Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Froes, o pneumologista pornógrafo

    Froes, o pneumologista pornógrafo


    A pornografia, na sua acepção literal, é a mercantilização despudorada do corpo, reduzido a mercadoria e instrumento de prazer alheio, sem pudor nem compromisso com outra coisa senão o gozo imediato de quem consome e o lucro de quem fornece. Mas o termo, na sua dimensão figurada, vai muito além da carne exposta. Há pornografias de várias ordens: intelectual, científica, mediática, política. Sempre que alguém vende o seu saber — ou o simulacro dele —, a sua influência, a sua credibilidade, ou mesmo a sua alma, com o único fito de alimentar interesses alheios e lucrar, está-se perante pornografia. A moeda de troca já não é a nudez, mas a rendição ética.

    É dessa pornografia figurada que falo. Da pornografia científica que se vende ao melhor pagador, travestida de credibilidade académica, polida com currículos e adornada com cargos institucionais. Da pornografia mediática que ocupa colunas e microfones, não para esclarecer, mas para seduzir, amedrontar ou moldar a opinião pública conforme a cartilha dos patrocinadores. E é aqui que entra, inevitavelmente, o nome do pneumologista Filipe Froes.

    Filipe Froes

    Froes é um caso de escola da promiscuidade na Medicina portuguesa. E uso o termo “promiscuidade” no seu sentido mais técnico: não o da devassidão carnal, mas o da ausência de pudor em cruzar fronteiras e confundir interesses. Não é homem de fidelidades exclusivas. Não se confina a um patrocinador: todas as farmacêuticas lhe servem. Com todas tem conflitos de interesse; de todas recolhe proveito. E quando fala — e fala muito, sobretudo desde a pandemia da COVID-19 — fá-lo proporcionalmente ao seu “salário” extra-médico, somado ao vencimento do Serviço Nacional de Saúde.

    Um olhar sobre os registos de transparência das próprias farmacêuticas, compilados pelo PÁGINA UM, mostra que só este ano já arrecadou 31.550 euros — cerca de 4.500 euros mensais — pagos por laboratórios, aos quais se soma o ordenado como médico hospitalar.

    Pode parecer muito, mas é pouco: em Agosto de 2023 fiz um levantamento no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed e, oficialmente, Froes contava com 324 prestações de serviços ou apoios de farmacêuticas que lhe valeram 453.635,37 euros. Agora, já ultrapassou há muito o meio milhão.

    woman in black jacket holding white paper

    Este é o mesmo Froes que nunca revela — e que a imprensa raramente pergunta — com quem trabalha, quanto recebe e que interesses defende. É o mesmo que, em Agosto de 2025, surge novamente nos noticiários a falar sobre a COVID-19, ressuscitando um dos capítulos mais negros da nossa contemporaneidade. Não pela doença em si, mas pela forma como foi gerida: com medo, com medidas erráticas, com a política a submeter a ciência e com a ciência a submeter-se à política.

    Foi um tempo em que as fronteiras entre recomendação médica e marketing corporativo se dissolveram, em que a comunicação em saúde deixou de ser um serviço público para se tornar um espectáculo de manipulação.

    Mesmo em 2025, quando as terapias genéticas contra a COVID-19 caem em desuso e finalmente a investigação independente começa a assumir que foi um erro injectar em massa adultos saudáveis com menos de 60 anos — e um erro ainda maior fazê-lo em jovens —, Froes continua como consultor de uma farmacêutica espanhola, a Hipra, para uma vacina contra a doença. Uma vacina que já chega fora de tempo, como aquelas agendas que, vendidas em Agosto, são quase puro desperdício, salvo para quem ainda lucra com a sua impressão.

    Filipe Froes ‘registou-se’ este ano como consultor da Hipra que somente em 2023 conseguiu aprovação da vacina contra a covid-19… e que precisa de vender doses… em 2025.

    O problema maior não está apenas nos conflitos de interesse; está no uso que Froes sabe fazer de uma imprensa dócil, composta por jornalistas que não sabem ou não querem saber. Num país onde morrem, todos os dias, cerca de 15 pessoas de pneumonia, as manchetes de hoje deram eco à “notícia” de que 38 pessoas morreram com COVID-19 nos primeiros 10 dias de Agosto. A matemática é, porém, simples: menos de quatro por dia. Seria desejável que ninguém morresse, mas 38 num universo de mais de 3.500 óbitos nesse período representa 1,1% do total. Há doenças muito mais letais e ignoradas.

    Aliás, ironicamente, hoje, um artigo científico publicado na BMC Pulmonary Medicine, tendo Froes como co-autor, destaca a mortalidade e o perfil dos internados de uma doença bem caracterizada e muito mais letal em Portugal: a pneumonia, que resulta em mais de 50 mil internamentos por ano e uma taxa de mortalidade de 22,5%. Froes sabe disso, mas prefere continuar a surfar a onda do negócio da COVID-19.

    Pior ainda: não há qualquer agravamento anómalo da COVID-19 nesta época do ano. Pelo contrário, excluindo o ano inaugural de 2020 — em que o país viveu confinado e quase sem ir à praia no Verão —, a mortalidade por COVID-19 nos primeiros 10 dias de Agosto de 2025 é a mais baixa de sempre. Em 2021, já com vacinação em curso, morreram 121 pessoas; em 2022, foram 98; em 2023, 51; e no ano passado, 50. Este ano, 38. Os números não mentem, mas são tratados como se mentissem: ignorados, manipulados ou apresentados sem contexto.

    Óbitos atribuídos à covid-19 no período de 1 a 10 de Agosto para os anos de 2020 a 2025. Fonte. ACSS.

    O objectivo é transparente para quem não vive anestesiado: Setembro aproxima-se, e com ele o início da estação das campanhas de vacinação. Há que criar ambiente, cultivar receios, manter vivo o espectro de uma doença que encheu contas bancárias e agendas.

    Será mais uma dose de reforço para “proteger os vulneráveis” — leia-se, mais uns milhões para as farmacêuticas, mais uns milhares para quem as serve na praça pública. A pornografia da COVID-19 não é feita de imagens explícitas, mas de gráficos truncados, declarações alarmistas e uma luxúria pelo palco mediático que se mede em euros.

    E assim, a pornografia científica continua. Com actores pagos, enredos repetitivos, figurantes crédulos e uma audiência enganada. Froes é apenas um dos protagonistas. Mas, na pobreza ética da nossa saúde pública e na indigência crítica do nosso jornalismo, basta um protagonista para comandar a encenação.

  • A calúnia, ou como as hienas, medrosas por natureza, se agigantam em grupo

    A calúnia, ou como as hienas, medrosas por natureza, se agigantam em grupo


    A ‘coisa’ faz-se de forma tão concertada e com tal má-fé que nem se disfarça. Em pouco mais de uma semana, depois de termos revelado que um juiz quis saber como passo os tempos livres e que um pivot desvairado da CNN Portugal pediu ao Ministério Público o encerramento do PÁGINA UM (e a ERC, pressurosa, abriu-me um processo), continuámos a fazer aquilo que apenas sabemos fazer: revelar o que a outra imprensa não revela.

    Foi assim que, na semana passada, voltámos a um tema que causa urticária a certos médicos e influencers sanitários (com ligações pouco recomendáveis): desmontei um ignóbil artigo (pseudo)científico de Filipe Froes na Acta Medica (revista científica da Ordem dos Médicos) e expus um estudo exaustivo de John Ioannidis que demonstra como, afinal, em três anos, as vacinas contra a covid-19 salvaram cerca de 12 milhões de pessoas a menos do que o estimado, para um único ano, por um modelo financiado pela Fundação Gates.

    brown hyena

    Era previsível receber respostas discordantes. O que veio, porém, foi um desfile de ataques pessoais, rótulos fáceis e “argumentos” que dispensam qualquer argumentação. Por exemplo, o enfermeiro Nuno André Macedo, candidato do Bloco de Esquerda e do Livre à Assembleia Municipal do Seixal, resolveu desenterrar um artigo meu de Outubro de 2023 sobre a campanha de marketing das farmacêuticas, com apoio da imprensa, para convencer o Estado a imunizar todos os recém-nascidos com um novo anticorpo monoclonal. Acompanhou-o de um printscreen (sem ligação) e desta pérola:

    Os chalupinhas são perigosos mas divertidos. Dizer que o VSR é inócuo quando é a maior causa de internamento em pediatria, de UCI pediátrica, e das maiores nos seniores, é mesmo para rir de tão ignorantes que são. O NIRSEVIMAB não é o primeiro anticorpo contra o VSR.

    O ataque é gratuito e reles — e eu ainda pensava que na esquerda havia uma certa ética, mas isso deve ser coisa de antanho —, mas também é mentiroso. Em parte alguma escrevi que o vírus sincicial respiratório é inócuo. Pelo contrário, afirmei que é “geralmente benigno, excepto em prematuros ou recém-nascidos com problemas respiratórios e cardíacos”, e que “não existe registo, em Portugal, de qualquer morte tendo o VSR como causa”. Também não disse que o niservimab é o primeiro anticorpo monoclonal; mencionei o palivizumab, administrado apenas a bebés vulneráveis e cuja eficácia é contestada por diversos estudos.

    Pegue-se num texto de Outubro de 2023, descontextualize-se e minta-se mesmo sobre o seu conteúdo. Chame-se ‘chalupa’ e ‘ignorante’ ao visado e consegue-se, mesmo assim, ser-se candidato a presidente da Assembleia Municipal do Seixal pelo Bloco de Esquerda e Livre nas próximas autárquicas.

    Mas que importa a verdade a quem nem honra a ideologia que apregoa? No habitual efeito de rebanho, atrás de uma hiena surge sempre outra. Apareceu então o influencer Luís Ribeiro, com carteira de jornalista, a ecoar as mentiras do Macedo, acrescentando insinuações sobre a minha higiene e acusando-me de ser “odiento”. Seguiu-se, na habitual procissão, uma cronista do Público — XXX Garcia —, que também não resistiu a lançar referências paternalistas e pouco abonatórias. Os chacais juntam-se sempre quando pressentem sangue, ainda que a “caça” seja apenas a verdade inconveniente.

    Pode dizer-se que estes episódios não passam de patetices. Mas de patetice em patetice, têm um propósito pernicioso: estes influencers — porventura alinhados ou contratados — recorrem à mentira para, em momentos-chave, tentar descredibilizar quem cria rupturas no status quo. Não é coincidência que, precisamente hoje, o LinkedIn tenha decidido censurar a divulgação da notícia sobre o estudo de Ioannidis, certamente por o post ter sido ‘metralhado’ de denúncias. As hienas e os chacais, medrosos por natureza, agigantam-se em grupo.

    O já desusado “chalupa” e a sua derivação “chalupice” continuam, em 2025, e em Portugal, tristemente vivos em certas cliques como táctica de ataque. É a estratégia mais cómoda: se não se quer — ou não se consegue — discutir o mérito das questões, chama-se um nome feio, fecha-se a caixa de comentários e passa-se ao próximo tema.

    Depois de fazer fretes na revista Visão, identificados até pela ERC, o jornalista Luís Ribeiro entretém-se a fazer piadas sobre o suposto ódio dos outros e da sua higiene. Ou seja, em vez de jornalismo, faz agora ‘trollismo’.

    Apesar de tudo, é fascinante observar como a Medicina e o mundo das farmacêuticas continuam a provocar tanta baixeza. E o problema não é apenas económico: é conceptual. O debate sobre Saúde Pública foi reduzido a um simplismo clínico e hospitalocêntrico, ignorando princípios básicos da epidemiologia, da saúde populacional e, sobretudo, da gestão racional de recursos. A ideia de que se pode administrar, a torto e a direito, determinados fármacos sem aplicar o princípio da precaução — tratando seres humanos como gado veterinário — é não só insustentável como perigosa.

    Pior ainda é tentar fazer crer que questionar terapias génicas ou a universalização de anticorpos monoclonais em pessoas saudáveis equivale a ser “anti-vacinas”. Ao contrário das vacinas, que induzem imunidade activa e memória imunológica, estes fármacos oferecem apenas imunidade passiva e temporária, com o risco acrescido de criar gerações menos preparadas para enfrentar agentes patogénicos na idade adulta, quando certas infecções podem ser mais graves.

    Este raciocínio raramente encontra espaço no debate mediático. A imprensa mainstream, sequestrada economicamente por farmacêuticas e influencers sanitários, evita o incómodo de confrontar interesses, contratos, custos e eficácia real. Mais fácil é gritar “chalupa” e encerrar a conversa.

    Em 2025, se houver ‘denúcias’ em alcateia, o LinkedIn ainda censura conteúdos de jornalistas que se baseiam exclusivamente em artigos científicos, neste caso um da autoria do mais reputado epidemiologista mundial, John Ioannidis.

    E é precisamente aí que a minha crítica incomoda: não aceito pacotes fechados de “verdades” impostas pelo marketing farmacêutico ou pela preguiça intelectual de muitos profissionais e comentadores. Questionar é uma obrigação. Recusar a aplicação de tratamentos veterinários a seres humanos é, mais do que bom senso, uma questão de responsabilidade.

    Se estes ataques de carácter servirem para que alguns leitores percebam que a discussão sobre Saúde Pública não pode ser sequestrada por quem a reduz a protocolos clínicos e slogans publicitários, então já terão valido a pena. Mas convém que todos entendam: chamar nomes não muda a realidade nem apaga os números. E os números, infelizmente para alguns, continuam a mostrar que dar anticorpos caros a todos os bebés para chegar exactamente ao mesmo número de mortes — zero —, para gáudio dos accionistas e colaboradores das farmacêuticas, não é Ciência, nem boa Medicina. É marketing.

  • Mais de 41 mil falsos alarmes de incêndios rurais na última década

    Mais de 41 mil falsos alarmes de incêndios rurais na última década

    Nos últimos dez anos, mais de 41 mil alertas de incêndios florestais e agrícolas acabaram por não passar de falsos alarmes, segundo dados do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) a que o PÁGINA UM teve acesso. Estes registos representam mais de 40% do total de chamadas relacionadas com incêndios rurais, um fenómeno persistente que, ano após ano, mobiliza meios humanos e materiais para situações que afinal não existem.

    Só este ano, até às 18h30 de hoje, o ICNF já contabiliza 2.389 falsos alarmes, correspondendo a 41% das 5.847 ocorrências registadas — entre fogachos, incêndios florestais e incêndios agrícolas. Em muitos destes casos, o alerta chega através do número de emergência 112 ou por contacto directo com as corporações de bombeiros. A consequência é sempre a mesma: deslocação de meios que se revelam desnecessários e desgaste acrescido para equipas já sobrecarregadas em períodos de risco elevado.

    O fenómeno não se limita aos incêndios. Também nos serviços de assistência médica e de protecção civil são frequentes ocorrências falsas, mas no caso específico dos incêndios rurais, a dimensão é particularmente expressiva e dispersa por todo o território nacional. Não existe, no entanto, qualquer estudo conhecido que permita identificar padrões regionais ou causas mais frequentes.

    Hoje mesmo, a base de dados do ICNF registava 19 falsos alarmes, dos quais quatro em Vila Nova de Gaia e um em cada um dos seguintes concelhos: Torres Novas, Vinhais, Alvaiázere, Cascais, Paredes, Viseu, Torres Vedras, Tomar, Condeixa-a-Nova, Nelas, Vouzela, Mealhada, Seixal, Gondomar e Vila do Conde. Ontem, domingo, contabilizaram-se 42 falsos alarmes; no sábado, 35; na sexta-feira, 40; e na quinta-feira, 28. Em apenas cinco dias, foram 164 falsos alarmes em 638 ocorrências, ou seja, cerca de 26% dos registos.

    A análise do PÁGINA UM mostra que, desde quinta-feira, os falsos alarmes afectaram 81 municípios, com maior incidência em Paredes e Vila Nova de Gaia (11 cada), Valongo (8), Gondomar, Tavira e Torres Vedras (5 cada) e Amarante, Aveiro, Cascais, Cinfães, Sintra e Vila do Conde (4 cada). Quanto à origem das chamadas, seis em cada dez chegam através do 112, duas em cada dez por telefone directo para os bombeiros, e as restantes por outras vias.

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    Apesar de elevados, os números deste ano ainda ficam aquém dos de 2024, quando foram registados 3.547 falsos alarmes em 6.255 ocorrências, o que representou um rácio de 57%. O ano com mais falsos alarmes na última década foi 2017, com 5.512 registos, embora correspondendo a apenas 26% das ocorrências — recorde-se que 2017 foi o pior ano de que há registo em termos de área ardida, com 540.654 hectares consumidos pelo fogo, sobretudo nos dois períodos trágicos de Junho e Outubro, que também provocaram a morte de mais de uma centena de pessoas.

    Desde 2001, o ano com maior número de falsos alarmes foi o de 2007, com 5.707 registos deste tipo de ocorrências, mas como nesse ano houve mais de 25 mil intervenções, o peso relativo rondou apenas os 23%. Aliás, somente a partir de 2018 o peso dos falsos alarmes ultrapassaram, de forma consistente, a fasquia dos 40%.

    Contactado pelo PÁGINA UM, António Nunes, presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, admite não conhecer as causas para estes números tão elevados.

    Registo de falsos alarmes de incêndios rurais. Fonte: ICNF.

    “Nunca foi um assunto que tivéssemos estudado em termos de conhecer as causas”, afirma o líder máximo dos bombeiros voluntários, sublinhando que, como sucede noutros tipos de emergência, os falsos alarmes podem constituir um problema por afectar recursos humanos e materiais. Ainda assim, considera provável que, em muitos casos, estes episódios resultem de percepções erradas ou interpretações precipitadas de sinais que, afinal, não correspondem a incêndios reais.

    A ausência de um estudo aprofundado sobre esta realidade deixa por esclarecer questões essenciais: quantos falsos alarmes resultam de boa-fé e quantos são fruto de chamadas negligentes ou mesmo maliciosas? E até que ponto o peso destas ocorrências no dia-a-dia dos bombeiros afecta a sua capacidade de resposta a situações reais e urgentes? Enquanto essas respostas não chegam, os números mostram que, todos os anos, milhares de deslocações de meios se fazem para combater fogos que nunca existiram.

  • Estudo do maior epidemiologista mundial faz desaparecer 12 milhões de ‘vidas salvas’ pela vacina da covid-19

    Estudo do maior epidemiologista mundial faz desaparecer 12 milhões de ‘vidas salvas’ pela vacina da covid-19

    Em 2022, a Lancet Infectious Diseases publicava, com pompa e circunstância, um artigo científico assinado por um grupo internacional de modeladores liderados por Oliver Watson, que concluía — sem hesitar e com inequívoco encómio — que as vacinas contra a covid-19 tinham “salvado” pelo menos 14 milhões de pessoas no primeiro ano do programa de vacinação global.

    O trabalho, financiado por diversas entidades, entre as quais a Fundação Bill & Melinda Gates, alimentou a narrativa dominante: um triunfo inequívoco da ciência, traduzido numa cifra de vidas poupadas que era, ao mesmo tempo, argumento político e capital simbólico para justificar a vacinação massiva, transversal a todas as idades e contextos.

    John Ioannidis, professor e investigador da Universidade de Stanford.

    Mas estamos em 2025, e o véu dessa narrativa hegemónica começa a desfazer-se. E fá-lo com estrondo — e, mais importante, com consistência científica. Um artigo agora publicado na JAMA Health Forum, e ontem revelado por um centro de investigação da Universidade de Stanford, e tendo como autor principal John Ioannidis, considerado o epidemiologista mais reputado do mundo, vem colocar números muito mais modestos — e, sobretudo, muito mais granulares — sobre a mesa.

    A estimativa central de Ioannidis e três investigadores italianos é de que as vacinas terão evitado cerca de 2,5 milhões de mortes em todo o mundo, entre o final de 2020 e o ano de 2024, com uma margem de sensibilidade que varia entre 1,4 e4,0 milhões. A diferença é brutal: cerca de doze milhões de vidas “salvas” evaporaram-se, não por um capricho político, mas porque o novo trabalho aplica parâmetros de risco e eficácia mais realistas, separados por idade, período e contexto epidemiológico.

    O ponto mais demolidor da análise encontra-se no gradiente etário e extrapola-se daí ter sido um erro colossal, sem vantagens, a vacinação massiva e, pior ainda, as políticas coercivas, recorrendo a tácticas éticas deploráveis, incluindo discriminação para quem optava por não se vacinar, mesmo após uma infecção prévia.

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    Com efeito, ao contrário da narrativa que sugeria benefícios significativos em toda a população, os dados mostram que quase 90% das vidas salvas ocorreram em pessoas com 60 ou mais anos. As crianças e adolescentes (0–19 anos) contribuíram com meros 0,01% do total, e os jovens adultos (20–29 anos) com 0,07%. Esse reduzido contributo deveu-se às taxas de letalidade por infecção (IFR) antes da variante Ómicron serem já bastante baixos em jovens e adultos de meia idade.

    Nos menores de 20 anos, a letalidade da covid-19 sem vacina era afinal de 0,000003 — isto é, três óbitos por cada milhão de infecções —, o que contrasta com uma letalidade de 12% (120 mil mortes por milhão infecções) nos maiores de 70 anos que vivessem em lares. Aliás, o mesmo grupo etário em melhores condições de saúde (vivendo na comunidade) apresentou taxas de letalidade de apenas 1,8%, enquanto por exemplo no grupo etário dos 50 aos 59 anos era de 0,12%, o que confirma que esta foi uma doença particularmente grave apenas em lares.

    Note-se, contudo, que o estudo de Ioannidis assume ainda que não só a imunidade natural (por prévia infecção) era eficaz como destaca que, durante o período Ómicron, a letalidade caiu para cerca de um terço da registada com a variante Alfa. Ou seja, o ‘game changer’ da pandemia foi a mudança de prevalência da Omicron, mais transmissível mas muitíssimo menos letal por ‘atacar’ sobretudo as vias respiratórias superiores.

    Distribuição da população mundial por grupos etários, indicando para cada estrato a proporção vacinada antes da infecção no período pré-Ómicron (com intervalo de sensibilidade) e a taxa de letalidade por infecção (IFR) no mesmo período, também com intervalo de sensibilidade. Inclui ainda a separação dos indivíduos com ≥70 anos em residentes na comunidade e em lares, evidenciando as diferenças marcadas de risco. Fonte: Ioannidis et al. (2025).

    A eficácia vacinal para prevenir a morte foi também tratada com rigor neste novo estudo, e mostra que esteve muito longe das promessas iniciais de eficácia absoluta. Quando surgiram foram apontadas eficácia acima de 90% e ainda actualmente em sites da Comissão Europeia se aponta para valores acima de 80%. Porém, o estudo mostra que foram de 75% no período pré-Ómicron (com um intervalo de 40% a 85%) e de 50% no período Ómicron (30% a 70%).

    Estes valores, bastante inferiores aos sugeridos em discursos políticos e comunicações oficiais em 2021 e 2022, foram cruzados na análise de Ioannidis com a proporção de vacinados antes da infecção a nível mundial: apenas 10% no grupo dos 0–19 anos, 20% nos 20–29 anos e cerca de 46% nos adultos com mais de 30 anos.

    Em termos de retrato final, as conclusões só podem ter implicações práticas e políticas — e até mediáticas, pelo papel que a imprensa generalista teve para se impor uma narrativa. O chamado número necessário para tratar (NNT) — ou seja, o número de doses necessárias para evitar uma morte — foi, globalmente, de cerca de 5.400 doses. E para ‘conceder’ um ano de vida foram necessárias 900 doses.

    Estudo de John Ioannidis, Angelo Maria Pezzullo, Antonio Cristiano e Stefania Boccia é um importante marco para a escrita da verdade científica da pandemia.

    Estes valores são globais e ‘degradam-se’ substancialmente nos grupos de baixo risco: em jovens até 29 anos, um cenário ilustrativo mostra que terão sido precisas cerca de 100 mil doses para evitar uma única morte, tornando o benefício por dose administrada quase irrisório. E até do ponto de vista económico: se consideramos um preço de 15 euros por dose, para se salvar uma vida de um menor de 30 anos gastou-se 1,5 milhões de euros. Ora, com esse dinheiro consegue-se salvar mais do que isso para tratar ou prevenir a letalidade de outras doenças.

    E é também neste aspecto que o estudo de Ioannidis e dos investigadores italianos introduz uma questão sensível e raramente abordada na narrativa oficial: a possibilidade de que, em certos subgrupos jovens, o balanço entre benefícios e riscos possa ter sido negativo, ou seja, que a vacina tenha prejudicado mais do que trazido benefícios.

    No capítulo mais sensível, os autores admitem não terem separado as mortes evitadas pela eficácia vacinal das mortes provocadas por danos associados à vacinação. Sublinhando que “os eventos adversos das vacinas contra a COVID-19 continuam a ser um tema controverso”, Ioannidis e os seus colegas recordam que os dados provenientes de ensaios clínicos aleatorizados são muito limitados e que as estimativas de risco obtidas a partir de registos observacionais comportam elevada incerteza.

    Estimativa de vidas salvas pela vacinação contra a COVID-19, segmentada por grupo etário, período (antes de Ómicron e durante Ómicron) e estado de infecção prévia no momento da vacinação. Inclui o total de vidas salvas por estrato etário e a percentagem correspondente do total global de 2 532 869 vidas salvas. Os dados mostram que a grande maioria dos benefícios concentrou-se em pessoas com 60 ou mais anos, especialmente idosos residentes na comunidade. Fonte: Ioannidis et al. (2025).

    Apesar de concluírem que o número de óbitos atribuíveis a eventos adversos amplamente reconhecidos — como trombose, miocardite ou mortes em residentes de lares altamente debilitados — será provavelmente “cerca de duas ordens de grandeza inferior ao benefício global”, alertam que “estes danos são importantes para ponderar face aos benefícios em subpopulações específicas onde apresentam maior frequência [jovens] e onde o balanço risco-benefício possa alterar-se ou até inverter-se”.

    Este novo estudo está longe de ser uma contestação ao valor das vacinas enquanto ferramenta de saúde pública — Ioannidis tem vindo a reconhecer o seu papel relevante na redução da mortalidade em grupos de alto risco.

    Mas é sobretudo um apelo, sustentado por dados, a políticas mais racionais e dirigidas: priorizar a protecção dos mais vulneráveis, em vez de insistir em programas indiscriminados que pouco acrescentam nos mais jovens. E é, sobretudo, um lembrete de que as “verdades” proclamadas no calor de uma crise sanitária podem, e devem, ser revistas à luz de dados mais sólidos.

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    A diferença entre os 14 milhões “salvos” proclamados pela Lancet em 2022 e os 2,5 milhões agora estimados por Ioannidis não é apenas um ajuste estatístico: é um retrato do modo como a ciência, quando se liberta das pressões políticas e mediáticas, pode revelar um cenário mais complexo — e, inevitavelmente, mais incómodo — do que aquele que serviu para justificar medidas globais de saúde pública.

    Mas isso, infelizmente, é lição que dificilmente será aprendida, e apreendida, pelos políticos portugueses e, hélas, até pela Ordem dos Médicos, entidade da qual ainda se aguarda um pedido de desculpas para a forma como se comportou durante a pandemia, tendo até escondido um parecer do seu Colégio de Pediatria que não recomendava a vacinação a adolescentes saudáveis.

  • Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge previu uma catástrofe, falhou e calou-se… o PÁGINA UM mostra-lhe o que aconteceu

    Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge previu uma catástrofe, falhou e calou-se… o PÁGINA UM mostra-lhe o que aconteceu

    O Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) voltou esta semana a dar um exemplo paradigmático de como não se deve comunicar Saúde Pública. No início desta semana, o organismo tutelado pelo Ministério da Saúde, mas integrado na Universidade Nova de Lisboa, decidiu accionar o seu modelo Índice ÍCARO — esse acrónimo sonante, mas que, na prática, fez descambar a credibilidade do seu presidente Fernando Almeida — para prever uma alegada “catástrofe” de mortalidade.

    Para os dias 4 a 6 de Agosto, o INSA projectou mais do que uma duplicação do número normal de mortes, conforme noticiou o PÁGINA UM na segunda-feira, sugerindo um cenário quase apocalíptico com mais de 700 óbitos por dia. Em três dias, o excesso de mortalidade estaria acima dos 1.100 óbitos? E o que aconteceu? Simples: a mortalidade real ficou a rondar pouco mais de 300 óbitos por dia, valores que, embora ligeiramente elevados para esta altura do ano, estão longe das profecias descontroladas. E pior: pela calada, o INSA modificou os valores do índice ICARO para ‘consertar’ o desacerto. Mas mesmo com esses valores ‘corrigidos’ à socapa, o instituto público previu 1.824 óbitos em três dias, ou seja, um excesso de 900 óbitos.

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    Foto: D.R.

    Mais uma vez, o problema nem foi apenas o erro (grosseiro, acrescido do silêncio), mas a histeria mediática que lhe seguiu.

    Mas, no PÁGINA UM, preferimos fazer o que o jornalismo deve fazer: olhar para os dados, analisá-los e contextualizá-los.

    É um facto que as temperaturas nas últimas duas semanas estiveram elevadas, com valores que, em alguns dias, se mantiveram persistentemente acima das médias climatológicas, sobretudo nas regiões do interior. Isso justifica uma análise estatística rigorosa para verificar se este calor se traduziu num excesso de mortalidade relevante. Fizemo-lo, concentrando-nos no período entre 25 de Julho e 7 de Agosto, através da informação do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), acrescentando duas componentes essenciais que o INSA e, muito provavelmente, o Governo e a Direcção-Geral da Saúde continuam a querer ignorar.

    A primeira componente é óbvia para qualquer demógrafo: a mortalidade em termos absolutos tem aumentado nos últimos anos, não apenas devido a episódios excepcionais como a pandemia, mas por causa do envelhecimento acelerado da população portuguesa. Há mais pessoas em idades avançadas e, por consequência, mais mortes por causas naturais, mesmo sem qualquer evento extremo relevante. Comparar, por exemplo, a mortalidade diária de 2025 com a de 2015, ou usar uma simples comparação com a média dos últimos cinco ou 10 anos, sem qualquer ajuste à estrutura etária, é receita certa para inflacionar artificialmente qualquer “excesso”.

    Previsões catastrofistas inicialmente apontadas para os dias 4 a 6 de Agosto…
    … foram alteradas poucas horas depois de uma notícia do PÁGINA UM que indicava que aparentavam seriam catastrofistas (e exageradas). Fonte: Portal da Transparência do SNS.

    Importa, contudo, acrescentar uma ressalva: a leitura desta tendência nos próximos anos será mais difícil devido ao ruído introduzido pelos anos pandémicos de 2020 a 2022, em que a mortalidade esteve anormalmente elevada. Se esses anos não forem devidamente atenuados ou ajustados nos modelos, os valores de referência tenderão a ficar artificialmente altos, podendo mascarar excessos reais ou gerar falsos défices. Este será um desafio inevitável para qualquer análise séria da mortalidade nos próximos anos.

    A segunda componente é mais subtil, mas igualmente importante: o chamado efeito harvesting, ou deslocamento de mortalidade. Este fenómeno traduz-se no seguinte: se num período anterior (como o Inverno) a mortalidade é mais baixa do que o esperado, isso significa que houve uma “poupança” de pessoas vulneráveis que, noutras condições, teriam morrido mais cedo.

    Quando surge um episódio adverso — como uma vaga de calor, mesmo que não demasiado intensa — parte destas pessoas acaba por falecer num curto espaço de tempo, gerando um pico de mortalidade que não reflecte necessariamente um aumento anual líquido. É um efeito de compensação temporal. O inverso também se aplica: um Inverno com surtos gripais mortíferos desencadeará previsivelmente uma menor quantidade de óbitos no Verão, mesmo perante condições adversas.

    Fernando Almeida, presidente do INSA: muda previsões catastrofistas e acha que não tem de dar satisfações quando se manipula os números originais. / Foto: D.R.

    Em todo o caso, convém referir que mesmo em meses com ondas de calor, o Verão é, actualmente, a época do ano de menor letalidade, sendo que Setembro costuma ser invariavelmente o mês de menor mortalidade.

    Assim, aplicando um modelo estatístico robusto, calibrado com dados diários de mortalidade entre 2014 e 2024 e ajustado a dois factores essenciais — sazonalidade e tendência demográfica de envelhecimento — o PÁGINA UM construiu um referencial fiável do que seria expectável para cada dia de 2025.

    A sazonalidade foi modelada com harmónicos anuais que captam os padrões repetitivos ao longo do ano — como os picos habituais no inverno ou no verão. A tendência de longo prazo foi incorporada através de uma variável anual contínua, captando o aumento gradual da mortalidade absoluta resultante do envelhecimento populacional. O modelo foi estimado com regressão de Poisson, apropriada para contagens de eventos diários, garantindo que a variabilidade natural dos óbitos é tida em conta. Adicionalmente, o intervalo de confiança a 95% foi calculado para cada previsão, permitindo identificar dias com mortalidade significativamente acima ou abaixo do esperado.

    Ana Paula Martins, ministra da Saúde: INSA falha previsões, corrige e volta a falhar. E cala-se. E siga-se para a próxima narrativa. Foto: D.R.

    A partir deste referencial, compararam-se os óbitos observados entre 25 de Julho e 7 de Agosto de 2025 com os valores esperados para o mesmo período. A análise considerou ainda o possível efeito de harvesting — fenómeno em que um pico de mortalidade numa altura pode ser parcialmente “compensado” por défices de mortalidade noutras semanas, quando as vítimas prováveis já faleceram antes do previsto.

    Este método permite, assim, distinguir se há um verdadeiro excesso de mortalidade ou se os números recentes apenas reflectem uma redistribuição temporal dos óbitos.

    E, deste modo, entre 25 de Julho e 7 de Agosto de 2025, em 14 dias, registaram-se 4.601 mortes, contra um valor previsto de 4.373. Ou seja, houve um excesso de 228 óbitos, equivalente a +5,2%. Não é um valor irrelevante, mas está a anos-luz das duplicações anunciadas pelo Índice ÍCARO. E, convém sublinhar, 11 desses 14 dias ficaram acima do intervalo de confiança estatístico, o que indica um padrão consistente e não um mero acaso.

    Evolução diária da mortalidade em Portugal em 2025 (linha preta), comparada com o valor esperado ajustado à sazonalidade e à tendência demográfica (linha azul tracejada) e respetivo intervalo de confiança a 95% (faixa azul). O período de 25 de Julho a 7 de Agosto, assinalado a vermelho, corresponde à janela analisada pelo PÁGINA UM para avaliar um eventual excesso de mortalidade. Análise: PÁGINA UM.

    No entanto, este pico de mortalidade não ocorreu no vazio. Entre 1 de Janeiro e 24 de Julho deste ano, a mortalidade observada foi cerca de 3.698 óbitos inferior à esperada, porque os recentes surtos gripais foram anormalmente fracos. Com efeito, no inverno, a diferença foi ainda mais marcada: menos 1.401 mortes em Dezembro de 2024 e menos 2.979 entre Janeiro e Março de 2025.

    No total, o ‘défice invernal’ foi de 4.380 óbitos. É precisamente este contexto que sugere a acção do efeito harvesting: o calor do final de Julho terá “adiantado” o desfecho para parte das pessoas poupadas ao inverno benigno, mas sem inverter a tendência anual.

    Certo é que até 7 de Agosto, e mesmo contabilizando o excesso do período analisado, Portugal mantém um saldo anual negativo de 3.414 óbitos face ao esperado (ajustado ao envelhecimento). Ou seja, o ano de 2025, até agora, continua a ser menos letal do que a média ajustada dos últimos dez anos. É por isso enganador, e até intelectualmente desonesto, apresentar estes 14 dias como uma “catástrofe” sem explicar o pano de fundo.

    Mortalidade observada (linha azul) e esperada ajustada à sazonalidade e ao envelhecimento populacional (linha laranja) em Portugal, entre 25 de Julho e 7 de Agosto de 2025. A faixa sombreada representa o intervalo de confiança de 95% da previsão. Apesar de se registar um pico pontual no início de Agosto, a mortalidade global do período mantém-se apenas ligeiramente acima do esperado. Análise: PAV.

    A nossa análise confirma que o calor teve impacto real na mortalidade — e isso não deve ser minimizado. Mas também confirma que este impacto está inserido num padrão mais vasto, onde um défice prévio e prolongado de mortes condiciona a leitura do excesso pontual.

    É aqui que a diferença entre o alarmismo do INSA – que, depois, de forma altiva e presunçosa, não se digna explicar-se – e a análise contextualizada do PÁGINA UM se torna evidente. Um organismo público, pago pelos contribuintes, tem a obrigação de explicar, com rigor e sobriedade, que um pico de mortalidade no Verão pode ser estatisticamente significativo e, ao mesmo tempo, compatível com um saldo anual em défice. E aquilo que não pode nem deve é continuar a alimentar, com petulância, narrativas de emergência através de modelos opacos e previsões erráticas. Já nos chegou a pandemia…

  • Um ‘nightclub’ e o sabichão lambe-botas

    Um ‘nightclub’ e o sabichão lambe-botas

    Há quem diga que viajar é um acto de liberdade. Eu, que já levo mais quilómetros nas pernas do que gostava de admitir (sinal de que a areia na ampulheta já não é fina, mas sim grossa e pesada), começo a pensar que viajar é, antes de mais, um exercício de comparação entre épocas — e um teste de resistência à tecnologia. Lembro-me, com nostalgia, dos tempos em que partir significava levar uma mochila modesta, um par de sapatos que aguentasse dias inteiros e, sobretudo, um mapa em papel que se abria como uma vela ao vento.

    Era uma época de cegueira voluntária. Havia mapas — alguns oferecidos pela agência de viagens, outros comprados à pressa num quiosque —, e havia guias que se compravam quase por obrigação, como os da Lonely Planet, que, apesar do nome sugestivo, raramente evitavam que nos sentíssemos mais sós.

    Pesavam meio quilo, demoravam dois anos a escrever e, quando finalmente chegavam às prateleiras, estavam desactualizados. O restaurante recomendado já tinha fechado, a linha de autocarro mudara de número, e o “hotel barato e acolhedor” tinha duplicado o preço. Mas, curiosamente, essa ineficácia era libertadora: planeava-se visitar o monumento X e, pelo caminho, perdíamo-nos para acabar no bairro Y, onde descobríamos uma padaria anónima que nos vendia o melhor pão do mundo.

    Era assim: com erros irreparáveis e descobertas mágicas. A viagem não era uma sucessão de “checkpoints” no ecrã, mas uma improvisação contínua, uma partitura que se escrevia a cada esquina. Depois, veio o Google Maps, e com ele a maldição da precisão ilusória. Passámos a andar de olhos colados ao telemóvel, confirmando a cada dez metros se estávamos na rua certa. E, claro, a precisão nem sempre ajudava: quem nunca viu um turista dar dois passos para a direita, parar, franzir o sobrolho, recuar três passos, olhar para o ecrã, rodar sobre si próprio e avançar, convicto… para depois perceber que se enganou outra vez?

    A solução alternativa, dizem, é contratar um guia humano. Mas essa opção, embora cómoda, transforma a viagem num percurso mecânico, sem espaço para o acaso. O guia conduz-nos com a segurança de um comboio, mas também com a previsibilidade de um. Sabe tudo… mas é um “tudo” que já foi dito mil vezes, com as mesmas piadas ensaiadas e o mesmo sorriso calibrado.

    Eis que chega a nova era, embora eu continue a levar apenas uma mochila: a da inteligência artificial, essa entidade fascinante e, ao mesmo tempo, assombrosa. Já tinha experimentado o ChatGPT em duas ou três escapadelas anteriores, mas desta vez usei-o a sério — e, pela primeira vez, numa versão profissional. Pedi-lhe que identificasse monumentos a partir de fotografias, que me contasse histórias da sua construção, que me dissesse quem era o senhor imortalizado numa estátua, que me explicasse a origem de certos topónimos e até que sugerisse o prato mais típico de um restaurante perdido no bairro menos turístico.

    Em Tallinn, contudo, a criatura fez-me sair das estribeiras. Cheguei de autocarro, vindo de Riga, e segui a pé para o apartamento. O bairro, moderno e de edifícios altos, nada tinha de histórico — ou assim pensei, até encontrar um pequeno edifício térreo com uma inscrição luminosa: Nightclub. Fotografei-o e perguntei ao meu assessor digital:

    “Isto era uma igreja?”

    E ele, com a cara de querubim competente que deseja impressionar o patrão, não hesitou:

    Sim, tudo indica que este edifício foi originalmente uma igreja.
    A estrutura tem vários elementos típicos de um templo protestante ou luterano de pequena dimensão: a torre com campanário ao centro, em madeira e com um pináculo, é uma característica clássica de igrejas; o telhado inclinado em telha vermelha e o corpo longitudinal do edifício reforçam essa tipologia; as janelas pequenas e regulares e a porta com moldura simples também são típicas de igrejas nórdicas ou bálticas mais modestas, datadas dos séculos XVII a XIX
    .”

    E depois veio a parte de surpresa. Eu não lhe mencionara a razão da pergunta, mas ele descobriu…

    O que causa surpresa (e ironia arquitectónica) é o enorme letreiro vertical a dizer ‘NIGHTCLUB’, indicando que o espaço foi reconvertido para uma função completamente distinta — talvez até provocatória — do uso religioso original. Casos assim não são raros em cidades do norte da Europa, onde igrejas desactivadas têm sido transformadas em bares, discotecas, bibliotecas ou até apartamentos, muitas vezes gerando debate sobre memória e património. Se quiser, posso tentar localizar este edifício especificamente (possivelmente em Tallinn ou Riga?), caso deseje saber a história do local. Deseja isso?

    Achei graça à sua dúvida geográfica, já que a última foto que lhe enviara fora tirada em Riga. O ChatGPT sabe mais do que aquilo que desejamos que ele saiba… Fui a jogo para testar os seus conhecimentos. Mas não o ajudei muito: limitei-me a enviar outra foto, mais panorâmica, mostrando uma avenida e os prédios vizinhos. “Em Tallinn, aqui”, escrevi apenas.

    E ele, triunfante, respondeu, de imediato, como se sempre tivesse sabido:

    A igreja que aparece na primeira imagem é a antiga capela metodista da cidade, localizada na Liivalaia tänav, perto do cruzamento com a Pärnu maantee, uma das principais artérias de Tallinn. O edifício, com torre de madeira e nave simples, foi desconsagrado há anos e acabou por ser adaptado para outros usos — neste caso, um nightclub, como o letreiro indica. Essa justaposição entre arquitectura religiosa e lazer nocturno não deixa de ser irónica, mas é sintomática da secularização do espaço urbano em várias capitais do norte da Europa.

    E irritantemente, ainda quis parecer mais ‘inteligente’:

    Na segunda imagem vê-se ainda: à direita, o cruzamento de Liivalaia com Pärnu maantee; ao fundo, o edifício da antiga Baltika Quarter (ligado à moda); e ao centro, um cartaz publicitário de teatro em estónio. Se estiveres a explorar Tallinn, estás muito próximo do centro moderno da cidade, e a menos de 10 minutos a pé da Viru Väljak (Praça Viru) e do início da Cidade Velha. Se quiseres sugestões nesta zona — históricas, culturais ou gastronómicas —, posso recomendar-te várias. Queres?

    Já nem lhe respondi!

    E fiquei a pensar na virtude e no veneno desta nova companhia de viagem. Por um lado, dá-nos informação detalhada, instantânea, quase sempre correcta e, sobretudo, sem o peso das enciclopédias. Por outro, transforma a viagem numa espécie de “Google Street View com legendas ao vivo”, retirando o prazer da incerteza, o sabor da descoberta fortuita.

    E, se me perguntarem o que penso sobre o futuro disto, digo que é um futuro que chega com o perfume sedutor do conhecimento instantâneo, mas também com o travo amargo da preguiça intelectual. Fascina-nos porque podemos ter, no bolso, ou daqui a nada no ouvido e nos olhos, um oráculo portátil capaz de nos explicar, no momento, a genealogia de uma dinastia medieval ou a razão pela qual uma igreja virou discoteca.

    Mas isso embalar-nos-á numa falsa segurança que dispensa o risco, o erro e o acaso — aqueles mesmos erros e acasos que, ontem, nos levavam a uma praça escondida ou a um café anónimo onde o dono ainda se lembrava dos clientes pelo nome. Talvez, um dia, quando já estivermos todos reféns desta bússola infalível, mas previsível, daremos por nós a falar com saudade dos tempos em que nos guiávamos por um mapa amarrotado, por um guia desactualizado ou, melhor ainda, por uma pergunta mal feita a um transeunte que nos apontava o caminho errado… e que, sem querer, nos dava o melhor dia da viagem.

  • Até eu já estou farto do espalhafato da ‘Crise Climática’

    Até eu já estou farto do espalhafato da ‘Crise Climática’


    Sou jornalista desde os anos 1990. E desde essa altura — quando poucos davam atenção ao que então se chamava “efeito de estufa” — que acompanho as questões ambientais e, em especial, a problemática das alterações climáticas, quando então as petrolíferas gastavam imenso dinheiro para condicionar estudos sobre estas matérias.

    Acredito na Ciência, e sei que o planeta está a aquecer. E digo isto não por confiar na infalibilidade dos modelos matemáticos — pelo contrário, se enviesados ou com “arquitectura” mal concebida, mostram-se erráticos e de utilidade meramente especulativa —, mas sim por sinais biológicos e ecológicos. São os animais e as plantas que melhor sinalizam modificações climáticas: espécies que sobem em altitude e latitude, ciclos reprodutivos a mudar, migrações a antecipar-se. E os indícios estão aí. São múltiplos e cumulativos. São reais.

    Mas uma coisa é isso — e outra, muito diferente, é o espalhafato. A dramatização constante. O sensacionalismo catastrofista. A hipocrisia política. O histerismo mediático. A transformação do aquecimento global num épico de Hollywood, onde parece que já estamos a viver dentro de O Dia Depois de Amanhã, de 2012 ou de Geostorm — tal como sucedeu com a pandemia, onde, às tantas, estivemos a viver Contágio, com o Matt Damon.

    Olhando para os jornais, os telejornais, os portais e os podcasts, o que se vê? Um fogo permanente. Um inferno meteorológico a escorrer pelas palavras. E depois vê-se os políticos e “especialistas residentes” com a pala do costume: “temos de agir já!”, como se nunca se tivesse feito nada, como se a mudança dependesse unicamente da intensidade da histeria retórica. E das pessoas individualmente — nunca dos políticos ou das suas (más) políticas de desenvolvimento, de planeamento, de ordenamento.

    Dou, portanto, por mim cada vez mais exasperado. Irritado, mesmo. E não é com o clima — é com a forma como se tenta injectar, a martelo e com cuspo, uma narrativa armagedónica na imprensa dita “de referência”. Todos os dias se tenta colar uma nova tragédia ao aquecimento global. Já não há onda de calor, seca, chuvada, furacão, incêndio, peixe morto ou mosquito que não esteja, directa ou indirectamente, a ser “culpa do clima”. Como se as políticas de gestão territorial não existissem. Como se a má governação, a incúria, o desordenamento, a incompetência, as más prioridades orçamentais ou a ausência de prevenção fossem meras vítimas inocentes do CO₂.

    beach lounge on seashore facing the sea

    Hoje, por exemplo, dei de caras com a notícia do Público: “A água do Mediterrâneo nunca esteve tão quente em Julho como este ano”. A gota de água — com trocadilho — que me fez transbordar.

    O título é alarmante. O texto, mais ainda. A temperatura média da água no Mediterrâneo em Julho foi de 26,68 °C. Dado que o recorde anterior era de 26,65 °C, temos uma “diferença histórica” de… 0,03 graus. Repito: três centésimas de grau — um valor inferior à margem de incerteza estatística associada à maioria dos métodos de medição e interpolação da temperatura da superfície oceânica. E no entanto, a autora do artigo transforma isso numa espécie de profecia apocalíptica. Segundo ela, esse valor “favorece tempestades, inundações, secas e incêndios”. Assim mesmo, num parágrafo só, sem hierarquia de causas, sem filtros, sem bom senso.

    Enumeremos mais casos:

    1 – Temperatura “a ferver” – O subtítulo “Mediterrâneo a ferver” aparece em destaque, quando a temperatura média do mar rondou os 26,68 °C. Um valor inferior ao de muitas piscinas públicas. Não é um valor extraordinário para o próprio Mediterrâneo, que todos os verões ultrapassa os 26 graus. A expressão é enganadora. E é sensacionalista.

    2 – Causalidade simplista – A autora sugere que a tragédia de Derna em 2023, na Líbia, com centenas de mortos por colapso de barragens, teve relação com a temperatura do mar. Uma correlação abusiva, destituída de substância técnica, que ignora os factores estruturais do colapso — como a negligência prolongada na manutenção de infraestruturas hidráulicas obsoletas.

    sea under white clouds at golden hour

    3 – Secas, fogos, tempestades e furacões – Tudo junto, tudo misturado. Usa-se a subida de três centésimas de grau em determinadas zonas como rastilho narrativo para descrever um planeta em chamas. E nem uma linha sobre o ordenamento florestal, a falta de limpeza de matas ou o abandono rural. Aliás, em Portugal, as condições meteorológicas mais adversas, promotoras de aumento do risco de incêndio, nem costumam ser ventos de oeste nem de norte nem de sul (marítimos), mas sim de leste, transportando ar seco e quente da Península Ibérica interior, frequentemente associado a descidas de humidade relativa e aumento do risco de ignição — como documentado em vários estudos sobre incêndios extremos em Portugal.

    4 – Selecção de dados – O artigo afirma que 51,9% da Europa e do Mediterrâneo estiveram em seca entre 11 e 19 de Julho. Mas não refere que Julho de 2025 foi menos quente do que Julho de 2023 e 2024. Nem que, no total dos últimos 25 meses, houve vários em que a temperatura média global não ultrapassou o limiar de 1,5 graus sobre os níveis pré-industriais. E, mesmo quando ultrapassa, fá-lo apenas de forma pontual e não sustentada — ao contrário do que prevê o Acordo de Paris para definir um real agravamento climático. O dado inconveniente é omitido. A nuance desaparece. Enfim, escolhe-se um mês (meteorologia) para fazer conclusões sobre o clima (que é outra coisa).

    5 – Alarme sem contexto – Afirma-se que em 13% do oceano a temperatura esteve “um grau acima da média”. Mas qual média? Qual o período de referência? Qual a significância estatística? Nada disso é explicado. Fica apenas um número, a flutuar como uma bóia de pânico.

    Se isto não é propaganda, é pelo menos um jornalismo excessivamente alinhado com um discurso único — onde prevalece o dogma apocalíptico.

    E é pena. Porque a causa é séria. Porque a adaptação às alterações climáticas exige inteligência, planeamento, responsabilidade. E o histerismo ajuda pouco. O drama por atacado desacredita quem, com serenidade e rigor, tenta mudar comportamentos, políticas e modelos económicos. O jornalismo tem a obrigação de informar, não de assustar.

    Transformar o Verão Mediterrânico — que é uma bênção da Natureza para um ser humano feliz — num “forno climático” logo que os termómetros sobem acima dos 30 ou 32 graus é um exercício de revisionismo climático sem memória.

    orange and white egg on stainless steel rack

    Estamos, pois, a viver não uma crise ou emergência climática — mas uma emergência narrativa. Um colapso do discernimento. Uma febre ideológica que se esconde atrás da Ciência para impingir agendas políticas, económicas e comunicacionais. E que, no fundo, infelizmente, apenas serve para transformar o aquecimento global num novo moralismo redentor, com pecadores, castigos, indulgências e profetas.

    A Terra está a aquecer — e é preciso agir. Mas não precisamos de entrar num filme de terror. Precisamos de verdade, não de histeria. Precisamos de jornalismo, não de alarmismo. E eu, que ando nisto há 30 anos, não estou disposto a ser cúmplice de uma neurose colectiva só porque ela parece bem na fotografia… e na infografia.

  • Fraude científica: como a Ordem dos Médicos se deixa usar para manter uma narrativa falsa

    Fraude científica: como a Ordem dos Médicos se deixa usar para manter uma narrativa falsa


    Este é um exemplo perfeito — e por isso alarmante — de como a Ciência pode ser instrumentalizada para fins políticos e narrativos, ainda por cima com o selo de uma instituição centenária. Um artigo publicado esta semana na (suposta) revista científica Acta Médica Portuguesa, detida pela Ordem dos Médicos (e dirigida pelo seu bastonário, Carlos Cortes), assinado por Filipe Froes e dois co-autores — um dos quais uma antiga jornalista do Sol , Marta Reis que, durante a pandemia, promoveu ‘médicos influencers‘, incluindo o próprio Froes — constitui um caso acabado de fraude científica por omissão, por manipulação retórica e por abuso da autoridade institucional.

    O seu objectivo é claro: manter viva a ideia de que a pandemia de covid-19 foi, em Portugal, uma tragédia sanitária sem precedentes — mesmo que os dados, se bem analisados, desmintam essa tese. A fraude torna-se ainda mais grave quando se percebe que este texto foi redigido sem qualquer rigor metodológico e com laivos panfletários, sendo usado para alimentar peças na comunicação social, nomeadamente no Expresso, sem qualquer escrutínio jornalístico ou científico. A promiscuidade está à vista.

    Filipe Froes (ao meio) foi mandatário de Carlos Cortes (segundo a contar da direita) nas (duas últimas) eleições para bastonário da Ordem dos Médicos.

    Sob o título “Janeiro de 2021 e a COVID-19 em Portugal: o mês mais mortal desde 1919”, o artigo pretende convencer-nos, numa sucessão de frases vagas e comparações grotescas, de que o impacto da pandemia em Portugal rivaliza com o da gripe espanhola, que teve o seu auge em 1919. A narrativa começa pela cronologia: 1.150 dias de pandemia, de Março de 2020 a Maio de 2023, 26.655 mortos atribuídos à COVID-19, com um pico de 5.805 óbitos em Janeiro de 2021.

    Estes números até poderiam ser discutidos — e devem sê-lo —, mas o problema fundamental reside noutro ponto: o artigo carece por completo de metodologia científica minimamente exigível para uma publicação académica. Não houve análise estatística, não houve padronização etária, não houve controlo por variáveis confundentes, não houve enquadramento comparativo internacional, não houve sequer uma discussão crítica sobre causalidade. Se em Ciência isto não é aceitável, andar ainda com estes simplismos enviesados em 2025 nem sequer é admissível como panfleto.

    Pior ainda: o texto exibe uma retórica inflamada, de tom quase propagandístico, tentando ligar de forma forçada os números de Janeiro de 2021 à “introdução da variante Alfa” e ao “período pós-festas”, numa tentativa artificial de justificar os dados brutos. Mas estes números, mesmo em termos absolutos, não são contextualizados.

    Filipe Froes e António Diniz foram activos médicos influencers durante a pandemia. Marta Reis, licenciada em Comunicação Social, foi jornalista do i e do Sol durante o período pandémico, passando para a assessoria do Ministério da Saúde em Setembro de 2022, antes de passar para a comunicação da ULS de Lisboa Ocidental.

    O país, em 2021, tinha mais do dobro da população de 1918, muitíssimos mais idosos e, como é sabido, uma estrutura etária profundamente envelhecida. Jamais se pode comparar mortalidade total entre dois anos tão longínquos sem o devido enquadramento. Aos autores não lhes interessou analisar as taxas de mortalidade por grupo etário, porque verificariam que mesmo em 2021 — no ano de maior incidência da covid-19 — a taxa de mortalidade até nos maiores de 85 anos foi inferior à que se registava, para o mesmo grupo etário, em 2010. Se a mortalidade absoluta foi elevada, foi porque aumentou a esperança média de vida ao longo das últimas décadas — e tivemos uma nova doença a atingir uma população idosa nunca antes tão numerosa.

    Ainda assim, os autores proclamam e insistem, sem vergonha, que “Janeiro de 2021 foi o mês mais mortal desde 1919”, como se uma contagem absoluta de óbitos, sem qualquer ajustamento demográfico, pudesse ser levada a sério num artigo científico. Num panfleto mediático de 2021, até aceito que sim. Agora, numa revista que se quer científica, em 2025, isto é uma inqualificável vergonha para qualquer bastonário que queira apagar os anos de Inquisição do Miguel “Torquemada” Guimarães. Uma revista científica aceitar um título destes é desprestigiante.

    Note-se, aliás, que a única taxa apresentada no suposto artigo de Froes & Ca. — 1.216 óbitos por 100 mil habitantes em 2021 (e usar essa unidade é descaradamente populista e nada científica, porque a norma é utilizar-se óbitos por mil habitantes, o que daria 12,16) — é, de facto, a mais elevada desde 1957. Mas este valor, sendo relevante, não demonstra qualquer singularidade catastrófica, nem permite associar de forma directa a mortalidade à covid-19. A generalidade da mortalidade de 2021 resulta de múltiplos factores: idade da população, adiamentos de tratamentos, colapsos hospitalares, atrasos em diagnósticos e assistência médica não-covid. Nenhum destes elementos é sequer mencionado no artigo.

    Filipe Froes, um dos médicos portugueses com mais ligações à indústria farmacêutica.

    Além disso, um qualquer epidemiologista decente não trabalha jamais apenas com taxas de mortalidade total, porque sabe, ao contrário do inefável Froes & Ca., que em Epidemiologia facilmente se observa o chamado efeito de Simpson, ou paradoxo de Simpson. Este é um fenómeno estatístico em que uma tendência observada no total de um conjunto contraria as tendências verificadas nas suas partes.

    Em termos simples, pode acontecer que a mortalidade global de uma população aumente, ao longo de um determinado período, mesmo quando as taxas de mortalidade de todos os grupos etários — incluindo os mais vulneráveis — estão a diminuir. Esta inversão aparente resulta de mudanças na composição interna da população: se, por exemplo, aumenta significativamente o número de pessoas idosas, que apresentam naturalmente maior risco de morte, o total de óbitos tenderá a subir (e a taxa global também), mesmo que o risco individual em cada faixa etária esteja a baixar.

    Este fenómeno é particularmente visível em países com envelhecimento demográfico acelerado, como Portugal. Nas últimas décadas, apesar de se registarem reduções consistentes das taxas de mortalidade específicas em todos os grupos etários, incluindo nos maiores de 85 anos, a mortalidade total anual tem vindo a crescer. Assim, sem uma leitura desagregada por idades ou sem o uso de taxas de mortalidade padronizadas, corre-se o risco de interpretar como agravamento aquilo que, na verdade, é um progresso disfarçado por uma ilusão estatística.

    A única virtude do artigo é mostrar a quantidade de conflito de interesses de Filipe Froes e de António Diniz com a indústria farmacêutica da pandemia. Curiosamente, quando esteve nas sucessivas intervenções televisivas, Froes jamais falou destas ligações. Nem ninguém na comunicação social ‘mainstream’ lhe perguntou.

    A manipulação mais grave, no entanto, reside na forma como os autores seleccionam e interpretam os dados de internamento hospitalar. O artigo apresenta longas tabelas com o número diário de camas ocupadas por “internamentos covid”, em enfermaria e em cuidados intensivos, no período entre Dezembro de 2020 e Fevereiro de 2021. Froes & Ca. sugerem que estes dados ilustram uma pressão sem precedentes sobre o Serviço Nacional de Saúde.

    Mas omitiram — de forma deliberada — um dos paradoxos mais reveladores de toda a pandemia: os dados do Instituto Nacional de Estatística mostram que, entre 2020 e 2022, o número total de internamentos hospitalares em Portugal foi inferior ao registado em anos anteriores, bem como o número global de dias de internamento. Ou seja, o sistema hospitalar teve, em termos agregados, menos actividade assistencial do que em anos pré-pandemia.

    Esta contradição factual — que qualquer investigação científica séria teria de abordar — é ignorada sem pudor. Pior ainda, os autores falham também em referir o que é hoje reconhecido até por instituições oficiais: muitos dos internamentos classificados como covid foram internamentos por outras patologias, com teste positivo para SARS-CoV-2. Assim, a classificação “internamento covid” inclui, sem distinção, situações clínicas muito diversas mas com teste positivo ao SARS-CoV, mesmo que assintomático.

    Mas no artigo da Acta Médica Portuguesa, todos estes casos são apresentados como prova de uma alegada “pressão pandémica” — sem qualquer validação clínica ou segmentação por gravidade. Esta é mais uma omissão grave. Na prática, o que se apresenta como “carga pandémica” pode ter sido, em larga medida, uma reclassificação administrativa de internamentos ordinários, inflacionando os números e alimentando o alarme público.

    Carlos Cortes, bastinário da Ordem dos Médicos, é também director da Acta Medica.

    A ausência de dados sobre o número total de camas hospitalares disponíveis no SNS, ou sobre o número de camas convertidas temporariamente em unidades de cuidados intensivos, é assumida no artigo como limitação — mas essa mesma limitação não impede os autores de fazer afirmações categóricas e de grande peso político e mediático. Isto não é ciência, é retórica institucional disfarçada de artigo científico.

    Mais inquietante é a forma como os autores rejeitam todo o escrutínio científico, escudando-se em “dados oficiais” como se isso lhes conferisse imunidade epistemológica.

    Um dos autores, Filipe Froes, conhecido pelo seu papel mediático durante a pandemia, declara — vá lá! — abertamente ter recebido pagamentos, honorários e colaborações com mais de uma dezena de farmacêuticas, incluindo as principais promotoras de vacinas e de antigripais de eficácia questionável. Não é ilegal, mas torna-se eticamente insustentável que um artigo sobre o impacto da pandemia — coincidente com o início da vacinação em massa — seja publicado sem qualquer crítica ao papel da vacinação, sem referência a efeitos adversos ou à mortalidade em vacinados, ou sem cruzamento com dados de cobertura vacinal. A omissão é gritante e reveladora.

    E a quem cabe a responsabilidade por validar este artigo? À Acta Médica Portuguesa, a revista científica da própria Ordem dos Médicos, dirigida por Carlos Cortes que teve Filipe Froes como seu mandatário nas duas eleições. A revista aceita, publica e legitima um texto curto, como se fosse científico, sem qualquer revisão metodológica visível, sem discussão científica substantiva e, pior ainda, com um objectivo claro de reforçar uma narrativa já amplamente desacreditada na literatura internacional.

    woman in black jacket holding white paper

    Trata-se pois de um uso impróprio de uma plataforma institucional, e uma revista científica, para validar politicamente uma leitura histórica enviesada dos anos pandémicos. A revista da Ordem dos Médicos deveria ser um bastião da integridade científica — mas, neste caso, foi cúmplice de (mais) uma operação de propaganda.

    E, mais uma vez, a comunicação social desempenha aqui um papel vergonhoso: o Expresso, jornal generalista e membro activo do circuito mediático da pandemia, noticiou o artigo sem qualquer filtro crítico, transformando-o em mais um tijolo no edifício da desinformação institucional. Não se perguntou pela ausência de revisão estatística. Não se questionou o conflito de interesses. Não se inquiriu a Ordem dos Médicos sobre a razão de aceitar um artigo tão frágil. Ao contrário: publicou-se com o mesmo entusiasmo reverente com que, em tempos, se noticiavam previsões alarmistas do Imperial College ou números de testes da DGS, sem verificação nem contraditório. O jornalismo falhou — de novo. E os “anos loucos da pandemia” já passaram: convém elevar os padrõezinhos!

    Aquilo que este caso demonstra, em toda a sua crueza, é que a pandemia criou um circuito fechado entre Ciência, política e comunicação social, onde os papéis de validação se sobrepõem e confundem. A autoridade da Ordem dos Médicos é usada para garantir o verniz científico; os autores coniventes (por vezes mercantilmente ligados a farmacêuticas) continuam a fornecer uma narrativa conveniente; os media amplificam sem questionar; e a opinião pública é conduzida como gado bem-comportado. Não há Ciência nisto — apenas um simulacro dela.

    Num país sério, este artigo seria motivo de inquérito interno por parte da Ordem dos Médicos, e a revista Acta Médica Portuguesa teria de rever os seus critérios editoriais. Num país sério, jornalistas confrontariam os autores com as omissões metodológicas e os conflitos de interesse. Num país sério, os dados oficiais seriam cruzados com outras fontes, com análises independentes e com dúvidas saudáveis. Mas Portugal, neste campo, não tem sido um país sério.

    Sem análise crítica, o jornal que se arroga de referência publica tudo como se houvesse novidade e sem contexto crítico. Hoje, é fácil meter uma ‘notícia’ no Expresso.

    A fraude científica não se faz apenas com dados falsos. Faz-se também com dados verdadeiros apresentados de forma enviesada, com omissões de outros dados por causas intencionais e estratégicas, com gráficos sugestivos, com títulos sensacionalistas — e, sobretudo, com a complacência das instituições. É este o caso. E é preciso dizê-lo com todas as letras.

    A pandemia acabou, mas a manipulação continua perene. E quem deveria defender a verdade científica, neste caso, quer ainda enterrá-la — de bata branca e logótipo ao peito.

  • Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge manipula índice de calor extremo após prever catástrofe (que não aconteceu)

    Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge manipula índice de calor extremo após prever catástrofe (que não aconteceu)

    O Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), tutelado pelo Ministério da Saúde, recusa justificar por que motivo manipulou esta terça-feira os valores do Índice ÍCARO — um modelo estatístico usado para estimar o excesso de mortalidade provocada por calor — e também se escusa a explicar os pressupostos científicos, técnicos e metodológicos que sustentam os números publicados.

    A alteração dos dados, feita sem qualquer nota explicativa, foi realizada poucas horas depois de o PÁGINA UM ter divulgado, na noite de segunda-feira, as previsões inéditas — e alarmantes — que o próprio INSA tinha publicado horas antes no portal oficial da Transparência do Serviço Nacional de Saúde.

    Fernando Almeida, presidente do INSA: muda previsões catastrofistas e acha que não tem de dar satisfações quando se manipula os números originais. / Foto: D.R.

    Segundo os dados então disponíveis, o valor previsto para amanhã, dia 6, atingia 1,57 — o mais elevado alguma vez registado desde que o Índice ÍCARO consta do portal da Transparência do SNS. De acordo com a definição estatística do modelo, tal valor correspondia a um aumento de 157% na mortalidade diária face a condições meteorológicas normais. Traduzido em números absolutos: sendo a média de mortes diárias no Verão de cerca de 280 óbitos, o índice implicaria mais de 720 mortes num só dia, ou seja, mais 440 do que o habitual.

    As previsões apresentadas pelas previsões desta segunda-feira também se revelavam extraordinariamente elevadas para ontem (1,21) e para hoje (1,30), o que corresponderia, respectivamente, a 619 e 644 óbitos por dia. Assim, só com base no Índice ÍCARO e nas suas estimativas, o total de mortes para estes três dias seria próximo das duas mil, representando um alegado excesso de mais de 1.100 mortes face à média esperada. Se o modelo estivesse minimamente calibrado, tal cenário equivaleria a uma das maiores crises de saúde pública das últimas décadas.

    Contudo, os dados reais rapidamente desmentiram este alarmismo. Segundo os números do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), o total de óbitos registados nesta segunda-feira (307), e até às 20h30 de hoje o número de mortes era de 244, sendo previsível que o valor final fique próximo de ontem. Aliás, convém referir que, do ponto de vista estatístico, só se pode falar de excesso de mortalidade nesta época do ano quando os valores diários ultrapassam os 350 óbitos. Não só tal não se verificou, como os valores se mantêm dentro da normalidade.

    Previsões catastrofistas (divulgadas ontem) para os dias 5 e 6 de Agosto…
    … foram alteradas poucas horas depois de uma notícia do PÁGINA UM (na manhã de hoje) que indicava que aparentavam ser catastrofistas (e exageradas).

    Mesmo assim, ainda antes de qualquer indício de anomalia, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) e a Direcção Executiva do SNS emitiram um comunicado no final da tarde de ontem com um vasto conjunto de recomendações públicas, partindo como ponto de partida das previsões do Índice ICARO. Saliente-se que existe um interesse político para criar uma narrativa de uma onda de calor inédita para justificar a crise dos incêndios que lavram no país desde a semana passada.

    O mais grave, porém, nem é o falhanço do modelo, mas sim a facilidade com que se alteram os números originais do Índice ÍCARO sem justificação. De facto, foi apenas na manhã de hoje que os valores do Índice ÍCARO para o início desta semana foram alterados na base de dados pública do SNS. Sem aviso, sem explicação, sem referência a erro. O valor de 1,57 desapareceu, dando lugar a um mais ‘modesto’ 1,01 – que mesmo assim falhará, porque implicaria cerca de 600 óbitos. Para hoje, o valor de 1,30, na previsão de ontem, mudou para 1,07, para a previsão de hoje.

    Parece algo irrelevante, mas mesmo sabendo que o INSA não teve coragem para mudar a previsão de ontem para o próprio dia (1,21), fica patente que o índice ÍCARO serve para pouco. De facto, se o modelo de aproximasse da realidade, o valor de 1,21 significaria que 619 óbitos, mas o valor ficou pela metade — e dentro da normalidade.

    Ana Paula Martins, ministra da Saúde, tutela o INSA. / Foto: D.R.

    Durante esta tarde, o PÁGINA UM contactou três responsáveis públicos, que têm também a incumbência de credibilizarem a Ciência: Fernando Almeida, presidente do INSA; Rita Sá Machado, directora-geral da Saúde; e António Amaral, director-executivo do SNS. Apenas este último respondeu, através do seu gabinete de comunicação, remetendo toda a responsabilidade para o INSA. Os dois primeiros — os directamente responsáveis — mantiveram-se em absoluto silêncio.

    O PÁGINA UM colocou questões objectivas e transparentes, como: quais os critérios e variáveis usados na construção do Índice ÍCARO? Que variáveis meteorológicas ou ambientais estão incluídas? Existe alguma componente subjectiva ou ajustável manualmente? Qual o valor considerado no denominador da fórmula de cálculo (isto é, o número de óbitos esperados sem calor)? Como se calcula o numerador (óbitos previstos sob efeito térmico)? A fórmula é fixa ou sofre adaptações semanais? Por que razão os valores previstos foram revistos em poucas horas? Houve erro de cálculo, actualização de dados meteorológicos ou intervenção discricionária? Existe histórico de revisões abruptas? Com que frequência? Qual o impacto prático das previsões? São comunicadas a outras entidades? Que planos públicos são desencadeados com base nestes números e que entidades são avisadas?

    A ausência de resposta a todas estas perguntas não é apenas uma falha de comunicação: é um sintoma de opacidade e de irresponsabilidade institucional. O Índice ÍCARO, recorde-se, foi criado em 1999 pelo Observatório Nacional de Saúde do INSA, em colaboração com o IPMA, e baseia-se numa equação simples: estima-se a diferença entre o número de óbitos esperados com efeito do calor e o número médio de óbitos sem calor, com base em séries de temperatura máxima observada e prevista. O elemento central é a chamada “sobrecarga térmica acumulada”, isto é, o número de dias em que a temperatura ultrapassa os 32 graus, ponderado pelo grau de excesso acima desse limiar.

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    Foto: D.R.

    O modelo, pioneiro no contexto europeu, tinha méritos técnicos, mas assumia desde o início uma lógica catastrofista. No artigo científico que lhe deu origem, publicado na Revista Portuguesa de Saúde Pública, os autores afirmavam já de forma explícita que o sistema foi desenhado para privilegiar a sensibilidade (ou seja, detectar qualquer situação de risco), mesmo à custa da especificidade (evitar alarmes falsos). Citando literalmente: “Num sistema de alerta, não pode sacrificar-se a sensibilidade à especificidade”. Traduzido: o modelo foi concebido para tocar o alarme o mais cedo possível, mesmo que isso signifique errar frequentemente.

    Nos últimos anos, o Índice ÍCARO tem sido utilizado como instrumento de apoio à comunicação institucional em saúde pública, mas sem ajustamento às novas realidades clínicas, demográficas ou epidemiológicas. Os valores mais recentes resultam exclusivamente de previsões meteorológicas a três dias e não cruzam qualquer dado com registos de saúde, mortalidade real ou factores sociais de risco.

    Além disso, o modelo é opaco: ninguém fora do INSA sabe como funciona em detalhe, nem que peso têm as variáveis, nem como se tratam os dados. E, como agora se comprova, os valores podem ser alterados em poucas horas sem qualquer nota de rodapé — como se não tivessem existido.

    Definir medidas de Saúde Pública com base em modelos sem rigor é meio caminho andado para descredibilizar a confiança da população. / Foto: D.R.

    Este episódio, em que uma previsão recorde é discretamente apagada e substituída por outra sem explicação, é um grave sinal de degradação da confiança científica e institucional. Quando uma entidade pública altera dados sensíveis sem prestar contas, compromete não apenas a credibilidade do índice, mas a do próprio sistema de saúde pública. E quando jornalistas ou cidadãos pedem explicações e recebem silêncio, o problema já não é apenas estatístico — é democrático.

    Num país que em tempos teve Ricardo Jorge como referência de rigor e serviço público, ver o seu nome hoje associado a um sistema opaco e errático é uma ironia amarga. E, mais do que isso, um alerta. Porque há um risco maior do que o calor: o da erosão silenciosa da confiança pública — essa sim, irreversível quando se perde.

  • Há um juiz que quer saber como um jornalista passa os tempos livres

    Há um juiz que quer saber como um jornalista passa os tempos livres


    Portugal atravessa um momento de inquietante regressão democrática. Meio século depois da Revolução dos Cravos, os mecanismos institucionais que deveriam salvaguardar os direitos fundamentais começam a tornar-se os seus principais agressores – tudo sob o manto morno da normalidade administrativa. Já não se trata de actos excepcionais. Trata-se da institucionalização do abuso sob a forma de rotina. Do automatismo inquisitório que devora, com papéis timbrados e formulários absurdos, o que resta da dignidade dos cidadãos.

    Falo, sim, na primeira pessoa. Não por vaidade – mas porque o que está em causa é mais do que um processo judicial. É o sintoma de um sistema que já não reconhece os seus próprios limites. Em Setembro começa o meu julgamento no Porto, após ter sido acusado pelo médico Gustavo Carona de 31 crimes de difamação. Um processo movido contra mim, por ter exercido a crítica pública, por ter respondido, por ter escrito. Por não me ter calado.

    Editorial

    Gustavo Carona, médico durante a pandemia, protagonizou momentos de exaltação pública, incentivando um clima de alarme e de exclusão dos que divergiam da narrativa oficial. Empurrou o discurso para a hostilidade e mesmo para o ódio. O meu “crime” foi recusar-me a alinhar com essa moral sanitária de palanque, e exercer, como cidadão e depois como jornalista e director do PÁGINA UM, o dever de contraditório e de sátira. A liberdade de expressão, de que tantos gostam de se apropriar quando lhes convém, parece ser, para certos sectores, uma licença condicional: vale para a militância, mas não para a crítica.

    Não solicitei abertura de instrução. Porque, desde o início, vi neste processo não apenas uma tentativa de intimidação, mas também uma oportunidade. Ser julgado – de forma pública e transparente – é o que desejo. Porque a absolvição será o meu selo de razão, de liberdade de expressão e de compromisso com a verdade jornalística.

    Aquilo que nunca esperei, no entanto, foi o que se passou a seguir.

    Sem qualquer condenação prévia, sem cadastro, nem sequer uma multa de trânsito ou uma dívida fiscal ou à Segurança Social de um cêntimo, e tratando-se de um processo por alegada difamação em contexto escrito, fui surpreendido por um despacho judicial que ordena à Direcção-Geral da Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) a realização de um relatório social sobre mim – como se de um recluso em transição penal se tratasse.

    Esse relatório inclui, entre outros pontos, a investigação sobre, “em especial“, conforme despacho do juiz:

    • o ambiente familiar em que se formou a minha personalidade;
    • as minhas habilitações literárias e o nível de aproveitamento;
    • o ambiente social em que me insiro;
    • a minha situação familiar e profissional;
    • a ocupação dos meus tempos livres;
    • e, claro, a minha situação económica.

    Repito: trata-se de um processo por difamação, por palavras escritas. E já me vejo reduzido a objecto de vigilância institucional, como se a Justiça estivesse mais interessada na arquitectura do meu lar do que na substância dos meus argumentos.

    Fui convocado pela DGRSP para uma “entrevista”, precedida da entrega de um inquérito em papel que roça o grotesco. É um formulário que parece saído de uma casa de correção do século XIX, onde se confundem necessidades sociais com devassidão institucional. A técnica que me atendeu – de forma correcta, apesar de tudo – apresentou-se com a naturalidade mecânica de quem cumpre ordens superiores. O problema não era ela. Era o que representava.

    Instalações da DGRSP na Avenida Almirante Reis, em Lisboa: onde a dignidade fica à porta.

    O questionário, com o selo da DGRSP, começa por perguntar se sou solteiro, casado, divorciado ou em união de facto. Quer saber a composição do meu agregado familiar, o nome e a idade de cada elemento, o rendimento de cada um. Pergunta se vivo em moradia ou apartamento, se tenho casa-de-banho com água canalizada, rede de esgotos e electricidade. Quer saber se os vizinhos me respeitam, se tenho desentendimentos, e se me ocupo de “tarefas domésticas”. E quer o meu contrato de trabalho, se o tiver. Sim, em 2025, o Estado português ainda pergunta se os vizinhos respeitam o arguido.

    Pergunta também se tenho médico de família – e se sim, o seu nome –, se estou doente, se frequento algum tratamento médico, se já tive contactos – não explicita de que género – com os tribunais, a polícia, os serviços prisionais e os serviços de reinserção.

    Mas mais escandaloso ainda foi o que a técnica me solicitou na entrevista: que apresentasse, um por um, comprovativos de abertura de actividade nas Finanças, os certificados das minhas três licenciaturas e do meu mestrado, e o diabo a quatro. Como se o meu currículo – público, acessível, auditável – não valesse nada para o Estado. Como se o jornalista, para ser tratado com respeito, tivesse de provar por escrito o que o seu trabalho demonstra há décadas. Quiseram-me ali para um ritual de humilhação burocrática. Não uma avaliação social – mas uma suspeição ontológica.

    Inquérito da DGSRP para elaboração do relatório social para cumprimento do despacho do juiz.

    E quando recusei responder a certas perguntas – como a da composição do meu agregado ou a descrição do meu ambiente familiar –, fui informado de que isso poderia ser entendido como “falta de colaboração”. Ora, isto é precisamente o reverso do Estado de Direito. Porque exercer o direito à reserva da vida privada (artigo 26.º da Constituição), à liberdade de expressão (artigo 37.º) e à presunção de inocência (artigo 32.º) nunca poderá ser considerado um sinal de rebeldia. Pelo contrário: é um acto de resistência legal.

    Aliás, só quase uma hora depois de ‘debate’, acabei por conseguir que aceitassem o documento que previamente tinha redigido sobre esta matéria. Mas até isso foi difícil.

    Hoje, observa-se uma perigosa tendência para a normalização do abuso. Quando um arguido, ainda mais sendo jornalista, acusado de difamação, é escrutinado ao nível da intimidade, como se estivesse já condenado, e fosse por homicídio, por violência doméstica ou por tráfico de droga, é porque os juízes perderam o senso da proporcionalidade.

    Quando um inquérito social nem sequer tem previsto, na parte da Escolaridade / Formação, a inclusão da alternativas sobre a frequência (e conclusão) de ensino superior, mas já questiona as minudências da residência (água canalizada, electricidade, redes de esgotos, conforto e privacidade), demonstra que o modelo subjacente não visa avaliar com rigor o percurso ou a posição social do arguido, mas antes reduzi-lo a um perfil de carência presumida, como se todo e qualquer acusado fosse, à partida, um desadaptado social em vias de reintegração.

    a wooden judge's hammer sitting on top of a table

    É a inversão perversa da lógica do Direito — e a consagração de um estigma institucionalizado —, onde se apaga a fronteira entre a justiça e o assistencialismo punitivo.

    E quando o aparelho do Estado exige provas documentais para tudo – até para diplomas que são do (re)conhecimento público – é porque o sistema deixou de confiar na sua própria transparência.

    O PÁGINA UM, que dirijo, já demonstrou – em tribunal – que o poder judicial, por vezes, se arroga acima da lei. Um dos processos administrativos que movemos contra o Conselho Superior da Magistratura levou o próprio presidente (e simultaneamente presidente do Supremo Tribunal de Justiça) a ser advertido pessoalmente com multa por incumprimento de uma decisão judicial. Se isto sucede ao topo do sistema, o que esperar das suas ramificações?

    Não está aqui apenas em causa a minha defesa pessoal. É a defesa de todos os que ainda acreditam que ser jornalista em Portugal é mais do que ser porta-voz do sistema. Que ainda acreditam que o contraditório, a sátira e a exposição do poder são parte da seiva da liberdade. Que não aceitam ser classificados, anotados e arquivados como potenciais réus morais por opinarem de forma incómoda.

    Aquilo que está em causa não é a minha vida privada. É a nossa liberdade pública. E se a justiça continuar neste caminho, amanhã o formulário será para todos.

    Espero que haja reacções e que não reine um silêncio cúmplice no meio jornalístico como em outras situações. Um silêncio que lembra — com ironia amarga — a antiga fórmula usada nos tribunais portugueses: “aos costumes, disse nada.”

    Dita por réus sem passado criminal, esta frase era um acto de defesa; mas dita hoje por cidadãos e instituições perante o avanço de uma justiça que tudo quer vigiar e tudo quer devassar, transformando uma democracia num simulacro, é um acto de rendição. Tornou-se símbolo de uma sociedade que aceita os atropelos da autoridade com a mesma passividade com que um arguido habituado à sala de audiências responde ao oficial de diligências.

    woman holding sword statue during daytime

    Mas eu, como jornalista, como cidadão e como homem livre, não digo nada aos costumes — por uma razão simples: é precisamente contra esses costumes que levanto a voz. Não se deve aceitar que o silêncio se transforme em regra e a humilhação em norma. Não se deve aceitar que a liberdade de expressão, de crítica e de privacidade seja degradada a favor de um sistema que, disfarçado de legalidade, anda desejoso de reprimeir o espírito livre.

    Se este meu julgamento — e um seguinte, que este ano, ainda me há-de colocar defronte das acusações da Gouveia e Melo, da Ordem dos Médicos, do ex-bastonário Miguel Guimarães e de dois médicos sem coluna’ (Filipe Froes e Luís Varanda)— servir para alguma coisa, que sirva para isto: não disse nada aos costumes. Mas direi tudo contra os abusos que deles derivam — porque é essa, afinal, a função do jornalista numa democracia: falar quando o poder preferia que se calasse.