Deambulando num misto de férias e trabalho pelos países bálticos, apenas ontem me chegaram ecos da entrevista de Mário Centeno, afastado de governador do Banco de Portugal, concedida a Vítor Gonçalves, o novo director da RTP.
Manifestamente, viu-se um Mário Centeno ferido no orgulho, desiludido pela não recondução, talvez vítima de uma “cabala” para o encostar com o contrato da nova sede desta instituição que mereceria maior escrutínio. Na verdade, com menos competências do que tinha há 20 anos, qual a razão para tamanha megalomania em Entrecampos?
Porém, o seu acinte — sim, o termo é apropriado — não justifica o ataque rasteiro aos jornalistas que noticiaram a renovação do contrato do seu chefe de gabinete, Álvaro Novo, e a promoção ao cargo de directora-adjunta do Departamento de Estatística de Rita Poiares (casada com Ricardo Mourinho Félix, que foi secretário de Estado quando Centeno era ministro das Finanças). Até porque, essencialmente, estava em causa o timing. Se tais decisões tivessem sido tomadas com recato e distanciamento, talvez não se levantassem sobrancelhas.
Mas a coincidência entre a véspera da sua saída e os despachos que beneficiam directa ou indirectamente amigos e conhecidos é, no mínimo, questionável. Infelizmente, não fui eu quem deu essa notícia — outros chegaram primeiro. Mas, se tivesse sido — e o PÁGINA UM revelou muitos contratos estranhos no período de Centeno, sobretudo com sociedades de advogados e gastos supérfluos com as instalações provisórias —, as palavras do ainda governador teriam sido ainda mais ofensivas.
Ora, eu conheço bem o currículo académico de Mário Centeno. E sei que, por mais doutoramentos em Harvard que se acumulem (o que não é pouca coisa), as skills — perdoe-se-me a anglicização para dar um toque de Management — de um governador do banco central não se medem por médias finais de licenciatura nem por decibéis de vaidade. Um governador mede-se por outras métricas: rigor, isenção, sentido de Estado, independência face ao poder político, ética nas nomeações e contenção na arquitectura das vaidades. Não é por ter média elevada que se está acima da suspeita.
E também não é por não se trabalhar no Banco de Portugal que se tem, necessariamente, uma média baixa. E mesmo que essa média não seja extraordinária, não é por isso que se deve ser afastado da mesa das decisões públicas ou da observação crítica. A História mostra que alguns dos mais brilhantes jornalistas, escritores, pensadores e reformadores nunca tiveram grande nota nos exames, mas passaram com distinção os testes da lucidez, da coragem e da integridade.
E aqui entro eu, inevitavelmente, na arena do argumentário ad hominem que Centeno tão habilmente sugeriu. Já que foi ele quem puxou das médias para tourear jornalistas, meto-me na lide. Mário Centeno terminou a sua licenciatura em Economia em 1990 no centenário Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) com uma média de 16. É obra: consta do Quadro de Honra. Já eu, pobre jornalista — sim, dessa classe que ele considera indigna, por demérito, de entrar no Banco de Portugal e de revelar criticamente as suas doutas decisões — sou, salvo erro, o único aluno do ISEG a integrar, ao mesmo tempo, o Quadro de Honra de Economia e de Gestão. E, em ambos os casos, com média final de 17 valores.
Detalhe do Quadro de Honra do ISEG com os registos relativos a Mário Centeno e a Pedro Almeida Vieira.
Quer isto dizer que, pela bitola de Centeno, estarei mais qualificado para o Banco de Portugal do que ele próprio? À luz do seu argumento, poderia eu, um simplório jornalista (para ele), perguntar-lhe afinal, com a legitimidade da minha média de 17 na mesma alma mater: “Ó Mário Centeno, como é possível alguém ser governador do Banco de Portugal só com média de 16?” À luz do bom senso, evidentemente, isso não faz sentido — e muito menos fazem sentido as palavras acintosas de Centeno contra os jornalistas.
Na verdade, esta lógica das médias é, além de pateticamente arrogante, profundamente perigosa — até porque todos sabemos as razões da ida de Centeno para o Banco de Portugal. Em poucos anos, Centeno foi infectado pela lógica da tecnocracia vaidosa: julga-se membro de uma elite que se crê ungida por um destino académico que a legitima para mandar sem prestar contas, sem ser escrutinada.
Esta é a lógica que confunde mérito com titulatura, inteligência com colecção de diplomas, competência com circuito de nomeações entre amigos. Uma lógica que desumaniza, que reduz as pessoas a números — e que, não por acaso, é a mesma lógica que levou Centeno a defender, com frieza estatística, medidas de austeridade sob o pretexto da consolidação orçamental.
Centeno, que ascendeu ao topo do Banco de Portugal por ter sido ministro das Finanças de um Governo socialista, veio agora dar-nos lições de mérito por ter sido afastado por um Governo social-democrata, numa zanga de “comadres” da escola do ISEG. E nem disfarça.
Enfim, se alguma coisa se aprende com este episódio, é isto: o desprezo pelas profissões alheias revela mais sobre o carácter de quem fala do que sobre o mérito de quem é atacado. E se Mário Centeno queria mesmo sair com dignidade, bastava-lhe ter ficado calado. Porque, às vezes, a última nota que se deixa — e não falo da média de licenciatura — é aquela por que verdadeiramente se será lembrado.
Com o sector dos media tradicionais à beira de um colapso sistémico, o jornal Público, histórico título fundado em 1990 pelo Grupo Sonae, parece encaminhar-se a passos largos para os cuidados intensivos financeiros.
Os resultados de 2024 confirmam o agravamento da situação: mais de 5,1 milhões de euros de prejuízo, um novo recorde negativo que supera mesmo os já alarmantes resultados de 2023. Em apenas dois anos, as perdas acumuladas ascendem a 9,6 milhões de euros, o que corresponde a cerca de um terço dos 29,3 milhões de prejuízos acumulados desde 2017.
Foto: PÁGINA UM
O Público nunca foi um jornal lucrativo. Desde a sua fundação, pautou-se por um compromisso pessoal de Belmiro de Azevedo — fundador do império Sonae — que aceitava suportar até dois milhões de euros de perdas anuais, numa lógica de serviço cívico e reputacional. No entanto, desde a morte do empresário, e com a profissionalização mais crua da gestão da Sonaecom, a tolerância ao insucesso tem diminuído. E o jornal, que chegou a ser um símbolo de jornalismo moderno e cosmopolita no pós-cavaquismo, tornou-se uma espécie de fardo ideológico com retorno empresarial e reputacional nulo.
Hoje, o Público vende menos de 10 mil exemplares por dia em banca — número que o próprio jornal esconde ou relativiza, enquanto promove campanhas de assinaturas digitais inflacionadas, muitas delas associadas a parcerias pouco transparentes com instituições públicas e privadas. A ilusão de crescimento digital sustenta-se, em parte, em contas de acesso gratuito por protocolos com escolas, universidades e autarquias, sem que tal se traduza em rentabilidade ou fidelização efectiva de leitores.
Mas não é apenas o modelo de negócio que está a colapsar. A credibilidade editorial do jornal também tem sido posta em causa. Desde a direcção de Manuel Carvalho — marcada por alinhamentos ideológicos e uma crescente promiscuidade entre jornalismo e negócios — que a redacção vive momentos de tensão. A liderança de David Pontes não só manteve esse rumo como o agravou, multiplicando as participações do Público em eventos comerciais com contornos duvidosos, como são exemplo as secções Azul, Terroir e Fugas.
Vendas em banca e assinaturas digitais do jornal Público no primeiro trimestre de cada ano. / Fonte: APCT; análise PÁGINA UM
Um dos episódios mais embaraçosos foi recentemente sancionado pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC): a participação de David Pontes como moderador em debates pagos pela autarquia de Penafiel e a Ordem dos Médicos Dentistas. A erosão da independência editorial em troca de sobrevivência financeira arrisca um colapso total.
A situação do Público espelha o afundamento generalizado da imprensa tradicional em Portugal, fruto, em muitos casos, de péssima gestão, como é o caso da Impresa (como holding), ou de problemas de credibilidade.
Depois da queda estrepitosa do grupo Trust in News — que ameaça o fim de publicações como a Visão, a Exame ou o Jornal de Letras — seguem-se dificuldades visíveis no grupo Impresa, apesar dos lucros ainda registados pela SIC e pela Impresa Publishing em 2024. A venda falhada da sede da Impresa em Paço de Arcos foi mais um sinal de alarme: uma tentativa de alienação imobiliária abortada por irregularidades na cadeia de IVA, que colocou a nu os limites do recurso à engenharia financeira para mascarar os desfalques operacionais.
Cláudia Azevedo, presidente-executiva da Sonae SGPS e administradora da empresa Público-Comunicação Social. / Foto: D.R.
Mas o colapso pode não ficar por aqui. Nas próximas semanas, dois grupos estarão sob especial atenção: a Global Notícias, que detém o Diário de Notícias, e a novel empresa Notícias Ilimitadas, que adquiriu o Jornal de Notícias, O Jogo e a TSF. Apesar de obrigadas por lei a entregar os relatórios e contas de 2024 até ao final de Junho, ambas as sociedades falharam esse dever, com a desculpa, durante semanas, de “problemas técnicos” no envio de informação ao Portal da Transparência dos Media da ERC.
Confrontada com o silêncio financeiro de várias empresas do sector, a ERC admitiu ao Página Um que, de entre os principais grupos de média, a Trust in News, a empresa gestora do Observador, a Global Notícias e a Notícias Ilimitadas não enviaram ainda os seus dados contabilísticos de 2024. O regulador promete agora tomar “diligências” para assegurar o cumprimento da lei, embora o histórico da instituição não inspire grande confiança na sua capacidade de fazer respeitar prazos ou princípios.
Neste contexto de degradação acelerada, com empresas em incumprimento, direcções editoriais em deriva e modelos de negócio cada vez mais dependentes de fundos públicos ou favores institucionais, o jornalismo dito de referência parece caminhar para o abismo — mas não culpando os seus erros: antes, as redes sociais e a dita desinformação.
Talvez seja matéria de caso clínico para uma revista de Psicologia Prática este comportamento estranho de certo tipo de turista — ou viajante com pretensões estéticas, como este que aqui escreve —, analisar as emoções que se agitam no exacto momento em que se decide imortalizar, em imagem, um qualquer edifício de valor histórico, artístico ou sentimental.
Não falo do registo apressado e funcional, feito de passagem, com o dedo gorduroso a bater no ecrã do telemóvel e a mochila ainda a bambolear nas costas. Refiro-me ao instante sagrado em que o sujeito — um homem maduro, com laivos de teimosia beneditina e senso de composição — deseja uma fotografia limpa, límpida, sem trapos humanos, nem carros, nem trotinetes, nem balões de gelado, nem quaisquer outras deformações visuais. Mesmo que a arma seja um iPhone manhoso.
Chamo-lhe aqui “o drama da imagem limpa”, que é como quem diz: o suplício da espera inglória por uma nesga de espaço-tempo em que o mundo colabore com a intenção artística de um anónimo com telemóvel.
Eis que, dando graças ao sol oblíquo de fim de tarde em Riga, capital da Letónia, posicionei-me — com estoicismo e sentido de composição — diante dos célebres Três Irmãos. Para os não sabedores: trata-se de três edifícios contíguos na Rua Mazā Pils, talvez o conjunto habitacional mais antigo e carismático da cidade. Representam três séculos distintos de arquitectura, do gótico ao barroco, e reza a lenda que terão sido mandados construir pela mesma família em diferentes gerações — ou, no mínimo, por gente com afinidades estéticas entre si.
Pois eu cheguei e quis a fotografia perfeita, mesmo sem máquina decente ou objectiva capaz: a luz a beijar as fachadas, sem sombra de humanos, sem reflexos em janelas, sem lixo visual. Coisa limpa. Coisa digna.
Mas logo irromperam — como actores saídos das coxias do caos — os arruaceiros visuais. Para facilitar o relato, escolho cinco casos, sem prometer veracidade absoluta. Se não foram estes, terão sido outros de efeito igualmente nefasto.
Caso 1: O encostador oblíquo. Um homem — com toda a calma dos bem alimentados — encostou-se à porta do número 17 (o mais velho dos três irmãos), decidido a deglutir o seu gelado. Ficou ali, estático, com a pose lânguida de quem espera por alguém que jamais chegará. A parede branca, pacientemente envelhecida por séculos, servia-lhe de espaldar; a t-shirt fluorescente fazia de cartaz da ignorância. Ninguém nasce perfeito.
Caso 2: A influenciadora de saltos e véus. Veio do nada, num vestido amarelo com franjas, acompanhada por um acólito que se revezava entre fotógrafo e porta-bolsa. A criatura ensaiou poses de sonho: braços ao alto, perna flectida, rodopios de algodão doce. A rua medieval transformou-se em passerelle, e os Três Irmãos ficaram, por longos minutos, sequestrados pela vaidade alheia.
Caso 3: O grupo de turistas indecisos. Um grupo de alemães. Ou talvez neerlandeses. Ou apenas turistas universais, desses que parecem sair todos do mesmo catálogo. Caminhavam, paravam, consultavam o Google Maps (presumo), riam-se, apontavam, voltavam atrás. A dada altura, alguém decidiu tirar uma fotografia. O mais jovem ficou encarregado. A avó aproximou-se. Repetiu-se o ritual. Dez minutos se passaram, e não avançaram mais de dois metros.
Caso 4: O homem do telemóvel e do tempo suspenso. Postado mesmo no centro da rua — como uma coluna romana em plena decadência — um cavalheiro de ar funcional telefonava. Alto e bom som, em letão ou outra coisa eslava. Passaram-lhe três fotógrafos por trás, dois cães por diante e uma trotinete pelo flanco, mas o senhor não arredava pé. Estou a inventar a trotinete, porque a calçada nem permitiria. Estava, por certo, a redefinir o futuro da Letónia pelo empenho com que falava e o meu futuro fotográfico ficou indefinidamente suspenso.
Caso 5: O pintor de aguarela. Este, confesso, era respeitável. Estava sentado, calmo, com pincéis e cavalete, a pintar os Três Irmãos com vagar e ternura. Só que, para minha infelicidade, posicionou-se de tal modo que seria impossível tirar a fotografia desejada sem o incluir. E não tive coragem de lhe pedir que se retirasse. Afinal, respeitava-lhe mais a arte do que a dos outros quatro juntos.
Enfim, o pintor é inventado. Admito-o. Daria um ar romântico a qualquer retrato.
Certo é que, ao cabo de longos minutos — talvez vinte, talvez trinta; perdi a noção do tempo e da dignidade —, sentado à sombra de um poeta (na verdade, num umbral de porta), observei um a um os que me arruinavam a composição. Vi outros como eu: turistas que sacavam do telemóvel, ajoelhavam-se, testavam ângulos, baixavam os braços em desânimo, vencidos pelo ruído humano. Uns insistiam; outros tiravam como calhava e seguiam.
Havia, sim, algo de kafkiano nesta luta pelo instante: cada turista queria ser o único turista. Cada um desejava aniquilar, fotograficamente, todos os outros.
Por momentos, imaginei-me parte da paisagem — um homem petrificado, guardião da simetria estética de uma rua do século XV.
E então, por milagre pagão — ou intervenção de algum espírito letão protector da geometria urbana —, o instante chegou: ninguém à frente dos Três Irmãos. Nenhum véu, nenhum cão, nenhuma sombra alheia. A luz estava exacta, a calçada vazia.
Tirei três fotografias. Uma de frente, uma oblíqua, uma com céu a dominar.
E em vez de continuar — como qualquer pessoa mentalmente sã faria —, achei que o episódio merecia ser crónica. Fui rabiscando frases no ecrã do telemóvel, enquanto as pernas adormeciam e o rabo ficava quadrado na pedra da soleira, que já ali está, presumo, desde 1897.
Durante os trinta minutos seguintes, escrever tornou-se forma de sublimar a espera. Mas fui notando que, estranhamente, enquanto escrevia, a rua esteve frequentemente vazia. Teria tido, no mínimo, vinte outras oportunidades para repetir a foto límpida.
Comecei então a desconfiar que o problema não era a rua. Nem os outros. O problema sou eu. Ou os que são como eu.
Concluí, com resignação, que alguns de nós — ou serei só eu? — sofrem de uma obsessão inconfessável: são doentes do instante perfeito, lunáticos da geometria urbana, chatos da fotografia sem humanos.
E por isso mesmo, a fotografia nunca está perfeita, nem nunca estará. Há sempre um X que se fica Y, ou um Z que vira V — ou seja: um bocejo, uma criança que chora, uma cabeça que espreita, uma sombra que invade, um chapéu que voa, uma bicicleta que bufa, um fio eléctrico. Só imperfeições num mundo imperfeito.
E talvez seja isso, no fundo, o mais verdadeiro da viagem — e da vida: o fracasso do instante ideal, a persistência do mundo em contrariar os nossos planos. No fim, o drama da imagem limpa é, afinal, o drama de quem procura a beleza no meio da confusão — e encontra, por fim, apenas o espelho das suas manias.
Num mundo em complexa alteração, em que as ideologias se fundiram ou confundiram, até eu, confesso, ando confuso. Dou por mim cada vez mais órfão de ideologias, não porque me tenham faltado convicções, mas porque todas elas me parecem agora atraiçoadas. Vemos partidos da extrema-esquerda a despedir lactantes e partidos da extrema-direita a comportarem-se como adolescentes malcriados que dizem detestar o sistema, mas anseiam por meter-lhe a mão nos bolsos — ou nos cofres. É o velho jogo da moral: muito indignado por fora, muito tentado por dentro.
E assim me vejo cada vez mais liberal de valores, adepto intransigente da liberdade de expressão e do debate de ideias. Sim, debate. Discussão. Contradição. Porque é a discutir — e não a dizer sim com ar meigo — que se afia o espírito e se limpa a ferrugem da razão. Na fricção de ideias e argumentos — e não no conforto das unanimidades fingidas.
De resto, vejo-me cada vez mais defensor não do país — que esse, na verdade, não merece os políticos que escolheu — mas da língua. Como escreveu Fernando Pessoa, “a minha Pátria é a língua portuguesa”. E é essa Pátria que levo comigo, quando viajo.
Por isso, chateia-me solenemente quando vejo os nossos representantes, em vez de cuidarem da língua, envergonharem-se dela. E chateia-me mais ainda quando, com essa indiferença, deixam que ela seja menosprezada em palco internacional. Veja-se o que sucedeu na Expo de Osaka, onde a AICEP — instituição que já se esqueceu do “P” de Portugal — achou que não valia a pena incluir legendas em português numa parte essencial do pavilhão nacional. Entre o japonês e o inglês, a nossa língua ficou no porão. Provavelmente acham que os turistas brasileiros que apreciam Murakami falam ‘japa’.
Ora, por estes dias, percorrendo os Países Bálticos — um sonho antigo que finalmente concretizei, embora em espírito de saltimbanco —, e chegado a Vilnius, deparei-me com outro caso de desatenção diplomática. Sim, poderá parecer uma coisa menor, irrelevante, simbólica, mas nestas minudências é que se vê o que vale uma cultura: o que defende, o que ignora, o que esquece.
Na bela capital da Lituânia — cidade de cúpulas barrocas, ruas empedradas e onde todos falam inglês melhor que muitos ministros portugueses —, existe um lugar insólito, poético e rebelde: a República de Užupis. Um antigo bairro marginal, virado para o pequeno rio Vilnia — quase na confluência com o Neris —, que um grupo de artistas e boémios autoproclamou independente a 1 de Abril de 1998. E não foi uma partida, ainda que tenha graça: têm “presidente”, “governo”, “Ministério da Arte”, hino, bandeira e uma Constituição. E sim, não têm exército — porque, como dizem, “não temos inimigos”.
Este microcosmo de criatividade e resistência é hoje um símbolo turístico, mas também uma ode à liberdade. Um território onde se cruzam ironia e utopia, humor e seriedade. A Constituição de Užupis, afixada em placas metálicas ao longo de um muro, tem 41 artigos, com a particularidade de 36 começarem com a palavra lituana Žmogus, que significa homem (no sentido de ser humano).
Alguns destes artigos são profundamente filosóficos, outros deliciosamente absurdos. Exemplos? “Todos têm o direito de morrer, mas isso não é obrigação.” Ou “Ninguém tem o direito de ter um plano para a eternidade.” Ou “Um cão tem o direito de ser um cão”, seguido de “Um gato não é obrigado a amar o seu dono, mas deve ajudar em tempos de necessidade.” Ou ainda: “Todos têm o direito de compreender”, seguido de “Todos têm o direito de nada compreender.” Ou, os três últimos: “Não subjugues.”; “Não te vingues.”; “Não te rendas.”
Pois bem, percorri essa parede seis vezes na rua Paupio. Uma, para ler. Duas, para contar. Três, para confirmar que os meus olhos não me traíam. A Constituição está em lituano e traduzida para 43 línguas. Entre essas, as óbvias: inglês, francês, mandarim, espanhol e árabe — mas também o alemão, o esperanto, o hebraico, o finlandês, o norueguês e até o javanês. E português? Nada. Nem português de Portugal, nem português do Brasil, nem sequer uma aproximação em crioulo ou mirandês. Nanja.
Ora, o português é a oitava língua mais falada do mundo, com mais de 265 milhões de falantes — mais do que o russo — e é uma das quatro com maior expansão geográfica. Não é um dialecto extinto dos Himalaias. E a Lituânia não é propriamente a Cochinchina — é, dizem-me, um parceiro europeu, membro da União Europeia, com quem partilhamos fundos e regulamentos. Como é possível, pergunto-me, que ao fim de quase três décadas, ninguém tenha notado — ou se tenha importado — com esta ausência? Será que os nossos diplomatas andam todos de olhos postos em Bruxelas, incapazes de ver para além da mesa do buffet da embaixada?
Procurei, por isso, a Embaixada de Portugal na Lituânia. E, surpresa: não há. A embaixada mais próxima é em Copenhaga, que representa os interesses lusitanos naquele país báltico. Sim, Copenhaga. De facto, faz sentido: é só atravessar o Mar Báltico, numa recta de 600 quilómetros, e estamos lá. Se um português se sentir perdido em Vilnius, pode sempre gritar por socorro e esperar que o eco chegue à Dinamarca. Parece que não é caso isolado. A Letónia também não tem embaixador português: as ‘coisas’ são tratadas pela Embaixada na Suécia. E situação similar sucede com a Estónia, que é ‘despachada’ pelo embaixador português em Helsínquia.
Mas calma, não desesperemos. Portugal está representado na Lituânia por um cônsul honorário. O senhor Dalius Raškinis, de Kaunas, cidade a cerca de 100 quilómetros da capital. Não descortinei a sua ligação ao nosso país, mas presumo que tenha provado pastel de nata numa viagem de negócios e se tenha apaixonado. Como é costume nestas nomeações, o critério não é ser português, nem falar português, nem sequer conhecer a Constituição da República Portuguesa. Basta conhecer alguém na AICEP, talvez.
Tudo isto — a ausência, o desinteresse, a invisibilidade — explica por que continuamos ausentes de lugares onde devíamos estar, nem que fosse por símbolo. A República de Užupis é uma invenção poética, sim, mas é também um espelho: ali celebram-se línguas, culturas e liberdades. E a nossa não está lá.
Um povo que outrora foi aos quatro cantos do mundo, que deixou marcas na Ásia, em África, na América do Sul, que levou a sua língua a tantas latitudes, vê-se agora excluído de um muro onde até os islandeses têm um artigo.
Isto não é apenas embaraçoso — é vergonhoso. E mais do que isso: é revelador. Não é apenas uma questão de tradução — é uma questão de identidade; uma questão de zelo; uma questão de presença no mundo. E, enquanto andamos distraídos a discutir quotas de género em conferências sobre inovação digital, deixamos passar o essencial: a nossa língua, que é a nossa Pátria, vai-se apagando aos poucos — e com o beneplácito resignado de quem devia defendê-la.
Antes de seguir para Riga, ainda escrevi ao Presidente de Užupis, Romas Lileikis, pedindo que me explicasse, por obséquio, o motivo de não estar presente o português. Aguardo resposta. E fica a promessa: pago o acrílico com a tradução do meu próprio bolso, se houver autorização para afixar a Constituição em português — e marco voo para nova visita, cuidando, desta vez, de levar o carregador do portátil, para não ter de perder umas horas (e 30 euros) à procura de uma loja…
Nos últimos anos, poucos conceitos foram tão martelados no espaço mediático e político como o da “desinformação”. Tornou-se uma espécie de fetiche moral, uma nova lepra simbólica que se cola a tudo o que contraria o consenso hegemónico — ainda que esse consenso seja, com frequência, volátil, interesseiro ou simplesmente errado.
A palavra “desinformação” passou, aliás, a ter uma dupla função: por um lado, denunciar falsidades objectivas — o que é legítimo e necessário; mas, por outro, tornou-se um instrumento de exclusão retórica, um selo de infâmia aplicado a tudo o que destoa do discurso dominante. Serviu para calar vozes críticas no plano político, silenciar dissidentes no plano social e descredibilizar minorias epistémicas no plano científico. O que antes se combatia com argumentos, combate-se agora com rótulos. E um dos mais eficazes é precisamente este: “desinformador”.
Curiosamente — ou não —, raramente se discute que a desinformação, em sentido lato, é uma externalidade negativa de algo positivo: a liberdade de expressão e a democracia. Tal como a poluição é uma consequência indesejada da industrialização — cuja mitigação exige tecnologia, investimento e ética —, também a desinformação é um subproduto inevitável da liberdade. Só em ditaduras se impõe uma visão única das coisas. E num regime democrático, a única resposta legítima à mentira é a palavra, não a mordaça.
Pretender erradicar a desinformação sem pôr em causa a liberdade de expressão é como pretender eliminar o ruído urbano sem tocar no tráfego automóvel: uma ilusão autoritária mascarada de boa intenção.
Mais grave do que essa simplificação é a tentação crescente — e perigosamente institucionalizada — de se combater a desinformação com censura. Pior ainda: com a Ciência, erigida a nova instância de verdade absoluta. Como se os cientistas fossem missionários, como se os consensos científicos fossem dogmas, como se a discordância fosse uma forma de heresia e os dissidentes, uns leprosos cognitivos.
Mas a Ciência — e é trágico ter de repetir o óbvio — não é um corpo de verdades eternas: é um método. Ora, esse método vive de questionar, de duvidar, de admitir a possibilidade de estar errado. E também de ser paciente em refutar hipóteses absurdas ou erradas, mas sempre com espírito aberto e tolerante. Não se combate erros ou teorias da conspiração proibindo que sejam faladas — combate-se deixando que sejam faladas, para que caiam em descrédito.
Não há, na verdade, Ciência sem dissenso, sem controvérsia, sem revisão de pressupostos. A História da Ciência está repleta de consensos quebrados — e foi sempre por aí que ela mais cresceu.
Por isso, se há figuras públicas que me causam um fastio particular são aquelas que se colocam no pedestal da racionalidade, nos ombros da Ciência, para anatematizar os debates públicos — sejam estes travados por especialistas ou por leigos. Um desses exemplos, que se tornou uma espécie de mascote nacional da “Ciência Certa”, dá pelo nome de David Marçal, conhecido como colunista do Público e autor de vários livros de “divulgação científica”.
David Marçal
Essa minha irritação não decorre da falta de inteligência de David Marçal, nem da ausência de capacidade argumentativa. É precisamente o contrário: é por ser tão fluente na retórica falaciosa, tão hábil na omissão do que o incomoda, tão moralista nas suas inferências, que o seu discurso me parece perigosamente eficaz. E, claro, por ser tão ostensivamente aplaudido por aqueles que se julgam mais esclarecidos — os zelotas do racionalismo domesticado.
No seu mais recente texto, publicado na passada sexta-feira no Público e intitulado “As nossas percepções estão quase sempre erradas”, David Marçal exemplifica esse seu modus operandi de forma lapidar. De início, parece apenas um ensaio sobre as nossas falhas cognitivas e erros de percepção, com base em autores credíveis como Daniel Kahneman, Bobby Duffy ou Hans Rosling. Nada contra.
A exposição da dualidade entre pensamento rápido (Sistema 1) e pensamento lento (Sistema 2) é sólida, didáctica e reconhecida no campo da psicologia cognitiva. Também não é falso que, em muitos domínios da vida social, as percepções das pessoas estão erradas — como demonstram inquéritos sobre imigração, sexualidade, religião ou vacinas. Estamos na área da Psicologia, que é uma ciência humana e comportamental, não propriamente uma ciência exacta.
Mas o problema de Marçal começa na selecção e no tratamento dos exemplos. O texto pratica, com notável perícia, aquilo que em Ciência se designa por cherry picking: seleccionar apenas os casos que confirmam a tese que se pretende sustentar. Aponta com severidade os erros do cidadão comum, mas omite olimpicamente os erros das instituições científicas, dos especialistas mediáticos e dos organismos internacionais — como se estes fossem infalíveis ou, no mínimo, irrelevantes para o debate sobre desinformação. Isso é desonestidade por omissão. E, como se sabe, a meia-verdade é mais perigosa do que a mentira.
Por exemplo: onde está, no seu ensaio, qualquer referência aos consensos científicos errados da história recente? Onde está a autocrítica às previsões apocalípticas da pandemia da covid-19, em que se comparou a doença à gripe espanhola, se promoveram confinamentos com base em modelizações especulativas, se fecharam escolas sem base empírica sólida e se censuraram vozes discordantes que, com o tempo, se revelaram prudentes e certeiras? Onde está a reflexão sobre o papel das farmacêuticas na produção científica durante a pandemia, ou sobre a falência da revisão por pares como garante de fiabilidade?
Não está. E não está porque esse tipo de crítica não serve o propósito do texto: reforçar que o problema está nos outros — os desinformados, os ignorantes, os simplórios. Nunca no clero científico.
O mais espantoso — e inquietante — é que, no momento em que a Ciência estava mais bem equipada do que nunca para enfrentar uma pandemia, com sistemas de vigilância epidemiológica, ferramentas estatísticas, equipas interdisciplinares e capacidade tecnológica sem precedentes, muitos dos seus representantes se comportaram como profetas do pânico, influenciando péssimas decisões políticas. Num cenário que exigia prudência, proporcionalidade e avaliação de risco baseada em dados desagregados, optou-se por uma retórica apocalíptica, convertendo incertezas legítimas em certezas absolutas e alimentando o medo como instrumento de mobilização social.
Suspender consultas, diagnósticos e cirurgias; encerrar escolas e confinar crianças à telescola; impedir que se andasse ao ar livre; internar idosos em “covidários”; tudo isto foi sustentado por cientistas que se deslumbraram com o poder de uma distopia.
E o paradoxo é este: o pico de mortalidade em 2020 e 2021 — não apenas pela covid-19 — deu-se quando havia menos visitas às urgências, menos camas hospitalares ocupadas e menos dias de internamento. E depois a Ciência recusou-se a avaliar seriamente as mortes em excesso em 2022, com temor em descobrir causas politicamente sensíveis. Mas note-se: mesmo entre os grupos mais vulneráveis — os idosos com múltiplas comorbilidades —, as taxas de mortalidade em Portugal durante a pandemia foram, por vezes, inferiores às de há vinte anos. Na primeira década deste século, a mortalidade relativa (taxa) entre maiores de 85 anos foi mais elevada do que nos picos pandémicos de 2020 ou 2021. Isto — goste-se ou não — é uma factualidade científica.
E, no entanto, a percepção mediática e institucional — alimentada por divulgadores como David Marçal — insistiu na ideia de uma catástrofe sanitária sem paralelo. Não por força dos dados, mas por imposição de uma narrativa.
Narrativa essa que foi promovida com zelo quase religioso por cientistas e divulgadores que confundiram pedagogia com propaganda, muitas vezes em promiscuidade ideológica, financeira ou simbólica com a indústria farmacêutica e com os centros de decisão político-mediáticos. A “Ciência” — essa entidade abstracta que tantos invocam — serviu de escudo retórico para justificar medidas que, em muitos casos, não resistiram ao escrutínio retrospectivo. E quem ousava colocar perguntas incómodas era imediatamente rotulado como “negacionista”, “desinformador” ou “anticiência”.
Aliás, a ideia de que se combate a desinformação com “mais Ciência” é, por si só, uma armadilha lógica. Que Ciência? A de que momento? Publicada onde? Financiada por quem? Promovida por que canais? A Ciência não é um bloco monolítico. É feita por humanos, com os seus interesses, limitações, enviesamentos e alinhamentos institucionais. O verdadeiro cientista não teme o dissenso — estimula-o. Não silencia dados desconfortáveis — investiga-os. Não exclui outliers — problematiza-os. Quando um divulgador científico se comporta como censor ou paladino do dogma, deixa de ser defensor da Ciência e passa a ser apóstolo de uma fé travestida de método.
O mais irónico — e preocupante — é que essa retórica ilustrada, desse círculo de Marçal, que despreza o senso comum e endeusa a tecnociência, tem efeitos sociais contraproducentes. Em vez de promover confiança na Ciência, fomenta a suspeita. Em vez de combater os extremismos, alimenta-os. Quando o público se apercebe de que há censura de opiniões divergentes, de que só certas narrativas têm direito à luz do dia, de que os consensos mudam ao sabor do vento político, tende a desconfiar de tudo — até do que está bem fundado. A verdade não se impõe com silenciadores. A confiança constrói-se com transparência, humildade epistémica e coragem para admitir os erros do passado.
Marçal termina o seu ensaio com uma referência ao Brexit como exemplo de erro colectivo baseado em percepções erradas. Pode até ser. Mas pergunto: quantas decisões políticas foram moldadas por dados distorcidos promovidos por instituições ditas credíveis? Onde está a crítica às projecções falhadas do FMI, do BCE ou da OCDE, que erraram sistematicamente durante anos sem qualquer responsabilização? O critério de Marçal é invariável: criticar a irracionalidade das massas, mas nunca a manipulação das elites.
Talvez a pergunta que hoje mais importa não seja “como combater a desinformação?”, mas sim “quem define o que é desinformação?”. Porque a História está cheia de ideias que foram rotuladas de perigosas ou absurdas — e que se tornaram, mais tarde, pilares do conhecimento. Galileu, Lavoisier, Semmelweis, Barry Marshall, Alfred Wegener: todos foram dissidentes. Todos foram perseguidos ou ignorados. Todos foram, a seu tempo, justificados pelos dados. Nenhum deles teria tido espaço nos palcos bem-pensantes da “Ciência Oficial” onde hoje David Marçal actua com os favores de uma certa academia e da imprensa.
Na verdade, ao propor que a Ciência funcione como instrumento de silenciamento — erguendo-a a tribunal moral e a gendarme da verdade —, David Marçal não está a defendê-la: está a traí-la. Porque a Ciência, por definição, só respira em ambientes de liberdade crítica, de permanente revisão, de dúvida metódica. Quando alguém a invoca para calar em vez de para debater, para excluir em vez de para esclarecer, transforma-a numa paródia autoritária do seu próprio ideal.
E se Marçal ainda acredita que esse é o papel legítimo da Ciência — o de censurar o dissenso e filtrar o que merece ou não ser discutido —, então estará perigosamente próximo de cometer aquilo que mais proclama combater: a desinformação. E mesmo que, em nome da liberdade, lhe reconheça o direito de o fazer, não posso deixar de assinalar a ironia: é que o homem que se arroga paladino da razão parece ter esquecido que a dúvida, e não a certeza, é a verdadeira alma do conhecimento.
Parecia que se estava perante uma galinha dos ovos de ouro, mas afinal saiu um garnisé depenado. Depois de ter sido anunciada como praticamente certa, a venda do edifício-sede da Impresa, em Paço de Arcos, ao fundo BPI Imofomento foi cancelada, de acordo com um comunicado transmitido à Comissão doMercado de Valores Mobiliários. O grupo de media, dono da SIC e do Expresso, informou o mercado de que não chegou a acordo com o comprador, pondo termo a uma operação envolta em contornos peculiares — e, para muitos investidores, potencialmente lesivos.
A transacção, com um valor total de 37 milhões de euros, permitiria à Impresa obter um novo balão de oxigénio financeiro, aliviando temporariamente o peso da dívida, mas à custa de encargos futuros crescentes. Mais do que um simples negócio imobiliário, o caso tornou-se um compêndio de “engenharia financeira” num grupo de comunicação social em acelerado declínio.
Interior do edifício-sede da Impresa. Em 2018, o imóvel foi vendido ao Novo Banco, mas no final de 2022 a Impresa recomprou o edifício numa operação discreta que não foi comunicada ao mercado. / D.R.
Mas esta não foi a única má notícia transmitida hoje pelo grupo que detém a SIC e o Expresso. Também as contas do primeiro trimestre de 2025 foram divulgadas, apresentando um prejuízo de 5,1 milhões de euros. Apesar de pequenas oscilações nas receitas e custos, as receitas operacionais diminuíram face ao ano passado, embora tenham permanecido em terreno positivo. O ‘problema’, que começa a ser crónico e insustentável para o grupo fundado por Pinto Balsemão, reside na elevada dívida: só em custos de financiamento, a Impresa gastou seis milhões de euros nos primeiros meses deste ano, o que explica o prejuízo do trimestre. A situação ainda piorará mais no próximo semestre, porque só o nível de endividamento remunerado subiu 3,8%, face a Junho do ano passado, para os 148,2 milhões de euros.
Com um prejuízo recorde de 66,2 milhões de euros em 2024 e um passivo global de 250 milhões — dos quais 150 milhões são empréstimos bancários —, a Impresa vive sob o peso de juros que ultrapassam um milhão de euros por mês. O seu negócio principal — a comunicação social — não tem sustentado a estrutura financeira do grupo. Mas foi no imobiliário que tentou encontrar um inesperado maná: o edifício-sede, construído de raiz para alojar os canais da SIC e a redacção do Expresso, converteu-se numa fonte de lucros improváveis, através de três transacções consecutivas, num vaivém de vendas e recompras.
O primeiro capítulo desta história começou em 2018, quando a Impresa vendeu o edifício ao Novo Banco por 24,2 milhões de euros, ficando com o direito de arrendamento por dez anos e opção de recompra. A operação, feita quando António Ramalho presidia ao banco e este recebia injecções do Fundo de Resolução, contrariava o suposto esforço de desinvestimento em activos imobiliários da banca. O edifício, concebido à medida das operações da Impresa, pouco valor teria fora do grupo. Ainda assim, o Novo Banco avançou com a compra.
Cinco anos depois, em Dezembro de 2022, a Impresa recompra o edifício por apenas 19,6 milhões de euros, ou seja, menos 4,6 milhões do que o preço da venda inicial. A operação foi discreta e nunca comunicada ao mercado. Beneficiando das rendas entretanto pagas e de possíveis vantagens fiscais — como a contabilização das rendas como despesas e a manutenção do imóvel como activo sujeito a depreciação —, o grupo de Balsemão saiu largamente beneficiado. Mais: a recompra foi financiada pelo próprio Novo Banco, que assim sustentou financeiramente uma operação contra os seus próprios interesses. E a CMVM, notificada de anteriores transacções, manteve-se silenciosa.
O último episódio, agora gorado, previa a venda do mesmo edifício ao fundo BPI Imofomento – Fundo de Investimento Imobiliário Aberto, por 37 milhões de euros. O fundo pertence à BPI Gestão de Activos, liderada por Jorge Teixeira, e é gerido pelo grupo BPI, controlado desde 2016 pelo catalão Caixabank. A ligação adquiria contornos delicados quando se sabe que o actual vice-presidente da Impresa, Pedro Barreto, foi administrador do BPI até 2024.
Pedro Barreto, foi administrador do Banco BPI até 2024 e é o actual vice-presidente da Impresa. O grupo BPI detém a BPI-Gestão de Activos, que gere o fundo que vai ser o novo dono do edifício-sede da Impresa. / Foto: Captura de ecrã de vídeo do BPI | D.R.
Com um património avaliado em mais de 800 milhões de euros, o fundo BPI Imofomento detém activos como o Centro Comercial Vasco da Gama e investe sobretudo em imóveis comerciais em Lisboa e no Porto. O edifício da Impresa, representando menos de 5% da carteira do fundo, não é dos mais atractivos em termos de liquidez. Sendo construído à medida da Impresa, dificilmente servirá outro inquilino — o que, para os subscritores do fundo, pode configurar um risco relevante. O próprio fundo assume que “não garante rendimentos” e destina-se a investidores dispostos a “assumir perdas de capital” e a “imobilizar poupanças por um período mínimo recomendado de cinco anos”.
Se o negócio tivesse avançado, o grupo Impresa amortizaria os 14,9 milhões de euros em dívida ao Novo Banco e ficaria com 22,1 milhões líquidos, dos quais 10,1 milhões entrariam de imediato e 12 milhões seriam pagos num prazo de até dois anos. A transacção permitiria à Impresa repetir, em menos de três anos, uma operação de valorização relâmpago: comprar por 19,6 milhões e revender por 37 milhões, gerando um ganho de 17,4 milhões de euros. Somando aos cerca de cinco milhões obtidos com a primeira venda ao Novo Banco, o negócio do edifício-sede já teria rendido ao grupo Balsemão 22 milhões de euros.
Em contrapartida, a Impresa tornar-se-ia arrendatária de um imóvel que já foi seu — e que desenhou para si — pagando rendas que, para garantir uma rentabilidade entre 3% e 4% ao fundo do BPI, teriam de variar entre 1,11 milhões e 1,48 milhões de euros anuais. Ou seja, entre 92.500 e 123.300 euros por mês. Um encargo fixo que, numa estrutura já deficitária, representa um fardo adicional.
Jorge Sousa Teixeira, presidente-executivo da BPI-Gestão de Activos. / Foto: Captura de ecrã de vídeo do grupo BPI.
A origem desta terceira venda falhada remonta às contas de 2024 da Impresa, em que o grupo admitiu recorrer à operação de “venda e subsequente arrendamento” como forma de libertar liquidez. Esta antecipação parecia confirmar-se no comunicado enviado à CMVM a 20 de Junho último. Mas algo correu mal nas semanas seguintes. E, esta quarta-feira, a galinha dos ovos de ouro saiu pela porta dos fundos.
Para os investidores do fundo do BPI, a notícia pode ser recebida como um alívio. O imóvel, embora oferecesse rendas regulares, carregava riscos evidentes de liquidez e adequação ao mercado. Para a Impresa, trata-se de uma oportunidade perdida de encaixe imediato e redução de dívida — mas também da manutenção de um activo simbólico. Com um passivo de 250 milhões, uma actividade em declínio e uma marca cada vez menos relevante, o grupo de Balsemão volta ao ponto de partida, que é financeiramente desastroso.
Na vigésima oitava sessão da BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com o escritor Mário Cláudio.
Um verdadeiro homem do Porto, Mário Cláudio — pseudónimo literário de Rui Manuel Pinto Barbot Costa — é uma das vozes mais singulares da literatura portuguesa contemporânea, com uma carreira que já atravessa mais de meio século. A sua obra revela uma versatilidade rara, não apenas pela extensão dos géneros que explora — do romance à poesia, do conto ao ensaio, e até ao teatro —, mas sobretudo pela sofisticação com que entrelaça arte, biografia e ficção, numa escrita de apuro estético e profunda inquietação intelectual.
Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, começou a exercer advocacia ainda anos 60, mas a sua ligação à literatura foi ganhando espaço, com formação em arquivos e bibliotecas, e ainda um mestrado em Londres sobre literacia e hábitos de leitura, no final da década de 70. Foi ainda professor de Cultura Geral na Escola Superior de Jornalismo do Porto.
Mário Cláudio em sua casa, no Porto, entrevistado para a Biblioteca do Página Um.
O seu mundo literário começou a abrir-se logo em 1969, com ‘Ciclo de Cypris’, obra poética que já anunciava a sua inclinação para o rigor formal e a reinvenção dos cânones. Contudo, foi no romance que consolidou o seu nome, sobretudo a partir da década de 1980, com títulos como Amadeo (1984), Guilhermina (1986) e Rosa (1988) – a chamada Triologia da Mão –, três retratos literários de figuras centrais da cultura portuguesa — Amadeo de Souza-Cardoso, Guilhermina Suggia e Rosa Ramalho.
Escritor de vastíssima erudição, num estilo que remonta a Camilo Castelo Branco, a sua escrita é marcada por um labor meticuloso da linguagem, por um gosto barroco pelas estruturas complexas e por uma constante interpelação dos mecanismos da memória e da representação.
Com um vasto conjunto de romances do género histórico, onde mais do que relatar eventos, procura enquadrar a natureza humanas nesses contextos, Mário Cláudio também conseguiu construiu uma obra onde os limites entre o biográfico e o ficcional são sistematicamente interrogados. Em ‘Tiago Veiga. Uma biografia’ (2011), por exemplo, oferece-nos a vida inventada de um poeta inexistente com tal densidade que a linha entre a realidade e o artifício parece dissolver-se.
Ao longo da sua carreira, recebeu os mais prestigiados galardões literários em Portugal, entre os quais o Prémio Pessoa (2004), o Grande Prémio de Romance e Novela da APE (por três vezes), o Prémio Pen Club (por duas vezes), entre muitos outros.
Figura reservada, mas profundamente comprometida com a literatura como forma de conhecimento e de resistência ao esquecimento, Mário Cláudio é um autor que desafia o leitor a habitar outras vidas, outras épocas, outras formas de ver. E foi, por isso, numa conversa desafiante que recebeu, em sua casa no Porto, Pedro Almeida Vieira para falar sobre o seu percurso literário, mas também sobre literacia, memória, liberdade e o futuro (in)certo da cultura portuguesa.
Pormenor da biblioteca ‘caseira’ de Mário Cláudio.
Nos Estados Unidos, um escândalo começou a abalar esta semana o sistema nacional de transplantes de órgãos: vários relatórios e testemunhos de profissionais e famílias denunciam que a recuperação de órgãos para transplante terá ocorrido — ou tentado ocorrer — em pacientes ainda vivos, contrariando os mais elementares princípios éticos da medicina.
Um dos casos mais perturbadores, escrutinado esta terça-feira num painel na Câmara dos Representantes durante a inquirição de uma entidade que supervisionava transplantes, ocorreu em 2021 no Estado do Kentucky com um homem que estava a ser preparado para a retirada de órgãos, mesmo balançando a cabeça em “não” e levando os joelhos ao peito.
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O volume e gravidade dos casos levou Robert F. Kennedy Jr., Secretário da Saúde e Serviços Humanos (HHS) do Governo norte-americano, a anunciar uma profunda reforma do sistema de obtenção e transplante de órgãos. A gravidade das revelações está a provocar reacções em todo o país, com implicações legais, médicas e morais de largo alcance.
A polémica estalou após uma investigação conduzida pela Administração de Recursos e Serviços de Saúde (HRSA) ter revelado que, em apenas um dos estados analisados — o Kentucky — mais de 70 procedimentos de doação de órgãos foram interrompidos porque os pacientes começaram a mostrar sinais de recuperação.
No total, a HRSA analisou 351 casos de tentativas não concluídas de colheita de órgãos e concluiu que 103 apresentavam “características preocupantes”, entre as quais 28 em que os pacientes possivelmente ainda estariam vivos no momento da tentativa de extracção.
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Em termos clínicos, a morte cerebral — considerada equivalente à morte legal na maioria dos países ocidentais, incluindo os Estados Unidos — é o estado em que todas as funções do encéfalo, incluindo do tronco cerebral, cessaram de forma irreversível. Quando esse diagnóstico é validado por critérios rigorosos e testes confirmatórios, o paciente é declarado legalmente morto, mesmo que o coração ainda possa bater com auxílio de suporte artificial.
A legislação norte-americana, como a Uniform Determination of Death Act (UDDA), reconhece a morte cerebral como critério suficiente e definitivo para declarar a morte de um indivíduo. No entanto, um diagnóstico inadequado ou apressado desse estado — ou a sua substituição por critérios circulatórios menos rigorosos — levanta sérias dúvidas jurídicas e bioéticas, que agora estão a ser colocadas em evidência neste escândalo.
“A investigação revelou que o processo de obtenção de órgãos foi iniciado quando os pacientes ainda apresentavam sinais de vida”, afirmou anteontem Robert F. Kennedy Jr., que classificou o sistema como “horrível” e exigiu reformas estruturais. “Cada potencial dador deve ser tratado com a santidade que merece”, declarou, prometendo responsabilizar as organizações envolvidas.
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O relatório, que serviu de base à denúncia pública do HHS, sublinha que a procura crescente por órgãos está a gerar situações de “tomada de decisão precipitada” e a inverter prioridades éticas fundamentais: em vez de garantir primeiro a protecção do dador, o sistema estaria a favorecer a obtenção célere de órgãos.
Esta tendência está sobretudo associada a um método crescente nos EUA — a doação após morte circulatória — que permite a colheita de órgãos em pacientes que não tenham sido declarados em morte cerebral, mas que se encontrem em estado terminal ou em suporte vital com decisão clínica de suspensão.
E é precisamente neste tipo de casos que surgem os episódios mais chocantes. Segundo uma investigação publicada esta semana pelo New York Times, 55 profissionais de saúde de 19 estados reportaram pelo menos um caso perturbador de tentativa de colheita de órgãos em dadores ainda com actividade neurológica. Alguns denunciaram, inclusive, que medicamentos teriam sido administrados para “acelerar a morte” do potencial dador.
Robert F. Kennedy Jr., secretário de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos. / Foto: D.R.
Actualmente, mais de 103 mil pessoas aguardam um órgão nos EUA. Diariamente, morrem 13 doentes por falta de um dador compatível. Esta tensão constante entre necessidade e disponibilidade alimenta uma corrida desenfreada por órgãos, gerando um terreno fértil para abusos e negligência, sobretudo quando se aplica o critério circulatório.
Ao contrário da doação tradicional — feita após diagnóstico de morte cerebral irreversível —, a “doação após morte circulatória” (DCD, na sigla em inglês) ocorre em pacientes que não estão em morte cerebral, mas cujo prognóstico clínico é terminal. Após decisão médica (e consentimento familiar ou directiva antecipada) de suspender o suporte vital, aguarda-se a paragem cardíaca e, passados dois a cinco minutos, inicia-se a colheita de órgãos.
Este tipo de doação é controverso porque o intervalo entre a cessação dos sinais vitais e o início da extracção é curto, deixando margem para erros de avaliação. O risco é agravado quando há pressa ou pressão institucional, como documentado em vários casos. Na ausência de critérios neurológicos estritos, a fronteira entre vida e morte torna-se mais ambígua — e é aqui que se têm concentrado os abusos agora denunciados.
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Além disso, têm surgido críticas sobre práticas de sedação agressiva ou administração de fármacos com o intuito de facilitar a extracção, sem clara indicação clínica para benefício do paciente, o que levanta sérias questões éticas e legais.
Agora, nos Estados Unidos, a HRSA impôs medidas correctivas às organizações de captação de órgãos, obrigando à revisão de protocolos clínicos, reforço do consentimento informado e melhoria das avaliações neurológicas. O HHS comprometeu-se também a transferir parte da supervisão para um sistema mais centralizado, reduzindo o actual mosaico institucional que inclui também os Centros de Serviços Medicare e Medicaid e ainda dezenas de organizações locais com autonomia operacional.
Em Portugal, o regime da doação de órgãos é regulado sobretudo por legislação dos anos 90, com alterações posteriores. Basicamente, adoptou-se o modelo de consentimento presumido, o que significa, à partida, que todos os cidadãos são potenciais dadores, salvo declaração em contrário registada no RENDA – Registo Nacional de Não Dadores.
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A colheita de órgãos só pode ocorrer após a verificação de morte cerebral, definida segundo critérios clínicos rigorosos e padronizados. O diagnóstico de morte encefálica é feito com base em três exames neurológicos, realizados por dois médicos independentes da equipa de transplantação, com intervalo mínimo entre observações, conforme normas da Direcção-Geral da Saúde.
A doação após paragem cardíaca — do tipo DCD — não é prática corrente em Portugal. Embora legalmente possível em certos contextos, a sua implementação carece de regulamentação própria e protocolos clínicos específicos, além de aceitação ética consolidada. Assim, na prática portuguesa, os transplantes baseiam-se exclusivamente em doação pós-morte cerebral, ou, em alternativa, na doação em vida (casos de rins ou segmentos hepáticos entre familiares).
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Adicionalmente, todo o processo é centralizado pelo Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST), que coordena a alocação dos órgãos, valida os critérios clínicos e assegura que os princípios da equidade, transparência e segurança do dador e do receptor são respeitados.
Embora Portugal se destaque no panorama europeu pela elevada taxa de doações per capita, não existem quaisquer sinais de situação anómala do ponto de vista legal e mesmo ético.
Na próxima quinta-feira, 24 de Julho de 2025, cumprem-se exactamente dois anos sobre a publicação no PÁGINA UM de uma investigação que — por muito que alguns quisessem ridicularizar, desprezar ou silenciar — expunha, com base nas demonstrações financeiras da própria empresa, a ruína anunciada da Trust in News. O título era inequívoco: “Dona da revista Visão com dívida astronómica ao Estado. E Governo esconde.” Não se tratava de conjecturas nem de insinuações, mas de números, factos e documentos oficiais. Era jornalismo, e dos mais incómodos.
Na altura, escrevi: “Na aparência, ninguém se apercebeu no Governo, mas a Trust in News – a empresa proprietária da revista Visão e de outras publicações como a Exame, a Caras e o Jornal de Letras – apresenta já, alegremente, uma dívida de 11,4 milhões ao Estado. A sua cobrança, a atender à situação financeira da empresa, mostra-se cada vez mais complexa.”
Luís Delgado e Francisco Pedro Balsemão: um negócio ainda por explicar que termina sete anos depois numa ‘bancarrota’ absoluta e dívidas de mais de 30 milhões de euros.
Era o retrato de um calote fiscal que crescia a mais de 12 mil euros por dia, com a complacência do poder político, a aparente indiferença da autoridade tributária e o silêncio cúmplice da Segurança Social. E o regulador – a Entidade Reguladora para a Comunicação Social – aos costumes disse nada.
Apesar da clareza dos factos, a então directora da revista Visão, Mafalda Anjos — que acumulou durante anos o cargo de publisher do grupo — preferiu insultar a inteligência alheia, classificando as notícias do PÁGINA UM como “fantasiosas”. Talvez lhe parecesse fantasia que uma empresa de capital social de 10 mil euros, criada por Luís Delgado, tivesse adquirido à Impresa de Pinto Balsemão um portefólio de 16 títulos de imprensa escrita. Talvez lhe parecesse fantasia que a ERC, mesmo após a criação do Portal da Transparência, nunca tivesse analisado seriamente nem o negócio de 2018 nem a contabilidade anual da Trust in News, onde ano após ano as dívidas ao Estado cresciam, mas eram escondidas, enquanto se acumulavam “outras contas a receber” de natureza inexplicada.
Durante mais de um ano, o PÁGINA UM foi o único órgão de comunicação social a acompanhar, com independência e persistência, este caso que só poderia ser descrito como um escândalo de gestão e de regulação. E mesmo quando a restante imprensa começou a abordar o tema, houve desresponsabilização de Luís Delgado – ainda hoje, as notícias omitem a condenação de Luís Delgado por abuso de confiança fiscal agravado.
Mafalda Anjos, em Novembro do ano passado no Porto, a apresentar o seu livro (ironicamente) intitulado ‘Carta a um jovem decente‘.
Entretanto, desde o ano passado, tudo aquilo que suceder em redor da Trust in News foi um circo para atirar areia para os olhos e salvar o ‘coiro’ de Luís Delgado, que, com a compra dos títulos à Impresa em 2018, ‘salvou’ a família Balsemão de mais agruras. O Processo Especial de Revitalização(PER), que Luís Delgado usou para congelar os seus compromissos fiscais e sociais, era na verdade um expediente para evitar novos processos judiciais por abuso de confiança fiscal.
O mesmo sucedeu com o plano de insolvência que tinha um único propósito pessoal recusado – e bem – pela juíza: proteger o proprietário, e não os credores, e muito menos o interesse público.
Em 2023, o silêncio do então ministro das Finanças, Fernando Medina, foi ensurdecedor – e foi para mim evidente que as revistas da Trust in News estavam agradecidas ao Governo socialista. Com efeito, causa estranheza que a Trust in News, apesar de ter processos executivos instaurados, e ter começado as dívidas ao Estado logo a partir de 2018, nunca ter figurado na lista de devedores fiscais nem da Segurança Social.
Primeira notícia do PÁGINA UM de 24 de Julho de 2023 sobre a crise financeira insustentável (e escondida) da Trust in News.
A pergunta impõe-se: por que razão foi esta empresa poupada à humilhação pública a que tantos outros contribuintes são sujeitos? E por que motivo os seus trabalhadores — especialmente os directores, que segundo a Lei de Imprensa têm o direito de aceder à situação financeira detalhada das suas empresas — permaneceram ignorantes ou resignados perante tamanha evidência de naufrágio?
O encerramento hoje decretado judicialmente é, por muito que custe a assumir, “um choque saudável”, uma moralização tardia mas necessária no sector da comunicação social em Portugal. Mas não nos iludamos: não foi a Entidade Reguladora para a Comunicação Social que agiu; não foi o Estado a exigir transparência e justiça fiscal. Aquilo a que assistimos foi a um colapso silencioso de uma empresa insustentável, protegida até ao fim por uma rede de indiferença, conveniência e corporativismo mediático.
O fecho da Trust in News deve, portanto, servir de ponto de partida — e não de chegada — para a dissecação do negócio ruinoso de 2018, entre a Impresa e Luís Delgado. Há demasiadas sombras neste contrato de cessão de títulos que libertou o grupo Balsemão de um portefólio deficitário à custa do erário público. Há rubricas nas contas da Trust in News, nomeadamente a obscura “Outras contas a receber”, que indiciam engenharia financeira deliberada para mascarar prejuízos acumulados em milhões durante mais de cinco anos. E há responsabilidades que não podem continuar encobertas, seja do lado de quem vendeu, de quem comprou ou de quem devia fiscalizar e reguladoramente intervir.
Em Julho de 2023, a então directora da Visão considerou o conteúdo dos artigos do PÁGINA UM como “fantasiosos”. Nota: a declaração de não permissão de a citar não tem qualquer validade, porque pressupõe haver uma aceitação da parte do PÁGINA UM (o que não se verificou). Mafalda Anjos escreveu voluntariamente.
Este caso é mais do que a falência de uma empresa: é a falência de um modelo mediático que mercantiliza o jornalismo, que despreza a sustentabilidade económica e que vive de aparências e de favores institucionais. Um modelo que produz títulos vistosos mas assentes em areia, que enaltece o combate às fake news mas vive da opacidade das suas próprias contas, e que exige subsídios públicos enquanto foge ao fisco.
O PÁGINA UM, ao denunciar em 2023 o descalabro financeiro da Trust in News, não apenas antecipou o desfecho — antecipou a verdade. E escrevo isto sem qualquer júbilo: o encerramento de 16 títulos de imprensa, por mais irrelevantes que se tenham tornado, é sempre uma perda simbólica para o pluralismo informativo. Mas essa perda só é superada pela complacência que permitiu que estes títulos sobrevivessem durante anos à custa do dinheiro que não pagavam ao Estado, nem aos trabalhadores nem aos credores.
O jornalismo só se defende com verdade, independência e rigor. E isso começa pela denúncia dos que, em nome do jornalismo, dele abusam. A Trust in News morreu. Viva o jornalismo! Que a verdade continue viva.
Foi uma estreia ao seu estilo: no primeiro ano de Cristiano Ronaldo como empresário dos media saiu uma vitória. Num ano marcado pelo acentuar da crise dos media – que culminou com o colapso da Trust in News e um prejuízo recorde na Impresa – determinada e com um desempenho financeiro que contrasta com o naufrágio da maioria dos grupos de comunicação social portugueses.
No primeiro ano completo de actividade da Medialivre – o novo império mediático detentor do Correio da Manhã, Sábado, da CMTV, da Now, e agora também de duas rádios –, a empresa apresentou um lucro de 4,2 milhões de euros, segundo as demonstrações financeiras de 2024 a que o PÁGINA UM teve acesso.
Este resultado, embora inferior aos 7,2 milhões de euros registados em 2023 – ano de transição, após a e reestruturação –, evidencia a solidez da Medialivre, mesmo num contexto de forte investimento, financiado em parte substancial pelo próprio Cristiano Ronaldo, através da sua sociedade CR7 S.A.
A Medialivre, recorde-se, comprou no final de 2023, a Cofina Media através de um consórcio constituído pela Sorolla, LivreFluxo, CR7, Actium Capital e Caderno Azul. Embora nenhum accionista tenha a maioria, Cristiano Ronaldo é, individualmente, a pessoa com maior participação na holding, a Expressão Livre, detendo directamente 30%.
Além disso, o jogador é potencialmente, o seu decisor estratégico dominante. Com efeito, através de um acordo parassocial, a empresa de Ronaldo comprometeu-se a um investimento de 13,095 milhões de euros – a título de ágio, ou seja, sem retorno directo ou direito de reembolso – num capital social total que implicou entradas de 34,9 milhões de euros. Assim, a CR7 suportou 37,52% do investimento, superando proporcionalmente a sua participação no capital. Já a Sorolla, com 32% do capital, investiu apenas 14,95%.
Nove anos depois de ter lançado um microfone da CMTV a um lago, Cristiano Ronaldo detém 30% da Medialivre – e já lucra.
Este desfasamento entre percentagem accionista e esforço financeiro indicia que Cristiano Ronaldo procura afirmar-se como fiador institucional do projecto, adquirindo influência e relevância num sector de comunicação social marcado pela fragilidade.
Os investimentos realizados no ano passado reflectem-se já na valorização dos activos não correntes da Medialivre, que incluem, entre outros, os direitos associados às marcas Correio da Manhã, CMTV e Now. Estes activos aumentaram de 70,8 milhões de euros em 2023 para 82,8 milhões em 2024 – um acréscimo de cerca de 12 milhões. Por seu turno, o passivo total cresceu de 60,5 para perto de 68 milhões de euros, mas o balanço contabilístico revela uma situação económica e financeira saudável, sobretudo considerando o contexto adverso para os media em Portugal.
A título de comparação, a Impresa – dona da SIC e do Expresso – registou um prejuízo de cerca de 60 milhões de euros em 2024, com elevados níveis de endividamento, que ultrapassam os 130 milhões de euros. Já a Medialivre reduziu os seus empréstimos bancários para cerca de 26 milhões de euros, menos 20% do que no ano anterior.
Cristiano Ronaldo e Carlos Rodrigues, durante uma visita em Março passado às instalações do grupo de media. Foto: DR.
A presença de Cristiano Ronaldo na Medialivre será, em principio para ser de longo prazo, porque o acordo parassocial entre os accionistas da Expressão Livre estipula que estes deverão permanecer na estrutura durante três anos, mesmo que ocorram alterações na distribuição do capital. Contudo, no horizonte de nove anos de vigência do acordo, prevê-se a possibilidade de venda integral caso um grupo de accionistas com mais de 75% deseje alienar a totalidade da empresa a terceiros – situação que poderá reforçar o controlo de Ronaldo, caso este mantenha a sua posição estratégica e capacidade de investimento.
A entrada de Cristiano Ronaldo na Medialivre marcou o fim definitivo de uma relação atribulada entre o futebolista e o universo Correio da Manhã. As picardias do passado – como o célebre episódio de 2016 em que Cristiano lançou ao lago o microfone de um jornalista da CMTV, posteriormente resgatado e leiloado com fins solidários – estão não apenas ultrapassadas, mas enterradas. O jogador mais famoso da história portuguesa está agora na cúpula de um dos mais influentes grupos de comunicação social do país.