Foi uma estreia ao seu estilo: no primeiro ano de Cristiano Ronaldo como empresário dos media saiu uma vitória. Num ano marcado pelo acentuar da crise dos media – que culminou com o colapso da Trust in News e um prejuízo recorde na Impresa – determinada e com um desempenho financeiro que contrasta com o naufrágio da maioria dos grupos de comunicação social portugueses.
No primeiro ano completo de actividade da Medialivre – o novo império mediático detentor do Correio da Manhã, Sábado, da CMTV, da Now, e agora também de duas rádios –, a empresa apresentou um lucro de 4,2 milhões de euros, segundo as demonstrações financeiras de 2024 a que o PÁGINA UM teve acesso.
Este resultado, embora inferior aos 7,2 milhões de euros registados em 2023 – ano de transição, após a e reestruturação –, evidencia a solidez da Medialivre, mesmo num contexto de forte investimento, financiado em parte substancial pelo próprio Cristiano Ronaldo, através da sua sociedade CR7 S.A.
A Medialivre, recorde-se, comprou no final de 2023, a Cofina Media através de um consórcio constituído pela Sorolla, LivreFluxo, CR7, Actium Capital e Caderno Azul. Embora nenhum accionista tenha a maioria, Cristiano Ronaldo é, individualmente, a pessoa com maior participação na holding, a Expressão Livre, detendo directamente 30%.
Além disso, o jogador é potencialmente, o seu decisor estratégico dominante. Com efeito, através de um acordo parassocial, a empresa de Ronaldo comprometeu-se a um investimento de 13,095 milhões de euros – a título de ágio, ou seja, sem retorno directo ou direito de reembolso – num capital social total que implicou entradas de 34,9 milhões de euros. Assim, a CR7 suportou 37,52% do investimento, superando proporcionalmente a sua participação no capital. Já a Sorolla, com 32% do capital, investiu apenas 14,95%.
Nove anos depois de ter lançado um microfone da CMTV a um lago, Cristiano Ronaldo detém 30% da Medialivre – e já lucra.
Este desfasamento entre percentagem accionista e esforço financeiro indicia que Cristiano Ronaldo procura afirmar-se como fiador institucional do projecto, adquirindo influência e relevância num sector de comunicação social marcado pela fragilidade.
Os investimentos realizados no ano passado reflectem-se já na valorização dos activos não correntes da Medialivre, que incluem, entre outros, os direitos associados às marcas Correio da Manhã, CMTV e Now. Estes activos aumentaram de 70,8 milhões de euros em 2023 para 82,8 milhões em 2024 – um acréscimo de cerca de 12 milhões. Por seu turno, o passivo total cresceu de 60,5 para perto de 68 milhões de euros, mas o balanço contabilístico revela uma situação económica e financeira saudável, sobretudo considerando o contexto adverso para os media em Portugal.
A título de comparação, a Impresa – dona da SIC e do Expresso – registou um prejuízo de cerca de 60 milhões de euros em 2024, com elevados níveis de endividamento, que ultrapassam os 130 milhões de euros. Já a Medialivre reduziu os seus empréstimos bancários para cerca de 26 milhões de euros, menos 20% do que no ano anterior.
Cristiano Ronaldo e Carlos Rodrigues, durante uma visita em Março passado às instalações do grupo de media. Foto: DR.
A presença de Cristiano Ronaldo na Medialivre será, em principio para ser de longo prazo, porque o acordo parassocial entre os accionistas da Expressão Livre estipula que estes deverão permanecer na estrutura durante três anos, mesmo que ocorram alterações na distribuição do capital. Contudo, no horizonte de nove anos de vigência do acordo, prevê-se a possibilidade de venda integral caso um grupo de accionistas com mais de 75% deseje alienar a totalidade da empresa a terceiros – situação que poderá reforçar o controlo de Ronaldo, caso este mantenha a sua posição estratégica e capacidade de investimento.
A entrada de Cristiano Ronaldo na Medialivre marcou o fim definitivo de uma relação atribulada entre o futebolista e o universo Correio da Manhã. As picardias do passado – como o célebre episódio de 2016 em que Cristiano lançou ao lago o microfone de um jornalista da CMTV, posteriormente resgatado e leiloado com fins solidários – estão não apenas ultrapassadas, mas enterradas. O jogador mais famoso da história portuguesa está agora na cúpula de um dos mais influentes grupos de comunicação social do país.
De repente, uma estranha simetria une dois dos fenómenos sociais mais fracturantes do nosso tempo recente: a pandemia de covid-19 e a actual crise em torno da imigração. À primeira vista, parecem realidades inconciliáveis: uma, sanitária e de impacte global; outra, demográfica e de impacte nacional.
Mas, ao observarmos os mecanismos sociais, políticos e comunicacionais, que ambas desencadearam, partilham algo de essencial: a intolerância como padrão de resposta colectiva. E daí parte-se para uma hostilidade crescente não apenas em relação às posições extremas opostas, mas — talvez ainda mais inquietante — contra quem tenta compreender, dialogar ou propor soluções de equilíbrio.
Durante a pandemia, bastava levantar uma dúvida sobre a proporcionalidade das medidas, questionar os confinamentos, interrogar a eficácia das vacinas ou simplesmente defender direitos constitucionais elementares para ser etiquetado de “negacionista”, “antivacinas”, “irresponsável” ou mesmo “assassino”. A emotividade pública, catalisada por uma comunicação social subserviente e por peritos promovidos ao estatuto de sacerdotes da verdade, interditava qualquer subtileza. O dogma instalou-se com uma eficácia capaz de ombrear com a Inquisição: quem não se ajoelhava perante o altar do medo era excomungado da vida cívica.
Hoje, algo semelhante sucede com o debate sobre imigração. Quem aponta os efeitos reais — e documentados — da imigração desordenada sobre o sistema de saúde, habitação, educação ou segurança, corre o risco de ser acusado de xenofobia ou racismo. Mas o contrário também se verifica: quem rejeita o alarmismo identitário e sublinha os direitos humanos, as histórias de vida dos migrantes ou a necessidade de políticas de integração bem desenhadas é de imediato classificado como “globalista”, “vendido ao sistema” ou “traidor da pátria”.
Pior ainda está quem ousa interrogar ambas as visões com prudência, tentando distinguir entre migração legal e tráfico humano, entre integração e guetização, entre impacto económico e vulnerabilidade social. Este é aquele que acaba por ser atacado de todos os lados — por traidor, por frouxo, por centrista táctico.
Na verdade, nos debates sobre a pandemia e agora sobre a imigração — e talvez noutros tantos campos — aquilo que se perdeu foi precisamente o que garante a sanidade de uma democracia: a capacidade de pensar o meio-termo, de analisar com rigor, de propor soluções ponderadas que evitem tanto a repressão cega como a permissividade ingénua.
A pulsão de radicalização em ambos os lados — alimentada por redes sociais, algoritmos de indignação e agendas políticas maniqueístas — transforma tudo em trincheira. Já não há adversários: há inimigos. E a posição intermédia, que sempre foi mais difícil de construir do que os extremos, parece hoje terreno minado.
Na pandemia, quem procurava uma via equilibrada — por exemplo, defendendo a protecção dos mais vulneráveis sem destruir as liberdades fundamentais — foi marginalizado, insultado, silenciado. Ou processado — como eu, que ainda este ano terei de responder judicialmente em três processos.
Na questão migratória, quem procura agora aplicar políticas sérias de controlo de fronteiras, mas ao mesmo tempo defender a dignidade humana — tanto dos imigrantes como dos autóctones —, sofre a mesma sorte: é demasiado duro para os progressistas e demasiado mole para os populistas.
O consenso tornou-se heresia.
Há nisto um paradoxo revelador. Se, teoricamente, os extremos se combatem melhor a partir do centro (não me refiro ao espectro ideológico) — com racionalidade, dados e proporcionalidade —, o que vemos hoje é o contrário: os extremos prosperam precisamente porque conseguiram minar o prestígio do centro, esvaziar-lhe a credibilidade, converter a prudência em tibieza e o pensamento crítico em traição. É a vitória do ressentimento contra o equilíbrio. Do ruído contra o discernimento. Do algoritmo contra o argumento.
As redes sociais, que durante a pandemia foram usadas como instrumentos de controlo emocional e repressão simbólica, agora funcionam como aceleradores de pânico moral e de fúria identitária. A lógica binária de “salva vidas” versus “negacionistas” foi apenas substituída por outra: “defensores da pátria” versus “traidores pró-imigração”. O molde é o mesmo; apenas se trocam os actores. E, mais curioso e preocupante, muitos daqueles que na pandemia sofreram penalidades por serem minorias, estão agora na linha da frente para serem algozes dos que pensam diferente na imigração.
E, como antes, quem tentar desmontar o jogo, desmontar o medo, desmontar a encenação, é eliminado do palco.
Talvez estejamos a assistir a um processo mais profundo: o esgotamento da razão pública como espaço de construção comum. O velho ideal iluminista de que podemos, pela razão e pela evidência, fundar consensos mínimos para enfrentar problemas complexos, está em erosão. Em seu lugar, estão a erguer-se afectos inflamados, tribalismos digitais e dogmas emocionais. E com eles vem a recusa do diálogo, a humilhação do outro, a purga dos moderados.
Na pandemia, fomos empurrados para o medo absoluto como forma de controlo. No debate migratório, estamos a ser empurrados para o medo difuso como forma de fragmentação. Em ambos os casos, o efeito é idêntico: o desaparecimento da política como espaço de ponderação e a sua substituição por actos reflexos emocionais e moralistas. No limite, deixa de haver verdade: apenas versões armadas da verdade.
É por isso que, mais do que escolher entre extremos, importa reconstruir o valor do meio. Não o meio-termo cómodo e inócuo, nem sequer ideológico, mas o meio ponderado, exigente — aquele que resiste à emotividade e se ancora na realidade.
A pandemia ensinou-nos, ou devia ter ensinado, que a histeria colectiva não é boa conselheira. A questão migratória exige agora essa mesma lição: sem tabus, mas também sem ódio. A liberdade — e a civilização — moram nesse equilíbrio precário que os radicais de ambos os lados querem demolir. Mas é lá que vale a pena continuar a construir. Mesmo que seja mais difícil — ou sobretudo por isso.
Em 2001, salvo erro — e com a humildade própria de quem aceita errar um ou outro ano —, escrevi uma análise sobre o estado do país em diversos sectores para a já saudosa Grande Reportagem. Intitulei-a, com toda a justeza e sentido premonitório, ‘O Estrago da Nação’, prescindindo deliberadamente da enfadonha e rotineira expressão “O Estado da Nação”. Mais tarde, reciclei o título para um livro, em 2003 — e hoje sobrevive como denominação de um podcast do PÁGINA UM. Afinal, há designações que perduram porque se colam à realidade como resina.
Duas décadas depois, predispus-me, mais por curiosidade antropológica do que por dever de ofício, a assistir ao verdadeiro “Estado da Nação”, essa encenação parlamentar revestida de solenidade, em que os deputados fingem debater o país como se não tivessem nada a ver com o seu estado.
Não era, pois, com expectativa noticiosa que me sentava, mas numa função de observação sociológica: nunca acreditei — nem por um segundo — que, num par de horas, os nossos representantes fossem capazes de dissecar, com seriedade e substância, o verdadeiro estado da pátria. Mas há ritual. Há solenidade. Há espetáculo. Mesmo sem novidade, há espetáculo. E, mesmo sem a esperança de encontrar lucidez, ali estava eu, qual entomólogo do hemiciclo.
Nutro há muito uma convicção (partilhada por muitos, receio): os políticos, em regra, são incapazes de produzir diagnósticos acertados sobre o país porque vivem dele apartados. Desconhecem os ritmos e agruras da vida quotidiana. Habitam, por assim dizer, numa outra galáxia. Isso talvez explique, por exemplo, que se sirvam de uma bica a 40 cêntimos — metade do que custa fora do Olimpo parlamentar, no mundo onde vivem os comuns mortais.
Talvez seja esta a forma expedita de complementarem vencimentos que consideram modestos: vivendo abaixo do custo real da vida. A austeridade, pelos vistos, começa no bar da Assembleia.
Feito este introito, bastaram-me poucos minutos — ou melhor, bastou-me o discurso inicial do primeiro-ministro — para encontrar o mote desta crónica. Luís Montenegro brindou-nos, num discurso inaugural, com um idílio político digno de arcádia: elogiou a sua governação, clamou por estabilidade, prometeu reduções fiscais em catadupa e, já num tom náutico de retórica camoniana, resolveu terminar com uma tirada de impacto. “Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos”, anunciou altitonante.
Acontece, porém, que a frase não é de Sophia, mas de outro português, mas assumidamente comunista: José Saramago, que a escreveu em 1994 nos Cadernos de Lanzarote. O episódio é revelador do estado real da nossa governação: o primeiro-ministro — que, presumo, terá assessores cultos e diligentes — não só ignora a autoria da frase como, pior ainda, nem sequer compreendeu o seu significado completo. Porque a frase, que Montenegro repetiu com ar de estadista grave, prossegue com algo ainda mais inquietante: “Sem memória não existimos. Sem responsabilidade talvez não mereçamos existir.”
Ora, se é verdade que Montenegro demonstrou não ter memória — ao atribuir mal a citação —, e se também falhou na responsabilidade — ao não corrigir o erro nem reconhecer a ignorância —, resta a inquietante conclusão de que a sua existência política é, no mínimo, um equívoco ontológico.
Mas o mais patético — sim, que não encontro palavra mais branda — foi ver a plateia parlamentar a reverberar a asneira. Falou André Ventura, falou Hugo Soares, falou Carneiro pelo PS, e o nome de Sophia continuou a bailar entre discursos. As bancadas do PS e do Chega andaram entretanto às turras com a coreografia habitual. Desta vez, Aguiar-Branco teve de arbitrar sobre se ‘frouxo’ e ‘fanfarrão’ são termos ofensivos. Só depois de o PÁGINA UM ter assinalado a gafe (ou ignorância) às 15h49 nas redes sociais (se calhar houve quem identificou antes) é que o deputado do Livre, Rui Tavares, tentou, já fora do plenário, repor a verdade, esclarecendo que a frase era de Saramago.
Mas já era tarde. Ninguém percebeu — ou pelo menos, o Público não entendeu patavina: a jornalista Ana Bacelar Begonha escreveu que Rui Tavares “lembr[ou] uma frase de José Saramago (a que Montenegro citara e atribuíra erradamente a Sophia) e, num rasgo digno de crónica de costumes, indicou que foi o deputado do Livre a dizer que “sem memória não existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir”, como se fosse ele o autor do aforismo saramaguiano. Este jornalismo – a quem falta também memória e sobra ligeireza – também é um sinal do Estado da Nação.
Aguentei estoicamente até às 19h20, escrevendo esta crónica ao som intermitente dos discursos de dois minutos (por vezes de cinco), enquanto o Governo escutava em silêncio, pois Montenegro esgotou rapidamente o seu tempo. E no final, aquilo que mais me chamou a atenção não foram os argumentos, mas o cenário: a bancada socialista a meio-gás — como quem acha que tem lugares a mais — e o Chega a ocupar com disciplina o espaço da Oposição, com Ventura a saber gerir o cronómetro e a acabar o debate com mais tempo do que qualquer outro partido para ‘brilhar’ no fim. Os outros partidos, esses quase não contaram, sobretudo os pequenos partidos (BE, PAN e JPP) que tiveram apenas cinco minutos.
Conclusão: se isto a que eu assisti foi o Estado da Nação, continuarei a preferir o Estrago da Nação. Sempre me parece termo mais exacto. E mais honesto.
Adenda às 20h03: O ministro dos Assuntos Parlamentares, Carlos Abreu Amorim, no discurso final, voltou à carga da asnice, relembrando a frase apócrifa de Sophia dita por Montenegro, e ainda conseguiu ser pior. Armado em literato, relembrou o célebre “Minha pátria é a língua portugueses” (acertando, vá lá, no autor), e proclamou ufano: “Eu sou Pessoa; eu sou Sophia; eu sou Camões; eu sou Natália Correia; eu sou António Nobre; eu sou Florbela Espanca”. Só lhe faltou dizer “eu sou Saramago”, o autor do aforismo usado por Montenegro. E talvez também confessar: “Eu sou burro”. A estultícia, com efeito, tomou conta da Nação!
Passou despercebido nas primeiras leituras apressadas, mas uma das normas constantes do Programa do XXIV Governo Constitucional, liderado por Luís Montenegro, poderá vir a ser julgada inconstitucional se for concretizada em letra de lei — ou pelo menos suscitar fortes reservas jurídicas quanto à sua compatibilidade com a Lei Fundamental da República Portuguesa.
Trata-se da proposta de criação de um “modelo de número único de identificação para as pessoas e empresas”, justificada no documento governamental como forma de evitar “que a mesma pessoa tenha de ter número de utente, de cartão de cidadão, de contribuinte, de Segurança Social, de eleitor, etc.” Mas a desburocratização significa também maior devassa da vida privada dos cidadãos por parte do Estado.
sta formulação — que consta na página 109 no capítulo “Reforma da Governação, Organização e da Prestação do Sector Público Administrativo” — não é absolutamente nada original: trata-se de uma cópia literal da proposta n.º 333 do programa eleitoral do Chega. O partido de André Ventura colocou a promessa na ‘secção’ intitulada “Desburocratizar para avançar”.
Em concreto, tanto o Chega como o Governo de Luís Montenegro pretendem que os vários números de identificação atribuídos aos cidadãos — desde o número de utente do Serviço Nacional de Saúde, ao número de contribuinte, à Segurança Social, ao cartão de eleitor, entre outros — sejam concentrados num único número nacional de identificação, a usar transversalmente por todos os serviços e plataformas do Estado. Do berço ao caixão.
O objectivo aparenta ser benévolo: simplificar a relação dos cidadãos com a Administração Pública, evitando múltiplos registos e agilizando os processos digitais. Mas este desiderato, aparentemente inocente — ou mesmo tecnocrático —, esbarra frontalmente com a Constituição da República Portuguesa.
Com efeito, o n.º 5 do artigo 35.º da CRP estabelece com clareza: “É proibida a atribuição de um número nacional único aos cidadãos.” Esta norma constitucional, que remonta à revisão de 1989, foi adoptada num contexto em que começavam a emergir as primeiras bases de dados digitais centralizadas, e visava proteger os cidadãos contra práticas de controlo e vigilância abusivos por parte do Estado.
A intenção era inequívoca: impedir a criação de um sistema unificado de identificação que permitisse cruzar, com facilidade e sem consentimento expresso, informação sobre saúde, dados fiscais, mas também outros aspectos sensíveis que estivessem associados a cada pessoa.
É certo que, nas últimas décadas, o avanço tecnológico e a digitalização da Administração Pública levaram, na prática, a uma crescente interoperabilidade entre sistemas estatais. Por exemplo, o número de contribuinte tem sido usado como identificador transversal em várias plataformas.
Proposta do programa eleitoral do Chega foi copiada ipsis verbis pelo Governo de Luís Montenegro.
No entanto, como sublinha o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, em declarações ao PÁGINA UM, a consagração formal de um número único nacional seria inconstitucional, tal como está actualmente prevista na Constituição. Para o jurista, embora já exista uma “centralização de facto” em muitos aspectos, a criação formal de um número único, com base legal, seria “um salto qualitativamente diferente”, colocando “riscos de devassa da privacidade”.
De resto, o mesmo artigo 35.º da actual Constituição reforça a sua preocupação com a protecção de dados pessoais ao estabelecer que “a informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular (…)”.
A ligação entre essa norma e a proibição do número único é evidente: o legislador constituinte quis, na altura, prevenir a possibilidade de concentração num só registo digital da identidade integral do cidadão.
Atribuição de um número único de identificação permite, mesmo acenando-se com a desburocratização e a segurança, a transição para um modelo de controlo social à moda chinesa
Em termos práticos, a adopção de um número único teria como consequência imediata que todos os serviços do Estado — e eventualmente entidades privadas com acesso autorizado — pudessem aceder, de forma mais expedita, ao histórico completo de interacções e dados do cidadão: processos de saúde, registos fiscais, segurança social, histórico eleitoral, licenças de condução, propriedade automóvel e imobiliária, registo criminal, percurso académico, entre outros. O risco não é meramente teórico: a centralização de dados aumenta a vulnerabilidade a abusos, violações de privacidade e mesmo ciberataques com efeitos devastadores.
Mas há também um risco simbólico e filosófico: o de uma progressiva despersonalização e desumanização da identidade do cidadão. Reduzido a um número único — que substituiria o nome próprio na relação com os serviços públicos —, o cidadão deixará de ser reconhecido na sua individualidade para passar a ser um código funcional.
Do nascimento à morte, um recém-nascido deixaria de ser, simbolicamente, João, Maria ou Miguel para passar a ser 1023984501, numa lógica de etiquetagem estatal que rompe com qualquer ideia de dignidade pessoal. Ou seja, o número deixa de ser apenas um instrumento administrativo para se tornar, na prática, uma identidade totalitária, pronta a ser vigiada, cruzada e interpretada por algoritmos.
André Ventura conseguiu introduzir proposta inconstitucional no Programa do Governo.
A proposta agora inscrita no Programa do Governo surge, assim, num cenário político sensível, em que tanto o PSD como o Chega demonstraram disponibilidade para uma revisão constitucional — eventualmente para acomodar medidas que hoje são inconstitucionais.
Aliás, no caso concreto do número único, o próprio “etc.” da formulação governamental levanta mais dúvidas do que esclarecimentos. O que mais se incluirá neste identificador? Dados bancários? Localização em tempo real através de aplicações públicas? Um registo de vacinação ou de deslocações? Uma possibilidade de bloquear o acesso a qualquer outro acto administrativo se, por exemplo, houver uma multa de trânsito ou se um cidadão for socialmente incómodo?
Embora ainda se esteja perante uma promessa governamental sem legislação concreta, a simples transcrição ipsis verbis da proposta do Chega — sem qualquer discussão pública ou alerta mediático — revela um padrão preocupante de alinhamento programático, sobretudo quando se trata de matérias sensíveis à liberdade individual.
No futuro, o cidadão número 35678876 será o líder de um Governo da República Portuguesa…
E se é certo que a proposta poderá, no futuro, ser enquadrada numa revisão constitucional — algo que requer maioria qualificada —, o facto de ser integrada no actual Programa de Governo levanta legítimas interrogações sobre o rumo do Executivo de Luís Montenegro em matéria de garantias fundamentais.
Seja por afinidade política, seja por mera distração legislativa, esta proposta do Governo configura uma flagrante inconstitucionalidade num documento programático fundamental, com implicações não apenas jurídicas mas sobretudo democráticas e humanas.
Apesar do coro político sobre a prioridade nacional para a habitação, o Estado português – nas suas diversas vertentes, desde a Administração Central até às autarquias, passando pelos Governos Regionais – conseguiu um ‘feito inaudito’: concluir apenas 12 fogos habitacionais em todo o país durante o ano passado. Nem uma centena. Nem meia centena. Doze. É esse o número de casas novas em todo o ano de 2024, de acordo com os dados provisórios do Instituto Nacional de Estatística (INE), agora analisados pelo PÁGINA UM.
No total de todas as habitações familiares concluídas no ano passado, o sector público foi responsável por menos de 0,05% – ou seja, apenas uma em cada 2.000 casas familiares terá sido construída por entidades públicas.
Num país onde vigora um Plano de Recuperação e Resiliência com centenas de milhões atribuídos à chamada “Habitação Acessível”, a acção directa do Estado revela-se, na prática, estatisticamente irrelevante.
Apesar de se assistir a um novo dinamismo na construção de habitações familiares – o ano passado, com 25.311 fogos, foi o melhor da última década, superando mesmo o conjunto do triénio 2015-2017 –, tem sido a iniciativa privada que se tem destacado, tanto ao nível de pessoas singulares (famílias) como de empresas.
Ao longo de 2024 foram concluídos 15.030 fogos construídos por empresas e mais 10.168 por pessoas singulares. Estes valores são também os máximos da última década, sendo que os crescimentos relativos face a 2023 foram de 15% e 2,7%, respectivamente. Uma parte também reduzida (101 fogos em 2024) foi concluída por iniciativa de empresas de serviço público, cooperativas de habitação e instituições sem fins lucrativos.
Total de fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por entidade promotora entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.
O mapa dos fogos públicos concluídos é quase caricatural: três em Mafra, três em Miranda do Douro, e um em cada um dos seguintes concelhos: Braga, Paredes, Caldas da Rainha, Vila do Conde, Lagoa (Açores) e Valença.
Esta é a cartografia da acção do Estado português enquanto construtor de habitação. Sempre se poderá dizer que, conforme alerta o INE, não existem ainda dados nos últimos dois anos para os concelhos de Lisboa, Faro e Póvoa de Varzim, por ausência ou insuficiência de informação, mas esse quadro não se modificará muito quando houver dados desses municípios. Por exemplo, a capital de Portugal só tem referidos 100 fogos de iniciativa pública concluídos entre 2015 e 2022.
A análise da última década mostra uma tendência contínua de afastamento do Estado enquanto promotor directo de habitação. Em 2015, os organismos públicos ainda concluíram 88 fogos. Não era quase nada, mas era sete vezes mais do que em 2024. O número manteve-se baixo ao longo dos anos seguintes, com um breve pico em 2021, quando foram contabilizados 262 fogos públicos – o valor mais elevado da década.
Mas desde então, o colapso é evidente: 21 em 2022, 63 em 2023 e apenas 12 em 2024. Mesmo com eventuais acertos quando os dados forem definitivos, por agora o INE aponta para apenas 727 fogos familiares por iniciativa pública na última década, que contrastam com os 72.653 fogos por iniciativa de pessoas singulares, os 78.884 por empresas privadas e 556 por outras entidades.
Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por todas as entidade promotora entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.
Este desinvestimento é tanto mais escandaloso quanto mais se recorre ao discurso público como cortina de fumo. Nunca se falou tanto de habitação pública, nunca se prometeram tantos apoios, tantos programas, tantas metas. Mas o resultado, medido em tijolos e telhados, é medíocre. Os números não mentem: o Estado não constrói.
Os dados do INE, que não são matéria de opinião, demonstram que o que se vende como política pública de habitação não passa, em grande medida, de engenharia retórica. Em suma, dos 151.820 fogos habitacionais novos construídos entre 2015 e 2024, praticamente 52% foram de empresas privadas, cerca de 47,2% foram de iniciativa particular, 0,5% por iniciativa pública e um pouco mais de 0,3% por outras entidades.
Em todo o caso, de forma global, observa-se uma tendência de crescimento do número total de fogos – que passou de pouco mais de 7 mil em 2015 para mais de 25 mil em 2024 –, mas o Estado, além de não contribuir para o volume, está muito longe de ter poder de regulação dos preços de mercado. Aliás, o Estado e as autarquias até beneficiam directamente da especulação, por via dos montantes tributados de IMT (Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis) e de IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis).
Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por iniciativa de empresas privadas entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por iniciativa de pessoa singular (família) entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.
Os números do INE – que acabam por mostrar que os projectos, os planos, as primeiras pedras e os anúncios de entrega de chaves (que em muitos casos são de casas reabilitadas ou já existentes) – revelam que os sucessivos Governos prometem combater a especulação e a crise habitacional, mas é o mercado, com a iniciativa particular e de empresas privadas, que mostra dinamismo. Estamos perante a radiografia de um modelo de governação que trocou o cimento pelo soundbite. A política da habitação em Portugal continua a ser feita em conferências de imprensa, não em estaleiros de obra. E os cidadãos pagam, todos os dias, o preço dessa encenação.
O dinamismo da construção de fogos habitacionais novos na última década tem estado concentrado sobretudo nos concelhos urbanos do eixo Porto-Braga e Lisboa-Setúbal, onde se intrometem Leiria, Aveiro e Viseu. O município que mais construiu entre 2015 e 2023 foi o Porto, com 6.590 fogos habitacionais, seguindo-se Vila Nova de Gaia, com 5.543 fogos. Braga é o outro concelho acima da fasquia dos cinco mil (5.045).
Na Área Metropolitana de Lisboa, o Seixal foi o município que mais construiu (4.291 novos fogos). Segue-se depois, novamente a Norte, Guimarães (3.272), Leiria (3.062) – o primeiro concelho fora das duas áreas metropolitanas – e Vila Nova de Famalicão (3.041). Acima de dois mil fogos estão ainda Barcelos e Odivelas (ambos com 2.658), Matosinhos (2.398), Sintra (2.394), Lisboa (2.328), Mafra (2.311), Loures (2.285), Aveiro (2.234), Viseu (2.146) e Cascais (2.060). Fecham o top 20 os concelhos de Almada (1.991), Maia (1.862) e Setúbal (1.816). Quase quatro em cada 10 novos fogos habitacionais (39,3% do total) foram construídos nestes 20 municípios.
Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por iniciativa de entidades públicas (Administração Central, Local e Regional) entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por iniciativa de outras entidades (empresas de serviço público, cooperativas de habitação e instituições sem fins lucrativos) entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.
Porém, as dinâmicas mais recentes mostram algumas diferenças. Apesar de o Porto e Vila Nova de Gaia terem sido os que mais fogos concluíram em 2024 – 1.542 e 1.431, respectivamente –, o terceiro lugar é ocupado por Braga (mais 669 fogos), seguido do Seixal (649), Maia (567), Leiria (564), Cascais (540), Funchal (481), Sintra (472) e Oeiras (465). Estes 10 municípios foram responsáveis por 29,4% dos fogos concluídos no ano passado em todo o país.
Recorde-se que no mês passado, o Programa do Governo estabeleceu como meta a construção de “59 mil casas públicas” e a disponibilização de financiamento para mais projectos, incluindo parcerias público-privadas em imóveis do Estado devolutos com aptidão habitacional. Mas as promessas nem quatro paredes possuem, quanto mais tecto e acabamentos, pelo que, o mais provável, pelo histórico, é a montanha parir um rato.
Aliás, também a promessa do Governo socialista de transformar a empresa pública Parque Escolar em Construção Pública – para assim passar a deter competências na área da habitação social – não passou do papel. E acabou por ser mais uma promessa não concretizada no sector da habitação.
“Vamos limpar a Amadora” – este é o mote do deputado Rui Paulo Sousa, que se candidata à autarquia local pelo Chega e tem colocado a alegada criminalidade deste subúrbio de Lisboa na agenda política. Ainda na semana passada, um dos braços direitos de André Ventura perguntava em tom retórico: “Até quando queres viver no Gueto de Lisboa?… Vamos limpar a Amadora da Bandidagem, vamos devolver a Cidade aos Amadorenses de bem.”
Para sustentar esta tese, Rui Paulo Sousa apresentou um ranking surpreendente, da plataforma Numbeo, que colocava a cidade da Amadora no “17.º lugar no ranking das cidades mais perigosas da Europa… à frente de Odessa na Ucrânia!!!”, escreveu o candidato. Aliás, descontando o facto de a Amadora surgir ex-aequo com a cidade ucraniana, confirma-se o lugar no ranking do primeiro semestre de 2025 desta plataforma colaborativa.
Contudo, aquilo que mais surpreende é que a Amadora, cidade com cerca de 180 mil habitantes, nem sequer aparece na lista de 132 cidades europeias analisadas em 2024, onde apenas surgiam Lisboa (na posição 95) e Porto (na posição 87), ambas classificadas como cidades com baixo índice de criminalidade. No ranking de 2025, Lisboa ocupa a posição 76 e o Porto o lugar 110, embora ambas com percepção de risco baixo. A entrada de rompante no ranking causa estranheza, desde logo.
Porém, mais surpreendente ainda é constatar que a Amadora, mesmo figurando no 17.º lugar deste ranking europeu, ocupa apenas a posição 104 a nível mundial, numa lista liderada por duas cidades da África do Sul (Pietermaritzburg e Pretória), país que conta com cinco cidades no top 10.
Entre as 25 cidades consideradas menos seguras do mundo, segundo o ranking do Numbeo, seis são brasileiras (Salvador, Fortaleza, Recife, Rio de Janeiro, Porto Alegre e São Paulo) e quatro são norte-americanas (Memphis, Detroit, Baltimore e Albuquerque). A cidade europeia considerada menos segura, Bradford (Reino Unido), surge na 33.ª posição.
Embora a Amadora surja com frequência na narrativa mediática como cidade com problemas de segurança, os dados estatísticos não confirmam essa percepção. Pelo contrário.
De acordo com os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE), o concelho da Amadora ocupa apenas a 131.ª posição entre os 308 municípios portugueses em termos de criminalidade total em 2024, com 28,9 crimes por mil habitantes — ligeiramente abaixo da média nacional, fixada em 30,0. O topo da lista é ocupado por Albufeira (78,2), Avis (74,5), Mourão (64,6), Loulé (61,4) e Porto (60,6). Já Lisboa regista 53,6 crimes por mil habitantes — quase o dobro da Amadora em termos relativos.
No caso dos roubos por esticão e na via pública — tipologias particularmente traumáticas —, a taxa de criminalidade em Lisboa é quase cinco vezes superior à da Amadora (3,2 contra 0,7 por mil habitantes). E nos crimes contra o património, os mais numerosos, a Amadora também está longe do topo nacional — quanto mais do europeu. Com 13,9 crimes por mil habitantes em 2024 nesta categoria, está abaixo da média nacional (17,3), enquanto Lisboa e Porto apresentam rácios quase três vezes superiores: 34,6 e 39,9, respectivamente.
Intrigado com os dados, o PÁGINA UM questionou o CEO do Numbeo, Mladen Adamovic, sobre a posição concreta da Amadora, que confirmou a que, em 2025, esta cidade portuguesa registou um número anormalmente elevado de avaliações por usuários em comparação com anos anteriores. Mas mesmo assim, o total é absurdamente pequeno: apenas 27 entradas válidas relativas à Amadora em 2025, contra apenas 9 em 2024 e 11 em 2023. O aumento das submissões começou, segundo Adamovic, “em Julho”, admitindo que “se deveu a uma maior atenção mediática”.
Embora o Numbeo admita ser frequentemente alvo de spam, Adamovic assegura que existem algoritmos de detecção de padrões suspeitos, incluindo cruzamento de endereços IP e outros dados de utilizador, que permitem eliminar participações manipuladas. No caso da Amadora, garante que “não foi detectado um número elevado de actividades suspeitas que pudessem ser manualmente classificadas como spam”, embora fique agora patente que bastam 27 contribuidores para colocar qualquer cidade europeia numa posição relativamente negativa.
Apesar destas garantias, saliente-se que o modelo do Numbeo assenta exclusivamente em percepções subjectivas — como medo de ser assaltado, presença de vandalismo ou consumo de drogas — recolhidas por meio de questionários voluntários, não havendo validação por dados criminais oficiais. Isso torna o índice vulnerável a flutuações motivadas por fenómenos mediáticos ou campanhas organizadas. A própria ascensão abrupta da Amadora, sem justificação demográfica ou criminal, poderá ter sido amplificada pelo uso político em vésperas de eleições autárquicas.
Mladen Adamovic, CEO da Numbeo revelou ao PÁGINA UM que em 2025 houve apenas 27 avaliações sobre a cidade da Amadora.
O Numbeo não divulga os perfis dos utilizadores, nem os critérios detalhados do seu sistema de ponderação, o que dificulta a verificação externa da robustez estatística dos seus rankings. Ainda assim, os dados são amplamente divulgados e frequentemente tomados como factualidade. Percepções, ainda que subjectivas, tornam-se instrumentos de disputa eleitoral.
O Numbeo é uma base de dados colaborativa, disponível online desde 2009, que recolhe e divulga indicadores sobre qualidade de vida em cidades e países de todo o mundo. A plataforma tornou-se particularmente conhecida pelos seus rankings de custo de vida, segurança, poluição, sistema de saúde e criminalidade.
Ao contrário de organismos oficiais — como o Eurostat ou os institutos nacionais de estatística —, o Numbeo não trabalha com dados administrativos ou criminais oficiais, baseando-se unicamente em inquéritos voluntários anónimos, preenchidos por utilizadores registados de forma contínua. A recolha dos dados depende, portanto, das percepções subjectivas dos respondentes, sem qualquer validação externa ou auditoria metodológica independente.
O índice mais citado — e também o mais polémico — é o chamado Crime Index, que pretende expressar a percepção do nível de criminalidade numa cidade, numa escala de 0 a 100. Um valor mais elevado traduz maior sensação de insegurança. O índice resulta de perguntas como: “Tem medo de ser assaltado?”, “Acha que há muitos casos de vandalismo?”, “É seguro andar sozinho à noite?”, “Há consumo e tráfico de drogas?” ou “Considera a sua cidade corrupta?”.
As respostas, todas subjectivas, são agregadas com maior peso para as mais recentes, embora não se saiba quantos inquéritos são considerados por cidade nem qual a sua representatividade. Complementarmente, o Safety Index representa o inverso: é calculado como 100 menos o Crime Index.
Ao fim de três décadas a escrever, com intervalos mais ou menos voluntários, reencontrei-me num modo de estreia: não com a pena, mas com a pulseira de imprensa, perdido no mundo ruidoso do jornalismo festivaleiro. Ali estive eu — uma espécie de estagiário com barba branca, uma Maria João Pires metida num concerto errado de Mozart — a cobrir o NOS Alive como se fosse um neófito do ofício, atordoado pelo estrépito da música e pelos brados da multidão, entre barracas de Heineken e Licor Beirão, e os lounges da Galp e da Fidelidade — e desculpem-me todas as outras marcas por não as citar, porque não apontei. Nem tinha de apontar.
Ali estive, portanto, estoicamente, nesta feira pós-moderna de comes, bebes e branding — não é só música. Aliás, a haver performances, são para o consumo, o happening estético, o enclave publicitário.
Primeiro ponto desta minha experiência: ao contrário da Prime Artists, com a Everything is New, do Álvaro Covões, os jornalistas são bem tratados. E compreende-se. São eles os olhos de três públicos: dos que estiveram lá e precisam de validação; dos que não estiveram, mas anseiam por ter estado; e, sobretudo, daqueles que lá estiveram e não viram quase nada — porque ninguém consegue estar em todos os palcos ao mesmo tempo, mesmo com mapas, horários e fé.
Eu próprio fui um desses: e só por acaso vi, na primeira noite, Parov Stelar – que vou passar a acompanhar – porque me entretive mais a perceber os fenómenos Benson Boone (com os saltos mortais) e, sobretudo, Olivia Rodrigo (a quem falta energia e alguma voz em palco, com um ou outro acorde fora de tom — mas isso sou eu a falar, uma autêntica cana rachada).
No Media Press — com balcão elevado e vista para o palco principal a uns 200 metros de distância, e com muitas milhares de cabeças em baixo — serviu-se cerveja, cidra, água, café e refrigerantes sem fim, e boa comida em abundância. Não foi a frugalidade quase beneditina das sandochas no camarote da Varanda da Luz, que o Benfica distribui em noites da Liga e da Champions. Aqui, houve dignidade digestiva. Cinco em cinco pontos para a Everything is New.
Além disso, fui afortunado com lugar VIP, porque, nos dois dias de espectáculo que assisti (faltei ao dia 11), tive oportunidade de estacionar a bicicleta eléctrica defronte à entrada — malgrado no sábado ter andado em ‘conferências’ com um comissário da polícia sobre questões de acesso.
Mas passemos à música. Tendo sido esta, curiosamente, a minha estreia em festivais como jornalista, foi também — incrivelmente — a primeira vez que vi os Muse ao vivo. E não por desinteresse, preguiça ou desdém: simplesmente nunca calhou. E, se era para ter ido, deveria ter sido logo da primeira vez, porque no longínquo Verão de 2000, quando actuaram no festival da Ilha do Ermal, eu já conhecia os putos do Showbiz, editado em 1999. Digo ‘putos’ porque, enfim, eu nesse ano fiz 30, e Matthew Bellamy, Dominic Howard e Chris Wolstenholme andavam entre os 20 e os 22 anos, já a ensaiar o estrondo que haveriam de provocar no rock (alternativo) mundial.
Origin of Symmetry, no ano seguinte, em 2001, foi o seu primeiro grito de grandeza, onde os riffs colossais se misturam com falsetes operáticos, pianos barrocos e uma energia quase messiânica. Foi a confirmação de um grupo que começava no topo — e isso, por vezes, não é bom.
Com apenas esses dois discos, a banda britânica passou a ter material para sustentar trinta anos de concertos, o que pode condicionar a criatividade futura — e, de facto, com mais baixos do que altos, os Muse tornaram-se mais uma banda de estádios do que de estúdio: se entre 1999 e 2009 editaram cinco álbuns, nos últimos quinze anos apenas lançaram quatro, todos com desequilíbrios.
Este trajecto notou-se no concerto deste sábado, no palco principal, para onde os Muse foram chamados de urgência a substituir os Kings of Leon — baixa de última hora por lesão vocal do frontman Caleb Followill. Aquilo que para uns terá sido uma desilusão, para muitos (eu incluído) acabou por ser um presente tardio. E, de facto, não foi qualquer presente: foi um concerto em crescendo, milimetricamente orquestrado, com teatralidade, peso sonoro e emoções medidas ao compasso da luz e do fumo.
Os Muse abriram o concerto com Unravelling, o novo single — ainda não lançado oficialmente, mas já testado ao vivo nesta digressão. Uma faixa que funde o rock progressivo com a electrónica e aquele pathos dramático que se reconhece logo na banda de Bellamy. E logo aí se notou: aos 47 anos está ele vocalmente em forma, a banda continua precisa, e o público respondeu com entusiasmo, como quem adivinha que algo maior está por vir.
O alinhamento foi uma retrospectiva compacta, bem escolhida: os êxitos de sempre — Time is Running Out, Hysteria, Uprising, Plug In Baby — surgiram com a pujança que se exigia. Notava-se a sintonia com o público, que foi enchendo o recinto: coros aqui e ali, braços no ar, numa espécie de comunhão pagã que somente um concerto com milhares pode gerar. O som estava bom. Quando surgiu Supermassive Black Hole, a pulsação do festival tornou-se palpável — embora para mim esta fase mais pop dos Muse me pareça um pouco desinteressante, porque se aproxima de música de discoteca.
Mas foi na recta final que tudo atingiu o seu auge. Primeiro com New Born, que condensa o ADN dos Muse e me faz recuar ao início deste século: intro delicada ao piano, crescendo progressivo, explosão eléctrica e a voz inconfundível e única de Bellamy.
Depois, houve o clímax inevitável, já habitual em concertos ao vivo: Knights of Cydonia. A música — essa mistura de space rock, western e revolta épica — tornou-se o hino de fecho perfeito, primeiro com a harmónica dramática de Chris Wolstenholme e o seu célebre grito de resistência: “No one’s gonna take me alive!”
Mas a abertura com a harmónica solitária — que não faz parte da versão de estúdio do álbum Black Holes and Revelations (2006) — soou, desta vez, mais dramática, porque o baixista dos Muse envergava uma camisola da selecção nacional com o número 21 e o nome de Diogo Jota. A música foi dedicada ao malogrado futebolista do Liverpool. Houve emoção partilhada, quase ritualística — e aquela música foi uma espécie de missa laica de celebração em nome da música, da vida e da memória.
Posto isto, saí do recinto, depois de ainda ter dado uma oportunidade aos Nine Inch Nails — mas a banda de Trent Reznor nunca entrou no meu léxico musical quando se fundou em 1988, e não ia ser agora que inverteria o meu gosto. Não sou particularmente aficionado pelo chamado rock industrial. Assim como assim, para música visceral, preferi ver um pedaço do concerto dos Future Islands, antes de rumar com as botas e a bicicleta para casa.
Na vida, cometem-se erros e equívocos, mesmo quando as intenções iniciais são as melhores. Há cerca de três meses, abriu-se a possibilidade de uma colaboração sem custos para o PÁGINA UM por parte de João de Sousa, ex-inspector da Polícia Judiciária, com o passado público que se conhece. Esse passado, para mim, era irrelevante: acredito na reinserção social. O que interessava era a sua experiência.
A melhor forma de oficializar essa colaboração, centrada na área da Justiça, implicava o acesso a fontes de informação e, por vezes, a audiências com limitação de lugares. Por isso, foi formalmente solicitada à CCPJ a emissão de uma carteira de colaborador. Assim, João de Sousa passava a deter, para todos os efeitos, os mesmos direitos e deveres dos jornalistas. Contudo, ficou acordado que, nesta fase, a sua colaboração seria no registo de cronista, o que lhe conferiria simultaneamente liberdade e responsabilidade editorial.
Escrever num jornal como colunista é algo totalmente distinto de ser colaborador com estatuto equiparado ao de jornalista. Mesmo em textos de opinião, não se pode escrever “o que sai da real gana”, nem utilizar o espaço editorial para acertos de contas pessoais.
Durante o curto período da sua colaboração, João de Sousa publicou três crónicas. Todas escritas num português correcto, mas com um estilo que, pela minha experiência jornalística e literária, considerei merecer, aqui ou ali, alguns retoques. Esses ajustes visavam garantir maior equilíbrio editorial e tornar o conteúdo mais acessível aos leitores menos familiarizados com os temas tratados. Essa prática – corriqueira, habitual e até necessária no jornalismo e na edição literária – causava, porém, um indisfarçável incómodo ao João de Sousa, que fui sempre gerindo com diplomacia.
Nunca lhe manifestei que, por exemplo, discordava absolutamente do prisma de uma das suas crónicas, quando comparou o malogrado Diogo J. ao ex-primeiro-ministro José Sócrates, por me parecer despropositado ao contexto do início de um julgamento e de parecer uma colagem emocionalmente ilegítima. Nem tampouco me opus à publicação do texto, mesmo não concordando com o facto de ele justificar na crónica que não acompanhara o início do julgamento por estar em choque com a morte de um futebolista – e que quisera ir para casa beijar os filhos. Ambos sabíamos que, na verdade, houvera um lapso que não permitira a autorização do Tribunal para que ele tivesse garantia de assistir à primeira audiência como colaborador do PÁGINA UM. Enfim, mas no âmbito de uma crónica, existe liberdade de interpretação, e mesmo não sendo este o meu estilo, não deveria opor-me à publicação da crónica, que foi publicada, por razões de liberdade de expressão e de opinião.
Na passada sexta-feira, depois de receber à noite a sua quarta crónica, sobre a última audiência do julgamento Anjos vs. Joana Marques, enviei-lhe uma curta mensagem a sugerir a inserção de uma simples frase de transição entre a introdução e os três blocos seguintes. Sem qualquer conversa prévia por telefone, recebi a seguinte resposta:
“Acabou a colaboração, depois entrego-te o Cartão de Colaborador. Não tenho idade, vida ou paciência para isto. O texto já está publicado nas minhas redes sociais. Grato pela experiência. Bom concerto. Abraço.”
Hoje, João de Sousa decidiu ainda vitimizar-se nas redes sociais, acusando-me de “tiques de Citizen Kane” e mandando-me mais uns mimos. Eu teria preferido colocar uma pedra sobre o assunto, mas sou agora obrigado a explicar publicamente o meu modus operandi:
Com mais de três anos e meio de existência enquanto projecto de jornalismo independente, o PÁGINA UM acolheu a colaboração de João de Sousa com respeito e integridade, tal como já fez com muitos outros colaboradores, de qualquer quadrante ou ideologia. No caso dele, ainda com maior atenção. Ainda na própria sexta-feira, estive pessoalmente a tratar de uma providência cautelar para contestar judicialmente o indeferimento da sua acreditação por parte da Assembleia da República — providência que, naturalmente, já não será submetida. Este empenho mostra-se incompatível com o desrespeito evidenciado na sua mensagem abrupta e pouco cordata, em que rompe a colaboração por não aceitar que o director de um jornal lhe sugerisse a introdução sequer de uma vírgula.
Ao informar-me que publicara já o texto nas suas redes sociais, a publicação das crónicas no PÁGINA UM deixou de fazer sentido — até por razões legais. Aliás, ao decidir colocar as suas crónicas no site da sua empresa de consultadoria, João de Sousa rompeu de facto com o princípio de exclusividade e de vínculo editorial.
A sua remoção da ficha técnica e a comunicação do fim da colaboração à CCPJ constituem, além de uma imposição legal, uma forma de proteger o PÁGINA UM de quaisquer responsabilidades que possam surgir, a partir da passada sexta-feira à noite, da associação entre o nome de João de Sousa — detentor de cartão de colaborador 1520, passada pela CCPJ — e este jornal.
Como o próprio João de Sousa foi informado no mesmo dia, o podcast A Corja Maldita, que contava com três elementos, foi suspenso até ser possível conversar com o terceiro participante do grupo. Havia, naturalmente, abertura para a continuação do podcast, incluindo com o João de Sousa — possibilidade que agora se afigura pouco provável. Os episódios já realizados do A Corja Maldita mantêm-se disponíveis nas plataformas Spotify e YouTube.
Conclusão:
Lamento profundamente que uma colaboração que procurou, desde o início, ser respeitosa e construtiva tenha terminado desta forma precipitada. E sobretudo de forma acintosa por parte do João de Sousa. O PÁGINA UM não aceita condutas que coloquem em causa a seriedade e a responsabilidade editorial que se exige a quem escreve sob a sua chancela — seja como cronista, seja como jornalista. A liberdade de expressão é um valor inalienável, mas no jornalismo deve sempre coexistir com a responsabilidade editorial, o respeito mútuo e o compromisso com os leitores.
Fizemos este percurso de 43 meses com cerca de 3.500 conteúdos, e deixar de ter este colaborador que escreveu três crónicas acaba por ser somente um pequeno percalço, que apenas a sua vitimização, que pretende colocar em causa a minha idoneidade, faz justificar estas linhas de esclarecimento.
Fica apenas mais um lamento e um mea culpa: a dimensão do PÁGINA UM — e sobretudo o seu estilo de independência — torna-o vulnerável a tentativas de aproveitamento. Tenho procurado evitar propostas de colaboração, mesmo a título gratuito, que possam insinuar uma futura associação de conveniência com este projecto. Por isso, tenho sido particularmente criterioso nessas decisões. Ainda assim, contra alguns sinais e avisos, aceitei a colaboração de João de Sousa, confiando na sua compreensão das regras do jornalismo e na natureza deste jornal. Enganei-me, até pela sua reacção de vitimização – e de ‘lavagem de roupa suja’ – quando foi ele a decidir ‘bater com a porta’ por uma ninharia editorial. E esse erro (de o aceitar como colaborador) é inteiramente da minha responsabilidade, e um redobrado aviso da vulnerabilidade do PÁGINA UM, da qual tenho consciência.
Durante décadas, Portugal debateu-se com a desertificação do interior, o envelhecimento galopante da população, o encerramento de escolas por falta de crianças, a perda de jovens qualificados para a emigração, a estagnação do mercado interno e a degradação progressiva da sua pirâmide etária. A narrativa dominante nas instituições e nos media era — e em muitos casos ainda é — de que Portugal precisava desesperadamente de gente. Precisava de imigrantes. Precisava de população activa. Precisava de fertilidade — ou, na falta dela, de uma infusão humana vinda de fora para compensar o seu destino estatístico de nação decadente.
E, aparentemente, conseguimos isso.
Só nos últimos três anos, entre 2021 e 2023, o país registou um saldo migratório líquido de mais de 400 mil pessoas. Nunca, em democracia, se exceptuarmos o período da descolonização — que remete para um período complexo da vida social e económica do país — se tinha registado um fluxo migratório tão intenso. Mas as diferenças são abissais, não apenas porque os imigrantes do pós-25 de Abril tinham raízes lusófonas e, em certa medida, culturais, como também porque o saldo natural ainda era fortemente positivo: nasciam, naquele período, cerca de 200 mil crianças — e agora são pouco mais de 80 mil.
Aliás, nos últimos três anos, apesar de todas as campanhas de incentivo à natalidade e da tão proclamada retoma pós-pandémica, o saldo natural (diferença entre nascimentos e mortes) manteve-se consistentemente negativo em cerca de 100 mil pessoas. Ainda assim, a população total cresceu, passando de 10,4 milhões para 10,7 milhões.
À superfície, este crescimento por via da imigração pareceria um sucesso. Um sinal de revitalização. Uma inversão histórica da decadência demográfica das últimas duas décadas. Mas é precisamente esta leitura apressada, quase eufórica, que precisa de ser contrariada — mas numa óptica de planeamento (futuro) e não de ideologia,que inquina qualquer debate sério.
Na verdade, nos últimos anos Portugal não assistiu a um qualquer crescimento planeado, equilibrado e sustentável. Deparou-se, pelo contrário, com um choque migratório desorganizado, com profundas assimetrias regionais, impactos negativos na habitação, sobrecarga dos serviços públicos, polarização social e nenhuma correspondência com uma política estruturada de acolhimento e integração.
A questão não está, pois, em discutir se o país precisa de população. Está, isso sim, em perceber que tipo de crescimento demográfico é possível e desejável num Estado social europeu com limites orçamentais, um parque habitacional envelhecido, um tecido económico frágil e serviços públicos a rebentar pelas costuras.
Porque — e convém que se diga sem rodeios — crescer demograficamente não é, por si, sinal de progresso.
Vejamos, numa síntese, aquilo que está em causa
⸻
Um crescimento sem mapa
Em teoria, uma população pode crescer de forma equilibrada se o ritmo for ‘absorvível’: isto é, se os serviços de saúde, educação, habitação e transportes forem capazes de acompanhar a nova procura. Países com forte planeamento estratégico (como os escandinavos) conseguiram manter durante décadas ritmos de crescimento populacional moderados — na ordem dos 0,7% a 1,0% ao ano —, mas alinhados com investimentos em infraestruturas, formação de quadros, habitação pública e redes de mobilidade.
Portugal, em contraste, teve nos últimos três anos um crescimento médio superior a 1,2% ao ano apenas por via da imigração, sem que o Estado ou as autarquias tivessem feito qualquer planeamento prévio. Em Lisboa, na Amadora, em Loures ou em partes do Algarve, e mesmo em zonas mais rurais (Odemira é um exemplo gritante, com um crescimento de mais de 3% ao ano), o número de residentes cresceu de forma abrupta, mas sem novas escolas, sem reforço dos centros de saúde, sem redes de transportes ajustadas, sem parques habitacionais acessíveis.
A resposta do Estado foi a de sempre: nenhuma.
⸻
Polarização territorial: crescimento desigual e desertificação persistente
Enquanto se celebrava o crescimento da população ao nível nacional, ignorava-se o facto de que esse aumento foi profundamente desigual.
Os grandes centros urbanos e metropolitanos absorveram quase todo o acréscimo populacional, alavancados por fluxos migratórios intensos, sobretudo de imigrantes em situação económica vulnerável. Lisboa, por exemplo, registou mais de 24 mil novos residentes entre 2021 e 2024, o que equivale a mais de 22 pessoas por dia, invertendo,de forma abrupta e sem qualquer planeamento, um declínio populacional de quatro décadas. O Porto, Sintra, Braga, Seixal, Amadora ou Cascais seguiram tendência semelhante. Nessas zonas, o crescimento agravou os problemas pré-existentes: congestionamento habitacional, encarecimento da habitação, pressão sobre escolas e centros de saúde, sobrelotação de transportes.
Em contrapartida, cem concelhos — quase um terço do país — perderam população nesse mesmo período, confirmando a persistência da desertificação e o falhanço continuado das políticas de coesão territorial. Municípios do interior centro e norte, bem como várias zonas do Alentejo e do interior algarvio, viram partir os poucos jovens que ainda restavam, enquanto a população envelhecida se reduzia naturalmente. Esta erosão silenciosa, muitas vezes fora do radar mediático, representa uma perda real de futuro.
Ou seja, cresceu a pressão nos territórios já saturados e aumentou o deserto nos territórios já esvaziados. É o paradoxo português por excelência: conseguimos perder coesão territorial ao mesmo tempo que ganhámos população.
E nem o Governo nem as autarquias fizeram algo de significativo para inverter ou atenuar esta tendência. Não houve incentivos sérios à fixação no interior. Não houve reconversão de habitação devoluta. Não houve planeamento dos fluxos migratórios por concelho. Houve, sim, omissão deliberada e aproveitamento político da ilusão de “crescimento populacional saudável”.
⸻
Mercado habitacional: da crise à catástrofe
Basta olhar para o que se passa no mercado de habitação para se perceber que este crescimento populacional, longe de resolver problemas, amplificou-os até ao limite.
Com mais de 400 mil pessoas a entrarem no país em três anos — grande parte delas em zonas urbanas — o desequilíbrio entre oferta e procura disparou. O número de fogos construídos anualmente continua a ser residual face às necessidades, e a habitação pública é quase inexistente.
Resultado: os preços de venda subiram, as rendas explodiram, o alojamento local avançou sobre os bairros populares e muitos migrantes foram empurrados para zonas degradadas, insalubres ou para situações de sobrelotação ou informalidade.
Sim, Portugal cresceu. Mas à custa de bairros precários, tendas improvisadas, sobrecarga de transportes e famílias portuguesas a serem empurradas para longe dos centros onde vivem há décadas.
Note-se que, em zonas urbanas, se critica o exagero do alojamento local como causa para a escassez de casas, esquecendo, porém, dois aspectos essenciais. Primeiro, grande parte dos alojamentos locais no casco histórico são fogos de pequena dimensão (T0, T1) ou com características pouco atractivas para famílias jovens (p. ex., sem elevadores, com escadas íngremes, sem estacionamentos, com tráfego condicionado), pelo que só marginalmente contribuem para a crise habitacional — e já sem explorar muito que o parque habitacional de Lisboa e Porto foi recuperado com o boom turístico. Segundo, grande parte dos imigrantes em zonas urbanas — em zonas rurais é a actividade agrícola —, a imigração está associada directa ou indirectamente ao turismo, através da prestação de serviços.
Limitar ainda mais o alojamento local ou o turismo — cujo crescimento tem de ser limitado, mas por outras razões relacionadas com a própria capacidade de carga dos ‘bens turísticos’ — seria afectar dramaticamente o emprego dessa ‘massa’ de imigrantes, uma vez que a esmagadora maioria ocupa funções de trabalho menos qualificado.
⸻
Serviços públicos: a pressão (in)visível
A entrada de centenas de milhares de pessoas numa rede de serviços públicos já fragilizada por anos de subfinanciamento e má gestão resultou naquilo que era previsível: congestionamento.
Quase não houve novos centros de saúde planeados com base nas novas densidades demográficas. Não houve reforço efectivo dos recursos humanos nos agrupamentos escolares onde a pressão aumentou. A expansão de linhas de transportes urbanos segue a conta gotas. Os serviços públicos, em geral, estão a prestar piores serviços, mesmo com a ajuda tecnológica — aliás, paradoxalmente, por vezes parece que funcionam pior por causa disso.
O resultado é o que qualquer utente percebe: esperas eternas nos serviços de saúde, turmas sobrelotadas, comboios a abarrotar, urbanizações novas sem transportes.
Estamos a viver o efeito de um crescimento súbito sem contrapartida de investimento público.
⸻
Um Estado passivo e um discurso simplista
O mais grave de tudo isto é que, perante este cenário, a comunicação oficial continua a vender a ideia de que Portugal está “a inverter a crise demográfica”, que a imigração está a “compensar a baixa natalidade”, e que “temos finalmente mais população” — e, pior, que debater estes temas da imigração e do crescimento abrupto é coisa para instigar o ódio e fazer o serviço à direita radical e populista (ou, para simplificar e envenenar qualquer discussão, a extrema direita). Isto, sem colocar em causa o discurso a roçar a xenofobia e a discriminação por parte do Chega — mas este é o grande problema: digladiam-se soundbites, não se confrontam ideias.
E, no entanto, estamos perante realidades cada vez mais incómodas:
Que a baixa natalidade continua crónica, com um índice de fertilidade entre os piores da Europa (cerca de 1,4 filhos por mulher);
Que o saldo natural permanece negativo, com mais de 30 mil mortes a mais do que nascimentos por ano;
Que a maior parte dos imigrantes chega em condições de precariedade, não como resposta a uma estratégia nacional de qualificação, fixação territorial e sustentabilidade fiscal.
Um dos grandes desafios de um país é saber questionar-se para onde quer ir. Como quer crescer e definir um equilíbrio entre o presente e o futuro. E isso requer perceber, como até faz uma família, em perceber que uma comunidade tem de ser demograficamente equilibrada — e no caso português, seria necessário:
Que o crescimento fosse lento, previsível e absorvível (entre 0,7% e 1,0% ao ano);
Que houvesse planeamento infraestrutural antecipado, com metas em educação, saúde, habitação, mobilidade e coesão social;
Que o Estado regulasse e distribuísse os fluxos, incentivando a fixação em territórios periféricos ou em desertificação;
Que se apostasse na integração efectiva e no combate à precariedade, em vez de aceitar a marginalidade como inevitável;
E que se fomentasse, paralelamente, uma estratégia séria de incentivo à natalidade, com políticas de conciliação familiar, creches acessíveis e rendimentos dignos para jovens.
Nada disso está a acontecer.
Estamos a crescer — mas como um corpo descompensado, que incha num lado e emagrece noutro. Um crescimento assim não fortalece: deforma.
Podem definir-se diversos modelos para prever o que sucede a um país com o ‘quadro de partida’ de Portugal em 2025. Com este tipo de país, se este crescimento demográfico (e com as bases em que se sustenta), não for acompanhado por um planeamento coerente e por investimento público proporcional, o que parece um sinal de vitalidade poderá transformar-se numa bomba de pressão social e orçamental. E sem incluir a parte social e de choque cultural.
Com base numa simulação desenvolvida para este cenário, avaliando os efeitos entre 2025 e 2035, fiz uma análise simples, apenas para exemplificar, em quatro eixos principais: cuidados à população idosa, construção de escolas, reforço de centros de saúde e expansão habitacional. A abordagem parte de rácios realistas — e até conservadores — de prestação de serviços e de custos médios por unidade funcional.
1. O envelhecimento que não desaparece
Apesar do aumento líquido da população, a estrutura etária mantém-se envelhecida, com cerca de 23% da população acima dos 65 anos — ou seja, mais de 2,6 milhões de idosos em 2025 e quase 2,7 milhões em 2035. Este grupo consome, naturalmente, mais recursos de saúde, pensões e cuidados continuados. Assumindo um custo anual médio de 4.000 euros por idoso para cuidados públicos (entre lares, apoio domiciliário e saúde crónica), Portugal já gasta perto de 10 mil milhões de euros por ano só neste segmento — valor que aumentará para mais de 11 mil milhões em 2035.
Ou seja, só o envelhecimento populacional representa quase 5% do PIB actual em despesa social contínua, mesmo sem considerar aumentos salariais, inflação médica ou necessidades específicas de dependência severa.
2. Educação: crescer sem lugar nas escolas
A pressão sobre o sistema educativo será desigual. Embora a natalidade se mantenha baixa, o fluxo migratório — em particular de famílias jovens — tenderá a criar focos de aumento de procura escolar nas zonas urbanas e periurbanas, onde o parque escolar é antigo, subdimensionado ou desajustado.
A simulação indica que será necessário planear entre 43 e 46 novas escolas básicas ao longo da década para dar resposta ao crescimento projectado. Cada unidade representa, em média, 6 milhões de euros de investimento em construção, apetrechamento e pessoal de arranque. Isso traduz-se numa despesa anual da ordem dos 260 a 275 milhões de euros. Estes valores, ainda que relativamente modestos em termos agregados, tornam-se cruciais se forem ignorados — pois qualquer atraso resultará em sobrelotação, degradação da qualidade pedagógica e fuga para o privado, ampliando desigualdades.
3. Centros de saúde: serviços já saturados
Actualmente, a maioria dos centros de saúde nas áreas metropolitanas opera no limite da capacidade. Com o crescimento populacional previsto, será necessário construir pelo menos 10 a 12 novos centros de saúde até 2035, apenas para manter a mesma proporção de cobertura (1 por cada 100 mil habitantes, renovado a cada 10 anos). Cada centro exige cerca de 3,5 milhões de euros, totalizando um investimento acumulado de 35 a 42 milhões por ano. No entanto, esse número esconde a realidade: não basta construir paredes — é preciso recrutar médicos, enfermeiros, técnicos e garantir funcionamento efectivo. Os custos operacionais serão, provavelmente, superiores ao investimento em infraestruturas.
4. Habitação: o verdadeiro elefante na sala
O crescimento de 1 milhão de pessoas em 10 anos exigirá pelo menos 400.000 novas habitações, assumindo uma média de 2,5 pessoas por casa. Isso corresponde a 40.000 casas por ano, muito acima da capacidade actual de construção em Portugal, que tem oscilado entre 15 mil e 20 mil fogos. A discrepância entre procura e oferta acentuará a inflação imobiliária, expulsará famílias da classe média dos centros urbanos, e potenciará fenómenos de guetização e habitação informal.
Mesmo assumindo um custo médio de 125 mil euros por unidade habitacional (preço de construção, excluindo especulação e lucro de promotores), isso implicaria investimentos da ordem dos 5 mil milhões de euros por ano, seja por privados, seja com apoio público. A ausência de uma política habitacional estruturada transforma este valor em potencial bolha social.
5. Pressão fiscal e armadilha do crescimento deficitário
Com um custo anual cumulativo (cuidados a idosos, educação e saúde) a ultrapassar 11,5 mil milhões de euros em 2035 — ou seja, mais de 15% do valor actual —, e com o investimento habitacional exigido a aproximar-se de outros 5 mil milhões por ano, o país enfrentará um desafio orçamental de enorme envergadura. Isso só será sustentável com:
Um aumento significativo de contribuintes líquidos no saldo migratório;
Um mercado de trabalho que absorva imigrantes com estabilidade e salários dignos;
E uma redução da informalidade e da precariedade no trabalho migrante.
Sem isso, Portugal crescerá populacionalmente e empobrecerá estruturalmente — pois as receitas fiscais não acompanharão o custo do novo modelo social. Em suma, poderá haver mais gente, mas menos coesão, menos redistribuição e mais desigualdade.
Perante este cenário, queremos mesmo, como povo (e contribuintes) continuar a meter ideologia pelo meio — com as suas diatribes partidárias e guerrilhas infantis — ou já será tempo de exigir que os políticos se comportem como adultos e deixem de disputar o poder de um país que ameaça ruína?
Numa qualquer semana estival, entre festas de aldeia e campanhas com cânticos ecológicos, volta e meia sopra um ventozinho moral que gela a espinha dos que ainda pensam. Não por causa do que se diz — até porque já se espera tudo —, mas por aquilo que se esquece. E se há caso paradigmático da moral selectiva e da indignação plastificada das consciências contemporâneas, esse caso tem nome: Tesla. E um rosto catalisador: Elon Musk.
Convém recordar — porque a memória mediática é de curta duração e a moral pública é de plástico biodegradável — que, nos últimos anos, a Tesla tem sido alvo de campanhas de desdém e boicote, não por aquilo que produzia (carros eléctricos, limpos, bonitos e até eficientes), mas por causa do seu CEO. Com efeito, ainda recentemente, e depois de a compra do X (ex-Twitter) ter desencadeado uma onda contra a Tesla, o ódio dos media e de uma certa clique piorou porque, a certa altura, Elon Musk teve o desplante de estar próximo de Donald Trump — imagine-se, o pária-mor da civilização ocidental.
Ainda no início do ano, antes mesmo de se saber a causa — o suicídio de um militar veterano norte-americano — uma explosão em Las Vegas serviu durante dois dias para colocar a Tesla no centro das atenções, induzindo a ideia de que o problema estava no carro — e afinal, por triste ironia, foi a estanquicidade do Cybertruck a evitar danos envolventes maiores.
Sobretudo ao longo do último ano, tenho assistido a uma verdadeira maré moralista, onde desaguaram todas as figuras da ‘nova espiritualidade parvinha’. Recordo, entre tantas figuras menores, João Manzarra, que não hesitou em declarar publicamente que ia vender o seu Tesla por razões de consciência. À data, as notícias correram, os likes brotaram, os moralistas aplaudiram: o espírito crítico meditava ao volante da coerência. O problema? Não se sabe se vendeu, nem se trocou por um Renault Clio a gasóleo ou por uma bicicleta com travões de cortiça orgânica.
A verdade é esta: os modismos de indignação funcionam como nuvens de Verão — carregadas de trovões, mas sem consistência. Parece que anunciam o Inverno, mas duram meia hora e desaparecem ao primeiro raio de sol. Os apóstolos da consciência ecológica, tão velozes a apontar o dedo a Musk e ao seu imaginário político, nunca se detiveram a pensar que, se há empresa que verdadeiramente revolucionou o transporte ligeiro — mesmo com impactes ambientais significativos (v.g., baterias de lítio) —, foi a Tesla, com inovação real e lógica disruptiva.
Esta é, contudo, apenas a face anedótica de um fenómeno mais grave: a hipocrisia que governa o discurso político e ideológico sobre o ambiente, em particular sobre o clima. Como tenho repetido ao longo das últimas décadas — bem antes de a Greta Thunberg saber apontar para um mapa —, as alterações climáticas são uma realidade, independentemente da causa, mas a noção de emergência climática é uma falácia e acabou por ser criada como instrumento político: serve para abrir caminho à desresponsabilização dos governos e à concentração de fundos públicos em projectos de duvidosa eficácia ambiental, mas altamente rentáveis para empresas amigas. Um mercado paralelo de virtudes.
E, se dúvida restasse, a realidade tem-se encarregado de a dissipar. A Comissão Europeia, com os seus ‘ministros do carbono’ e os seus ‘comissários do catastrofismo’, vive obcecada com a liderança verde, embora a sua capacidade política e diplomática valha zero sobre políticas ambientais de âmbito mundial. Por exemplo, nas emissões de gases com efeito de estufa, os países da União Europeia emitem cerca de 8% e não determinam aquilo que os Estados Unidos, a Índia e a China emitem, por muito que esbracejem.
Não liderando nada, a Europa tem vindo, sim, e lamentavelmente, a tornar-se a vanguarda da fraude ambiental — e o sector automóvel é a ilustração suprema desta decadência.
Depois do escândalo do Dieselgate — cujo impacte em termos de saúde pública não foi irrelevante, havendo um estudo que aponta para a causa de 124 mil mortes prematura —, em que a Volkswagen foi apanhada a aldrabar os testes de emissões com softwares aldrabões, parecia que se tinha aprendido a lição. Parecia.
Esta semana, soube-se que a Justiça francesa abriu um novo processo contra a Peugeot e a Citroën (ambas do grupo Stellantis), por fraude agravada. O motivo? A comercialização, durante anos, de veículos a gasóleo com sistemas informáticos programados para contornar os testes de emissões de óxidos de azoto.
Segundo a acusação, os veículos estavam “especialmente calibrados” para se comportarem bem apenas durante o teste de homologação — como estudantes que decoram a resposta certa para o exame, mas nada sabem da matéria. No uso real, os níveis de emissão superavam largamente os limites regulamentares, com consequências para a saúde pública: doenças respiratórias e degradação ambiental.
A acusação vai mais longe: a burla é qualificada como agravada por colocar em risco a saúde humana. E, mais uma vez, os autores da fraude foram empresas acolhidas com louvores em Bruxelas, promovidas como campeãs da inovação sustentável. Em 2021, estas mesmas empresas já tinham sido acusadas por factos semelhantes. O modus operandi repete-se. E repete-se também o silêncio da imprensa portuguesa — sobretudo da mainstream — que há muito se enamorou por figuras como Carlos Tavares, ex-presidente da Peugeot, que deixou de ser CEO da Stellantis em finais do ano passado.
Na imprensa nacional, Tavares é descrito como uma coqueluche da gestão, um génio da eficiência e da competitividade. Um português de sucesso no Mundo. Mas, à luz dos processos agora abertos, talvez devêssemos perguntar: será uma coqueluche da gestão ou da encenação, do ultraje e da fraude?
A resposta é incómoda. Mas as evidências são claras. Enquanto se apontam dedos a Musk por piadas ou posicionamentos políticos — e ele põe-se a jeito em muitos casos —, escondiam-se crimes ambientais sistemáticos na santa Europa. Enquanto se vendia a narrativa de que a União Europeia era líder da sustentabilidade, enterravam-se debaixo do tapete os dados reais de emissões poluentes do sector automóvel. E enquanto se usava o selo verde para certificar negócios bilionários, envenenava-se o ar dos cidadãos.
A moral da história — e é sempre preciso haver uma — é que a verdade ambiental não se mede pelos slogans, mas pelos actos. A Tesla, goste-se ou não do seu CEO, mudou radicalmente a indústria automóvel em direcção à electrificação. As grandes marcas europeias, com décadas de privilégios e lobbying, enganaram clientes e reguladores. E hoje, no pico do Verão, são elas que anunciam o Inverno — não o das alterações climáticas, mas o da confiança pública nas elites políticas, tecnocráticas e industriais.
Sejamos claros: a hipocrisia ambiental mata mais do que o dióxido de carbono — e quem o diz sou eu, que defendo uma melhoria na eficiência energética e uma contenção no consumo de petróleo (a começar por ser uma matéria-prima demasiado preciosa para ser simplesmente queimada em motores de propulsão). A hipocrisia ambiental, de facto, mata a confiança, mata o rigor, mata o sentido de urgência verdadeiro. E por isso me irrita tanto ver que, enquanto os Manzarras desta vida se preocupam em dar lições de moral ao volante dos seus Teslas de segunda mão, os verdadeiros poluidores continuam a circular à vontade, com selo europeu — e aplausos.
Infelizmente, ainda, neste novo teatro do mundo, aquilo que parece contar não é a verdade — é a encenação.