornalista Daniela Polónia desempenhou o papel de ‘mestre-de-cerimónias’ e o jornalista João Ferreira assumiu funções de moderador contratualizado, num evento que não contou com qualquer representante da oposição a Carlos Moedas.

    Carlos Rodrigues, director do Correio da Manhã e da CMTV, na conferência paga pela Câmara Municipal de Lisboa á sua empregadora, a Medialivre. A jornalista Daniela Polónia, ao seu lado, foi a ‘mestre-de-cerimónias’: eis as novas funções, cada vez mais banalizadas, de jornalistas num mercado em que os reguladores tudo permitem.

    No ano passado, a ERC instaurou igualmente um processo de contra-ordenação à Medialivre por uma campanha de autopromoção do Correio da Manhã disfarçada de reportagem jornalística. O episódio decorreu numa papelaria e foi protagonizado por uma jornalista estagiária, em violação flagrante das normas editoriais, onde se falava de cupões de desconto.

    Ainda mais grave foi, em 2023, a celebração de 11 contratos com autarquias para as comemorações dos 10 anos da CMTV. Neste caso, o canal por cabo da Medialivre recebeu mais de 200 mil euros para promover municípios em programas de entretenimento e informação. A troco de valores entre os 20 mil e os 25 mil euros, as autarquias puderam indicar locais e pessoas a entrevistar – incluindo os próprios autarcas –, e até foram definidos os horários dos blocos noticiosos, como previsto nos cadernos de encargos consultados pelo PÁGINA UM. Nessas emissões, o jornalista Francisco Penim, ex-director de programas da SIC e também da CMTV, conduziu os programas, acompanhado da jornalista Sofia Piçarra. Nenhuma sanção conhecida foi aplicada a estas promiscuidades por parte da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ).

    Em 2023, os jornalistas Sofia Piçarra e Francisco Penim foram os mestre-de-cerimónias de 10 emissões pagas por autarquias, elogiando os concelhos e entrevistando autarcas e outras pessoas indicadas pelas Câmaras Municipais, que pagaram os programas de informação, onde ficaram explicitadas as horas dos directos. A ERC e a CCPJ ainda não tomaram decisões definitivas sobre estas promiscuidades que descredibilizam o jornalismo.

    O exemplo mais extremo de promiscuidade registou-se no programa informativo Falar Global, onde o então jornalista Reginaldo Rodrigues de Almeida promovia entidades que, simultaneamente, contratavam os seus serviços através da empresa Kind of Magic. O conflito de interesses era total: jornalistas a fazerem contratos privados com fontes de informação para lhes dar visibilidade num espaço supostamente editorial.

    A reincidência é, pois, notória. Mas o verdadeiro problema reside sobretudo na complacência institucional: mesmo perante actos reiterados de promiscuidade e publicidade disfarçada, as sanções concretas tardam – o que, na prática, legitima o jornalismo vendido ao melhor patrocinador. Com efeito, nenhum dos referidos processos de contra-ordenação à Medialivre, levantados ainda sob liderança de Sebastião Póvoas, foram concluídos pelo Conselho Regulador da ERC agora liderado por Helena Sousa.

  • Distância às urgências: há quem demore menos de dois minutos; e outros mais de hora e meia

    Distância às urgências: há quem demore menos de dois minutos; e outros mais de hora e meia

    Há números que desmentem de forma irrefutável o discurso político da coesão territorial. E o acesso aos serviços de urgência, através do tempo gasto entre a residência e o hospital mais próximo, é um dos mais eloquentes. Segundo os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE), divulgados este mês e relativos ao ano de 2022, um quarto da população portuguesa demora mais de 21,5 minutos de automóvel ligeiro a chegar ao hospital com urgência mais próximo. A mediana nacional, que representa o tempo abaixo do qual está metade da população, situa-se nos 12,7 minutos.

    Mas estes valores médios são como o caso do frango comido por uma só pessoa, enquanto outra passa fome, porque, de forma enganosa, a Estatística diz que cada uma comeu meio frango. De facto, os valores nacionais na rapidez de acesso às urgências escondem realidades profundamente assimétricas entre regiões, distritos e concelhos. Por exemplo, considerando o tempo mediano de 12,7 minutos, na verdade há 87 concelhos em que esse tempo é inferior, mas 222 municípios onde é superior; em alguns casos mais de cinco vezes superior.

    red vehicle in timelapse photography

    Nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, a resposta hospitalar está à distância de um curto passeio de carro. Em Lisboa, por exemplo, a mediana é de apenas 4,3 minutos, enquanto no Porto é de 5,5 minutos. Ou seja, metade da população destes concelhos demorava, no máximo, esse tempo para chegar a uma urgência hospitalar.

    Um total de 11 municípios apresentava tempos inferiores a 5 minutos de distância para metade da população: Amadora e Barreiro (4,8 minutos), Lisboa, Elvas e Lagoa, nos Açores (4,3), Espinho (4,2), São João da Madeira (3,7), São Brás de Alportel (3,5) e Sines (2,7). Este concelho alentejano é, aliás, aquele que melhor situação apresenta a nível nacional, uma vez que somente 25% da população gasta mais de 4,2 minutos para chegar à urgência hospitalar. Esse indicador é mesmo melhor do que o de Lisboa, já que este tempo diz respeito ao terceiro quartil.

    Em contraste, em muitas regiões de concelhos mais rurais e de baixa densidade populacional, particularmente no interior Norte, Centro e Sul do país, as distâncias para as urgências hospitalares tornam-se obstáculos que podem ser fatais.

    person lying on bed and another person standing

    A região do Alentejo apresenta o quadro mais grave. A mediana de acesso é de 30,6 minutos, e 25% da população demora mais de 40,5 minutos a alcançar cuidados urgentes. Este cenário estende-se ao interior Centro — sobretudo nas Beiras e na Serra da Estrela — e a vários concelhos da região Norte oriental.

    O problema agudiza-se ao nível concelhio. Um total de 15 concelhos portugueses regista tempos medianos superiores a 45 minutos, o que significa que metade da população nesses territórios está a mais de 45 minutos de um hospital com urgência. São os casos de Barrancos (distrito de Beja), Freixo de Espada à Cinta (Bragança), Miranda do Douro (Bragança), Moura (Beja), Pampilhosa da Serra (Coimbra), Odemira (Beja), Mértola (Beja), Ourique (Beja), Mogadouro (Bragança), Alcoutim (Faro), Figueira de Castelo Rodrigo (Guarda), São João da Pesqueira (Viseu), Penedono (Viseu), Sernancelhe (Viseu) e Vila Nova de Foz Côa (Guarda).

    Estes territórios, localizados em regiões de fraca densidade populacional e débil investimento público, representam zonas de alto risco em termos de equidade no acesso à saúde. Mas o retrato é ainda mais inquietante quando se analisa o terceiro quartil (Q3), que indica o ponto abaixo do qual se encontra 75% da população. Em dez concelhos, pelo menos 25% da população vive a mais de uma hora de um hospital com urgência. São os casos de Barrancos (Beja), Freixo de Espada à Cinta (Bragança), Miranda do Douro (Bragança), Moura (Beja), Mogadouro (Bragança), Alcoutim (Faro), Figueira de Castelo Rodrigo (Guarda), Penedono (Viseu), Sernancelhe (Viseu) e Vila Nova de Foz Côa (Guarda).

    No caso de Barrancos, o cenário é extremo: toda a população demora cerca de 90 minutos para chegar a uma urgência. Nos concelhos de Freixo de Espada à Cinta, Miranda do Douro e Melgaço, mais de 75% da população demora uma hora a chegar às urgências. Com tempos entre 45 minutos e uma hora estão ainda mais de 75% da população dos concelhos de Alcoutim (58,6 minutos), Penedono (57,8), Figueira de Castelo Rodrigo (57,2), Sernancelhe (56,3), São João da Pesqueira (52,2), Vila Nova de Foz Côa (51,7), Mogadouro (49), Odemira (44), Moura (47,5), Mora (51,1), Pampilhosa da Serra (44,7), Mourão (51,3), Mértola (45), Mêda (48,6), Montalegre (40,8), Aguiar da Beira (47,9), Ourique (46,1), Monção (45,7), Porto Moniz (41,8), Oleiros (44,7), Sousel (44,4) e Almodôvar (45,8).

    Apesar de este ser um indicador pouco relevado quando se analisam as políticas de saúde pública — e sobretudo a expectativa de vida em função da residência —, estas discrepâncias colocam em causa o princípio constitucional da igualdade de acesso à saúde.

    Quando uma pessoa que sofre um enfarte em Lisboa pode estar, em minutos, numa sala de hemodinâmica, enquanto outra em Penedono depende de um percurso de mais de uma hora por estradas sinuosas, a universalidade do Serviço Nacional de Saúde revela-se uma ficção estatística.

    A estas disparidades somam-se outros factores, como a carência de transportes públicos nas zonas mais afectadas, o encerramento progressivo de unidades hospitalares periféricas, e a centralização cada vez maior de recursos humanos e técnicos nos grandes centros urbanos.