Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Gouveia e Melo: como um acórdão e um comunicado mostram um homem sem qualidades

    Gouveia e Melo: como um acórdão e um comunicado mostram um homem sem qualidades


    Esta semana, Gouveia e Melo – que em três anos de liderança como Chefe do Estado-Maior da Armada nada fez do que se pavonear, aproveitando um passado de seis meses como mestre de logística em 2021 – anunciou a passagem à reserva porque, palavras suas, “não faz sentido, depois de sair da Marinha, continuar como uma sombra relativamente à Marinha”.

    Pessoalmente, nunca tendo eu sequer passado pela ‘tropa’ por razões oculares, entra-me pelos olhos uma evidência: Gouveia e Melo nunca será uma sombra para a Marinha; será sim uma lamentável e indelével nódoa.

    Mesmo não comungando do militarismo, considero inegável o papel fundamental dos militares, tanto em tempos de paz como de guerra. Na verdade, é em paz que os militares exercem melhor o seu múnus, porque são eles que melhor percebem os horrores da guerra, assim melhor intercedem para um equilíbrio dos humores dos políticos. E é nessa linha que se espera dos militares, sobretudo daqueles que assumem especiais responsabilidades de topo, um código de honra e de compromisso com a instituição que servem, colocando o dever acima de vaidades ou ambições pessoais. Esse código de honra deveria traduzir-se em liderança pelo exemplo, em discrição e em resultados concretos, e não em protagonismos oportunistas que, longe de fortalecerem a instituição, a desgastam e a fragilizam. Gouveia e Melo personifica a falta de honra e a abundância de oportunismo.

    O mais recente caso da anulação dos castigos a militares do NRP Mondego, decretado por um acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul (TCAS), é porventura o melhor exemplo para caracterizar um homem sem qualidades que chegou a um lugar que jamais deveria ter ocupado, mas que, hélas, o Princípio de Peter o estimula a seguir em frente, agora para Belém.

    E a cereja no cimo deste nauseante ‘bolo’ é um comunicado de ontem à noite do gabinete de comunicação da Marinha, que foi, certamente, obrigada a emitir. E que deve ser confrontado com outro comunicado de Maio passado – citado pela imprensa, embora sem estar agora no seu site – de que fora “afastada, pelos tribunais administrativos, a suspeição sobre imparcialidade levantada pelos militares relativamente ao comandante da Zona Marítima da Madeira, na qualidade de oficial instrutor do processo, e ao comandante naval, na qualidade de entidade com competência disciplinar”.

    Diz o seguinte este lamentável comunicado ao melhor estilo do ‘sacode a chuva do capote’:

    Relativamente à notícia divulgada esta noite sobre o anulamento de castigos pelo Tribunal no âmbito do processo relacionado com o Navio Mondego, importa esclarecer que o processo em questão diz respeito ao castigo aplicado pelo Comandante Naval, e não pelo Chefe do Estado-Maior da Armada, como está a ser referido.

    Há neste comunicado, desde logo, uma postura inqualificável. Gouveia e Melo, desde o início deste incidente em Março do ano passado – quando 13 militares recusaram cumprir uma missão de acompanhamento de um navio russo ao largo da Madeira por falta de condições de navegabilidade do navio de patrulha –, quis aplicar logo castigos públicos, escondendo fragilidades e assim aumentar a sua aura de homem providencial – o homem providencial e populista que, ainda há pouco tempo, no passado mês de Maio, garantia que se “a NATO nos exigir, vamos morrer onde tivermos de morrer para a defender”. Deve ter falado por todos, menos por ele.

    Recordemos que Gouveia e Melo, violando a decência e estuprando a honra militar, foi célere a ir à Madeira dar uma reprimenda aos militares do NRP Mondego em praça pública, em púlpito virado para as câmaras de televisão, logo no dia seguinte. Não foi só humilhante; foi um claro sinal de justiceirismo. Gouveia e Melo empenhou os meios da Marinha para aplacar a sua fúria sobre os militares que mostraram a vergonhosa situação de um país com uma quase inigualável História Naval, em vez de assumir falhas estruturais. Depois daquela aparição, e de notícias nunca desmentidas de que penas dos sargentos seriam agravadas para “sublinhar o grau de responsabilidade“, só se poderia esperar um julgamento militar justo sob uma condição: sem Gouveia e Melo como Chefe do Estado-Maior da Armada.

    NRP Mondego

    Por esse motivo, quando o comunicado de ontem da Marinha – que, obviamente, ainda tem o dedo de Gouveia e Melo, pois somente deixará as suas funções no próximo dia 27 – diz que o acórdão do TCAS, iniciado com uma feliz formulação (“Em Nome do Povo”), se refere ao “castigo aplicado pelo Comandante Naval, e não pelo Chefe do Estado-Maior da Armada, como está a ser referido”, não entramos somente num jogo de semântica e de manipulação. Estamos perante uma descarada tentativa de desresponsabilização e de falsificação moral da realidade. Não é um mero jogo de palavras; é uma demonstração inequívoca de subversão dos factos para proteger a vaidade e o ego de quem prefere escapar ileso ao peso das suas acções. Isto não é liderança; é um exercício de mesquinhez que deixa, não uma sombra, mas uma nódoa de oportunismo e ausência de carácter.

    Senão vejamos, e até ‘descontando’ o manifesto interesse de Gouveia e Melo, logo em Março do ano passado, de castigar os alegados insubordinados, descartando responsabilidades atribuídas a si, como líder da Marinha.

    Com efeito, o acto considerado nulo pela TCAS não é um processo que “diz respeito ao castigo aplicado pelo Comandante Naval”. Aquilo que foi considerado nulo foi, objectiva e juridicamente, o acto de 1 de Julho de 2024. citado logo na primeira página do acórdão, “proferido pelo CHEFE DO ESTADO MAIOR DA ARMADA – CEMA, que indeferiu o recurso hierárquico interposto” pelos militares. Ou seja, o acto de Gouveia e Melo.

    E esse acto de Gouveia e Melo não é um acto de somenos importância, uma assinatura de cruz, a concordar com os castigos aplicados pelo Comandante Naval; é sim um longo despacho que o acórdão do TCAS transcreve ao longo de 13 páginas. Repito: 13 páginas, o que significa que houve uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze páginas, onde Gouveia e Melo – mesmo não as tendo escrito – concordou com todos os procedimentos seguidos pelos subordinados (e controlados) que conduziram o processo disciplinar aos militares que ele queria ver castigados.

    Jamais pode Gouveia e Melo, com um pingo de decência, tentar passar pelos pingos da chuva e achar que nos consegue convencer que não foi conivente com a nomeação como instrutor de um oficial que foi envolvido nos factos que resultaram em responsabilidade disciplinar, que houve limitações na defesa dos militares e alegados atropelos na produção de prova e à pronúncia sobre a prova carreada para os autos.

    Início do acórdão do TCAS, “em nome do Povo”, que identifica o acto que foi sujeito à providência cautelar.

    Aliás, basta verificar a forma como o despacho – considerado cheio de nulidades pelo acórdão do TCAS – expressa a opinião de Gouveia e Melo face aos argumentos da defesa dos militares.

    Vejamos no caso de ter sido nomeado um instrutor que esteve directamente envolvido nos acontecimentos – uma falha grave detectada pelo TCAS –, Gouveia e Melo escreve no despacho:

    Como tal, no meu despacho de 10.07.2023, para o qual remeto no aplicável, indefiro o incidente de suspeição do VALM CN [Vice-Almirante Comandante Naval], por não resultar dos autos qualquer evidência de um eventual preconceito ou interesse pessoal deste contra os Recorrentes, que possam indiciar, com o mínimo de objetividade, uma violação dos princípios de isenção e de imparcialidade, ao ponto de comprimir ou sonegar as suas garantias de defesa. Do supra exposto, resulta, então, inequivocamente, que o oficial instrutor e o VALM CN se encontravam plenamente legitimados para intervir no processo disciplinar, improcedendo, sem mais considerações, o que foi propugnado pelos Recorrentes sobre a falta de imparcialidade ou de isenção destes.

    Ou seja, Gouveia e Melo tinha obrigação de saber que havia uma ilegalidade, e fazer justiça – recusou e foi, assim, o responsável máximo pela concretização dos castigos, que se consumam apenas depois do recurso hierárquico.

    Sobre a situação de não terem sido concedidos os direitos aos militares durante o processo disciplinar – outra grave falha detectada pelo TCAS –, Gouveia e Melo escreve no seu despacho:

    Acresce também referir que, no âmbito do seu processo formativo, os militares são elucidados sobre os diplomas regulamentares fundamentais da Marinha, entre eles, o RDM [Regulamento de Disciplina Militar], pelo que não colhe invocar a ignorância sobre os conceitos legais aí prescritos, nomeadamente do direito ao silêncio e da constituição de defensor, para o efeito previstos no artigo 77.º e no n.º 3 do artigo 94.º, para arguirem, sem mais, a nulidade da prova produzida.

    Sobre o direito de os militares poderem requerer diligências, até para se provar que o NRP Mondego não reunia mesmo as condições de navegabilidade em 11 de Março – tanto mais que foram levantadas suspeitas de eliminação de provas sobre o estado do navio –, Gouveia e Melo mostrou-se extremamente claro em concordar com o instrutor. Vale a pena citar esta parte do seu despacho:

    Idêntico raciocínio e linha orientadora se aplica, aliás, à restante prova requerida, como o pedido de reconstituição dos factos ocorridos no dia 11.03.2023 no NRP Mondego com a presença de toda a guarnição, incluindo os arguidos, e submetidos às condições meteorológicas existentes à data. É que tal reconstituição, além de impertinente e dilatória, afigurava-se objetivamente inexequível, não só pela impossibilidade de se garantir o exato estado operacional do navio à data dos factos, como a questão das condições meteorológicas e da missão que lhe fora atribuída, neste caso, por ser impossível posicionar o navio russo no local e nas coordenadas em que se encontrava.

    Concomitantemente, não se podia também deixar de atender aos elevados encargos financeiros que uma operação com essa envergadura acarretaria, para não mencionar os prejuízos para a atividade operacional e, por conseguinte, para o interesse público prosseguido pela Marinha.

    Quanto à recusa do pedido de prova pericial, concretizado pela inclusão de um perito designado pela defesa para inspecionar o navio, deveu-se, essencialmente, ao facto de já ter sido efetuada uma inspeção técnica ordenada pela Superintendência do Material, do qual emergiu o devido relatório, traduzindo-se numa produção antecipada de prova, cf. artigo 419.º do CPP, subsidiariamente aplicável, justificada com o receio de vir a tornar-se difícil, senão impossível, a sua realização a posteriori e nas mesmas condições. E acresce que, ao contrário do pretendido pelos Recorrentes, sempre seria inadmissível a inclusão de peritos externos à Marinha, pois, tratando-se de um ramo das Forças Armadas, e ante as missões que lhes são cometidas, acarretaria riscos para a segurança nacional, que sempre se impõem salvaguardar.

    Também não se mostra atendível o facto de terem suscitado a falta de imparcialidade do relatório junto do processo de inquérito que corre termos no DIAP de Lisboa sob o Proc. n.º 43/23.6NJLSB, pois, além da jurisdição disciplinar se distinguir da jurisdição penal, enquanto decorrência do princípio da independência previsto no n.º 1 do artigo 9.º do RDM, facilmente se infere que o simples facto de terem peticionado uma nova peritagem na instância criminal, não afasta nem sonega a prova pericial que foi admitida no processo disciplinar.

    Este tipo de argumento é extraordinário. Como pode o líder da Armada – com sonhos de ser um Presidente da República – blindar decisões questionáveis sob o manto da autoridade e do interesse público, sacrificando a justiça e os direitos dos seus militares? Argumentar que uma reconstituição dos factos seria “impertinente e dilatória” porque não se poderia recriar o “exato estado operacional do navio” ou as “condições meteorológicas” é desviar o foco do essencial: a busca pela verdade.

    Em 16 de Março, poucos dias depois do incidente, Gouveia e Melo foi pessoalmente dar uma repreensão, em palanque…

    Como Presidente da República, irá também relativizar ou ignorar a lei sempre que considerar que o seu conceito de ‘interesse público’ é mais relevante? Esse padrão de comportamento não é apenas perigoso, mas profundamente incompatível com a dignidade do cargo que aspira ocupar.

    Mais extraordinário ainda é Gouveia e Melo considerar inadmissível a inclusão de peritos externos à Marinha, sob o pretexto de riscos para a Segurança Nacional. Esta linha de raciocínio revela uma recusa em aceitar escrutínio independente, essencial para garantir a transparência e a credibilidade de qualquer investigação. A Segurança Nacional é uma preocupação legítima, mas invocá-la como obstáculo absoluto apenas levanta mais dúvidas sobre a lisura do processo.

    Por fim, a rejeição da imparcialidade do relatório técnico, escudando-se numa suposta independência entre jurisdição disciplinar e penal, é um malabarismo argumentativo. É como se a existência de uma verdade objectiva fosse irrelevante, desde que os processos internos possam ser conduzidos sem questionamentos externos.

    Por tudo isto, o comunicado da Marinha não faz mais do que reforçar a impressão de que há algo a esconder. Quando a lógica se torna um exercício de obstrução, em vez de um caminho para esclarecer os factos, o verdadeiro interesse público é o primeiro a ser traído.

    … e na presença da comunicação social.

    Pessoalmente, até aceito que um cidadão queira salvar o coiro quando é apanhado com as calças na mão depois de uma patifaria. Mas, caramba, Gouveia e Melo é ainda um militar, líder da Armada e putativo candidato a Presidente da República, levado aos ombros por certa imprensa. Deveria, pelo menos, comportar-se como um adulto mediano, e assumir as suas responsabilidades no decurso de um processo disciplinar iníquo.

    Quando um líder da Armada, com ambições presidenciais, opta por usar o peso da sua posição para esconder fragilidades e desviar responsabilidades, e ainda usa os recursos de comunicação para manipular a realidade, a mensagem que transmite não é apenas de fraqueza, mas de indignidade. Por isso, Gouveia e Melo mostra ser um homem sem qualidade – ou, pelo menos, um homem com uma única má qualidade: a mesquinhez.


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  • A ingénua busca do Eldorado

    A ingénua busca do Eldorado


    Infiltrara-se em Artur Matos uma inquietação quase impercetível desde que aceitara a encomenda de Elias Mukuba. Não era apenas o peso da tarefa, ou as sugestões habilidosas do angolano que se impunham como exigências. Era algo mais profundo, uma sensação persistente, uma moinha incómoda que o observava com um olhar inquisidor e de desconfiança sempre que estava não apenas a escrever, mas também a respirar.

    Embora estivesse em África há mais de dois anos, somente na primeira conversa com Mukuba, e consequente início da feitura do livro, Artur sentiu que estar numa terra outrora subjugada pelos seus antepassados era uma forma de exílio peculiar. Não era exilado de um território físico, mas de um lugar onde a sua voz pudesse ser ouvida sem suspeição.

    Essa desconfiança, compreensível e desconfortável, andava agora a assombrá-lo. Reconhecia que, como português, carregava o fardo de uma História que nunca vivera, mas cuja sombra parecia inevitavelmente moldar a sua presença. Mais do que uma barreira de comunicação, era um abismo moral. Como alguém que herdou o privilégio e a memória selectiva de uma potência colonial, poderia ele contar a História de Benguela com a autenticidade que Mukuba exigia?

    A questão não era apenas intelectual; era visceral, uma colisão entre a vontade de narrar e a impossibilidade de o fazer sem ser julgado. Artur tentava racionalizar o paradoxo. Afinal, as palavras eram livres, não eram? A linguagem, pensava ele, constituía, assim com esse tom formal, a ferramenta universal para superar as barreiras da História e das identidades. Porém, esta certeza tremia, ou soçobrava mesmo, quando confrontada com a verdade de que as palavras que escolhia carregavam o peso das escolhas que outros fizeram antes dele.

    Por exemplo, como explicar, sem paternalismo, sem nostalgia ou heroísmo, o avanço dos portugueses pela costa africana? Como descrever sem cair no erro de romantizar o roubo ou de demonizar a sobrevivência? Cada linha que escrevia parecia uma ponte frágil sobre águas tumultuosas.

    E havia ainda a questão da vontade própria. Mukuba, com a sua presença imponente e as críticas afiadas, tinha um poder que não era apenas editorial. Ele era o filtro entre Artur e o público. Seria possível encontrar a verdade na História de Benguela sem essa verdade relatada por um escritor alóctone passar pelo crivo de um editor autóctone? Artur já se conformara que, ali, não se livraria de responder, ou corresponder, a vontades alheias, tanto as de Mukuba quanto as da História maior que pairava sobre ambos.

    E foi nesse estado de espírito que Artur escreveu, reescreveu, reformulou, poliu e refinou o segundo capítulo da História de Benguela, embora ciente de que qualquer palavra arriscaria ser palco de uma batalha entre o que queria dizer e o que seria aceite.

    Os portugueses foram, de facto, os primeiros a olhar para a costa africana com os olhos gulosos de quem procura tesouros onde antes havia apenas lendas”. Esta frase inicial, tão cuidadosamente pensada, permanecia no texto, mas já lhe parecia carregar uma intenção com diversas leituras. Artur sabia que as palavras não podiam apenas relatar os factos; precisavam de reconhecer as nuances, os desalinhamentos de poder e as perspetivas que eram frequentemente varridas para debaixo do tapete.

    Portanto, na reunião semanal, foi ali logo que Mukuba encalhou.

    – “Tesouros onde antes havia apenas lendas”? – começou, pousando o manuscrito com uma leveza que desmentia o peso das suas palavras. – Parece-me, Matos, que continua a escrever com os olhos cobiçosos dos seus antepassados, de quem chegou para explorar, e não de quem sofreu a exploração.

    Artur, já habituado às críticas, manteve a compostura. Sabia que responder impulsivamente seria um erro.

    – É uma forma de enquadrar a perspectiva europeia sem a endossar – argumentou, controlando a voz. – Não digo que havia apenas lendas, mas que era assim que os navegadores viam a costa. Para eles, era um mapa em branco, mesmo que não fosse. Acreditavam que a seguir ao Bojador, o abismo os engoliria…

    Mukuba inclinou-se para a frente, os olhos semicerrados como se tentasse avaliar até onde Artur acreditava naquilo que dizia.

    – Muito bem, mas pergunto: e para os que viviam aqui? Acha que o “mapa em branco” não tinha já marcas de sangue, comércio e pertença? É isso que tem de mostrar, Matos. Senão, o seu texto será só mais um a perpetuar a história de uns indignos vencedores.

    Artur não tinha resposta imediata, mas percebias as razões de Mukuba. A dificuldade estava, porém, em encontrar a forma de equilibrar a narrativa, que mostrasse, sem ofender mais, que existiam diferenças de tecnologia, de avanço entre europeus e africanos naquelas épocas. Manteve-se calado, a escutar enquanto o editor dissertava.

    – Matos – continuou Mukuba, já num tom de quem conversa com um adolescente preguiçoso –, “tesouro” não é apenas ouro, prata e pedras preciosas. Para os povos que aqui viviam já, o tesouro era a terra. Ou acha que as conchas, o peixe, os zimbos, e até o sal não tinham valor? Tem de abandonar a lente do navegador europeu.

    Artur respirou fundo. De todas as frases que ouvira até então, esta era a que mais o enervava. “A lente do navegador europeu” era quase um insulto, e Mukuba detinha um talento especial para atingir nervos expostos. Artur viu-se a reagir.

    – Elias, desculpe dizer-lhe, mas se a tarefa é contar a História de Benguela, tem de se começar com os navegadores. Foram eles os primeiros a registar, em escrita, o que encontraram.

    Mukuba apoiou-se na cadeira, os dedos entrelaçados em frente ao rosto, os olhos semicerrados como se fosse um professor cansado das desculpas de um aluno.

    – E os que já estavam lá, Matos? Não percebe que a História já estava escrita, mesmo que não com a sua preciosa tinta europeia? – Mukuba inclinou-se ligeiramente, os dedos a tamborilar na mesa. – Cada sulco no chão, cada canção que ecoava nas libatas, era já uma linha dessa história. Vocês, europeus, só chegaram e rasgaram as páginas.

    Artur abriu a boca para ripostar, mas Mukuba levantou a mão num gesto que dizia, sem palavras, que ele ainda não tinha acabado.

    – E já agora, se vai usar o termo “temeridade”, explica-me isto: o que é mais temerário, Matos? Navegar mares desconhecidos ou sobreviver ao saque e à pilhagem de invasores que chegam com armamento que nunca viram na vida?

    Caiu um silêncio na sala. Elias gostava de pausas dramáticas, mas Artur não lhe queria dar o prazer de o sentir intimidado. Ajustou os papéis que tinha à frente como quem afirma que ainda detém o controlo.

    – Concordo que sobreviver é bastante temerário nessas circunstâncias – concedeu Artur, sabendo que, em situações como aquela, a diplomacia era uma excelente maneira de salvar o pouco de auto-estima que ainda tinha, sentindo que os dólares lhe faziam falta se não os tivesse. – Mas isso não anula o feito de desafiar o Cabo Bojador. A História tem de reconhecer que havia coragem e ousadia no gesto dos portugueses.

    Elias soltou uma gargalhada seca.

    – Claro. Coragem e ousadia. Foi isso que motivou Gil Eanes e os seus patrícios – ironizou Mukuba, com um riso seco. – Coragem e ousadia. Não foi a vontade de agradar ao rei nem a ganância de ser o primeiro a trazer boas novas. Não, foi coragem pura, e a límpida ousados, virtudes desinteressadas, quase angelicais.

    Artur não respondeu, desviou o olhar, ajustando os papéis à sua frente. Começara a habituar-se àironia afiada de Elias. Em vez de contra-argumentar, quis que ele avançasse para os parágrafos seguintes, onde nenhum tom apologético sobressaía. Artur mergulhara em relatos precisos sobre as primeiras viagens de Diogo Cão, que em 1483 avistara a foz do rio Congo. Era impossível, julgava, não se fascinar com os detalhes: os padrões erguidos nas praias, as trocas hesitantes entre marinheiros e nativos, e até a audácia de levar reféns para Portugal, como se fossem amostras de uma terra distante. Era História pura, com todas as suas contradições.

    Mas, claro, Mukuba tinha as suas opiniões.

    – A sua narração parece um diário de aventura, Matos. – Ele apontava com o lápis para o parágrafo onde Artur descrevia os “encontros cautelosos” de Diogo Cão com os nativos. – “Cautelosos” é uma palavra gentil, não acha? Especialmente quando sabemos que esses encontros acabavam com reféns e pilhagens.

    – Elias, tentei equilibrar o tom. Se for demasiado crítico ou cáustico, ninguém vai ler isto sem pensar que é propaganda.

    – Propaganda, Matos? Chamar as coisas pelo nome é propaganda? Se os portugueses capturaram pessoas, então escreva: capturaram. Não diga “acolheram” ou “receberam”. Escreva: roubaram.

    Artur saiu da reunião com mais um maço de dólares, e enfiou-se em casa. E assim os padrões deixaram de ser símbolos de progresso para maculados marcos de uma posse ilegítima. E as viagens, que antes soavam como jornadas heróicas, tornaram-se episódios de exploração mascarados de descoberta.

    Dias depois, enviada a versão revistas, Mukuba ligou-lhe.

    – Vê, Matos? Nem eles encontraram o ouro que procuravam até Angola, e isso porque estavam cegos pela ganância. A verdadeira riqueza de África sempre esteve nas pessoas, na terra, na cultura. Mas isso nunca foi suficiente, pois não?

    Artur não respondeu logo. No outro lado da linha, fechou os olhos por um momento, tentando não explodir.

    – Elias, este livro tem de ser um diálogo entre o que sabemos hoje e o que foi feito na altura – retorquiu Artur, controlando a voz –. Não posso mudar o passado. Só posso contar a História.

    – Mas a História tem sempre duas faces: uma História certa e a uma História errada, Matos. E a História certa não é só a dos conquistadores; é a de quem resistiu.

    No final, mais uns dias transcorridos, o segundo capítulo tornou-se uma narrativa de desencontros. Relendo o texto antes de o enviar a Mukuba, Artur sentia um desconforto crescente, como se cada frase cedida fosse também uma concessão da sua integridade enquanto escritor. Era verdade que o texto estava mais equilibrado, mais sensível às vozes e sensibilidades de quem resistira, mas a sensação de perda da sua autonomia permanecia.

    Ele questionava-se: onde terminava a honestidade histórica e começava a imposição de uma narrativa alheia? Seria ele um escritor genuíno ou apenas um escriba a soldo, como constava terem sido os cronistas de antanho, moldando as palavras para agradar à crítica do poder e às expectativas de uma leitura contemporânea? Cada linha parecia agora carregada de um peso que não lhe pertencia inteiramente, como se a sua voz fosse agora somente um fino eco moldado pelas vontades alheias.

    Ao ceder à inclusão do diálogo ficcional entre Diogo Cão e o soba, Artur sentiu-se especialmente vulnerável. Não que o diálogo fosse desonesto ou inverosímil – pelo contrário, ele sabia que trazia vida à narrativa –, mas a sensação de ter sido forçado a imaginar aquelas palavras fazia-o questionar a fronteira entre História e ficção.

    No entanto, outra parte de si sentia-se estranhamente orgulhosa. A versão final, por mais distante que estivesse da sua visão inicial, parecia mais completa, mais fiel à complexidade dos eventos que narrava. Era como se o conflito com Mukuba fosse uma espécie de cadinho literário, onde a sua escrita era testada, desafiada e, no fim, refinada. A questão primordial se mantinha, porém: até que ponto essa, diga-se assim, maturidade não era, na verdade, uma capitulação? Enquanto imprimia o manuscrito, Artur sentiu-se dividido entre a sensação de ter criado algo de valor e o receio de que, ao fazê-lo, tivesse traído algo de essencial em si mesmo. “Talvez escrever História não seja diferente de navegá-la”, pensou, um sorriso cansado surgindo no canto dos lábios. “Ambos exigem que nos adaptemos às marés, mesmo quando elas nos afastam da rota que julgávamos certa.”

    Artur terminara o capítulo com a chegada dos portugueses à região de Benguela, ainda esperançosos de ambição, mas prenunciando hostilidades e desilusões. Tudo isto se tornara um compromisso desconfortável, mas necessário. E quando recebeu nova chamadade, Artur não conseguiu evitar perguntar, ao telefone, quando o editor lhe anunciou a aprovação:

    – Está feliz agora?

    Mukuba respondeu-lhe apenas:

    – Não, Matos… Mas está melhor.

    [continua…]


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  • A prodigiosa vida e os estupendos milagres do verdadeiro Pai Natal

    A prodigiosa vida e os estupendos milagres do verdadeiro Pai Natal

    O verdadeiro Pai Natal não nasceu na Lapónia, mas sim na Anatólia, actual Turquia. Tendo vivido nos séculos III e IV, o arcebispo de Myra de seu nome Nicolau andou por terrenos e tempos atribulados, ao longo do antigo Império Romano, que só com o imperador Constantino se tornaria cristão. A sua fama de benemérito inspirou em 1823 um professor norte-americano a “criar” o Pai Natal, que viria depois a ser aproveitado pela Coca Cola para uma campanha de marketing. Mais fantasiosa ainda é, contudo, a sua hagiografia – isto é, a sua vida em livro – escrita por um padre português do século XVIII, João Antunes Monteiro, prior da alfacinha freguesia de São Nicolau e influente conselheiro do rei D. João V. Nem contada nem lida se acredita.


    Na véspera de Natal de 1822, o norte-americano Clement Moore, professor de grego contou aos seus filhos, através de um poema, a história de um certo Nicolau, por sinal santo homem da Igreja Católica do século IV, que viajava num trenó puxado por renas, desde o pólo Norte, e distribuía brinquedos pelas crianças, enfiando-se pelas chaminés.

    A fábula pegaria bem de estaca nas décadas seguintes, alimentando-se também de aspectos do folclore alemão e holandês, que então celebravam a data da morte de São Nicolau – dia 6 de Dezembro – com a oferta de prendas.

    São Nicolau de Myra.

    Daí até se encontrar uma figura para o mais famoso e aguardado velhinho foi um pulo. Na segunda metade do século XIX, vários cartoonistas criariam uma iconografia, sempre em evolução: primeiro a preto e branco, mais tarde, já na terceira década do século XX – através de uma campanha de marketing da Coca Cola – com as suas inconfundíveis roupas vermelhas e brancas.

    As primeiras versões do Santa Claus – a alteração fonética da fusão do alemão Sankt Niklaus e do holandês Sinterklaas – até foram pouco politicamente correctas: o velhinho, mais do que bonacheirão – na verdade, a barriga era descomunal –, promovia o tabagismo.

    Os primeiros cartoons – desenhados por T. C. Boyd, F. O. Darley e, sobretudo, pelo anticlerical Thomas Nast – apresentavam-no quase invariavelmente com um fumegante cachimbo nos beiços.

    A Igreja Católica, claro, não apreciou muito. E se, porventura, os autores da brincadeira tivessem vivido um século antes teriam tido problemas. Parodiar um santo do quilate de Nicolau de Myra seria então inadmissível; heresia, no mínimo, com direito, eventualmente, ao crepitar de lenha.

     Ilustração de Thomas Nast de 1881 do Pai Natal

    Se São Nicolau parece ter sido, de facto, um bom filantropo, as suas vidas – a terrena e a celestial – mostram que foi homem que, embora piedoso, não andou por aqui em grandes brincadeiras. O próprio diabo que o diga, que supostamente sofreu amarguras diversas sempre que com ele se cruzou. Pelo menos é o que mostram os biógrafos deste santo, em escritos fantásticos disseminados ao longo dos séculos. Uma dessas biografias – que bebeu inspiração a vários sermões seculares – até é bem portuguesa; publicada em 1720, pelo então prior da paróquia lisboeta de São Nicolau, João Antunes Monteiro.

    Este padre foi, curiosamente, uma figura preponderante na Corte lusitana da primeira metade do século XVIII. Era para o rei D. João V, aquilo que porventura Vítor Melícias foi para o antigo primeiro-ministro António Guterres.

    Ou seja, o prior da alfacinha paróquia de São Nicolau – no centro da Baixa, que foi freguesia até 2013, estando agora integrada na de Santa Maria Maior – era um dos conselheiros predilecto do Magnânimo, não apenas espiritual, mas também em negócios de Estado. Por exemplo, chegou a desempenhar funções de gestão em algumas fases da construção do Aqueduto das Águas Livres. A sua influência no Terreiro do Paço foi tanta que não admira que a dita biografia do nosso Pai Natal – pomposamente intitulada Breve compêndio da prodigiosa vida e estupendos milagres do glorioso Arcebispo de Myra S. Nicolao Taumaturgo, advogado universal de todos os peccadores – tivesse sido oferecida à Virgem Maria pela soberana, augusta e excelsa mão do magnânimo, generoso, esclarecido e sempre memorável monarca D. João V Nosso Senhor”, conforme consta no frontispício. Portanto, estamos perante uma obra escrita para ser levada a sério. Na verdade, muito a sério – naquela época, claro.

    A linguagem usada pelo padre João Antunes Monteiro na biografia de São Nicolau torna-se deliciosa – alguns poderão dizer delirante – pela forma como descreve, em minuciosos e mirabolantes detalhes, a vida daquele santo. Embora não existam quaisquer documentos, as biografias apontam para o ano de 270 depois de Cristo, na antiga cidade marítima de Patara, uma região de Lycia, na actual Turquia. Na Anatólia, portanto – um tanto afastado da comercial aldeia do Pai Natal, na Lapónia.

    E por falar em Jesus Cristo, saiba-se que as hagiografias dizem que São Nicolau teve um nascimento, supostamente a 15 de Março, com contornos semelhantes. Com efeito, remetendo para a biografia do padre João Antunes Monteiro, os pais do santo – Epifânio e Joana – “sendo casados em muita paz, concórdia e santos costumes” desejavam um filho. E tantas instâncias fizeram que a Virgem Maria “apresentou no Consistório da Santíssima Trindade” aqueles desejos paternais, pelo que, pouco tempo depois, “lhe enviou o Senhor do Céu um anjo que os certificou (…) que brevemente haviam de ter um filho muito mais santo e com muito mais préstimo para o serviço de Deus do que tinham desejado”. E assinalou-lhes ainda o dia e hora da chegada.

    A Coca Cola “apropriou-se” do Pai Natal na década de 20 do século XX, dando-lhe o “formato” que hoje conhecemos.

    O recém-nascido parece ter dado sinais de evidente santidade logo que viu a luz do dia. Estava a parteira para o lavar e “ele se pôs de pé com muita notável firmeza (…), com os olhos postos no Céu e as mãos erguidas e postas sobre os peitos”. São Vicente Ferrer – um clérigo do século XIV, actual patrono da Comunidade de Valência – diria que aquele prematuro acto era de agradecimento a Deus por “o ter feito criatura racional à sua imagem e semelhança e porque o tinha livrado dos perigos que poderia ter dentro do cárcere do ventre de sua mãe”.

    Foi por este prodígio que São Nicolau se tornou também, em muitos países, o santo protector dos partos difíceis. Depois disto, o facto de ele, por “mais meiguices que sua mãe lhe fazia para tomar o peito”, ter jejuado, com precisão, às quartas e sextas-feiras, já não pode causar muita admiração ao mais cépticos…

    O seu primeiro grande milagre estava, porém, reservado para a idade escolar, antes de completar os sete anos, segundo a biografia setecentista. Como os pais eram ricos, costumava ele levar dinheiro para distribuir pelos pobres antes de entrar na sala de aulas. Consta que, em certo dia, uma pobre aleijada chegou atrasada, devido à deformidade, e lastimou-se da sorte. Pois bem, o pequeno Nicolau condoeu-se e “levantando o coração a Deus”, fez o sinal da cruz sobre a cabeça da rapariga e disse: “Em nome do Senhor Jesus Nazareno, levanta-te e anda”. O resultado, claro, foi imediato!

    Mas foi em artes da ressurreição que Nicolau de Myra deu cartas, de acordo com os seus biógrafos. E aqui bateu mesmo Jesus Cristo, que apenas fez Lázaro regressar à vida. O primeiro lote de ressuscitados ocorreu ainda na sua adolescência, durante uma peste na região de Lycia. O padre João Antunes Monteiro diz mesmo que “Deus o conservava para ressuscitar mortos” ou coloca como hipótese que “temeu a morte ter encontros com quem a podia consumir e sepultar”.

    Mesmo assim, não teve dotes para salvar os progenitores, embora o prior lusitano informe que a Virgem Maria “lhe limpava as lágrimas e o consolava, mostrando-lhe no Céu as almas dos seus pais entre os coros dos Bem-Aventurados.

    Herdada a fortuna dos pais, Nicolau pôde então dar largas à sua costela filantrópica, que está na base da fábula do Pai Natal. O seu lusitano biógrafo destaca sobretudo a história de um velho viúvo com três filhas donzelas, a quem o demónio tentava, a expô-las ao perigo de perder a castidade” – que é, como quem diz, a prostituí-las.

    Biografia do padre João Antunes Monteiro, publicada em 1720, prior da freguesia de São Nicolau, então pertencente a Lisboa Ocidental.

    Assim, certa noite, Nicolau decidiu deitar anonimamente, pela janela da casa do velho, uma bolsa de ouro suficiente para pagar o dote da primeira filha. Na segunda noite, repetiu a dose, para outra filha. E o mesmo sucedeu na terceira, para a última.

    No entanto, desta vez, o velho fez uma espera e surpreendeu o benemérito, pelo que Nicolau fez-lhe prometer que não divulgaria a sua acção. A manutenção do segredo custou alguns dissabores ao velho, porque o seu tão repentino enriquecimento causou murmuração entre a vizinhança. Como é normal, estes “mais depressa se inclinaram a julgar mal do que bem”, pelo que, para salvar a honra do velho, Nicolau de Myra se viu na contingência de se denunciar como o obsequiador.

    A sua entrada num mosteiro, em data desconhecia, teve como consequência um aumento dos seus milagres, que se sucederam em catadupa, quase sempre tendo o demónio por inimigo. Os seus sucessivos exorcismos até levam mesmo o diabo, certa vez, a lamentar-se: “Ai que Nicolau me vence em tudo e não me deixa executar meus intentos”, assim relata o padre João Antunes Monteiro.

    E como o dito belzebu já não conseguia endemoninhar ninguém, decidiu, noutra ocasião, incendiar uma cidade, mas Nicolau interveio mais uma vez, pelo que o fogo se extinguiu sem deixar lesão alguma nos edifícios. À conta disto, Nicolau também se tornou o padroeiro contra os incêndios urbanos.

    Pouco tempo depois, faria ele uma viagem até à Terra Santa, seguindo os passos de Cristo, tendo os anjos como cicerones, segundo o seu biógrafo. E pelo caminho foi curando enfermos, cegos, surdos, paralíticos e um ou outro endemoninhado. Regressado ao seu mosteiro, teve tempo ainda para multiplicar um pão para dar de comer a 70 operários que estavam construindo uma igreja. E como estes, mesmo de barriga cheia, não conseguiram mover uma grande coluna, Nicolau benzeu a gigantesca pedra e, com a ajuda de apenas dois clérigos, colocou-a no sítio exacto.

    Pouco depois de ter sido nomeado arcebispo de Myra – cargo para o qual tinha recebido três premonições, a última das quais envolvendo Cristo –, houve de obrar mais uma fantástica ressurreição. Dois estudantes de Atenas, em peregrinação, acabaram na salgadeira de um estalajadeiro, cortados em postas. Nicolau, sendo avisado pelo Espírito Santo, obrigou o estalajadeiro a mostrar-lhe os despojos e, juntando-os, ressuscitou os jovens.

    Situação similar terá ocorrido anos mais tarde, numa viagem até Roma. Neste caso, Nicolau descobriu a malvadez de outro estalajadeiro que lhe apresentou um prato de carne retirada de três mancebos, em vez do atum que lhe pedira. Nesta mirabolante viagem, conforme a descrição do padre João Antunes Monteiro, até os animais beneficiaram das suas artes.

    Passagem da biografia onde se destaca a acção de oferta “furtiva” de São Nicolau de Myra.

    Numa noite, perto de Bari, mais outro estalajadeiro foi tentado pelo demónio e, porque o arcebispo de Myra e o seu companheiro fizeram parca despesa, cortou as cabeças dos burros que os transportavam. Na manhã seguinte, ainda um pouco antes da aurora, perante aquele espectáculo, Nicolau mandou coser as cabeças aos respectivos corpos dos burros – ressuscitaram, claro. Com um pequeno percalço nesta operação sem luz, quase às cegas: os burros ficaram com as cabeças trocadas. Ou seja, o burro que era branco ficou com a cabeça do burro que era preto; e ao preto, claro, restou-lhe a cabeça do branco.

    Ainda antes destas aventuras, Nicolau chegou a ser perseguido, preso e mais tarde deportado, durante a época de Lícinio, que liderou o Império Bizantino entre os anos de 313 e 324, quando então foi derrotado por Constantino, o Grande, que concedeu liberdade religiosa aos cristãos. A partir daí tudo se alterou para Nicolau de Myra; mandou arrasar templos pagãos – em especial os dedicados a Diana –, substituindo-os por igrejas. No meio deste processo, a biografia do nosso prior lisboeta diz que os demónios se lamentavam e berravam pelos ares, “testemunhando que iam vencidos pela virtude de Nicolau”.

    Na biografia escrita pelo padre João Antunes Monteiro existem mais uns quantos prodígios obrados por Nicolau de Myra até à sua morte aos 65 anos, supostamente no dia 6 de Dezembro – aliás, a data em que o calendário litúrgico e alguns países o evocam. A causa é desconhecida, mas não terá sido mártir.

    Cripta na igreja de Bari, onde estão depositadas as ossadas de São Nicolau.

    Se a vida lhe cessou, os milagres não. Daí que a segunda metade do livro do padre João Antunes Monteiro, a partir da página 113, seja ocupada a detalhar a infindável quantidade de curas milagrosas e mais ressurreições, por via do maná que saía ininterruptamente do seu corpo, enterrado na zona de Myra.

    Na verdade, eram dois, os manás: um que lhe brotava da cabeça, com a consistência de óleo; outro que lhe escorria dos pés, com aspecto aquoso. Na lista de supostos beneficiados pelos poderes desse santo maná, conforme o relato do seu lusitano biógrafo, constam mesmo duas portuguesas, que no início do século XVIII sofriam de supostas febres malignas.

    Mas, nessa altura, as ossadas de Nicolau já há muito se encontravam em Bari, na Itália. Em 1087, umas dezenas de marinheiros e clérigos conseguiram, no meio de algumas peripécias, roubar as relíquias do santo da sua sepultura original em Myra, região entretanto perdida em 1071 pelo cristão Império Bizantino, no decurso da batalha de Manzikert, para o islâmico Império Seljúcida.

    toddler in black sweater standing in front of Santa Claus

    A chegada desta comitiva com as santas ossadas a terras italianas foi celebrada ao som de sinos, tambores e clarins. Mas essa alegria acabou em tragédia: como o bispo de Bari e os aventureiros não se entenderam quanto ao local para depositar as ossadas, entraram em vias de facto. E daí a pouco “houve pendência, e nela mortes e feridos”.

    O nosso biógrafo lusitano do Pai Natal não esclarece se, após esta estapafúrdia batalha campal, houve ressurreições por intercessão de São Nicolau. Apenas informa que as ossadas acabaram transladadas pelo papa Urbano II para a actual Igreja de São Nicolau. Depois, a biografia é rematada com uma novena. Amen


    N.D. Uma primeira versão deste artigo foi publicada no final de Dezembro de 2006 na extinta revista GR-Grande Reportagem.


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  • O poder da ilustração

    O poder da ilustração

    Título

    Arena

    Autor

    JOÃO FAZENDA

    Editora

    Tinta da China (Novembro de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Reunindo duas décadas de cartoons publicados pelo autor, inicialmente na revista Visão e, mais recentemente, no jornal Expresso, o livro ‘Arena’, de João Fazenda é uma obra que transcende a simples compilação de ilustrações; trata-se de um testemunho visual de um período marcado por acontecimentos políticos, sociais e culturais, capturados com a perspicácia de quem observou o mundo social e políticos com olhos atentos e um traço inconfundível.

    Sabe-se que, na imprensa, o título é por excelência o primeiro convite à leitura, que se insinua ao leitor, que o desafia e despertar curiosidade para a leitura. Mas, se o título é a primeira porta, as imagens – sejam fotografias ou ilustrações – são o impacto visual que pode determinar a permanência do olhar. As fotografias têm o poder de documentar, de capturar a realidade de forma imediata e emotiva. Contudo, mesmo quando uma imagem fotográfica pode valer mais do que mil palavras, há algo que frequentemente lhe escapa: a capacidade de transcender o momento captado e de oferecer uma crítica, uma reflexão ou uma síntese daquilo que se observa.

    E é aqui que entram as ilustrações, e, em especial, o trabalho de artistas como João Fazenda. As ilustrações não apenas acompanham ou embelezam; elas dialogam, desconstroem e reconstroem a realidade, conferindo-lhe novos significados. A ilustração editorial tem o poder único de condensar, num único quadro, aquilo que milhares de palavras talvez não consigam dizer com tanta clareza: a ironia, a denúncia, o absurdo ou até a esperança de uma situação. E João Fazenda é, sem dúvida, um mestre dessa arte.

    Por isso mesmo, se o objectivo inicial da ‘contratação’ de João Fazenda terá sido sobretudo ilustrar os textos de Ricardo Araújo Pereira, o humorista em muita razão, mesmo conhecendo-se a sua providencial pseudo-humildade auto-depreciativa, quando no prefácio escreve: “Como é evidente quando se abre o jornal, não é o desenho do João Fazenda que ilustra os meus textos, é o meu texto que acompanha os desenhos do João Fazenda. A primeira coisa que os leitores veem é o desenho. A seguir, tentam descobrir (os que se dão a esse trabalho) de que modo é que o texto se relaciona com ele”.

    Esta inversão de papéis sublinha, de facto, a força do traço de Fazenda, capaz de capturar a atenção e instigar uma leitura diferente, mediada pela imagem. E isso é mesmo verdade: folheando o livro, mesmo para quem leu pouco textos de Ricardo Araújo no original, se lembra de muitas das ilustrações- Até porque o traço de João Fazenda é único e marcante, com o seu estilo minimalista, satírico e profundamente simbólico, com formas simples e cores sólidas, mostra-se capaz de comunicar mensagens que combinam reflexão e leveza, evidenciando temas sociais e políticos muito abrangentes.

    Uma única nota: do ponto de vista editorial, teria sido útil, e não demasiado dificultoso, identificar, no final do livro, as datas das ilustrações, bem como dos textos originais. Em alguns casos, ajudaria a relembrar os “acontecimentos”, para quem os viveu; e para os mais jovens, seria um auxiliar para ‘identificar’ os protagonistas que eventualmente tenham saído da ‘cena política’ (que são pouco, porque são ‘perenes’, cá no burgo).

  • Covid-19: DGS quer despachar ‘sobras’ de uma vacina sem farmacovigilância adequada nem compensações por danos

    Covid-19: DGS quer despachar ‘sobras’ de uma vacina sem farmacovigilância adequada nem compensações por danos

    Num país que viveu a pandemia da covid-19 à cata de supostos ‘negacionistas anti-vacinas’ – que incluía quem se opunha à inclusão de jovens e adultos saudáveis nos planos de vacinação, ou considerasse que a imunidade natural era suficiente –, não deixa de ser lamentavelmente irónico que, no final de 2024, Portugal seja um dos poucos da Europa Ocidental que recusa falar das reacções adversas, não tendo montado qualquer plano de compensação das vítimas. E pior: num estranho tabu, o Infarmed nem sequer acompanha a evolução dos casos notificados. A desconfiança e o desamparo têm tido consequências: mesmo na população mais vulnerável, assiste-se a uma crescente recusa da vacina contra a covid-19. Este ano, em comparação com 2023, a ‘procura’ de reforço desceu quase 14%. Foram mais 204 mil portugueses que não quiseram saber da vacina contra a covid-19. E a Direcção-Geral da Saúde, em vez de promover uma melhoria da informação e pugnar pelo apoio às pessoas afectadas, decidiu-se por uma estranha solução: as vacinas que sobraram serão agora administradas no grupo etário dos 50 aos 59 anos. A saúde das pessoas pode ser ‘lixada’; as vacinas é que não podem ir parar ao lixo…


    Não existe qualquer motivo epidemiológico ou de Saúde Pública para a decisão da Direcção-Geral da Saúde (DGS) de alargar o plano de reforço da vacinação contra a covid-19 para a faixa etária dos 50 aos 59 anos, hoje iniciado. O motivo para este alargamento é simples: estão em stock centenas de milhares de doses, que arriscam ir para o lixo, porque cada vez há menos pessoas do grupo dos maiores de 60 anos interessadas em apanhar mais uma dose desta vacina. Isto, num cenário em que são reveladas falhas gravíssimas na farmacovigilância pelo Infarmed num país que insiste em não assumir quaisquer indemnizações e apoios médicos às pessoas que foram afectadas por reacções adversas.

    Conforme o PÁGINA UM mostrou na passada semana, através de dados do Centre for Socio-Legal Studies, Portugal integra o lote de 14 países da União Europeia que optou por nunca implementar qualquer plano de indemnização às vítimas das vacinas contra a covid-19, que integra também a Bélgica, Bulgária, Chipre, Croácia, Espanha, Grécia, Hungria, Irlanda, Lituânia, Malta, Países Baixos, Roménia e Eslováquia.

    medical, medicine, health

    Ao invés, países como a Áustria, República Checa, Dinamarca, Estónia, Finlândia, França, Alemanha, Itália, Letónia, Luxemburgo, Polónia, Eslovénia e Suécia – que integram também a União Europeia – implementaram sistemas, ou aproveitaram os modelos existentes pré-pandemia – para suportar compensações em casos de dados graves resultantes da administração das vacinas contra a covid-19. Recorde-se que a Comissão von der Leyen isentou de responsabilidades as farmacêuticas. Além dos membros da União Europeia, outros países do Velho Continente têm sistemas desta natureza, designadamente Noruega, Islândia, Noruega, Reino Unido e até Rússia.

    O desinteresse dos portugueses mais idosos pela vacina contra a covid-19 – agravada pela ausência de informação fiável sobre as suas vantagens, num cenário de endemismo do SARS-CoV-2, agora com muito menor virulência numa população com imunidade natural – fica patente não apenas na comparação entre o número de doses administradas no Outono deste ano e o de 2023, como sobretudo no número elevado de pessoas que optaram por aceitar apenas a vacina contra a gripe, cujas vantagens são inequívocas sem efeitos adversos relevantes.

    Com efeito, na época de vacinação outonal do ano passado, segundo um relatório da DGS com informação referente a 10 de Dezembro de 2023, tinham sido administradas 1.516.613 doses contra a covid-19 a maiores de 60 anos, menos 240.186 doses do que as administradas contra a gripe. Deste modo, e considerando uma população de cerca de três milhões de indivíduos nesta faixa etária, em média, por cada 100 pessoas, houve 40 que optaram por não querer nenhuma das vacinas, 50 vacinaram-se contra a gripe e a covid-19, enquanto 10 só quiseram a vacina contra a gripe.

    Comparação entre as doses administradas no Outono de 2023 (até 10 de Dezembro) e no Outono de 2024 (até 8 de Dezembro) de vacinas contra a covid-19 e contra a gripe. Fonte: DGS.

    Ora, este ano, com informação recolhida pela DGS até 8 de Dezembro, o ‘abandono’ da vacina contra a covid-19 aumentou significativamente, não ocorrendo o mesmo para a vacina contra a gripe. De facto, os dados oficiais mostram que, para uma população com idade superior a 60 anos que se manteve estável, houve 1.828.767 pessoas que se vacinaram contra a gripe (mais 26.968 do que em 2023), mas apenas 1.312.295 que quiseram tomar a vacina contra a covid-19, ou seja, foram administradas menos 204.318 doses, o que representa uma queda de quase 14% face a 2023.

    Significa assim que neste Outono, em média, por cada 100 pessoas com mais de 60 anos, houve 39 que optaram por não se vacinarem contra nenhuma daquelas duas doenças, 44 que se vacinaram contra a gripe e a covid-19, e ainda 17 que se vacinaram apenas contra a gripe.

    Assim, em termos concretos, praticamente sete pessoas em cada 100 que se vacinaram no ano passado contra a covid-19 no grupo etário dos maiores de 60 anos disseram ‘não’ este ano, razão pela qual ‘sobraram’ mais de 200 mil doses. Recorde-se que o PÁGINA UM ainda aguarda, ao fim de quase dois anos de uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa, uma decisão para acesso aos contratos das vacinas contra a covid-19.

    Sobre os efeitos adversos das administrações dos reforços do Outono de 2024 não existem dados públicos, mas o PÁGINA UM teve acesso à base de dados do Portal RAM, gerida pelo Infarmed, até início de Agosto deste ano. Apesar de a base de dados estar manipulada, com eliminação de variáveis, contrariando um acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, um dos aspectos mais relevantes é a falta de acompanhamento das pessoas afectadas po reacções adversas. Num total de 45.337 registos individuais notificados no Portal RAM entre finais de Dezembro de 2020 e Agosto de 2024, contabilizam-se 19.224 pessoas sobre as quais o Infarmed desconhece a evolução dos sintomas ou estado de saúde. Ou seja, em mais de quatro em cada 10 registos (42,4%), o Infarmed não apurou sequer como evoluíram os sintomas e afecções detectadas.

    Países (a azul) com planos de compensação para os efeitos adversos de vacinas contra a covid-19. Fonte: Centre for Socio-Legal Studies.

    Numa análise detalhada à variável da evolução das reacções adversas – um processo moroso, porque o ficheiro do Infarmed lista o conjunto de afecções e sintomas numa mesma célula com indicações de progresso por vezes distintas –, observa-se que uma grande parte se refere a problemas que, em princípio, são ligeiros e corriqueiros, como dores no local de vacinação (quase quatro mil casos), dores de cabeça, febre ou dores (centenas de casos). Mas, de entre a lista, constam afecções gravíssimas potencialmente mortais ou com causadores de sequelas profundas. E isto altera de forma radical uma avaliação correcta da segurança das vacinas e impede, desse modo, acções judiciais com pedidos de indemnização.

    Numa averiguação preliminar, o PÁGINA UM detectou, no Portal RAM, 45 casos de miocardites ou pericardites após vacinação cuja evolução permanece desconhecida pelo Infarmed. Há ainda 22 casos de choques anafiláticos, uma reação alérgica grave e potencialmente fatal que pode levar à morte sem tratamento imediato, cuja evolução também se ignora. Foram registados 40 casos de tromboembolismo pulmonar, bloqueio de uma artéria dos pulmões por um coágulo, sem acompanhamento adequado, e 13 casos de acidentes vasculares cerebrais (AVC), suspeitos de estarem fortemente associados às vacinas, cuja evolução permanece incógnita.

    Entre as reações adversas encontram-se ainda 18 casos de síndrome de Guillain-Barré, uma doença autoimune rara que afecta os nervos periféricos e pode levar à paralisia, e 27 casos de paralisia de Bell, uma condição que afeta o nervo facial, sendo por vezes temporária, mas cuja evolução também se desconhece. Foram ainda reportados oito casos de enfarte agudo do miocárdio, 17 casos de trombose venosa profunda, 16 casos de trombocitopenia imune, cinco casos de mielite e 13 casos de vasculite, todos com desfecho desconhecido.

    Extracto da base de dados (em Excel) revelados pelo Infarmed (com mutilação de variáveis), após intervenção do Tribunal Administrativo, e analisados pelo PÁGINA UM para detectar registos com evolução desconhecida de sintomas.

    Na análise das notificações, o PÁGINA UM identificou ainda 63 casos de alterações menstruais e 22 casos de herpes zoster, decorrentes da reactivação do vírus da varicela, todos sem acompanhamento da sua evolução.

    Nenhuma destas pessoas, além das 141 mortes reportadas, beneficiaram de qualquer apoio do Estado nem tão-pouco se conhece se foi analisada, do ponto de vista clínico, a associação factual entre a administração da vacina e os efeitos adversos. E isto também por uma razão simples: o Infarmed, liderado por Rui Santos Ivo, recusa divulgar a variável da casualidade – perante a passividade do Governo e partidos da oposição.


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  • ‘Segurança Marítima na UNL’: Gouveia e Melo violou Estatuto dos Militares das Forças Armadas

    ‘Segurança Marítima na UNL’: Gouveia e Melo violou Estatuto dos Militares das Forças Armadas

    O caso começou por ser uma situação grave, revelada pelo PÁGINA UM na semana passada, em torno da duvidosa ligação do Almirante Gouveia e Melo à Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Mas complicou-se e há novas informações que põem em xeque o Chefe do Estado-Maior da Armada. Para ser regente e professor convidado, Gouveia e Melo teria de requerer, ao abrigo do Estatuto Militar, uma acumulação de funções ao Chefe do Estado-Maior da Armada, ou seja, a ele próprio, um impedimento legal. A alternativa – uma autorização informal – também seria ilegal. Mas de ilegalidades está este processo cheio, porque entretanto a Faculdade de Direito da Universidade Nova admitiu que afinal não há qualquer parceria assinada, apesar da regência de Gouveia e Melo a uma cadeira, onde dá uma palestra anual, durar há mais de dois anos, a convite da ex-líder do CDS Assunção Cristas. Eis mais um episódio de um esquema de ‘melhoria artificial’ do currículo do homem que lidera as sondagens para as Presidenciais de 2026.


    O Almirante Gouveia e Melo terá violado o Estatuto dos Militares das Forças Armadas ao acumular a regência da cadeira de Segurança Marítima na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (UNL) com o seu cargo de Chefe do Estado-Maior da Armada.

    O diploma de 2015 explicita que “as funções militares são, em regra, em regime de exclusividade”, embora possa haver situações excepcionais, se forem compatíveis “com o seu grau hierárquico ou o decoro militar”. Sendo certo que a regência de uma cadeira de mestrado é uma função digna, Gouveia e Melo tinha um problema legal: o desempenho de funções em regime de acumulação, independentemente de serem exercidas graciosamente – como alegou a Marinha na semana passada –, “depende da autorização prévia do Chefe do Estado-Maior respectivo”.

    Ora, para a situação específica de Gouveia e Melo existe “um impedimento legal por interesse próprio”, como confirmaram ao PÁGINA UM dois professores universitários de Direito. Conforme estipula o Código do Procedimento Administrativo – que rege também actos desta natureza das Forças Armadas –, os titulares de um órgão no exercício de poderes públicos não podem intervir em qualquer processo “quando nele tenham interesse, por si, como representantes ou como gestores de negócios de outra pessoa”. Isto aplica-se mesmo se as funções forem exercidas a título gracioso, subentendendo-se sempre que Gouveia e Melo obteria, para si, o estatuto de professor universitário, melhorando o currículo público.

    Foto: D.R.

    Pela interpretação desta obrigação, Gouveia e Melo poderia conceder autorização a militares que leccionam em acumulação de funções, mas jamais poderia ‘auto-autorizar-se’. Também jamais poderia delegar essa competência para autorizações num subordinado, uma vez que esse expediente, para contornar a norma de impedimento, violaria o princípio da imparcialidade. O impedimento visa precisamente garantir que o acto não seja praticado por quem tenha um interesse no seu resultado, directa ou indirectamente.

    E assim, não havendo qualquer autorização superior – por exemplo, de uma comissão independente ou do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armada, ou do Ministro da Defesa ou mesmo da Presidência da República –, a ilegalidade e gravidade do procedimento mantêm-se numa outra perspectiva: Gouveia e Melo fez tábua rasa do próprio Estatuto dos Militares das Forças Armadas. Até por o conhecer bem: em 2020, como adjunto do Planeamento no Estado-Maior das Forças Armadas teve delegação de competências para conceder ou não autorizações requeridas por militares ao Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas para acumularem funções.

    O PÁGINA UM pediu esclarecimentos a Gouveia e Melo sobre esta situação, e também sobre as autorizações que terá supostamente concedido a um número indeterminado de militares que leccionaram a cadeira de Segurança Marítima no mestrado da UNL, por si regida, mas não houve qualquer resposta. Por lei, mesmo que houvesse uma autorização a esses militares, seria obrigatório um requerimento formal prévio de cada um. Ora, na passada semana, a Marinha não quis indicar quais os militares que deram a cadeira regida por Gouveia e Melo, tanto mais que os seus nomes são omissos no site da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. O Ministério da Defesa também não respondeu sobre se houve alguma autorização governamental, que, se existisse, teria ocorrido na vigência do Governo Costa, quando a titular da pasta da Defesa era Helena Carreiras.

    Campus de Campolide, onde ainda funciona a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. / Foto: D.R.

    Certo é que, além desta nova questão, a revelação feita pelo PÁGINA UM na semana passada sobre a existência de influências políticas, da ala do CDS, na ‘contratação’ de Gouveia e Melo para reger uma cadeira de Segurança Marítima num mestrado na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa está a causar um indisfarçável incómodo, bem patente no manto de silêncio. Com efeito, a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa não enviou ainda ao PÁGINA UM qualquer acta onde a admissão de Gouveia e Melo tenha sido decidida, antecedida de pareceres de dois professores. Esse acto de transparência e de rigor jurídico não é nenhuma excentricidade ou extravagância – é um acto de normal democraticidade.

    Por exemplo, na sua congénere lisboeta – ou seja, na Faculdade de Direito da Universidade (Clássica) de Lisboa -, todos as actas dos órgãos de gestão e governo, incluindo as referentes às diversas reuniões do Conselho Científico, estão minuciosamente expostas. Algumas destas actas têm mais de 170 páginas, uma vez que são ali expostas questões de relevância académica numa ‘casa’ que forma juristas há mais de um século, bem mais vetusta do que a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa apenas fundada em 1996, onde aparentemente o rigor e a transparência ainda não fizeram ‘escola’. Aqui, nada de actas nem outros documentos de gestão.

    A reitoria da Universidade Nova de Lisboa, liderada por João Sàágua, mantém-se à margem de uma situação que revela a permeabilidade desta instituição universitária às influências políticas e ao ‘tráfico de currículos’. Gouveia e Melo foi colocado na regência de uma cadeira de mestrado por empenhos de Assunção Cristas, coordenadora do mestrado em Direito e Economia do Mar, com a conivência de Mariana França Gouveia, antiga directora da Faculdade e actual presidente do seu Conselho Científico. Ambas, além das ligações ao CDS, são advogadas na sociedade Vieira de Almeida.

    Assunção Cristas (esquerda) e Margarida Lima Rego, actual directora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. / Foto: D.R.

    De facto, o reitor da Universidade Nova de Lisboa não respondeu a qualquer das questões formuladas pelo PÁGINA UM sobre o modus operandi da ‘contratação’ de Gouveia e Melo, designadamente ao nível do rigor administrativo e da conduta ética. Apesar desse silêncio, fica patente que o ainda Chefe do Estado-Maior da Armada, para além de todos os outros problemas legais, jamais poderia assumir a regência de uma cadeira de mestrado sem sequer dar qualquer aula digna desse nome.

    Um professor com obrigações de regência não está desobrigado a dar aulas, pelo contrário. E o Código de Ética da Universidade Nova de Lisboa, publicado em Diário da República há uma década, é bastante claro sobre os deveres específicos dos docentes, incluindo o de serem “assíduos e pontuais no exercício das suas funções”. Ora, no caso de Gouveia e Melo, a questão da pontualidade nem se coloca porque é critério inaplicável face a uma assiduidade nula. A legalidade de uma regência sem dar qualquer aula é assim muito duvidosa, tanto mais que Gouveia e Melo não era um simples ‘visitante’. Além da regência ser publicitada, no site da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa surge com um endereço oficial da instituição universitária pública: henrique.melo@novalaw.unl.pt.

    Entretanto, esta tarde, a RTP revelou que a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa assumiu que, afinal, ainda nem sequer existe qualquer parceria, sendo que, nesse aspecto, toda a legalidade está em causa, por não existir aplicação retroactiva. Em nota enviada à televisão pública – depois de recusar responder a perguntas do PÁGINA UM –, a instituição universitária diz que “o documento [parceria] está ainda em processo de formalização [ou seja, não existe], pois o acordo entre as duas instituições é mais amplo, abrangendo outras situações além da regência desta disciplina [Segurança Marítima]”, tendo acrescentado que “a assinatura terá lugar muito em breve”.

    Gouveia e Melo. Foto: EMA.

    Na mesma nota, a Faculdade argumenta que o convite a Gouveia e Melo se fundamentou num relatório subscrito por Assunção Cristas e por Vera Eiró para os anos lectivos de 2022/2023 e 2023/2024. Nenhum desses relatórios terá sido apresentado em Conselho Científico nem sequer foram enviados quando solicitados pelo PÁGINA UM. Existe, obviamente, a possibilidade de serem agora forjados, tanto mais que o convite só pode ser formalizado após aprovação pela “maioria absoluta dos membros do Conselho Científico em exercício de funções, aos quais é previamente facultado o currículo da individualidade a contratar”, algo que nunca sucedeu. E aí já será mais complicado forjar uma acta de uma antiga reunião. Na nota à RTP, a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa acaba também por assumir que Gouveia e Melo concede apenas uma palestra anual, o que lhe ‘pareceu’ ser bastante para ser considerado professor convidado com direito a e-mail institucional.

    O PÁGINA UM também colocou questões à Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES), que ‘supervisiona’ o mestrado onde Gouveia e Melo é regente, questionando se no processo de acreditação, concluído em 2022, ficou prevista a possibilidade de uma parceria com a Marinha e a docência por militares. Não houve ainda resposta.

    Na verdade, a única pessoa que, nesta semana, respondeu às questões do PÁGINA UM foi o eminente cardiologista e professor jubilado José Fragata, que surge ainda no site da Universidade Nova de Lisboa como presidente da Comissão de Ética, um órgão consultivo da reitoria. José Fragata diz que deixou o cargo em 2022, desconhecendo se a comissão ainda existe “e naturalmente quem a preside”, sugerindo que contactasse a Reitoria. E o PÁGINA UM contactou, mas João Sàágua deverá ter tido mais que fazer para dar uma resposta.


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  • AD contra AD: Governo Montenegro quer destruir regime de protecção de solos do Governo Balsemão

    AD contra AD: Governo Montenegro quer destruir regime de protecção de solos do Governo Balsemão

    De boas intenções, está o inferno cheio. Mas há medidas que nem sequer se mostram boas na intenção, até porque os resultados serão previsivelmente catastróficos. Para aumentar os terrenos urbanizáveis, alegando ser necessário para fazer face à crise de habitação, o Governo Montenegro prepara-se para dar uma ‘machadada’ ao mais importante legado da política de ordenamento e planeamento do território do século XX, flexibilizando administrativamente, através das autarquias, a passagem de terrenos da Reserva Agrícola Nacional e da Reserva Ecológica Nacional para fins urbanísticos. Além de ser uma medida com efeitos indesejáveis e promotor esquemas de corrupção – por exemplo, facilitará a passagem de terrenos rurais não edificáveis para áreas urbanas em redor do futuro aeroporto de Lisboa -, há uma ironia política:o Governo Montenegro, eleito sob a sigla de Aliança Democrática, ‘assassina’ assim dois instrumentos de planeamento (leis da Reservas Agrícola e Ecológica Nacional (RAN e REN) aprovados em 1982 e 1983 pelo Governo da Aliança Democrática original, então liderado por Pinto Balsemão, tendo como principal dinamizador dos diplomas o arquitecto Ribeiro Telles. O actual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa integrou também esse Governo, podendo suscitar a legalidade de uma alteração do regime da REN e da RAN por simples decreto-lei, porque estão em causa áreas da competência da Assembleia da República.


    À boleia de uma alegada crise da habitação e de suposta escassez de terrenos para construção, o Governo Montenegro quer destruir todos os alicerces da política de ordenamento e planeamento urbanístico, através de uma alteração da Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, mas a iniciativa pode esbarrar na Assembleia da República por estarem em causa modificações profundas na Lei dos Solos, uma vez que esta é uma matéria da estrita competência dos deputados.  

    Na semana passada, o Governo anunciou que o Conselho de Ministro aprovou um decreto-lei para “permitir às autarquias disponibilizar mais terrenos para a construção de habitação destinada à classe média em todo país”, com a condição de que“pelo menos 70% das casas construídas deverão ser vendidas a preços moderados, um novo conceito criado para abranger o acesso pela classe média, ponderando valores medianos dos mercados local e nacional, e definindo valores máximos para assegurar justiça social”. De acordo com as indicações transmitidas publicamente, a ideia será conceder às autarquias o poder, de forma arbitrária, para alterar usos de solo, passando-o de rústico para urbano.

    people working on building during daytime

    Mas para isso, o Governo Montenegro precisa de flexibilizar os regimes de protecção e condicionamento das áreas de Reserva Agrícola Nacional e da Reserva Ecológica Nacional que, como são terrenos rústicos – e actualmente sem capacidade construtiva –, acabam por apresentar um custo mais barato e apetecível para a especulação imobiliária.

    Não deixa de ser irónico que esta tentativa de dar uma ‘machadada’ na política de urbanismo seja uma iniciativa de um Governo que se anunciou sob a sigla AD – Aliança Democrática, ressuscitando a versão de finais dos anos 70 e início dos anos 80, dinamizada inicialmente por Sá Carneiro (PSD), Freitas do Amaral (CDS) e Ribeiro Telles (PPM), e que depois da morte do primeiro continuou com Francisco Pinto Balsemão até 1983.

    Com efeito, foi já no fim desse mandato que o Governo de Pinto Balsemão, que tinha uma forte ‘costela ambientalista’ (Ribeiro Telles, então ministro da Qualidade de Vida), que foram aprovados dois mais importantes instrumentos de protecção ambiental e de urbanismo – a lei da RAN, em Setembro de 1982, e a lei da REN, em Junho de 1983 – sobre as quais se erigiram os planos directores municipais e outros planos de ordenamento. Curiosamente, o actual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, integrava este Governo da AD como ministro dos Assuntos Parlamentares.

    Pinto Balsemão, Ribeiro Telles e Marcelo Rebelo de Sousa integraram o Governo AD que aprovou a lei da RAN e da REN, que protegeu solos da construção. O novo Governo AD, de Luís Montenegro, quer transformar em ‘três tempos’ solos rústicos em áreas para o imobiliário. Foto: Museu da Presidência.

    As restrições impostas para os solos da RAN e da REN nunca radicaram em qualquer extremismo ambientalista, sustentando-se numa visão estratégia inter-geracional e mesmo de protecção contra catástrofes naturais. Além de protecção de solos agrícolas, a delimitação de áreas sensíveis no âmbito serve sobretudo para preservar linhas de água e leitos de cheia – para evitar desastres humanos como se observou recentemente na região de Valência –, aquíferos de águas subterrâneos, proteger zonas declivosas e sobretudo evitar um crescimento desenfreado e caótico das zonas urbanas.

    “Esta medida do Governo é inaceitável do ponto de vista da sustentabilidade económica e ambiental, porque, em vez de promover uma aposta na consolidação e reabilitação dos centros urbanos, vai disponibilizar mais terrenos, promovendo o crescimento em ‘mancha de óleo’ para zonas sensíveis com a necessidade de novos e maiores investimentos de infraestruturação”, salienta Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero.

    Aliás, ao invés de promover mais uma maior quantidade de terrenos disponíveis, o efeito expectável será contrário. As construtoras terão tendência a abandonar projectos imobiliárias em zonas consolidadas, preferindo adquirir terrenos rústicos muito mais baratos para depois conseguirem uma viabilização junto das autarquias. Este expediente escancara, além disso, as portas para a especulação e mesmo para a corrupção e outros esquemas ínvios, recordando procedimentos dos anos 90 do século passado, quando se desenvolveu a primeira geração de planos directores municipais. Nessa altura, muitos empresários, em conluio com autarcas, compravam terrenos rústicos, vendo depois essas zonas serem integradas em áreas edificáveis, multiplicando assim o seu valor. Aliás, este tipo de esquemas pode já ocorrido antes deste anúncio do Governo, mas tornar-se-à corriqueiro a nível local, concedendo poderes arbitrários aos políticos.

    Governo prepara-se para destruir um dos maiores legados de político de ordenamento e de urbanismo do século XX, abrindo as portas a esquemas de tráfico de influências e de corrupção no imobiliário.

    Esta alteração no regime dos terrenos rústicos aparenta, aliás, encaixar-se na perfeição para a existêncoa de transações especulativas em torno do futuro aeroporto de Lisboa. A esmagadora maioria dos terrenos envolventes à zona do Campo de Tiro de Alcochete integram a RAN e a REN. Com esta medida do Governo Montenegro, esses terrenos multiplicam de valor ‘da noite para o dia’.

    A ideia de ser a falta de terrenos – e os seus custos elevados – uma das principais causas da crise da habitação em Portugal tem sido uma ideia estafada que não encontra reflexo na realidade dos números, porque o ritmo de construção depende sobretudo das condições económicas e dos ciclos financeiros, bem como da oferta e da procura. Embora se observe agora um recente crescimento populacional nos anos recentes, a uma taxa de 1%, não existe propriamente uma escassez de casas, mas sim uma dificuldade de adaptação dos rendimentos dos portugueses a um mercado que se globalizou, tanto nas zonas urbanas como rurais, neste caso pela procura de segundas residências.

    Por esse motivo, observando a evolução dos licenciamentos de fogos (casas) pelas autarquias desde 2007, com base nos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), conclui-se que o mercado imobiliário está já bastante dinâmico, tendo mesmo registado este ano o valor mais elevado desde 2009, se considerarmos os primeiros 10 meses (Janeiro a Outubro). A nível nacional, os 28.004 fogos licenciados este ano são praticamente cinco vezes mais do que os licenciados em 2014, em plena crise financeira.

    Evolução do número de fogos licenciados em Portugal e nas diversas regiões (NUT II) entre 2007 e 2024 para os primeiros 10 meses de cada ano. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Comparando as licenças de construção concedidas nos últimos 24 meses (Novembro de 2022 a Outubro de 2024) com as do período homólogo anterior (Novembro de 2020 a Outubro de 2022), confirma-se esse dinamismo: um crescimento de 9,3%, passando de 59.558 para 65.092 fogos licenciados. Esse crescimento está sobretudo concentrado na região Norte, que impulsionou nesse período em 12,8%, e particularmente no Grande Porto.

    Nessa sub-região, o crescimento foi de 21%, passando de pouco mais de 14 mil fogos licenciados para mais de 11.700. Na região de Lisboa – que engloba os municípios da Grande Lisbia e da Península de Setúbal –, apesar de se registar um crescimento (3,7%), está a níveis mais modestos. Enquanto nos últimos dois anos se licenciaram 13.033 fogos, no período de Novembro de 2020 a Outubro de 2022 as autarquias tinham concedido licenças para a construção de 12.567 fogos.

    Em todo o caso, existe uma tendência de mudança na tipologia dos fogos licenciados. De acordo com os dados do INE, nos últimos dois anos, as licenças destinam-se para uma tipologia mais pequenas, indo ao encontro da prevalência de uma procura num mercado imobiliário destinado a pessoas sozinhas, casais ou famílias de poucos filhos.

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    O regime da REN serviu sobretudo para suster a construção desenfreada em zonas sensíveis, entre as quais áreas em leitos de cheia.

    Nos últimos dois anos, 44,4% dos fogos licenciados serão T2 ou menores. Os T0 e T1 são representam 17,2%. No período homólogo anterior as tipologias T2 ou menores atingiam os 36,9% e no período entre Novembro de 2018 e Outubro de 2020 foi de 36,5%. Já as tipologias de maiores dimensões (T4 e mais) estão a descer em peso. Nos últimos dois anos são 12,7% do total, quando nos dois períodos homólogos anteriores foram de 15% e 14,9%, respectivamente.

    Se recuarmos aos últimos dois anos do boom imobiliário do início do século – em 2007 e 2008 licenciaram-se mais de 111 mil fogos –, as casas de grandes dimensões (T4 ou mais) representaram 17,8% do total, enquanto T0 e T1 tiveram um peso de apenas 10%. Se juntarmos os T2, a percentagem sobe para os 36,6%, confirmando-se assim que se está a construir mais apartamentos de menores dimensões.


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  • Falência iminente: Música no Coração nem dinheiro tem para mandar tocar um requiem

    Falência iminente: Música no Coração nem dinheiro tem para mandar tocar um requiem

    Sem contas anuais conhecidas de 2022 e de 2023, com a Super Bock a não querer renovar a organização do festival na Praia do Meco, com a falta de patrocínios para o festival da Zambujeira do Mar e com o Fisco à perna, a outrora pujante empresa de espectáculos de Luís Montez está à beira do precipício. O ‘pequeno toque’ para a queda da Música no Coração é já um passo inevitável. Aquilo que mais surpreende é, na verdade, o facto de ainda estar em funcionamento, pois em finais de 2021 encontrava-se em falência técnica, com capitais próprios negativos de mais de 6,2 milhões de euros, e um passivo colossal de 26 milhões, impossível de pagar, sobretudo agora com o impacte da perda dos festivais Super Bock Super Rock e Sudoeste.


    A caminho do fim. Será apenas uma questão de dias, de semanas ou de meses, mas o fim é irreversível: a Música no Coração, a outrora pujante empresa de espectáculos e de festivas, detentora de uma rede de rádios, está em colapso financeiro, e já nem sequer entregou, como era obrigatório, a Informação Empresarial Simplificada (IES) relativa aos anos de 2022 e 2023.

    A situação agravou-se no último mês com a decisão da  cervejeira Super Bock de não renovar o contrato com a empresa de Luís Montez, conhecido também por ser genro de Cavaco Silva, para a organização do festival Super Bock Super Rock, que se realiza anualmente na Praia do Meco, como noticiou o Observador no passado dia 21 de Novembro.

    Luís Montez

    Este desfecho era esperado, não apenas pela já débil situação financeira da Música do Coração, mas porque esta até já tinha vendido a rádio associada ao evento à Medialivre – que pretendia comprar frequência para preparar uma rede de rádio própria –, deixando mesmo de emitir em finais do passado mês de Setembro.

    Na mesma linha, o Festival do Sudoeste tem também os dias acabados. Luís Montez anunciou à SIC, há duas semanas, que este festival na Zambujeira do Mar, não tem capacidade de realizar no próximo ano por falta de patrocinadores. Porém, esse é apenas um dos problemas. O PÁGINA UM apurou que, devido a dívidas fiscais, o uso da denominação do Festival Sudoeste foi penhorado pela Autoridade Tributária e Aduaneira em 16 de Janeiro deste ano, aguardando-se ainda uma decisão do tribunal. Apesar disso, a empresa de Luís Montez mantém-se livre de constar na lista de devedores ao Fisco e à Segurança Social, embora esteja sujeito a diversos processos de execução intentados por credores.

    Mesmo sem se conhecer as contas de 2022 e de 2023, o PÁGINA UM sabe que a Música do Coração encontra-se ainda em pior situação face às demonstrações financeiras de 2021, reveladas pelo PÁGINA UM em Abril passado. A ‘holding’ de Luís Montez – que é ainda proprietária de algumas rádios com actividade residual – estava já com capitais próprios negativos de quase 6,2 milhões de euros no final daquele ano, registando um pouco mais de um milhão de euros de prejuízos. O passivo, incluindo empréstimos bancários. aproximava-se dos 26 milhões de euros. Saliente-se que as contas da Música no Coração não estavam consolidadas.

    stage light front of audience

    Na verdade, somente por via de alguma engenharia financeira, o colapso da Música no Coração não se mostrava já mais patente de 2021, pois detectavam-se evidentes sinais de exagero na avaliação dos activos financeiros e excedentes de revalorização. Além disso, nesse ano, a ‘holding’ de Luís Montez tinha uma liquidez praticamente nula, inconcebível numa empresa promotora de espectáculos: em caixa apenas se contavam 3.099 euros.

    Grande parte dos activos (cerca de 11,2 milhões de euros) estavam então contabilizados em participações financeiras através do método da equivalência patrimonial, mas, na verdade, esse montante estaria fortemente inflacionado face à actual situação financeiras das subsidiárias, isto é, das rádios.

    Além disso, o endividamento da Música no Coração era, já em 2021, asfixiante, com empréstimos bancários de longa duração de 14,6 milhões de euros, mais quase 2,8 milhões de euros de contas a pagar a fornecedores, mais 1,4 milhões de euros de dívidas ao Estado e mais cerca de 6,3 milhões de euros em outros compromissos.

    Neste caso, não deixa de ser curioso que, apesar de ter uma empresa em falência técnica, com capitais próprios negativos de quase 6,2 milhões de euros, Luís Montez ainda tinha 786 mil euros emprestados a juros. Ou seja, cometia uma ‘sangria’ à sua própria empresa ‘moribunda’.

    O PÁGINA UM tentou contactar Luís Montez para solicitar comentários e saber se havia demonstrações financeiras de 2022 e 2023, mas não obteve resposta.


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  • Vacinas contra a covid-19: vigilância farmacológica desprezou 19.224 portugueses com reacções adversas

    Vacinas contra a covid-19: vigilância farmacológica desprezou 19.224 portugueses com reacções adversas

    Portugal é um dos poucos países europeus sem qualquer esquema expedito de compensação de lesados pelas vacinas contra a covid-19. Na verdade, Portugal está agora na minoria dos países mundiais sem qualquer plano desta natureza, porque desde 2021 houve uma proliferação de decisões governamentais e de outras instituições para, de uma forma solidária, apoiar quem sofreu efeitos adversos das vacinas. Mas em países como o Reino Unido, esses apoios estão a ser contestados por as indemnizações serem pequenas e pouco adequadas. Pior está Portugal, porque nem tem plano de indemnização nem uma farmacovigilância decentes. Os dados do Portal RAM obtidos pelo PÁGINA UM por via de uma intimação no Tribunal Administrativo – mas muitilados pelo Infarmed – revelam uma absurda falta de acompanhamento da evolução dos casos de reacções adversas. Em mais de quatro em cada 10 registos de reacções adversas, o Infarmed não sabe como evoluíram. A esmagadora maioria são sintomas leves, mas há centenas de afecções gravíssimas, entre as quais choques anafiláticos, miocardites, enfartes do miocárdio, AVC e tromboses diversas. A culpa, em Portugal, e com a postura do Infarmed, morre mesmo solteira, mas na companhia de muitas infelizes vítimas.


    Em Outubro passado, o editor da área da saúde da BBC, Fergus Walsh, fazia um balanço da administração das vacinas contra a covid-19. Apesar de defende que o programa de vacinação evitara “mais de um quarto de milhão de internações hospitalares e mais de 120.000 mortes no Reino Unido até Setembro de 2021” dava um enfoque específico sobre os efeitos colaterais, ou seja, sobre as vítimas das reacções adversas, raras em termos relativas, mas já bastante numerosas em termos absolutos pela elevada quantidade de doses administradas.

    E o jornalista destacava os impressionantes números de processos de pedidos de indemnização entrados no âmbito do Plano de Pagamento por Danos Causados por Vacinas (VDPS), criado em 1979, como uma espécie de contrato social entre os indivíduos e o Estado, após um problema de segurança da vacina contra a tosse convulsa em uso na época. A imposição desse plano governamental surgiu depois de uma crescente hesitação vacinal ao longo da década de 70, passando depois a vigorar em relação às demais vacinas, designadamente contra a varíola, difteria, tétano, poliomielite, sarampo, rubéola, tuberculose, meningites, infecção pneumocócica, vírus do papiloma humano (HPV), gripe e, finalmente, covid-19.

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    Em termos gerais, com recurso a relatórios médicos e de farmacovigilância, provando-se uma associação directa e ocorrendo pelo menos uma incapacidade de 60%, este plano de apoio do Reino Unido é automaticamente accionada e concedida uma compensação de 120 mil libras (cerca de 145 mil euros). Neste país, entre o final da década de 1970 e 2020, houve para todas as vacinas pouco menos de 6.500 pedidos entrados por danos causados por reacções adversas, e concedidas 944 indemnizações.

    Mas estes valores subiram vertiginosamente no Reino Unidos com as vacinas da covid-19, sobretudo pelo elevado número de doses administradas da AstraZeneca. Em Outubro passado, no âmbito de um sistema de acesso obrigatório à informação – lamentavelmente inexistente em Portugal –, o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS) revelou que já tinha sido recebidas pelo VPDS um total de 15.805 reivindicações sobre reacções adversas graves da vacina contra a covid-19, ou seja, mais do dobro de todas as solicitações de quatro décadas envolvendo outras vacinas. Mas, até agora, somente 181 reivindicações foram consideradas passíveis de recebimento de indemnizações, tendo sido rejeitadas 7.357 solicitações porque o avaliador médico independente considerou não existir causalidade, havendo ainda mais 391 reivindicações que não tiveram sucesso por a vacina, embora causando dano, não provocou incapacidade grave. Isto pode incluir, por exemplo, a cegueira de olho, porque não se atinge os 60% de incapacidade.

    De acordo com a NHS, as reacções adversas agudas mais graves detectadas após as vacinas contra covid-19 incluem anafilaxia, pneumonia bacteriana, paralisia de Bell, neuropatia óptica sequencial bilateral, síndrome de vazamento capilar, síndrome de Guillain-Barré, trombocitopenia imune, resposta imune à vacina, inflamação dos pulmões, enfarte do miocárdio, miocardite/pericardite, embolia pulmonar, acidente vascular cerebral (AVC), mielite transversa, trombose do seio venoso cerebral e vasculite induzida por vacina.

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    Mas as críticas ao sistema do Reino Unido, pelo seu carácter desactualizado e meramente burocrático, tem aumentado, como salienta Fergus Walsh, citando uma advogada de vítimas que critica o VDPS por “oferecer muito pouco, muito tarde e para muito poucas pessoas”, além de que a análise dos casos é feita apenas com base em documentos clínicos, de forma burocrática, sem qualquer exame físico. As críticas têm sido tão grandes que o Governo do Reino Unido aumentou os funcionários que tratam dos processos no VDPS para 80. Antes do programa de vacinação contra a covid-19 eram quatro.

    Este esquema de compensações apoiada pelos Estados, de forma extra-judicial (sem assumpção de culpa pelas farmacêuticas), para apoiar vítimas de reacções adversas causadas pelas vacinas existia em 29 países antes da pandemia, sobretudo na Europa, mas que incluía também os Estados Unidos, a China, a África do Sul e a Nova Zelândia. Portugal não possuía qualquer sistema.

    E os portugueses continuaram assim completamente desprevenidos com o surgimento das campanhas maciças de vacinação, nunca sendo assumido pelo Estado e pelas diversas autoridades de saúde a existência de efeitos adversos relevantes, independentemente da sua prevalência. Assim, de acordo com uma compilação do Centre for Socio-Legal Studies, desde 2021 proliferaram os planos de compensação especificamente para as vacinas contra a covid-19, quer por iniciativa dos próprios Estados, nos países mais ricos, quer por iniciativas de entidades ou corporações, como a African Vaccine Acquisition Trust (AVAT), da União Africana, a COVAX – uma parceria da Coalition for Epidemic Preparedness Innovations (CEPI), a Gavi – The Vaccine Alliance e a Organização Mundial da Saúde (OMS) – e a UNICEF. São 98 o número de países abrangidos, sendo 21 europeus. Portugal não está nem nunca manifestou interesse em estar. Na verdade, Portugal encontra-se no lote muito restrito que aparentemente nega que as vacinas contra a covid-19 possam causar danos colaterais. Ou que despreza ou abandona quem respondeu afirmativamente aos apelos, e pressões, para se vacinar, mesmo quando não se encontrava em grupos de risco.

    Países (a vermelho) com planos de compensação para os efeitos adversos de vacinas antes da pandemia da covid-19. Fonte: Centre for Socio-Legal Studies.

    E uma das causas tem sido a postura do Infarmed, o regulador do medicamento em Portugal, que ostensivamente menoriza, manipula e oculta os efeitos adversos das vacinas em território nacional, sempre com o mesmo protagonista: Rui Santos Ivo.

    Único dirigente da Administração Pública no sector da Saúde que se mantém em funções desde o início da pandemia, este farmacêutico com passagens entre cargos públicos e ligações à indústria farmacêutica –, Rui Santos Ivo foi director executivo da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (APIFARMA) entre 2008 e 2011 –, tendo sido recentemente ‘promovido’ à vice-presidência da Agência Europeia do Medicamento (EMA), cada vez mais uma instituição comunitária que visa defender mais os interesses da indústria do que proteger os cidadãos. Discreto e completamente avesso à transparência, Rui Santos Ivo acabou por fazer aquilo que eram as instruções políticas e as linhas orientadoras da Comissão Europeia. Não levantar ondas, em suma.

    Durante os primeiros dois anos do programa vacinal contra covid-19, o Infarmed ficou conhecido por revelar relatórios de farmacovigilância onde, logo nas primeiras frases, garantia que “a vacinação contra a COVID-19 é a intervenção de saúde pública mais efetiva para reduzir o número de casos de doença grave e morte originados pela infeção pelo SARS-CoV-2”, acrescentando que “diversos estudos comprovam que as vacinas contra a COVID-19 são seguras e efetivas.” Enquanto isso, o presidente do Infarmed obstaculizada, como podia, recorrendo por vezes à mentira, o acesso do PÁGINA UM aos dados brutos das notificações registadas no Portal RAM, ou seja, as reacções adversas identificadas como suspeitas de associação às vacinas.

    Países (a azul) com planos de compensação para os efeitos adversos de vacinas contra a covid-19. Fonte: Centre for Socio-Legal Studies.

    Em Julho passado, através de um acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul – que reverteu uma absurda sentença de primeira instância, com a juíza a considerar que descarregar ficheiros de uma base de dados era criar um documento novo –, a presidência do Infarmed viu-se na obrigação de revelar os dados em bruto. Porém, mais uma vez, Rui Santos Ivo quis manipular a informação, ‘mutilando’ a base de dados, retirando variáveis relevantes como as idades das vítimas e sobretudo o grau de casualidade apurada, ou seja, a conclusão clínica sobre se associação da reacções adversa à vacina era definitiva, provável, possível ou improvável. Essa é, aliás, a função primordial da farmacovigilância: uma vigilância activa e dinâmica, que acompanha os casos desde o início dos sintomas até ao desfecho, que pode ser uma (infeliz) morte, uma recuperação completa (cura) ou uma recuperação com sequelas, sendo que existirá uma situação intermédia (‘em recuperação’).

    Extracto da base de dados (em Excel) revelados pelo Infarmed (com mutilação de variáveis), após intervenção do Tribunal Administrativo, e analisados pelo PÁGINA UM para detectar registos com evolução desconhecida de sintomas.

    Porém, apesar de Rui Santos Ivo nunca ter manifestado qualquer interesse em disponibilizar os dados completos – e nem sequer ter reagido ao PÁGINA UM sobre uma eventual prevaricação por si cometida por estar a proteger ilegitimamente interesses das farmacêuticas e do Governo –, um dos aspectos mais salientes nos dados em brutos disponibilizados era a quantidade avassaladora à referência “Desconhecido” sobre a evolução de sintomas ou afecções inicialmente detectados. Ou seja, ao fim de meses, e até anos, da primeira detecção das suspeitas de reacções adversas às vacinas, o Infarmed não sabia como evoluíra o estado de saúde dos pacientes. E não estamos a falar de meia dúzia de casos, nem de umas centenas, mas sim de 19.224 pessoas de um total de 45.337 registos individuais introduzidos no Portal RAM entre 27 de Dezembro de 2020 e 28 de Agosto de 2024. Ou seja, em mais de quatro em cada 10 registos (42,4%), o Infarmed não apurou sequer como evoluíram os sintomas e afecções detectadas.

    Numa análise detalhada à variável da evolução das reacções adversas – um processo moroso, porque o ficheiro do Infarmed lista o conjunto de afecções e sintomas numa mesma célula com indicações de progresso por vezes distintas –, observa-se que uma grande parte se refere a problemas que, em princípio, são ligeiros e corriqueiros, como dores no local de vacinação (quase quatro mil casos), dores de cabeça, febre ou dores (centenas de casos). Mas, de entre a lista, constam afecções gravíssimas potencialmente mortais ou com causadores de sequelas profundas. E isto altera de forma radical uma avaliação correcta da segurança das vacinas e impede, desse modo, acções judiciais com pedidos de indemnização.

    Por exemplo, numa averiguação preliminar, o PÁGINA UM detectou 45 registos de pessoas com miocardites ou pericardites após vacinação cuja evolução se mantém irresponsavelmente desconhecida pelo Infarmed. Mas isso é apenas a ponta do icebergue. A evolução de 22 casos de choques anafiláticos – uma reação alérgica grave e potencialmente fatal, que causa dificuldade em respirar e que, sem tratamento imediato (com adrenalina), pode levar à morte – é desconhecida pelo Infarmed. Porquê? Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed, não responde ou não quer saber.

    Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed, foi agora promovido a vice-presidente da Agência Europeia do Medicamento.

    Há também 40 casos de tromboembolismo pulmonar – o bloqueio de uma artéria dos pulmões por um coágulo – para os quais é uma incógnita a sua evolução. Porquê? Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed, não responde ou não quer saber.

    Houve ainda 13 acidentes vasculares cerebrais suspeitos de estarem fortemente associados às vacinas, mas cuja evolução também se desconhece. Porquê? Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed, não responde ou não quer saber.

    Casos de síndrome de Guillain-Barré – uma doença autoimune rara que afeta os nervos periféricos, causando fraqueza muscular progressiva, podendo levar à paralisia – surgem ainda 18 casos no Portal RAM com um desfecho incógnito. Porquê? Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed, não responde ou não quer saber.

    Situações de paralisia de Bell – uma paralisia por vezes apenas temporária devido á inflamação ou compressão do nervo facial – contabilizam-se 27 sem se conhecer a evolução. Porquê? Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed, não responde ou não quer saber.

    Até enfartes agudos do miocárdio se contam com evolução desconhecida. São oito, a que se juntam 13 casos de acidentes vasculares cerebrais (AVC) de evolução desconhecida, mais 17 casos de trombose venosa profunda de evolução desconhecida, mais 16 casos de trombocitopenia imune de evolução desconhecida, mais cinco casos de mielite e 13 de vasculite de evolução desconhecida. Porquê? Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed, não responde ou não quer saber.

    Considerando a gravidade de muitos destes casos, e também a subnotificação e falta de acompanhamento, é pura especulação o Infarmed apontar ‘apenas’ a ocorrência de 141 mortes em Portugal suspeitas de estarem associadas às vacinas. Tanto mais que se desconhece o grau de causalidade apurada.

    Sede do Infarmed, onde (não) se faz farmacovigilância dos medicamentos.

    Na quantidade absurda de casos sem vigilância digna – e ignora-se a realização de estudos sérios para acompanhar inicialmente menos sérios –, o PÁGINA UM encontrou ainda 63 alterações menstruais sem conhecimento da evolução e mais 22 casos de herpes zoster – ou seja, por reactivação do vírus da varicela – também sem conhecimento da evolução. E muitos mais há nas 19.224 registos analisados. E qual a razão? – pergunta-se de novo. Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed, não responde ou não quer saber. Agora está este responsável acumulando a liderança de um regulador que esconde informação pública relevante – porque o poder político lhe permite – com a cadeira da vice-presidência da Agência Europeia do Medicamento. Terá, por certo, mais do que fazer agora do que preocupar-se com uns milhares de portugueses que foram vítimas indirectas de um programa vacinal onde seria suposto, à moda lusitana, que tudo ficar bem, porque o que corresse mal se esconderia.

    Assim, sem qualquer plano de indemnizações, com falhas escandalosas de vigilância farmacológica e escondendo-se até a casualidade eventualmente apurada, Portugal apresta-se para enterrar a culpa solteira. Salvar-se-á a honra de política e do realpolitik – continuando a vender a ideia de um sucesso de vidas salvas –, mas, metendo a cabeça na areia, não se dignofica, por certo, nem a democracia nem a solidariedade de uma sociedade que se esperaria civilizada e responsável.


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  • Nova School of Law: ala do CDS ‘entrega’ regência e categoria universitária ilegal a Gouveia e Melo

    Nova School of Law: ala do CDS ‘entrega’ regência e categoria universitária ilegal a Gouveia e Melo

    ‘Dura lex, sed lex’ é uma das máximas jurídicas mais relevantes. Mas a lei pode ser, na verdade, amaciada para os amigos. No início de 2023, a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa – ou pomposamente rebaptizada com o anglicismo Nova School of Law – anunciou a contratação de Gouveia e Melo para a regência de uma cadeira do mestrado em Direito e Economia do Mar, colocando-o com o estatuto de Professor Convidado. Mas, apesar de se estar numa escola de ilustres juristas, fez-se tábua rasa das normas do Estatuto da Carreia Docente Universitária, e nunca houve pareceres para essa nomeação, que terá sido iniciada em 2022 e surge sob a égide de uma parceria não revelada. Além disso, o ainda Chefe do Estado-Maior da Armada nunca pôs os pés numa sala de aula, mandando subordinados leccionar a cadeira. O incómodo interno fez com que, entretanto, Gouveia e Melo passasse a constar, na lista do corpo docente, na secção das parcerias. Todo este processo foi conduzido por Assunção Cristas, antiga ministra do Ambiente, que é coordenadora do mestrado, e por Mariana França Gouveia, actual presidente do Conselho Científico da faculdade. Nenhum dos intervenientes quis prestar esclarecimentos, remetendo para gabinetes de comunicação breves depoimentos sem focar aspectos fulcrais.


    A Universidade Nova de Lisboa dispõe-se a construir ilegalmente um currículo académico ao Almirante Gouveia e Melo conferindo-lhe a regência de uma cadeira de mestrado e titulando-o de Professor Convidado. O putativo candidato à Presidência da República nem sequer precisou no ano lectivo passado de meter literalmente os pés nas instalações da Faculdade de Direito desta universidade pública – agora denominada, para efeitos de mero marketing institucional, de Nova School of Law –, porque todas as aulas foram ministradas por oficiais não identificados da Marinha.

    Neste processo, o Estatuto da Carreira Docente Universitária foi sistematicamente violado e a validade da acreditação do próprio mestrado em Direito e Economia do Mar, coordenado pela antiga ministra do Ambiente do CDS, Assunção Cristas, arrisca a ser colocada em causa pela Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES) por incumprimento das normas legais.

    Gouveia e Melo ostenta a regência de uma cadeira de mestrado sem nunca ter posto os pés numa aula.

    No auge da sua popularidade na liderança do Estado-Maior da Armada, a Faculdade de Direito da UNL divulgou em Fevereiro do ano passado que “uma das novidades deste ano [lectivo, de 2023/2024]” seria “a lecionação da cadeira Maritime Security a cargo da Marinha Portuguesa, sob a regência do Almirante Gouveia e Melo. E acrescentava ser “com enorme satisfação que recebemos o ex-coordenador da Task Force do Plano de Vacinação contra a covid-19 em Portugal, que se juntou à NOVA School of Law no seguimento do nosso empenho em robustecer o nosso corpo docente com os/as melhores e mais talentosos/as profissionais, contribuindo para a excelência deste Mestrado”.

    O “nosso empenho”, o da Faculdade de Direito da UNL, deve ler-se como empenho da ala do CDS nesta instituição universitária pública, que desde há muito ‘namora’ com o Almirante Gouveia e Melo, como ficou patente no descontraído encontro nocturno no bar Cockpit há duas semanas, revelado pelo PÁGINA UM, com o líder centrista e ministro da Defesa, Nuno Melo. Com efeito, todo o processo de convite foi conduzido pela então directora da Faculdade, Mariana França Gouveia – que actualmente preside ao Conselho Científico – e pela coordenadora do mestrado, Assunção Cristas, que também lidera a Comissão Científica do mestrado. Além das suas ligações umbilicais ao CDS, estas duas advogadas, amigas de longa data, gravitam numa das mais importantes sociedades de advogados com milionários contratos públicos: a Vieira de Almeida.

    Apesar do mais recente processo de acreditação pela A3ES ser completamente omisso sobre a entrada de militares de carreira sem currículo académico na regência de uma cadeira e a prestar aulas, não foi cumprida qualquer das regras previstas no rigoroso Estatuto da Carreira Docente Universitária, que não permite, por razões óbvias, a contratação de qualquer pessoa mesmo sob convite e mesmo se tivesse um currículo académico invejável, o que não é o caso de Gouveia e Melo.

    Assunção Cristas, antiga líder do CDS e ministra do Ambiente, é coordenadora do mestrado. Com a sua amiga de longa data e ligada também aos centristas, Mariana França Gouveia, antiga directora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e actual presidente do Conselho Científico, tratou de contratar Gouveia e Melo, concedendo-lhe um título ilegal à luz do Estatuto da Carreira Docente Universitária.

    A colaboração de Gouveia e Melo no mestrado coordenado por Assunção Cristas até terá começado antes de ser formalmente apresentado, como se uma graduação universitária fosse algo caseira. Com efeito, em 19 de Novembro de 2022, Assunção Cristas colocou na sua página do Facebook uma fotografia com uma das filhas ao lado de Gouveia e Melo com a seguinte mensagem: “Foi um gosto começar o dia na Base Naval do Alfeite com os alunos do Mestrado em Direito e Economia do Mar da NOVA School of Law. Fomos extraordinariamente bem recebidos pelo Almirante Gouveia e Melo e pela sua equipa, responsáveis pela cadeira de Maritime Security”. Ora, nessa altura, nem sequer havia qualquer anúncio de formalização da ligação entre a Marinha e a Faculdade de Direito da UNL.

    Saliente-se que para o recrutamento de professores, ainda mais para exercerem regência, a lei determina que os convites somente podem ser endereçados a “individualidades, nacionais ou estrangeiras, cuja reconhecida competência científica, pedagógica e ou profissional na área ou áreas disciplinares em causa esteja comprovada curricularmente”, sendo necessário que esse convite se fundamente “em relatório subscrito por, pelo menos, dois professores da especialidade, que tem de ser aprovado pela maioria absoluta dos membros do Conselho Científico em exercício efectivo de funções, aos quais é previamente facultado o currículo da individualidade a contratar”. Ora, nada disso foi cumprido pela Faculdade de Direito da UNL, como confirmou o PÁGINA UM junto de professores catedráticos desta instituição. Como um regente de uma cadeira de mestrado tem de ser obrigatoriamente, independentemente de estar no quadro ou ser convidado, um professor catedrático, associado ou auxiliar – até por praticar actos administrativos –, a irregularidade da nomeação de Gouveia e Melo reveste-se de grande gravidade. No limite, as notas atribuídas podem ficar sem efeito por terem sido concedidas por alguém sem competências legais.

    A regência da cadeira de Segurança Marítima atribuída a Gouveia e Melo está ainda patente no próprio site da instituição universitária para o próximo semestre, que começa em Fevereiro, o que indicia que continuará nestas funções, mesmo em situação ilegal, quando sair da chefia do Estado-Maior da Armada no final do presente mês. Porém, estranhamente, o seu nome foi ‘desviado’ nos últimos dias da lista de “Professores/as Convidados/as” para a ambígua lista de parcerias sem contrato directo com a Faculdade de Direito da UNL. Uma alteração no corpo docente terá sido uma tentativa de ‘apagar’ o rastro de ilegalidades, mas os registos históricos da Internet não deixam margem para dúvidas de que a universidade pública concedeu a Gouveia e Melo um estatuto que nunca poderia ostentar.

    Ligação à Marinha estabelecida de forma informal por Assunção Cristas começou ainda antes do anúncio em Fevereiro de 2023.

    De facto, em registos consultados pelo PÁGINA UM, a primeira vez que Gouveia e Melo surge como Professor Convidado na lista do corpo docente da Faculdade de Direito da UNL é de 28 de Fevereiro de 2023, imediatamente a seguir ao anúncio da sua ‘contratação’. Ao longo de 2023, o mesmo registo encontrou-se em 29 de Março, em 5 de Abril e em 30 de Setembro. E continuou este ano, já com a segunda regência de Gouveia e Melo à cadeira de Segurança Marítima (ano lectivo de 2023/2024), encontrando-se registos em 24 de Fevereiro, em 13 de Abril e em 20 de Julho, último registo que consta no Archive.org.

    Em consulta do PÁGINA UM, não gravada, no início do passado mês de Novembro, Gouveia e Melo mantinha-se ainda na lista de “Professores Convidados”, o que indicia que a sua inclusão não foi um mero lapso administrativo, mas sim que a sua ‘transferência’ terá sido fruto de diligências superiores de ocultar a situação ilegal. Mantém-se, porém, para Gouveia e Melo uma particularidade: tem uma página própria com um endereço de correio electrónico da Faculdade de Direito da UNL, mas omitindo as suas funções de regência da cadeira de Segurança Marítima.

    O PÁGINA UM colocou perguntas concretas a Gouveia e Melo sobre esta sua ‘contratação’ por uma universidade pública à margem da lei. Procurou saber-se se a regência da cadeira de Segurança Marítima foi feita ao abrigo de alguma parceria com a Marinha ou ele fora contratado exclusivamente para a regência e docência, sendo que, no caso de uma parceria (por duas entidades públicas), se solicitou o documento. Pediu-se também a confirmação, no sentido de aferir informações recolhidas junto de antigos alunos do mestrado, se Gouveia e Melo nunca deu qualquer aula, mandando oficiais da Marinha prestar indevidamente funções de docência. Também se procurou averiguar se o ainda Chefe do Estado-Maior da Armada recebera algum título académico e se continuará a regência depois de abandonar o cargo.  

    Campus de Campolide, onde ainda funciona a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

    Em resposta, transmitida pelo gabinete de relações públicas do Estado-Maior da Armada, e não assinada nem assumida por Gouveia e Melo, apenas se refere, sem enviar qualquer comprovativo, que a “lecionação da cadeira de Segurança Marítima insere-se numa parceria entre a Marinha Portuguesa e a Nova School of Law”, acrescentando somente que ”as aulas são ministradas por oficiais da Marinha, tendo o Almirante Gouveia e Melo contribuído, como regente dessa cadeira, de forma gratuita e no quadro da [ignota] parceria”.

    O PÁGINA UM também colocou diversas questões, em concreto, tanto à actual directora da Faculdade de Direito da UNL, Margarida Lima Rego – que tomou posse em Outubro de 2022 – como a Assunção Cristas e a Mariana França Gouveia. Apesar de todas terem recebido a mensagem do PÁGINA UM, todas optaram por não responder, remetendo para a LPM – uma agência de comunicação, actualmente sem qualquer contrato válido com a instituição universitária, segundo registos do Portal Base –, que emitiu uma breve declaração: “A Nova School of Law conta com a colaboração da Marinha Portuguesa no Mestrado em Direito e Economia do Mar. No âmbito dessa colaboração, o Almirante Gouveia e Melo, na sua qualidade de Chefe de Estado Maior da Armada, e a sua equipa são responsáveis por leccionar a unidade curricular de Segurança Marítima”. Nada é dito sobre os procedimentos de atribuição do cargo de Professor Convidado a Gouveia e Melo, nem sobre a ausência de deliberação do conselho científico, nem sobre como a regência e a lecionação de uma cadeira de um mestrado ser feita por pessoas não qualificadas nem sobre se o ainda Chefe do Estado-Maior da Armada vai continuar em funções universitárias em situação ilegal.

    O fundador e antigo coordenador do mestrado em Direito e Economia do Mar, o catedrático Jorge Bacelar Gouveia mostra-se atónito com esta situação. “A contratação de docentes convidados é excepcional e deve basear-se num currículo adequado e com bibliografia na área, o que não acontece” no caso de Gouveia e Melo, diz. E acrescenta ser “até caricato que, no programa apresentado, estejam elementos bibliográficos do regente anterior [Armando Marques Guedes], que podia ter continuado a lecionar, mas que foi afastado”.

    Assunção Cristas (esquerda) e Margarida Lima Rego, actual directora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

    Catedrático decano da Faculdade de Direito da UNL, Bacelar Gouveia diz não ser do seu conhecimento nem consta que “o Conselho Científico alguma vez tenha aprovado um relatório assinado por dois docentes a propor a contratação de Gouveia e Melo como docente convidado, como manda a lei”, reforçando que, “pelo menos, esses relatórios nunca constaram da ordem de trabalhos nem a questão foi discutida em Conselho Científico, como estabelece o Estatuto da Carreira Docente Universitária”.

    O PÁGINA UM vai requerer formalmente tanto à Marinha como à Faculdade de Direito da UNL diversos documentos, incluindo a alegada parceria e actos da regência de Gouveia e Melo, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, seguindo uma intimação para o Tribunal Administrativo de Lisboa caso um dos ‘bastiões’ do ensino público universitário da área jurídica se mantenha irresoluto em esclarecer este caso.


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