Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Coimbra tem um rácio de médicos 70 vezes superior aos concelhos com maiores carências

    Coimbra tem um rácio de médicos 70 vezes superior aos concelhos com maiores carências

    É um dos indicadores mais paradigmáticos do desequilíbrio – e mesmo da iniquidade – do desenvolvimento económico e social: a distribuição dos médicos residentes pelos diversos concelhos mostra um país profundamente desigual — e a agravar-se.

    De acordo com os dados actualizados para 2024 e divulgados na sexta-feira passada pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), apenas 29 dos 308 concelhos portugueses têm um rácio de médicos superior à média nacional de 6,0 por mil habitantes. O concelho de Coimbra lidera com 34,7 médicos por mil habitantes – um valor quase 70 vezes superior ao dos concelhos de Pedrógão Grande, Pampilhosa da Serra e Góis, que apresentam um rácio de apenas 0,5. Estes dois últimos municípios pertencem ao distrito que tem a ‘cidade dos doutores’ como capital.

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    Este desequilíbrio agrava a clivagem entre litoral e interior, entre zonas urbanas e zonas rurais, revelando-se um dos indicadores mais nítidos da desarticulação territorial – e com tendência a piorar.

    Em 2024, dos 15 concelhos com menos de um médico por mil habitantes – Armamar, Carrazeda de Ansiães, Ferreira do Zêzere, Viana do Alentejo, Calheta (Açores), Alcácer do Sal, Mourão, Castanheira de Pêra, Cadaval, Barrancos, Vila do Bispo, Lajes das Flores, Góis, Pampilhosa da Serra e Pedrógão Grande – somente Ferreira do Alentejo (de 0,6 para 0,9) registou melhorias. Carrazeda de Ansiães (que passou de 1,5 para 0,9) e Pedrógão Grande (de 0,9 para 0,5), se estavam mal em 2021, estão agora ainda piores.

    O contraste entre os concelhos mais rurais — e mesmo citadinos fora dos centros hospitalares — com os grandes centros urbanos é esmagador. Coimbra está noutro patamar, mas mesmo as cidades do Porto (22,0) e Lisboa (17,7) encontram-se muito acima dos restantes.

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    Coimbra é mesmo a ‘cidade dos doutores’.

    Aliás, para além destes concelhos, apenas Oeiras (11,1), Faro (10,8) e Matosinhos (10,4) superam a fasquia dos 10 médicos por mil habitantes. Apesar disso, algumas destas autarquias continuam a promover incentivos à fixação de médicos, como é o caso absurdo de Oeiras, numa lógica que parece mais política do que estrutural.

    Acima da fasquia de oito médicos por mil habitantes estão apenas mais sete municípios, quase todos capitais de distrito: Évora (9,3), Funchal (9,2), Viseu (9,1), Braga (9,0), Vila Real (8,7), Cascais (8,4) e Guarda (8,1).

    A análise da evolução entre 2021 e 2024 revela ainda mais desequilíbrios. Apesar de um aumento de 0,4 médicos por mil habitantes em todo o país durante esse período – que representou, em termos absolutos, mais cerca de 4.300 médicos –, também aqui a distribuição foi muito variável.

    Lisboa tem menos médicos em 2024 do que em 2021, sendo io terceiro com maior rácio, atrás de Coimbra e Porto.

    E houve até municípios de pequena dimensão que conseguiram contrariar a interioridade, como foram os casos de Mesão Frio e Castelo de Vide, que tiveram crescimentos de 1,5 e 1,3 médicos por mil habitantes em três anos, respectivamente.

    O concelho transmontano tem agora um rácio de 4,6 e o município alentejano tem 4,7. Mais seis concelhos conseguiram juntar mais de um médico por mil habitantes ao ‘pecúlio’ que tinham em 2021: Bragança, Covilhã, Santo Tirso, São Roque do Pico, Arraiolos e Torre de Moncorvo.

    Em todo o caso, houve 47 concelhos que em 2024 têm menos médicos por mil habitantes do que em 2021, estando neste lote também Lisboa, que passou de 18,0 para 17,7 – embora se deva, em princípio, aos preços da habitação na capital portuguesa.

    Mesão Frio foi o concelho com maior crescimento de ‘novos’ médicos nos últimos três anos.

    Os dados do INE mostram que a presença de médicos continua fortemente associada à existência de hospitais e centros universitários, mas existem evidências de que essa concentração está longe de garantir coesão territorial. A fixação de profissionais de saúde segue a lógica do mercado e da qualidade de vida urbana, descurando territórios envelhecidos e com menores recursos.

    O rácio de médicos por habitante, mais do que um indicador de saúde, tornou-se um reflexo brutal do abandono progressivo de vastas regiões do país – mesmo quando subsídios municipais procuram mascarar o que é, afinal, um problema estrutural de atractividade e planeamento.

  • Calor: modelo oficial prevê excesso de mortalidade acima de 1.100 óbitos em três dias

    Calor: modelo oficial prevê excesso de mortalidade acima de 1.100 óbitos em três dias

    Entre hoje, 4 de Agosto, e a próxima quarta-feira, 6 de Agosto, Portugal estará, segundo os modelos oficiais do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA) e do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), sujeito a um cenário de catástrofe térmica — ou, em linguagem técnica, a um surto de mortalidade em escala alarmante. Os dados do chamado Índice ÍCARO, actualizados diariamente e utilizados como base para alertas de saúde pública e planos da protecção civil, projectam para este período níveis de risco sem paralelo desde 2012.

    A previsão para quarta-feira aponta um valor de 1,57 no Índice ÍCARO — o mais elevado dos últimos treze anos —, o que representa, segundo a própria definição estatística do modelo, um aumento expectável de 157% na mortalidade diária face a condições sem calor excessivo. Traduzido em termos concretos: se a mortalidade média no Verão ronda os 280 óbitos por dia, um índice de 1,57 corresponderá a cerca de 720 mortes num só dia. Um valor que implicaria mais 440 óbitos do que o habitual — o equivalente, em termos proporcionais, a um acidente ferroviário catastrófico por dia durante três dias consecutivos.

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    Também os valores previstos para segunda-feira e terça-feira se apresentam extremamente elevados: 1,21 e 1,30, respectivamente. Estes índices implicam, segundo o modelo, 619 e 644 mortes diárias. Assim, e apenas com base no Índice ÍCARO, o total de mortes previstas para este trio de dias aproximar-se-ia das duas mil mortes, ou seja, mais 1100 óbitos acima da média esperada para o mesmo período — se o modelo estivesse calibrado com precisão.

    Contudo, a realidade será eventualmente menos aterradora, embora possa atingir níveis de gravidade relevante. Desde o dia 25 de Julho, os valores do índice têm-se mantido positivos, mas ainda assim bastante abaixo do limiar de 1. A mortalidade registada tem oscilado dentro de valores ligeiramente superiores ao padrão sazonal, com uma média próxima dos 320 óbitos diários — o que representa um acréscimo de cerca de 15% face à mortalidade-base.

    Evolução dos valores do Índicfe ICARO desde 23 de Julho. Fonte: INSA / Portal da Transparência do SNS.

    Este pequeno aumento, aliás, pode estar também relacionado com um Inverno particularmente ameno, o que terá poupado parte da população mais vulnerável, agora exposta a condições extremas. Desde o início de Janeiro, os níveis de mortaldiade global têm estado alinhados com os do anos passado.

    Mas o que mais fragiliza a confiança no modelo para valores mais elevados é o que se passou neste domingo. O valor do Índice ÍCARO — inicialmente estimado para 1,44, mas que foi entretanto corrigido para 0,87 —, significaria um acréscimo de 87% na mortalidade, ou seja, cerca de 524 mortes. No entanto, os dados provisórios do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) apontam para apenas 290 óbitos, um número perfeitamente dentro do padrão estival. Aqui poderá estar, paradoxalmente, uma boa notícia: o Índice ÍCARO exagera os cenários quando os valores se tornam mais elevados — em suma, é estruturalmente catastrofista.

    Criado em 1999 pelo Observatório Nacional de Saúde do INSA em colaboração com o IPMA, o modelo do Índice ÍCARO assenta numa equação estatística simples: estima-se a diferença entre o número de óbitos esperados com o efeito do calor e o número médio de óbitos em condições meteorológicas normais, com base em séries temporais da temperatura máxima observada e prevista. A variável central do modelo é a chamada “sobrecarga térmica acumulada”, definida como o número de dias em que a temperatura máxima ultrapassa os 32ºC, ponderado pelo excesso registado acima desse limiar.

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    O modelo tem mérito técnico, e foi pioneiro nos sistemas de vigilância meteorológica com implicações em saúde pública. Contudo, como já reconheciam os próprios autores no artigo fundador publicado em 1999 na Revista Portuguesa de Saúde Pública, o sistema foi deliberadamente concebido com uma orientação catastrofista: privilegia a sensibilidade (detectar todos os sinais de risco possíveis) à custa da especificidade (evitar alarmes falsos).

    Como se lê nesse artigo: “Em termos de especificidade, isto é, na sua capacidade para evitar falsos alarmes, [o modelo] está longe de ser perfeito. Mas, claramente, num sistema de alerta não pode sacrificar-se a sensibilidade à especificidade. A ocorrência de falsos alarmes num sistema de alerta não é um problema grave desde que o sistema denote uma muito boa sensibilidade”. E acrescentam que o índice ÍCARO “parece mostrar uma boa capacidade de detectar todas as ondas de calor de que temos conhecimento e avaliar a severidade do seu impacto na mortalidade”.

    Na prática, isto significa que o modelo está concebido para soar o alarme perante qualquer sequência de dias muito quentes, mesmo que não exista uma correspondência real em termos de aumento da mortalidade. Acresce que os valores mais recentes do índice se baseiam exclusivamente em previsões meteorológicas a três dias, sem cruzamento com dados demográficos, clínicos, alimentares ou epidemiológicos. Como se tem constatado, nem sequer ajusta as suas previsões em função da evolução real da mortalidade recente.

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    Em todo o caso, o resultado é um índice com uma tendência demasiado alarmista do ponto de vista estrutural, que esta semana atinge o paroxismo ao prever valores superiores ao dobro da mortalidade de base, durante três dias consecutivos. O PÁGINA UM contactou esta tarde o presidente do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, Fernando de Almeida, colocando questões sobre a validação empírica do modelo, possíveis actualizações ou recalibrações feitas nos últimos anos, os limiares que justificam a emissão de alertas, e as medidas concretas que estão a ser tomadas com base nestas previsões. Até ao fecho desta edição, não foi recebida qualquer resposta.

    Apesar disso, o Índice ÍCARO continua a ser utilizado como fundamento para activar planos de contingência da Protecção Civil, emitir orientações clínicas e influenciar decisões políticas e mediáticas. Ainda no final desta tarde, a Direcção-Geral da Saúde emitiu um comunicado sobre medidas preventivas.

    A comunicação de valores como 1,57 — que, num quadro meramente estatístico, implica quase 750 mortes num só dia — não pode ser feita de forma acrítica nem sem escrutínio técnico. Quando o modelo falha sistematicamente e de forma ampla, e ainda assim continua a ser divulgado sem qualquer contextualização crítica, o risco deixa de estar no calor extremo: passa a residir no próprio sistema de alerta.

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    Contactado pelo PÁGINA UM, Francisco Ferreira, professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e presidente da associação ZERO, sublinha que, embora não conheça em detalhe o funcionamento do Índice ÍCARO, “este tipo de modelos serve sobretudo como alerta prévio para se introduzirem medidas preventivas que evitem a mortalidade em excesso prevista”. Tal como sucede com os modelos de previsão da qualidade do ar, temática da qual é especialista, Francisco ferreira acrescenta que se “tratam de indicações de risco potencial que devem ser mitigadas ou atenuadas”.

    O problema, como mostram os números das previsões, é quando o risco previsto não existe, a sociedade é condicionada por alarmes sem substância. E quando existe mas se mostra demasiado alarmista, os políticos depois vêm cobrar um sucesso que nunca existiu.

  • Regulador acha normal emissão de ‘ménage à trois’ entre adolescentes no ‘Morangos com Açúcar’

    Regulador acha normal emissão de ‘ménage à trois’ entre adolescentes no ‘Morangos com Açúcar’

    A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) decidiu arquivar uma participação contra o canal Biggs, dedicado ao público juvenil, na sequência da emissão de um episódio da conhecida série juvenil Morangos com Açúcar, transmitido às 21h00 no passado dia 10 de Maio, que inclui uma cena sugestiva de um encontro sexual a três entre adolescentes.

    Agora em canal por cabo operado por uma empresa detida pela NOS e a empresa norte-americana AMC Networks, esta é um ‘reboot’ da série criada em 2003 na TVI, e que se prolongou até 2012, lançando actores como João Catarré, Benedita Pereira, Pedro Teixeira, Cláudia Vieira, Sara Matos, Lourenço Ortigão, Diogo Amaral, Gabriela Barros e Isaac Alfaiate, entre muitos outros.

    Cartaz do ‘reboot’ na Biggs da série ‘Morangos com Açúcar’.

    A deliberação sobre o polémico episódio de um ‘ménage à trois’, a que o PÁGINA UM teve acesso, aprovada por unanimidade no passado dia 16 de Julho, considera que não existem indícios de violação da Lei da Televisão, que estabelece limites à liberdade de programação no que diz respeito a conteúdos susceptíveis de influírem negativamente na formação da personalidade de crianças e adolescentes.

    A cena em causa, com uma duração total de 1 minuto e 38 segundos, distribuída por dois momentos no final do episódio, mostrava três adolescentes – dois rapazes e uma rapariga – numa cama, a beijarem-se alternadamente, a despirem-se parcialmente, com exibição dos troncos nus dos rapazes e das costas nuas da rapariga. A sequência integrava um enredo narrativo em que um casal de namorados convidava um terceiro jovem a juntar-se a eles, sendo mais tarde percebido tratar-se de uma alusão a um ménage à trois.

    A participação à ERC foi apresentada por uma espectadora, que manifestou indignação com o conteúdo transmitido às 21h00, criticando a exibição de “rebeldia injustificada” e “uso e abuso de sexo infantil”, e associando esse tipo de cenas a fenómenos como bullying, consumo de álcool e gravidezes na adolescência. A espectadora classificou o programa como um exemplo de conteúdos que poderiam ser imitados por crianças e adolescentes.

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    Em resposta, o canal Biggs, operado pela Dreamia – que também detém os canais Hollywood e Panda, entre outros na televisão por cabo –, defendeu que o programa está classificado como “12AP” – para maiores de 12 anos, com aconselhamento parental – e que o seu público-alvo são adolescentes dos 12 aos 18 anos, sustentando que, ao contrário do que se aplica à programação infantil, o conteúdo dirigido a adolescentes pode abordar temas como a sexualidade, desde que o seu tratamento seja adequado às diferentes fases.

    A empresa salientou que os conteúdos emitidos seguiam o Acordo de Classificação de Programas de Televisão, além de ter sido este subscrito pelas principais operadoras privadas e reconhecido pela ERC. O canal acrescenta ainda que “no contexto actual, os jovens têm acesso a uma panóplia de conteúdos audiovisuais, seja através das redes sociais e plataformas over-the-top (OTT), em que muitas vezes são confrontados com cenas de nudez, linguagem ofensiva, violência e representação de actos sexuais significativamente mais explícitos, frequentes e detalhados do que aqueles que se encontram em discussão”.

    Na deliberação, a ERC acompanha em grande parte os argumentos do canal, considerando que a cena não inclui nudez explícita nem representação de actos sexuais, surgindo como parte integrante da narrativa do episódio.

    Cena da temporada 1 da nova série da Biggs.

    O regulador, presidido por Helena Sousa, concorda que “os conteúdos de natureza sexual fazem parte do quotidiano, e é pouco razoável esperar que os pré-adolescentes e adolescentes não tomem contacto com aspectos da sexualidade ou com a exibição da nudez no espaço mediático actual”.

    E conclui que a emissão das cenas implícitas de um ménage à trois entre adolescentes numa série juvenil “não são susceptíveis de influir de modo negativo na formação da personalidade de crianças e adolescentes, nem serão de difícil descodificação por parte do público-alvo do canal Biggs”, ou seja, espectadores entre os 12 e os 18 anos.

  • Moderna: o colapso de um Ícaro que tocou o sol pandémico

    Moderna: o colapso de um Ícaro que tocou o sol pandémico


    Durante os anos febris da pandemia, o mundo assistiu a um espectáculo farmacêutico de proporções inéditas. Como na antiga fábula de Ícaro, e aproveitando a ideia de que eram empresas beneméritas e salvadoras, diversas farmacêuticas alçaram voo tão alto que chegaram a roçar o sol — ou, mais propriamente, a embater na razão e na prudência, escudadas numa narrativa de urgência que legitimava tudo, até o inadmissível.

    Entre estas, a norte-americana Moderna destacou-se como símbolo maior da fortuna repentina, empoleirada sobre uma tecnologia experimental — o mRNA — promovida com ares de milagre científico e embalada por contratos estatais que dispensavam responsabilidades e multiplicavam os lucros.

    Os lucros foram, aliás, de uma obscenidade quase teológica. Em 2021 e 2022, sustentada quase exclusivamente pela vacina Spikevax, a Moderna arrecadou lucros de mais de 20,5 mil milhões de dólares, o equivalente a cerca de 18,6 mil milhões de euros — ou 6,7% do PIB português. Antes de 2021, a Moderna apresentava prejuízos sistemáticos.

    Este sucesso com um só produto — e a Moderna nem sequer foi a farmacêutica que mais vendeu vacinas contra a covid-19 — teve como base uma vacina que, apesar de alegadamente segura e eficaz, foi testada a correr, aprovada sob regimes excepcionais e vendida a governos com cláusulas de exclusão de indemnização em caso de efeitos adversos.

    Tratava-se, dizia-se, de uma emergência — e, como em todas as emergências, os que correm depressa e com bons contactos institucionais colhem primeiro. A Ciência — ou o que dela restava, ou pelo menos a parte que preserva os princípios da prudência — foi empurrada para segundo plano, dando lugar à logística, à política e ao marketing biomédico.

    O frenesim chegou também à bolsa. As acções da Moderna, cotadas no índice Nasdaq sob o irónico símbolo MRNA, que antes da pandemia valiam cerca de 25 dólares, atingiram o seu pico histórico a 10 de Setembro de 2021, quando chegaram aos 449,38 dólares — uma subida de cerca de 1.700% num ano e meio. Foi a glória absoluta, o zénite do voo de Ícaro.

    Mas desde então a queda tem sido vertiginosa. A 1 de Agosto de 2025, a cotação era de apenas 27,60 dólares — uma queda de 94% face ao pico —, levando a empresa a perder quase toda a valorização obtida durante a pandemia. A capitalização bolsista, que em 2021 superava os 180 mil milhões de dólares, ronda agora os 10,7 mil milhões. Um desmoronamento de proporções mitológicas.

    Com o fim do entusiasmo pelos reforços — e a crescente ocultação dos efeitos adversos —, as vendas decaíram. E os prejuízos da Moderna regressaram: 4,7 mil milhões de dólares em 2023 e quase 3,6 mil milhões no ano passado, acompanhados por queda de receitas e poucos sucessos noutras terapias de mRNA.

    Evolução da cotação da Moderna com indicação do máximo (449,38 dólares em 10 de Setembro de 2021) e cotação em 1 de Agosto de 2025 (27,60 dólares). Fonte: Google Finance.

    O tempo do marketing biomédico terminou com estrondo. A Moderna, que em tempos não sabia como gastar o dinheiro que entrava em catadupa — investindo em laboratórios, fábricas, campanhas, contratações —, tenta hoje salvar-se de um declínio que é estrutural. No segundo trimestre de 2025, a empresa anunciou receitas de apenas 142 milhões de dólares, uma queda de 41% face ao período homólogo, e um prejuízo ajustado de 2,13 dólares por acção — ainda assim, melhor que os 2,97 dólares de prejuízo esperados pelos analistas.

    Piores, contudo, são as expectativas para o futuro. James Mock, director financeiro da farmacêutica, procurou suavizar a notícia: parte significativa da receita será reconhecida no terceiro e quarto trimestres, disse. Haverá um pico no outono, sugeriu. Mas reconheceu que o impulso recente veio sobretudo dos reforços de primavera nos EUA e dos cortes de 800 milhões de dólares em custos — um sinal claro de emagrecimento forçado.

    Não por acaso, Stéphane Bancel, CEO da Moderna, anunciou na semana passada a dispensa de cerca de 10% da força laboral. A empresa, que no final de 2024 empregava 5.800 trabalhadores, terá menos de cinco mil até ao fim deste ano.

    Não se trata apenas de reduzir gordura: é uma amputação cauterizada. E, tal como nas narrativas mitológicas, depois do voo de glória vem a queda abrupta. Bancel justificou a decisão com a necessidade de “disciplinar financeiramente” a empresa e preparar o caminho até 2027. Certo é que as milagrosas vacinas de mRNA — outrora apresentadas como o futuro inevitável da Medicina — já não se vendem como dantes.

    O novo produto da empresa — a mRESVIA, dirigida ao vírus sincicial respiratório — está longe de fazer grande sucesso. Até a nova versão da vacina contra a COVID-19, a mNEXSPIKE, obteve apenas uma aprovação restrita: nos Estados Unidos, apenas para maiores de 65 anos ou pessoas com comorbilidades, como sucede com as vacinas sazonais contra a gripe ou a pneumonia. Nada que se aproxime do mercado universal que se quis impor durante a pandemia — com fins meramente mercantilistas.

    Perante este cenário, a Moderna volta-se para o futuro — ou melhor, para a promessa do futuro. Fala de vacinas combinadas, de terapias para doenças raras, de oncologia personalizada, de vírus latentes. Projecta investimentos, anuncia regulações em curso, convoca uma visão estratégica. Mas, por mais que se empunhem termos como “disrupção”, “inovação” e “resiliência”, os dados impõem um regresso à realidade: sem uma nova emergência sanitária (fabricada ou não), dificilmente se repetirá o contexto político, mediático e regulatório que permitiu os lucros faraónicos da era pandémica.

    A crise da Moderna é, pois, paradigmática. Mostra que a transição do modelo de vacina de emergência para o mercado endémico — isto é, concorrencial, previsível e regulado — é dolorosa para quem apenas aprendeu a prosperar com o tapete vermelho estendido pelos governos e pelo alarmismo mediático, assessorado por cientistas mercantilistas.

    Hoje, até os governos que outrora assinaram contratos multimilionários sem pestanejar — muitas vezes sob sigilo — mostram-se menos generosos. E os cidadãos, vacinados em série, começam a questionar se não foram enganados e usados por uma hipérbole institucionalizada.

    Na verdade, aquilo que está a suceder à Moderna não é apenas um estrondo económico: é simbólico. Representa a falência de um modelo que confundiu biotecnologia com salvação, urgência com imunidade, marketing com saúde pública. Representa o ocaso de uma época em que os CEOs das farmacêuticas eram tratados como visionários e não como gestores de interesses corporativos. Representa, em última instância, o regresso de Ícaro ao chão — com as asas derretidas pela luz crua do escrutínio.

    Por isso se impõe uma reflexão mais ampla. O episódio da Moderna deve ser lido não como uma simples travessia empresarial num ciclo de mercado, mas como uma lição civilizacional: de que a Ciência, quando subordinada à lógica do lucro e do pânico, torna-se uma caricatura de si própria; de que a Política Pública, quando abdica do escrutínio, alimenta monstros económicos de pés de barro; e de que o jornalismo, quando abdica do contraditório, ajuda a construir mitos que mais tarde se desfazem em silêncio.

    A Moderna foi, como tantas outras, uma das beneficiárias de uma era de excepções. Mas o seu colapso poderá significar que os tempos da prevenção, da proporcionalidade e da transparência estão de regresso. E com eles, o sol da racionalidade — algo a que as asas de cera não resistem.

  • Dois marcos em Julho: 595 donativos e 687.454 leituras

    Dois marcos em Julho: 595 donativos e 687.454 leituras


    Julho foi um mês marcante na história ainda curta, mas já intensa, do PÁGINA UM. Atingimos um novo recorde: 687.454 leituras, o que equivale a uma média superior a 22 mil visitas por dia. Um número que nos enche de alegria – e de responsabilidade. A cada leitura, a cada partilha, a cada comentário, confirmamos que este projecto faz sentido. Que vale a pena. Que há leitores atentos, exigentes e livres.

    Como sabem, não temos publicidade. Não temos patrocínios. Não temos “secções powered by”. E, ao contrário de muitos que se dizem independentes, nós somos verdadeiramente independentes – na origem, na prática e na essência. Essa liberdade absoluta tem um custo, e por isso optámos desde o início por um modelo de acesso aberto a todos, sem barreiras, sem subscrições obrigatórias, sem engodos. Qualquer pessoa pode ler o PÁGINA UM, seja ou não apoiante.

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    O nosso modelo assenta numa lógica de “willingness to pay” – ou seja, de pagar voluntariamente por algo que se considera valioso, mesmo quando esse algo é gratuito. É uma aposta na consciência e na liberdade de quem nos lê. Não impomos nada. Apenas mostramos que, se queremos manter um jornalismo sem amarras, precisamos de uma comunidade de leitores que o sustente com convicção.

    Temos, por isso, motivos para estar gratos. Quase seis centenas de pessoas a apoiar regularmente um jornal digital que recusa concessões, que recusa modas, que recusa a linguagem institucionalizada do politicamente correcto, é um pequeno milagre. Mas queremos mais. O nosso objectivo a curto prazo é alcançar os 1.000 apoiantes. Sabemos que é possível.

    Julho também foi importante porque algumas das nossas reportagens e investigações tiveram impacto real – nos leitores, nos protagonistas e, às vezes, até nas instituições. Mesmo que muitos dos outros órgãos de comunicação social continuem a ignorar ou a fingir que não existimos, os leitores sabem que existimos. E isso basta.

    Por enquanto, a redacção do PÁGINA UM é formada por duas pessoas apenas – eu e a Elisabete Tavares, com o apoio inestimável dos nossos colaboradores. Mas, com o crescimento da base de apoio, esperamos reforçar a equipa em breve. Há novidades a caminho.

    A todos os que estão connosco – diariamente ou pontualmente, com palavras ou com apoio financeiro –, o nosso sincero obrigado. Continuaremos, como sempre, a trabalhar com rigor, com liberdade e sem ideologia. Não podia ser de outra forma. Não há verdadeiro jornalismo de outra forma.

  • Na Rīgas Doms, uma hora entre tubos e eternidade

    Na Rīgas Doms, uma hora entre tubos e eternidade

    Deambular por Riga é um prazer de altos rendimentos: histórico, arquitectónico e sensorial, sobretudo no Verão — ou melhor, no Verão, porque no Inverno ignoro como seja —, quando a luz se estende até depois das 22 horas e os cafés ao ar livre vibram com línguas que, imagino, vêm de todos os cantos do mundo.

    Era isso que fazia — perambulava — pelas ruelas medievais e praças seculares desta cidade báltica, com um olhar ora absorto nas fachadas de inspiração germânica, ora atento aos movimentos do presente.

    Deparo-me, porém, junto à Catedral de Riga, com um concerto de música rock — vejo, mais tarde, tratar-se de um festival organizado por uma empresa local, que decidiu este ano abrir o espectáculo à cidade.

    Saio dali pouco depois de ter despejado, inadvertidamente, parte de uma garrafa de água com gás sobre a minha t-shirt, e começo a contornar a imponente Rīgas Doms. Dou então por mim a menos de meia hora do início de um recital de órgão.

    O dilema era real: valeria a pena interromper a caminhada para “gastar” uma hora dentro de uma catedral — ainda que grandiosa — a ouvir música que não saberei decifrar tecnicamente? Havia ainda o detalhe do bilhete: vinte euros. Aqui, ao contrário de certas instituições culturais portuguesas, que estendem credenciais aos jornalistas como quem oferece rebuçados, não se fazem favores de última hora.

    A ponderação económica impôs-se: de um lado, a continuidade da exploração urbana — gratuita, imprevisível, luminosa; do outro, a hipótese única de assistir a um recital integrado no 38.º Festival Internacional de Música de Órgão de Riga, com um instrumento histórico e uma intérprete consagrada. Qual o custo de oportunidade? A pergunta que qualquer economista faria. E a resposta pareceu-me quase óbvia: seria um desperdício não arriscar.

    A compra do bilhete foi, assim, uma decisão racional — e, como haveria de constatar, também sensorialmente acertada. Primeiro, porque o instrumento em causa era o órgão construído em 1884 pela célebre firma E. F. Walcker & Co., tido como o mais inovador do mundo à data da sua inauguração.

    Não sendo um entendido — muito pelo contrário —, as suas características impressionam: quatro manuais, 124 registos, 17 combinações de registos, um pedal de crescendo, 26 foles e um total de 6718 tubos. Um colosso romântico. Descubro online que mede 22 metros de altura, por 11 de largura e 10 de profundidade — e a sua imponência, mas também beleza, são de uma teatralidade solene, como se a própria arquitectura do som ali ganhasse corpo de pedra e fôlego divino.

    A sua história está ainda ligada ao próprio Franz Liszt, que terá composto o arranjo coral “Nun danket alle Gott” — “Agora agradecemos todos a Deus” — para a inauguração do instrumento.

    E por falar em Liszt, ele era um dos três compositores do programa da noite. Os outros dois: Felix Mendelssohn e Louis Vierne. Mendelssohn, prodígio alemão, foi dos primeiros a redescobrir e divulgar a obra de Bach, escrevendo música de apurada clareza e fervor protestante.

    Liszt, o virtuoso húngaro, criador do poema sinfónico, exprime na sua música para órgão um dramatismo quase litúrgico. Vierne, francês, organista titular da Notre-Dame de Paris, compôs algumas das obras mais densas, visionárias e comoventes do repertório organístico do século XX — mesmo sendo cego desde a infância.

    Quanto à intérprete, Liene Andreta Kalnciema, é natural da Letónia, mas a sua carreira está também estabelecida na Alemanha. Laureada em diversos concursos internacionais — entre eles o Petr Eben, na República Checa, e o Wadden Sea, na Dinamarca —, percorreu já salas e igrejas da Suécia, Canadá, Espanha, Bélgica e Polónia.

    No folheto não constava qualquer passagem por Portugal, apesar de termos também órgãos belíssimos, como os da Igreja de São Vicente de Fora e da Basílica da Estrela, em Lisboa. Desde 2006, é presença regular nas actividades musicais da Catedral de Riga.

    E nesta noite, embora uma pequena câmara permitisse aos espectadores acompanhar, num ecrã discreto, os movimentos firmes e silenciosos de Liene Andreta Kalnciema — mãos ágeis, pés exactos, gestos contidos —, a experiência manteve-se profundamente envolta num mistério acústico. Porque, ainda que se vislumbre a intérprete por vários pequenos ecrãs distribuídos pela nave da catedral, a música não se entrega ao olhar: impõe-se pelo espaço, pelo eco, pela vibração.

    Em todo o caso, para um neófito como eu, as imagens revelavam também algo de insólito: ao lado da organista, surgia, quase imóvel mas vigilante — embora por vezes se movesse de um lado para o outro com agilidade —, uma figura auxiliar. Uma espécie de segundo cérebro e terceiro braço, cuja função não se limitava a virar páginas, mas incluía mudar registos, accionar combinações, antecipar intenções. A música, percebemos então, é ali fruto de uma simbiose silenciosa.

    O órgão, por vezes, parece um murmúrio subterrâneo de catedrais soterradas; noutras, um exército de trombetas celestes em alvorada litúrgica; e, ainda noutros instantes, assemelha-se ao resfolegar de um titã adormecido, prestes a erguer-se em colunas de som. Escutá-lo foi como assistir a um ritual antigo, em que a matéria sonora, mais do que compreendida, é sentida com o corpo inteiro.

    Houve momentos em que o som parecia brotar do subsolo da catedral, como se cada tubo fosse uma raiz a conduzir o espírito para dentro da terra; noutros, o som erguia-se como cúpula, abraçando a nave e elevando os ouvintes até zonas sublimes da emoção. Para quem não é especialista — como é o meu caso —, valeu a experiência pela sensação de tempo suspenso e de contemplação. Não é todos os dias que se escutam, de uma só vez, três gigantes do romantismo europeu em diálogo íntimo com uma catedral de pedra e eco.

    E se a dúvida inicial era entre continuar a deambular ao ar livre ou ceder à sedução de uma hora sob um tecto sacro, a resposta veio em forma de recompensa estética. Saí da catedral com as pernas descansadas, sim, mas sobretudo com o espírito mais pleno. O preço do bilhete, afinal, foi barato para o que se ganhou: beleza, grandeza e silêncio — esse silêncio precioso depois do último acorde, quando ninguém ousa aplaudir por alguns segundos, como se o tempo, enfim, tivesse de pedir licença para voltar a avançar.

    Por vezes, vale a pena entrar para dentro das coisas. Mesmo em Riga. Mesmo com sol.

    Nota final: 4 em 5.

  • Polígrafo oferece secções de ‘verificação de factos’ a quem pagar

    Polígrafo oferece secções de ‘verificação de factos’ a quem pagar


    É comum dizer-se que todos têm um preço. No jornalismo, esse preço raramente se traduz num envelope recheado ou num jantar de gala: surge, mais frequentemente, sob formas subtis — uma parceria, um patrocínio, ou a criação generosa de uma secção temática. Desde que haja dinheiro, tudo se justifica. E é isso mesmo que agora se começa a ‘verificar’ com o principal verificador de factos português: o Polígrafo.

    Criado em 2018 como órgão de comunicação social vocacionado para o fact checking — e que soube aproveitar a pandemia e a cruzada contra a desinformação para engordar as suas contas —, o Polígrafo acaba de abrir uma nova frente editorial, desta vez dedicada ao futebol. E porquê agora? Por amor ao desporto-rei? Nada disso. Por amor ao dinheiro. Concretamente, ao dinheiro da Bem Operations Limited, uma empresa de apostas desportivas e jogos de fortuna e azar registada em Malta, e que em Portugal sob a marca Betclic.

    Fernando Esteves, director do Polígrafo e gerente da Inevitável e Fundamental: a arte de comercialização do fact checking.

    Desde esta semana, através de uma “parceira exclusiva”, o principal verificador de facto em Portugal criou o Polígrafo Futebol, fruto declarado de uma parceria comercial. Confrontado com questões do PÁGINA UM, o director do Polígrafo e gerente da empresa Inevitável e Fundamental, Fernando Esteves, recusou esclarecer os termos da parceria com a Betclic, incluindo os montantes envolvidos.

    Certo é que numa consulta realizada esta tarde, entre os 25 conteúdos mais recentes de fact checking assinados por jornalistas do Polígrafo, seis (cerca de 25%) incidem sobre futebol, com destaque para o rescaldo da Supertaça.

    Aquilo que até há poucos dias era um interesse marginal por declarações duvidosas no universo futebolístico converteu-se subitamente num zelo factual sobre jogadores, clubes, árbitros e boatos de balneário. Não porque a verdade desportiva se tenha tornado mais nobre, mas porque a Betclic decidiu abrir os cordões à bolsa.

    Parceria comercial entre a empresa de Malta e o Polígrafo foi anunciada esta semana, mas é apresentada como uma nova secção de futebol “Powered by Betclic”.

    Apresentado com entusiasmo como um “projecto pioneiro” — aliás, “o primeiro no Mundo” —, o Polígrafo Futebol visa agora verificar rumores, exageros e inverdades que circulam nas redes sociais sobre futebol. Em tudo semelhante à verificação de factos na política ou na economia, não fora a inovação — ou melhor dizendo, a ilegalidade — residir no facto de a Lei da Publicidade e a Lei de Imprensa não permitirem que uma entidade pública ou privada, especialmente quando opera no sector em causa, patrocine conteúdos editoriais. A criação de secções editoriais motivadas por contratos comerciais representa, em si, uma forma de dependência e condicionamento editorial.

    Além da já preocupante promiscuidade entre jornalismo e financiamento, a forma como o Polígrafo apresenta esta nova secção levanta fundadas dúvidas legais. Em vez de assumir frontalmente o patrocínio, optou também por mascará-lo através da fórmula ambígua “Powered by Betclic”, que surge na página agregadora da secção. Herdada do jargão tecnológico, esta expressão não permite ao leitor perceber sequer que os conteúdos ali publicados são, em última análise, financiados por uma casa de apostas — e muito menos que os mesmos decorrem de uma parceria comercial.

    Mais grave: os artigos da secção Polígrafo Futebol — assinados por jornalistas e com aparência formal de conteúdos editoriais semelhantes aos outros fact checkings— não contêm qualquer menção à Betclic, embora os leitores comecem a ser bombardeados com publicidade dinâmica da empresa. O leitor comum não tem forma de saber que a peça que lê resulta de uma parceria paga, mas é exposto, sem aviso, a anúncios da marca patrocinadora.

    selective focus photography of Pinocchio puppet

    Estamos, pois, perante um caso claro de publicidade encapotada, violando não apenas a Lei da Publicidade como também o Estatuto do Jornalista, que proíbe os jornalistas de colaborarem em acções de marketing ou de subscreverem conteúdos que decorrem de contratos comerciais celebrados pelos seus empregadores. Qualquer jornalista está obrigado a recusar tarefas que comprometam a sua independência — e difícil será imaginar tarefa mais comprometedora do que escrever sobre futebol sob a égide de uma empresa cujo negócio depende da emoção, do rumor e do erro.

    Quando confrontada com este caso, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), presidida por Helena Sousa, reagiu com uma fuga burocrática: “não se pronuncia sobre casos concretos sem que tenha sido realizada a respectiva análise”. O problema é que essas análises costumam tardar — ou simplesmente não ocorrem. O regulador tem o hábito, cada vez mais enraizado, de não ver o que não quer ver, sobretudo quando os visados pertencem ao sistema mediático.

    Este novo caso de promiscuidade entre imprensa e financiadores públicos ou privados mina ainda mais os alicerces da independência editorial. A prática de criar secções à medida do patrocinador não é inédita — o jornal Público mantém, por exemplo, a secção de ambiente Azul, financiada por entidades públicas — mas é a primeira vez que um órgão dedicado à verificação de factos assume, de forma tão explícita, a criação de uma secção a pedido de uma casa de apostas. E, aliás, aparenta não ficar por aqui.

    Helena Sousa, presidente da ERC: um regulador que tudo anda a permitir para descrédito do jornalismo.

    Já numa fase final da redacção deste artigo, o Polígrafo anunciou esta tarde mais uma secção temática — agora dedicada ao cancro. A razão? Uma parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian. Estará, porventura, o jornalismo de verificação a tornar-se num balcão temático ao serviço de patrocinadores?

    Se amanhã a Pfizer, a Sanofi, a MSD, a AstraZeneca ou qualquer outro gigante farmacêutico decidir propor (e pagar) ao Polígrafo uma secção sobre medicamentos, “powered by Pharma”, é seguro presumir que será apenas a Ciência a garantir que todos os fármacos são eficazes, seguros e sem efeitos secundários.

    Ou se for a Nestlé, a Danone, a PepsiCo ou a Unilever a sugerir uma rubrica sobre alimentação, “powered by Alimentação Saudável”, será com entusiasmo nutricional que o Polígrafo verificará que os cereais açucarados e aditivados fortalecem os ossos, os refrigerantes com gás prolongam a esperança de vida e os caldos Knorr são melhores do que as ervas aromáticas.

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    E se um dia a Liga Portuguesa de Criadores de Galináceos desejar patrocinar uma secção sobre bem-estar animal, “powered by Frangos Felizes”, o Polígrafo não hesitará em assegurar, no limite, que os pintainhos passam férias no Algarve com ar condicionado quando o tempo estiver demasiado quente para viverem felizes ao ar livre.

    No limite, em tese, e ao invés, poderá existir uma empresa ou grupo de um determinado sector económico que imponha uma cláusula de exclusão temática, isto é, uma garantia de que certos assuntos não serão objecto de verificação por parte do Polígrafo. A caixa de Pandora agora aberta tudo permite.

  • Negócio da desinformação: Polígrafo alimenta-se do Facebook e do TikTok para sacar receitas de 1,1 milhões em 2024

    Negócio da desinformação: Polígrafo alimenta-se do Facebook e do TikTok para sacar receitas de 1,1 milhões em 2024


    Nos antigos bestiários medievais, a hiena era representada como um animal dúbio, de comportamento ambíguo: dizia-se que emitia sons semelhantes a lamentos humanos enquanto devorava cadáveres. Essa imagem simbólica atravessou os séculos como metáfora da hipocrisia — o fingimento de compaixão no exacto momento em que se aproveita da desgraça alheia.

    No universo mediático português, o Polígrafo parece ajustar-se com rigor a essa alegoria: denuncia as redes sociais como promotoras de desinformação, mas sustenta-se — e prospera — graças ao financiamento directo das mesmas plataformas que critica.

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    Foto: D.R.

    Entre os muitos paradoxos do jornalismo contemporâneo, poucos atingem o nível de ironia — ou de hipocrisia — do percurso recente do Polígrafo. Nascido em Novembro de 2018 como sentinela do fact-checking — esse novo sacerdócio jornalístico —, o projecto liderado por Fernando Esteves, através da empresa Inevitável e Fundamental, Lda., cujo capital social de 5.000 euros pertence em 60% ao próprio e em 40% à Emerald Group, encontrou nas redes sociais não o inimigo a combater, mas o manancial que lhe garante, ano após ano, um robusto e improvável lucro.

    Se é certo que muitos apontam as plataformas digitais como a principal causa da crise financeira do jornalismo, pode-se dizer, para usar uma analogia da Natureza, que o Polígrafo é hoje o exemplo perfeito de quem chora por dentro, mas engorda por fora: uma hiena mediática que ladra à carcaça da desinformação enquanto devora, faminta, os subsídios das redes que se diz a propalarem. Se há quem se alegre com a desinformação, o Polígrafo está, paradoxalmente, na primeira fila.

    De facto, em 2024, a empresa Inevitável e Fundamental, detentora do Polígrafo e da plataforma Viral Check (dedicada à área da saúde), ultrapassou pela primeira vez a barreira simbólica do milhão de euros de facturação: 1.097.756 euros de receitas e 396.789 euros de lucro líquido, o que corresponde a uma margem de rentabilidade de 36,1% — absolutamente anómala para qualquer órgão de comunicação social, nacional ou internacional. E não se trata de um acaso estatístico: em 2023, já havia registado 242.786 euros de lucro, com uma margem ainda mais obscena de 40,9%.

    Além do jornal digital, o Polígrafo tem uma parceria semanal com a SIC, do grupo Impresa. / Foto: D.R.

    Em dois anos, com a produção de fact-checking, a empresa soma quase 640 mil euros de lucros líquidos. E não foi graças a assinantes, nem a publicidade tradicional, nem à criatividade editorial. Foi graças às redes sociais.

    Mais precisamente à gigante Meta (Facebook e Instagram) e, mais recentemente, ao TikTok, que nos últimos cinco anos financiaram directa e consistentemente o projecto. Em 2020, 87% das receitas da empresa vieram da Facebook Ireland Limited. Em 2021 e 2022, essa proporção subiu para 96%, tornando o Polígrafo, na prática, uma empresa de um só cliente. Em 2023, a dependência manteve-se elevada: 77% das receitas continuaram a vir da Meta Platforms. Já em 2024, apesar de alguma diversificação aparente, a dependência estrutural permanece: segundo dados do Portal da Transparência dos Media, 48% das receitas vieram da Meta, 22% da TikTok UK e 14% da SIC. Estas três entidades foram responsáveis por 84% do volume de negócios da empresa em 2024.

    Mas considerando os valores absolutos os financiamento do Facebook até aumentou no último ano, superando pela primeira vez a fasquia do meio milhão de euros. Se se juntar agora o montante do TikToK, em 2024 a empresa do Polígrafo recebeu dos gigantes tecnológicos mais de 768 mil euros.

    Evolução das receitas e lucros da Inevitável e Fundamental desde 2019 até 2024, identificando os principais clientes. Fonte: Portal da Transparência dos Media. / Análise: PÁGINA UM.

    Assim, entre 2020 e 2024, a Meta terá transferido para a Inevitável e Fundamental mais de 2,3 milhões de euros, entre contratos directos e financiamentos — um valor sem paralelo no ecossistema mediático português. Importa, aliás, recordar que, nos primeiros anos do projecto, antes da pandemia da covid-19 e sem o “sugar baby” do Facebook, os resultados da empresa eram modestos: em 2019, registou 230.855 euros de receitas e apenas 17.742 euros de lucro líquido — números que contrastam brutalmente com o desempenho posterior. Em cinco anos, as receitas da empresa de Fernando Esteves mais que quadruplicaram e os lucros cresceram 23 vezes.

    Num sector marcado em Portugal por uma crise financeira sem precedentes — com o colapso recente da Trust in News —, o Polígrafo é uma excepção estatística. Mas não pelo mérito do seu modelo editorial: é pelo conforto do seu modelo de negócio, sustentado em contratos com grandes plataformas tecnológicas. Além da Meta, TikTok e SIC, a restante facturação advém de entidades como a Fundação Calouste Gulbenkian e a European Fact-Checking Standards Network. Apesar de apregoar a transparência quanto ao financiamento, a empresa não divulga os montantes concretos nem os termos das parcerias. E até omite a verdade ao divulgar apenas o balanço patrimonial (activo, capital próprio e passivo), designando-o erradamente como demonstrações financeiras.

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    Foto: D.R.

    Ora, e isto fica mal num verificador de factos: as demonstrações financeiras principais incluem o Balanço Patrimonial, que mostra os activos, passivos e capitais próprios; a Demonstração de Resultados, que apresenta lucros, prejuízos, receitas e gastos; a Demonstração de Fluxos de Caixa, que detalha entradas e saídas de dinheiro por actividade; a Demonstração das Alterações no Capital Próprio, que regista as variações nos fundos próprios; e o Anexo, que fornece notas explicativas e complementares a todas as anteriores. São estes os documentos contabilísticos essenciais para credibilizar um fact-checker que, num sector em crise, multiplicou os lucros por 23 vezes com um investimento inicial de apenas 5.000 euros.

    Note-se que a margem de lucro de 36% alcançada pela empresa do Polígrafo é não só anormal, mas reveladora de um modelo assente mais em conveniências comerciais do que em jornalismo. Com baixos custos operacionais, salários reduzidos e uma elevada concentração de receitas em entidades que também são objecto de análise editorial, a independência e pluralidade estão comprometidas.

    Mesmo a Medialivre — detentora do Correio da Manhã, da CMTV e do Now —, considerada o grupo privado de comunicação social mais saudável em Portugal, registou em 2023 uma margem de lucro inferior a 6%. A TVI, que regressou aos lucros nesse ano, obteve apenas 0,8%. Os restantes grupos — descontando o já extinto Trust in News — enfrentam sérias dificuldades: a Impresa acumula perdas pesadas; o jornal Público perdeu 9,5 milhões de euros em apenas dois anos; e nem o Observador alguma vez registou lucro.

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    Foto: D.R.

    A nível internacional, o contraste também é flagrante. O New York Times, caso raro de sucesso global no jornalismo digital, apresenta margens líquidas entre 5% e 10%, com mais de 10 milhões de assinantes. O britânico Guardian Media Group sobrevive com prejuízos frequentes, sustentado por fundos fiduciários.

    E mesmo plataformas internacionais especializadas em fact-checking não operam com tal desafogo. Pelo contrário. Por exemplo, a congénere espanhola Maldita.es acumula prejuízos sucessivos: de mais de 95 mil euros em 2023 e de quase 152 mil em 2022 e de perto de 99 mil euros em 2021, não tendo ainda apresentado as contas do ano passado.

  • Incêndios: Protecção Civil ‘queima’ 722 mil euros em contratos jurídicos com ‘água no bico’

    Incêndios: Protecção Civil ‘queima’ 722 mil euros em contratos jurídicos com ‘água no bico’


    Enquanto os incêndios não dão tréguas e se apela a São Pedro por uma trégua meteorológica, a Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil (ANEPC) tem sido, por sua vez, generosa em “ajudinhas” à conhecida sociedade de advogados Sérvulo & Associados para assessoria jurídica em contratos de meios aéreos que dão para o torto.

    Na passada segunda-feira, caiu mais um contrato por ajuste directo — sem qualquer concurso — nas mãos da sociedade fundada pelo advogado Sérvulo Correia e onde pontifica, como um dos sócios principais, Rui Medeiros, ex-ministro da Modernização Administrativa do efémero Governo de Passos Coelho, em 2015. O valor do novo contrato, publicado no Portal BASE, ascende a 123 mil euros (com IVA incluído), e tem como objecto declarado a “aquisição de serviços jurídicos para apoio no âmbito de uma acção administrativa comum instaurada pela Heliportugal”.

    José Manuel Moura é presidente da ANEPC desde Janeiro deste ano.

    Contudo, a leitura do contrato revela um conteúdo muito mais vasto e específico do que a genérica descrição pública: o documento estipula uma panóplia de tarefas, desde o levantamento e análise de quatro acções arbitrais anteriores e de três processos administrativos ainda em curso entre a ANEPC e a Heliportugal; à análise das acções da empresa Everjets e da documentação relativa aos autos de desconsignação de peças aeronáuticas; passando pela avaliação técnica da documentação trocada entre as partes; até à elaboração de todas as peças processuais — incluindo contestação, reconvenção, réplica e alegações finais —, bem como a preparação das audiências, das testemunhas e da instrução do julgamento.

    Ou seja, a minúcia do contrato é tal que estipula sete categorias distintas de tarefas e prevê ainda a criação de uma “bolsa de 305 horas” para fazer face a alegadas necessidades futuras de contratação, que, por não estarem ainda concretizadas, permitirão eventuais prorrogações ou novos ajustes directos.

    Porém, apesar deste detalhe — que indicaria a existência de condições para lançar um concurso público ou, no mínimo, uma consulta prévia — a ANEPC invocou uma norma de excepção do Código dos Contratos Públicos (CCP) para justificar o ajuste directo. Esta norma permite a contratação directa apenas quando “a natureza das respectivas prestações, nomeadamente as inerentes a serviços de natureza intelectual, não permita a elaboração de especificações contratuais suficientemente precisas”.

    No entanto, como se verifica na cláusula segunda do contrato, essa suposta impossibilidade é desmentida pelo próprio documento, onde as tarefas são descritas em detalhe e os tempos de trabalho quantificados. Em suma, a prestação não só está objectivamente definida como também é mensurável.

    Um advogado especialista em contratação pública, que pediu anonimato por receio de represálias institucionais, disse ao PÁGINA UM que este “é um caso típico de torção do Direito à medida da prática administrativa”, salientando ainda que “a norma de excepção foi pensada para serviços genuinamente imprevisíveis — pareceres inovadores, estudos exploratórios, criações intelectuais livres —, pelo que, quando temos um contrato com bolsa de horas e sete blocos de tarefas jurídicas claramente especificadas, não há justificação para dispensar a concorrência.”

    Para além da fragilidade legal da norma invocada, acresce o facto de muitas das tarefas agora contratualizadas já constarem de contratos anteriores com a Sérvulo & Associados. Desde 2021, a ANEPC celebrou seis contratos por ajuste directo com esta sociedade num total que ultrapassa agora os 722 mil euros (com IVA). Os valores individuais variam entre 22 mil e 214 mil euros, estando pelo menos três desses contratos directamente ligados a processos arbitrais com a empresa Everjets. Um dos contratos, datado de Dezembro de 2024, refere-se à “conclusão” da “3.ª arbitragem Everjets”, o que levanta dúvidas sobre se se tratam de fases distintas de um único processo ou de adjudicações redundantes e sucessivas.

    Sérvulo Correia, quando recebeu uma condecoração em 2018, ao lado de Marcelo Rebelo de Sousa. Foto: Presidência da República.

    O caso da Everjets arrastou-se desde 2017 em tribunal arbitral, com acusações mútuas entre a empresa privada e a ANEPC por causa dos famigerados helicópteros Kamov. O acórdão do tribunal arbitral em 2022 concedeu à ANEPC, representada pela Sérvulo & Associados, o direito de ser indemnizada em apenas 2,5 milhões de euros por incumprimentos contratuais, mas também a ter de pagar à Everjects uma compensação de 140 mil euros por ter fechado, sem razão, em 2018, o hangar onde estavam os Kamov, expulsando os funcionários e pondo em causa a reputação da empresa.

    Contas feitas, como só em serviços da Sérvulo & Associados, a ANEPC pagou mais de 577 mil euros, significa que a indemnização ficou em menos de 1,8 milhões de euros. 

    O contrato agora assinado refere também expressamente a análise de quatro acções arbitrais anteriores, o que reforça a suspeita de que a sociedade Sérvulo & Associados poderá estar a ser remunerada mais de uma vez pela análise de documentação e procedimentos em acções executadas no passado.

    Este padrão de contratação directa, sistemática e reiterada com o mesmo escritório de advogados, não se limita ao caso da ANEPC. Têm vindo a generalizar-se em múltiplos organismos públicos, incluindo câmaras municipais, institutos públicos e direcções-gerais, contratações por ajuste directo de sociedades de advogados próximas de decisores políticos, quer por vínculos partidários, quer por relações pessoais com membros do Governo, autarcas ou altos quadros da administração.

    O subterfúgio jurídico é quase sempre o mesmo: invoca-se a suposta impossibilidade de definição objectiva do serviço jurídico, mesmo quando o contrato — como no caso presente — é exaustivamente descritivo e quantificado. Este expediente tem permitido escapar às regras de concorrência e abrir espaço para adjudicações por convite, em moldes juridicamente frágeis e eticamente questionáveis. Em muitos casos, nem sequer é possível apurar se os serviços foram efectivamente prestados, dado o carácter imaterial das prestações, a ausência de relatórios públicos e a opacidade dos resultados.

    Tudo isto se faz nas ‘barbas’ do Tribunal de Contas, cuja actuação tem sido, no melhor dos casos, burocraticamente conformista. O controlo prévio, quando existe, limita-se a verificar o cabimento orçamental e a legalidade formal do acto administrativo, mas raramente escrutina o fundamento substantivo da contratação nem a plausibilidade da norma invocada para contornar a concorrência pública.

    Assim, sobretudo para a contratação de sociedade de advogados, esta norma de excepção do CCP, criada para situações excepcionais, transformou-se num atalho administrativo com aparência legal, mas usado à margem do seu espírito original.

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    Este expediente tornou-se tão rotineiro que até o actual primeiro-ministro, Luís Montenegro, dele beneficiou. Em Janeiro de 2022, o Banco Português de Fomento contratou por ajuste directo a sociedade Sousa Pinheiro & Montenegro — da qual era sócio — por 100 mil euros, alegando igualmente a impossibilidade de definição objectiva do serviço. O PÁGINA UM tem pendente no Tribunal Administrativo de Lisboa uma intimação contra o Banco Português de Fomento para obter acesso a documentação que comprove a efectiva prestação de serviços (pareceres, relatórios, minutas, etc.) nesse contrato.

    Perante esta prática generalizada, a excepção transformou-se em regra, o direito em pretexto, e a transparência num véu de linguagem jurídica cuidadosamente redigida para encobrir favorecimentos. No Estado português, aparentemente nem São Pedro ajuda a apagar este tipo de incêndio.

  • Inquisição e redes sociais, ou a estupidez de Rui Moreira

    Inquisição e redes sociais, ou a estupidez de Rui Moreira


    Na pulsação apressada do mundo contemporâneo, onde os fluxos informativos são tão líquidos quanto voláteis, é tentador recorrer a imagens fortes para adquirir uma sensação de domínio explicativo. Rui Moreira, presidente da Câmara do Porto em fim de mandato — e putativo candidato a Presidente da República —, lançou num podcast do jornal Eco uma dessas imagens — poderosa, sim, mas também grosseiramente equívoca.

    Afirmou ele que “Portugal foi o último país a abolir a Inquisição e, portanto, vamos seguramente ser o último a abolir as redes sociais, que hoje são uma forma de inquisição”.

    a woman standing in front of a lighted cross

    Poder-se-ia dispensar o exagero retórico — e a falta de rigor sobre Portugal ter sido, ou não, o último país a extinguir a Inquisição —, não fosse o peso institucional e simbólico da figura que o proferiu. Mas já que a analogia foi feita, convém destroçá-la com o mesmo ou maior vigor com que foi propagada. Não porque as redes sociais sejam oásis de virtude — estão longe disso —, mas porque a comparação com a Inquisição não é apenas lamentavelmente desonesta: é historicamente ignorante, politicamente oportunista e, mais grave, intelectualmente preguiçosa.

    A Inquisição — essa sim — foi um sistema institucional de controlo dogmático, sustentado pelo poder eclesiástico e laico, com tribunais secretos, denúncias anónimas, censura oficial, tortura sancionada, autos-de-fé e penas de morte reais. Funcionou durante três séculos e servia os interesses conjugados do trono e do altar. Era uma máquina silenciosa e implacável de sufocar dissidência, pensamento herético, irreverência científica ou religiosa. As vítimas não escolhiam estar sob o seu escrutínio. Eram silenciadas, não amplificadas. Punidas, não ouvidas. Desaparecidas, não partilhadas.

    Comparar isto — este período sombrio da nossa História — às redes sociais é mais do que um ultraje: é, francamente, uma estupidez.

    As redes sociais, com todos os seus excessos e disfunções, são o oposto dessa lógica. São desordeiras, indomáveis, abertas, imprevisíveis — um espelho ampliado da democracia em estado bruto, com a cacofonia inevitável da liberdade. Permitem o insulto, sim — como qualquer taberna política sempre permitiu. Mas também permitem o contraditório imediato, a exposição de abusos, a mobilização cívica espontânea e a articulação de vozes que os media convencionais tantas vezes filtram ou ignoram.

    É precisamente isso que incomoda certos políticos e elites administrativas: não poderem controlar o discurso, como controlam ou influenciam — directa ou indirectamente — muitos jornais, rádios, televisões ou agências noticiosas. Antes era fácil: onde havia um director de informação, havia um jantar; onde havia um editorial corporativo, havia uma rede de cumplicidades que nem precisava de ser declarada. Nas redes sociais, o “director de informação” somos todos nós — com os nossos vícios, sim, mas também com a nossa insubmissão.

    E essa insubmissão — esse ruído, essa desordem incontrolável — tem sido, em não poucos casos, uma arma de libertação real. Quem não se recorda da Primavera Árabe, quando regimes autoritários do Norte de África foram desafiados e, nalguns casos, derrubados, graças à articulação de protestos através do Facebook e do Twitter?

    Foi pelas redes sociais que se viram, em tempo real, as praças ocupadas, os manifestantes reprimidos, as esperanças acesas por palavras partilhadas. No Irão, em 2009 e em 2022, quando as ruas eram interditadas e os jornalistas impedidos de reportar, foram vídeos de telemóvel — difundidos no Instagram ou Telegram — que mostraram ao mundo as violações dos direitos humanos.

    Em Hong Kong, em 2019, os jovens recorreram às redes para organizar protestos em tempo real, driblando a censura do Partido Comunista Chinês. Mesmo em democracias consolidadas, como os Estados Unidos, foi um vídeo filmado por um cidadão e viralizado no Twitter que denunciou o assassinato de George Floyd, mobilizando milhões contra o abuso policial.

    As redes sociais não são a nova censura. São, em muitos momentos históricos, o único canal de expressão onde o poder não chega primeiro. São desreguladas? Sim. São manipuláveis? Também. Mas são, sobretudo, incontroláveis — e é isso que as torna perigosas para quem se habituou a falar sem ser contestado.

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    Não duvido de que haja perseguições morais nas redes, indignações em fúria, cancelamentos momentâneos — por vezes histéricos ou orquestrados. Mas isso não faz das redes um novo Santo Ofício. E para problemas novos, criem-se instrumentos de Justiça; não mecanismos informais que silenciem vozes incómodas, incluindo as de jornalistas.

    As redes sociais serão sempre, em muitos casos, ferramentas espontâneas de denúncia popular que, embora imperfeitas, lançam luz sobre zonas anteriormente protegidas por silêncios convenientes. Quantos escândalos de abuso, corrupção ou hipocrisia política só se tornaram visíveis graças à pressão social do espaço digital? Quantos interesses instalados foram forçados a responder a perguntas que os jornalistas de microfone complacente nunca ousaram formular?

    O incómodo que certas figuras públicas sentem com as redes sociais tem menos a ver com as redes em si do que com a perda do seu monopólio sobre o discurso público. Durante décadas, bastava uma boa relação com um grupo de editores ou com um partido de poder para moldar narrativas, ocultar dissensões ou fabricar consensos. Hoje, esse controlo está fragmentado. A plebe tem voz — e não pede licença para falar. E isso assusta.

    Rui Moreira usa redes sociais para se promover, mas poucos lhe ligam: 13 horas depois de divulgar a sua conversa para a Eco contava apenas com 63 likes, dois comentários e quatro partilhas, Compreende-se porque não as aprecia.

    Seria intelectualmente honesto que Rui Moreira — homem que se diz culto, informado, com vivência do espaço público — reconhecesse que não é a “inquisitorialidade” das redes que o incomoda. Antes, é a impossibilidade de as domesticar. Aquilo que ele diz ser uma “forma de inquisição” é, afinal, uma forma de libertação — com os seus excessos naturais, mas também com virtudes inegáveis. Este é o custo da liberdade — e a liberdade, como sabemos desde os gregos antigos, implica ruído, risco e conflito.

    Mas se os políticos querem abolir as redes sociais, sejam coerentes: comecem por fechar as suas contas institucionais, cancelar as campanhas digitais, recusar os likes e os follows. Mas não venham depois lamentar que ninguém os ouve, porque — gostem ou não — hoje o espaço público já não se limita aos salões de poder nem às colunas de opinião dos jornais amigos. O poder vive — e ferve — nas redes. E é precisamente aí que os cidadãos, com os seus defeitos e contradições, recuperaram uma fatia da soberania que lhes era negada. E a isto chama-se amadurecimento da democracia — acabar com as redes sociais seria apodrecer a democracia.