Autor: Pedro Almeida Vieira

  • ‘O Estado quer pagar a um médico menos do que a um pedreiro’

    ‘O Estado quer pagar a um médico menos do que a um pedreiro’

    Na terceira e última parte da primeira ENTREVISTA P1, José Manuel Silva, antigo bastonário da Ordem dos Médicos (2011-2017) e actual presidente da autarquia de Coimbra, faz o rescaldo de uma gestão pandémica que descurou as outras doenças, abordando também as relações promíscuas de (alguns) médicos com a indústria farmacêutica. E não poupa críticas à gestão política do Serviço Nacional de Saúde (SNS), não hesitando em distinguir Correia de Campos, antigo ministro socialista da Saúde, como a pessoa que pior fez ao SNS.


    Como avalia agora a estratégia do Governo português de ter apostado tudo no combate à pandemia à custa da suspensão de exames, diagnósticos e consultas para outras doenças e afecções? Dá ideia que agora a população está com a saúde descompensada…

    Eu gostaria que essas consequências fossem avaliadas para depois percebermos se essas medidas verdadeiramente salvaram vidas ou não. Está por demonstrar, e não vai ser fácil demonstrar. Investiu-se numa doença mais do que se investiu em todas as outras juntas. Por isso, já apareceram artigos a dizer que, se calhar, a factura a pagar pelos doentes não-covid, em termos de doença e de morte, será muito superior. Do ponto de vista de Economia da Saúde não tem racionalidade investir tantos recursos numa doença, deixando as outras desprotegidas. Nós tivemos um bebé com circulação extracorporal [ECMO por alegada infecção por covid-19], e temos 400 crianças com cancro por ano, e muitas delas infelizmente morrem, mas não se tornam notícia, e não se investe o mesmo que se investiu numa única doença. Houve desproporção de investimento numa doença. Ou seja, em termos de Economia da Saúde as potenciais vidas salvas com as medidas tomadas – e seria bom que contabilizássemos o número de mortos em consequência das medidas tomadas –, o investimento foi brutal. Não se faz esse investimento noutras doenças, porque já estão mais banalizadas. Uma pessoa morreu de cancro, já não é notícia; morrer de covid-19 é notícia. E, portanto, investe-se na covid-19. E morreu-se de cancro, que não é notícia, por se terem adiado rastreios.

    Sem falar da redução do número de nascimentos, quase menos 10 mil, como efeito do medo sobre os efeitos económicos da pandemia…

    Isso foi outra consequência.

    Exactamente. E não se fala. Se se somasse a vida potencial dessas crianças não nascidas por causa da gestão da pandemia por 80 anos, tínhamos um número elevadíssimo num dos indicadores de Saúde importantes: os anos perdidos…

    Houve uma gestão muito baseada no pânico que, a partir de determinada altura, foi difícil de controlar, porque obviamente os profissionais de saúde também tinham receio, o que é humano, embora continuassem a desempenhar as suas funções. Enfim, criou-se todo um ambiente. Eu gostaria de saber a contabilidade de vidas que, no dever e haver final, foram verdadeiramente salvas pelas medidas. Se numa fase inicial, em que se desconhecia ainda o vírus, eu diria que quase tudo se justificou, o tempo em que esteve instituído o Estado de Emergência foi excessivamente prolongado. Não havia necessidade de prolongar tanto.

    José Manuel Silva, antigo bastonário da Ordem dos Médicos (2011-2017) e actual presidente da Câmara Municipal de Coimbra.

    Ainda queria voltar ao tema do certificado digital, cujo prolongamento da vigência por mais um ano esteve em consulta pública por iniciativa da Comissão Europeia. Justifica-se prolongar esse certificado por mais um ano como controlo de fronteiras e de acesso a locais públicos?

    Não se justifica. Quem se quer proteger, vacina-se; quem não se quer proteger, está no seu direito. Sem impor esse tipo de medidas. Aliás, já reparou que deixou de se falar da Suécia em Portugal? No princípio, era tudo a bater na Suécia, agora deixou de se falar na Suécia. Afinal, a Suécia não está pior do que nós; até está melhor.

    O absurdo das medidas e da falta de razoabilidade… Recordo-me que, em Helsínquia, na Finlândia, se determinou, logo em 2020, que os motoristas dos autocarros deviam estar sem máscara porque estavam suficientemente protegidos com acrílicos, não havia troca de dinheiro, e deveriam sim estar focado exclusivamente na condução. Aqui em Portugal, eles continuam ainda a trabalhar incessantemente mascarados…

    A infecciosidade depende da taxa de inoculação, depende do número de vírus que a pessoa apanha. Se as pessoas estiverem em contacto com uma inoculação baixa, uma dose baixa, isso é insuficiente para provocar a doença, e até contribui para a sua capacidade de defesa imunológica. Os contactos com baixa inoculação até eram benéficos. Portanto, os exageros não trouxeram benefícios adicionais. Veja que, desde cedo, se soube e se demonstrou que o vírus não se  transmitia pelas superfícies, mas andou-se a gastar rios de dinheiro, contribuindo para a poluição do planeta, com embalagens e desinfetantes, sem vantagem nenhuma. Olhe, recomendo-lhe que leia o relatório do Ricardo Jorge sobre a gripe pandémica de 1918-1919. Ele se vivesse hoje teria tido uma postura completamente diferente. Com a gripe espanhola, ele defendeu, por exemplo, que não se fechasse a Cultura, desde cedo se manifestou contra as “desinfecções” com creolinas e mais não sei o quê. Aquilo não vale nada. E também dizia que só com a descoberta da vacina é que a história natural da doença mudaria, mas dizia também que não se conseguia impedir que as pessoas andassem com desinfecções que não servem para nada.

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    Faz lembrar a Peste Negra, com o uso das máscaras, com aquele bico, que, na verdade, tinha sobretudo um aspecto simbólico…

    Era uma máscara. Aquilo era um filtro, tinha lá um filtro de ervas. Aquilo tinha como objetivo funcionar com o filtro.

    Não, não. Tinha um aspecto sobretudo simbólico. Tinha na ponta uma caixinha com vinagre, que até podia ter algum poder desinfetante, mas aquilo não filtrava nada. Acabou-se sim, por descobrir, que os gatos também ajudavam, mais porque andavam aos ratos, que eram os principais difusores das pulgas. E as cabras também ajudavam, porque as pulgas gostavam delas…

    [risos] Sim. Enfim, mas no caso da covid-19, desde cedo que se verificou que o vírus não se transmite pelas superfícies. Houve alguma recomendação para acabar com isso? Não, pelo contrário. Insistia-se na desinfecção das superfícies.

    Sim. Similar situação se verificou com os ares condicionados, que se suspeitava, não sei com que base científica, promoverem a proliferação do vírus. E houve uma recomendação da DGS em desligá-los em pleno Verão. Nos lares. E depois sucedeu coisas como aquelas no lar de Reguengos…

    Os velhinhos a morreram de desidratação.

    Falemos agora da independência dos médicos, que sempre foi reconhecida, como o seu Código Deontológico determina, aquele que foi aprovado quando ocupou o cargo de bastonário da Ordem dos Médicos. O médico tem a responsabilidade, mas tem também a autonomia de pensar “fora da caixa”, digamos assim…

    Mas a obrigação de respeitar a legis artis.

    Exactamente, exactamente…

    O cartão da Ordem não é uma carta de alforria.

    Por isso falei da responsabilidade. Ou seja, se falhar na legis artis, é punido e deve ser punido. Mas a questão é outra. Durante a pandemia, tivemos médicos a serem altamente criticados pelos seus pares, a serem alvo de processos disciplinares e até a serem desautorizados, como sudeceu com o presidente do Colégio de Pediatria pelo próprio bastonário, que é um urologista. O que aconteceu com os médicos nesta pandemia, com a coragem dos médicos, que são uma elite que deixou de falar livremente?

    Eu não utilizaria o termo coragem ou falta de coragem. Se calhar foram convicções. Não sei.

    Um médico, não vou revelar quem, dizia-me que havia muitos colegas que tomavam ivermectina às escondidas…

    Mas continua a não haver prova nenhuma que previna a covid-19.

    Mas a questão não é essa. A questão é o médico podia antes receitar off label, fora das directrizes, de acordo com a sua prática e responsabilidade, e teve de andar a esconder durante a pandemia, sob o risco de ter processos. Houve muitos médicos que me dizem que não concordavam com muitas medidas, mas que tiveram de se calar. Porque aconteceu isto?

    Caiu-se num campo da verdade absoluta, que eu sempre discordei.

    Acha que isso vai mudar, depois da pandemia? Acha que este clima sucedeu por causa da pandemia? Ou por causa das pessoas?

    É evidente que foi por causa das pessoas. A pandemia não tem culpa de verdades absolutas. Mas, já que pegou no caso da ivermectina, houve claramente um comportamento distinto das autoridades relativamente ao remdesivir e à ivermectina.

    Pois, o remdesivir foi endeusado, a DGS comprou 20 milhões de euros e estão contabilizadas em Portugal 250 reacções adversas, a pior posição a nível europeu…

    A brincar, eu costumo dizer que acredito em milagres, mas para termos a graça de um milagre temos de ir a pé a Fátima. Ou seja, nem os milagres acontecem por acaso. Passado este momento de humor, nós tínhamos uma molécula, o remdesivir, que foi desenvolvida como antivírico, mas que não tinha eficácia nenhuma em nenhum vírus.

    Nem no ébola?

    Nem no ébola. De repente, por milagre, é eficaz contra o SARS-CoV-2. Eu acredito pouco em milagres. Que eu saiba, o remdesivir não foi a pé a Fátima, portanto, não sei como foi agraciado com um milagre.

    Foi comprado pela Comissão Europeia, que depois obrigou os Estados-membros a comprarem à Gilead, pouco tempo antes da Organização Mundial da Saúde não aconselhar o seu uso como tratamento contra a covid-19.

    E pronto, e deu-se remdesivir, e havia as normas da DGS para dar remdesivir. E se os médicos não o dessem e, porventura, um doente morresse, podíamos ser questionados e processados por não termos dado remdesivir, porque estava na norma da DGS, e depois lá teríamos de andar a demonstrar em tribunal que o remdesivir não fazia nada. Relativamente à ivermectina, enfim apareceram alguns estudos iniciais, não controlados, abertos, que apontavam para alguma eficácia, foi completamente rejeitado por todas as autoridades. Mas o remdesivir foi rapidamente aprovado por algumas. Houve aqui uma divergência de postura que não tinha fundamentação científica. Se calhar teve foi fundamentação económica.

    Vamos então entrar num problema bicudo. Há quatro médicos que integraram a equipa da DGS que definiu as terapêuticas da covid-19 que tiveram relações comerciais directas com a Gilead, inclusive integraram o advisory board do remdesivir. Onde começa o conselho médico para a DGS e as relações perigosas com a indústria farmacêutica?

    Relações perigosas podem haver de muitas maneiras e feitios, mais explícitas, menos explícitas. Aquilo que passou a acontecer nos congressos médicos é que quando uma pessoa faz uma comunicação tem de colocar os seus conflitos de interesse, como contratos, trabalhos, consultadoria. Mostrar os seus conflitos de interesse e depois faz a sua intervenção, e as pessoas, quem está a assistir, devem ter um espírito crítico suficiente.

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    Vou contar-lhe então um caso pessoal, com uma investigação do PÁGINA UM…

    Isso não aconteceu agora na pandemia? Explicitar os conflitos de interesse. À cabeça.

    Eu ajudei a fazer isso. Aliás, ainda há pouco tempo, listei os 421 médicos que tiveram a sua participação ou inscrição paga por farmacêuticas no Congresso de Pneumologia. Revelei os apoios monetários que a Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP) recebeu deste sector no ano passado foi de 1,3 milhões de euros, quase o dobro do registado em 2020. Pfizer e muitas outras. Tudo público. E agora, tenho uma queixa do presidente da SPP na Entidade Reguladora para a Comunicação Social…

    Certamente não vai ser condenado.

    Acho que vou enviar esta sua resposta para o presidente da ERC…

    Eu acho que informação verdadeira nunca pode ser crime. A não ser que haja questões do foro pessoal.

    Não deveria ser a própria Ordem dos Médicos a criar um código de ética sobre as relações com a indústria farmacêutica?

    Eu diria que essa ética existe nas declarações de conflito de interesse, que são obrigatórias nos congressos.

    Mas depois não há consequências. Eu não quero estar a particularizar, mas estou a investigar alguns consultores do Infarmed e da DGS. Alguns são membros de sociedades médicas que recebem mais de 50 mil euros por ano, em média, do sector farmacêutico, o que é uma incompatibilidade. Quando eu denunciar isto, muito provavelmente pouco acontece. Não deveria ser uma associação profissional, como a Ordem dos Médicos, e ter esse poder regulador e disciplinador?

    Não é preciso nenhuma entidade. Quem faz a lei é o Estado, e pode considerar que determinados potenciais conflitos de interesse são inibitórios para ser consultor de uma entidade pública.

    Portugal tem, neste momento, carências de cuidados de saúde primários, hospitais a abarrotar. Afinal há médicos a mais ou menos? Não consigo compreender

    Essa é uma excelente questão. A Economia da Saúde é interessante, porque está escrito que uma das maneiras do Estado reduzir a despesa é não contratando médicos. Se não contratar médicos, os doentes são obrigados a recorrer a outras soluções, e portanto dão menos despesas ao Estado. Vivemos num mercado concorrencial, aberto. Se o Estado quiser contratar médicos, se calhar tem que lhes oferecer um vencimento minimamente aceitável. E não faz porque não quer fazer. Há quantos anos se fala na exclusividade, na dedicação plena, dos médicos aos hospitais públicos?

    E porque não há exclusividade?

    Não há, porque o Estado não quer. Quem acabou com exclusividade foi o Estado de um governo socialista. Foi um programa socialista que acabou com exclusividade no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Se um médico quiser estar em exclusividade no SNS não pode. E como um médico especialista no hospital público ganha menos que um pedreiro – e isto é literalmente verdade –, é evidente que procura outras soluções, ou complementares ou totais. Portanto, quando um Governo diz que abriu X lugares, mas ficaram desertos, não é por falta de médicos; é por falta de interessados. Os médicos emigram, vão para o sector privado. E depois temos o Estado a pagar mais aos médicos que no setor privado trabalham para o Estado do que aos médicos do setor público. Quem esvazia deliberada e conscientemente o SNS de médicos é o Estado. Não temos falta de médicos, basta ver as estatísticas mundiais. Mas é evidente que se não lhes pagamos…

    Vêem-se, por exemplo, médicos conceituados que, sendo conceituados, são professores de Faculdades de Medicina, depois ainda são directores de serviço de hospitais públicos, trabalham ainda para o privado, se calhar ainda dão consultas, consultadorias, etc. Não sei como é que eles têm tempo para serem bons em tudo…

    Eu diria que um dia só tem 24 horas. A Leonor Beleza [antiga ministra da Saúde, entre 1985 e 1990], quando instituiu a exclusividade, fez isso como uma arma de arremesso contra os médicos, porque queria demonstrar que não queriam trabalhar no SNS, e que todos queriam ser milionários. Enganou-se redondamente, e depois viu que não tinha orçamento. Houve tanto médico interessado na exclusividade que começaram a colocar restrições. Até acabarem com a exclusividade. Qual a idoneidade de qualquer partido que passou pelo Governo deste país para falar que faltam médicos no SNS se se recusam pagar essa exclusividade.

    Qual seria o valor justo para a exclusividade para um médico?

    Não sei qual será o valor justo. Isso varia com o mercado, varia de especialidade para especialidade. Mas pagar 1400 euros líquidos por mês…

    Isso não. Isso é ridículo…

    Mas, pronto, esse é o valor que o Estado paga actualmente. Quando havia exclusividade, havia um acréscimo de 40% no vencimento, que se reflectia também nas horas extraordinárias. Se um médico fizesse algumas horas extraordinárias no hospital tinham um vencimento que lhe permitia uma vida tranquila, não de rico, mas uma vida para se dedicar à Medicina num hospital público e não ter outro tipo de preocupações. Porém, havia uma dicotomia no pagamento das horas extraordinárias, porque estavam indexadas à exclusividade ou não, o que colocava, enfim, um incómodo entre os médicos que poderiam estar a fazer exactamente o mesmo serviço e com a mesma graduação, mas a receber valores diferentes.

    Não parece, de facto, muito justo…

    O Governo socialista recusou pagar o mesmo. E não só recusou como permitiu que os médicos que estavam com 35 horas em não exclusividade deixassem de fazer horas extraordinárias, e de repente… Sabe quem fez pior ao SNS. O senhor professor Correia de Campos foi o ministro da Saúde [2001-2002 e 2005-2008] que pior fez ao SNS. Permitiu que determinados médicos deixassem de fazer horas extraordinárias, os das 35 horas, e de repente ficou sem médicos para as urgências. E o que fez foi contratá-los ao privado, pagando muitíssimo mais. E desorganizou todo o SNS. O professor Correia de Campos quis deixar de ter médicos a ganhar algum dinheiro e passou a contratar médicos a ganharem 150 euros à hora. Sabe qual foi a diferença? Em vez de pagar horas extraordinárias aos médicos do SNS foi contratar ao privado e colocou os gastos na mesma rubrica das batatas e dos feijões.

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    Portanto, a valores reais, se incluirmos a contratação por essa via, a hora de um médico é hoje muito superior à de há 10 ou 20 anos, mas grande parte do dinheiro vai para os privados.

    Sem essa política, teríamos agora mais médicos no SNS e o Estado estaria a ter menos despesa. Vou lhe dar outro exemplo. O Grupo Mello, que geriu em parceria público-privada (PPP) o Hospital Amadora Sintra, tinha uma política, que eu sugeri para o SNS quando fui bastonário, de pagar o mesmo vencimento da Função Pública, mas para os melhores fazia um segundo contrato para trabalharem mais horas. Era uma forma diferente de exclusividade, sendo que não era uma exclusividade formal, mas esses médicos ficavam com o seu horário mais ocupado. Isso manteve-se com o fim da PPP. Por pressão da troika, houve um despacho do Ministério da Saúde que passou a proibir os médicos de terem dois contratos com o SNS, e aquilo que era legal passou a ser ilegal. E depois lá veio um título num jornal a dizer que não sei quantos médicos tinham contratos ilegais no Amadora-Sintra. Em consequência, esses segundos contratos foram eliminados e, de imediato, o Hospital Amadora-Sintra passou a ter um défice de milhares de horas de trabalho médico por mês. E entrou em colapso. Isso foi deliberado ou foi inocente?

    Eu acho que não deve ter sido muito inocente…

    Eu acho que foi deliberado, para prejudicar a assistência num hospital do SNS. Reduzir a despesa pública em Saúde e obrigar as pessoas a recorrer ao sector privado. Portanto, nós não temos falta de médicos em Portugal, que fique bem claro. O SNS é que não quer contratar médicos. Se lhes quer pagar menos do que a um pedreiro é porque não os quer contratar, e depois vai contratualizar com o sector privado a dita produção.

    Agora, se calhar, são os grupos privados, que beneficiaram com isso, que fazem pressão para não se inverter essa política…

    Já só podemos estar a especular sobre isso. Mas lembro-me que já tivemos um ministro da Saúde que veio do Grupo Mello, que não tinha nada a ver com a Saúde, não percebia nada de Saúde. E foi para ministro da Saúde. Portanto, essas ligações perigosas há a todos os níveis. Costumo dizer que a política de saúde do PS e do PSD é exactamente igual; só a retórica é um bocadinho diferente.

    Fotos da entrevista: António Honório Monteiro

  • ‘O certificado digital é um exagero sanitarista’

    ‘O certificado digital é um exagero sanitarista’

    Mais que o novel presidente da autarquia, José Manuel Silva ficou conhecido por dois mandatos à frente da Ordem dos Médicos, entre 2011 e 2017. Nesta segunda parte da longa entrevista com o PÁGINA UM, não se furta a falar de tudo sobre a pandemia. E tanto disse ele que haverá ainda uma terceira parte nesta primeira ENTREVISTA P1.


    Antes de ligar o microfone, falou-me que, se os munícipes assim o entenderem, ficaria à frentes dos destinos da Câmara de Coimbra durante dois mandatos, ou seja, oito anos. A prática médica estará assim, para si, em segundo plano…

    Completamente suspensa.

    Em todo o caso, será sempre um médico. Por isso, e também porque esta entrevista se justifica por ter sido bastonário da Ordem dos Médicos durante seis anos (2011-2017), como vê agora a pandemia? Ou melhor, se calhar já estamos na fase pós-pandemia, não?

    Para mim já estamos. A partir do momento em que um vírus se transforma num vírus endémico, como é o caso, já estamos na fase pós-pandémica, embora isso seja um debate interessante, mas de efeitos concretos pouco estimulantes.

    Não vou fazer nenhuma inconfidência, mas estamos aqui todos sem máscara, mas não estamos aqui a cumprir a lei e as orientações da Direcção-Geral da Saúde (DGS), certo?

    Se estivéssemos todos num restaurante estávamos todos sem máscara, a comer, e onde há mais gente. E com maior concentração de pessoas do que aqui, onde estão cinco. Um dos exemplos que dou das medidas absurdas durante a pandemia é a dos semáforos em 2021 nas praias, que foi uma manifestação de estupidez humana. E, por exemplo, nos restaurantes, em que temos de entrar com uma máscara, estamos lá dentro a comer, a beber, a conversar e a cantar, se for o caso disso, sempre sem máscara, e depois para sair do restaurante temos que pôr uma máscara outra vez. Isso é a insanidade total. A irracionalidade total nas medidas.

    José Manuel Silva, antigo bastonário da Ordem dos Médicos (2011-2017) e actual presidente da Câmara Municipal de Coimbra.

    Havia algumas medidas não-farmacológicas que até faziam sentido: a promoção do teletrabalho e a redução do número de pessoas nos transportes públicos, por exemplo. Mas chegou-se ao limite de multar pessoas por comerem sandes no carro, ou por comprarem gomas em máquinas de vending. E vedaram-se bancos de jardim com fitas para as pessoas não se sentarem. E por que não ouvimos médicos distintos a dizerem que essas medidas eram loucas? Ou melhor, porque não se permitiu ouvir? Na verdade, houve alguns que criticaram essas medidas, mas foram logo catalogados. Porque é que houve esta gestão, assim?

    Porque se instalou uma circunstância de pânico, e depois de controlo das populações pelo medo. O condicionamento das pessoas pelo medo. Eu fui tentando, nomeadamente nas redes sociais, fazer alguns comentários que divergiam das verdades oficiais, e era quase crucificado pelos extremistas das medidas e do controlo das pessoas pelo medo. Chegaram mesmo a defender que era preciso que as pessoas tivessem medo.

    Sim. Houve uma task force da DGS que defendeu essa estratégia do medo…

    E eu dizia que não; devia-se, sim, informar as pessoas. Temos aqui um distinto psiquiatra [Pio Abreu, que assistiu à entrevista], que pode confirmar que houve problemas grave de saúde mental por causa do pânico. Um pânico como se a Humanidade se fosse extinguir por causa de um vírus, quando, desde o início, se percebia que a taxa de mortalidade até era relativamente baixa.

    Eu ia colocar-lhe essa pergunta, porque o medo ou o pânico advêm sobretudo do desconhecido ou da ignorância. Ora, muito rapidamente se constatou que a taxa de letalidade rondava os 2%, que era muito superior nos idosos ou pessoas com comorbilidades, mas baixíssima na população abaixo dos 40 anos. A mortalidade pelas pneumonias, sendo irrelevante abaixo dos 20 anos, mesmo assim é superior à da covid-19. Mas quem falava disto era rotulado de negacionista. E aquilo que mais vimos foi a classe médica, corporizada pela Ordem dos Médicos e o seu Gabinete de Crise, a alimentar o pânico… Teria sido diferente consigo, se a pandemia tivesse ocorrido durante o seu mandato?

    Isso é uma pergunta que me deixa numa posição desconfortável.

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    Mas é essa a função dos jornalistas, ou não?

    [pausa] Sim, teria havido diferenças.

    E em que aspectos, mais em concreto?
    [risos] [pausa] Teria havido diferenças. Aliás, basta ver o que fui escrevendo no Facebook para se perceber.

    Os leitores do PÁGINA UM podem não o ter lido…

    Os objetivos deveriam ter sido claramente definidos. Saber o que queríamos com as medidas de combate à pandemia, na prevenção e minimização do impacto na saúde das pessoas. Aliás, como dizia aquele epidemiologista sueco [Johan Giesecke], isto não é como começa, mas como acaba; é como no futebol. Aquilo que interessa não são os picos – que só importam para avaliar a capacidade de resposta do sistema de saúde. O impacto da pandemia mede-se não pelo pico, mas pela área sobre a curva. A única coisa que as medidas [não-farmacológicas] fazem – e bem, porque foi preciso garantir que a capacidade de resposta não fosse completamente ultrapassada, como foi em alguns momentos – é achatar a curva. Mas o que se estava a fazer não era evitar casos; era adiar casos. Aliás, do ponto de vista epidemiológico, basta ver a evolução dos outros quatro coronavírus que já circulavam antes do SARS-CoV-2 para percebermos como este se comporta. E sabemos o que são pandemias quando aparece um novo tipo de vírus. Não há nada de novo nem transcendental. E a verdade é que os confinamentos achatavam a curva, adiavam mas não evitavam casos. Isso foi importante, numa primeira fase, para dar tempo ao país para se preparar melhor, porque estava completamente impreparado. Não foi por acaso que a nossa primeira medida foi o Estado de Emergência [em Março de 2020], e depois tivemos algum tempo para nos prepararmos.

    Nos primeiros confinamentos, em 2020, com os Estados de Emergência e os lockdowns até fomos elogiados internacionalmente, e quase levámos uma medalha…

    Porque usámos a “bomba atómica”, mas depois…

    Pois, a questão é essa: depois, em Outubro de 2020, o Ministério da Saúde anunciou que tinha 17 mil camas para doentes-covid, mas chegámos ao Inverno de 2020-2021 e foi o descalabro completo. O Serviço Nacional de Saúde colapsou.

    Colapsou…

    E no último Inverno, com tantos casos positivos, não se repetiu porque claramente a Ómicron, a variante dominante, tem uma letalidade muito mais baixa…

    Os casos pela Ómicron não interessam…

    Exactamente

    E quanto mais testes se fizessem mais casos tínhamos, porque se detectavam pessoas assintomáticas. O nosso número elevado de casos foi devido à decisão de se fazerem mais testes.

    Mas sempre que se falava em aplanar a curva, era afinal uma curva de casos positivos. Estava-se sempre a falar nos casos. Estávamos sempre numa epidemia de casos…

    O problema foi que não houve capacidade ou interesse do Governo, do Ministério da Saúde e da DGS em se fazer uma análise sobre o antes e o depois das vacinas. Quando apareceu a pandemia dizia-se que só se resolvia isto com a imunidade de grupo, só quando todos apanhássemos a doença, porque não havia vacinas. Ou, dependendo da contagiosidade, quando 85% da população tivesse apanhado covid-19. Felizmente – e porque a técnica já existia, já estava a ser muito desenvolvida e testada para várias doenças, incluindo terapêutica do cancro –, foi possível descobrir-se ou preparar-se, com rapidez, uma vacina contra o SAR-CoV-2, e tudo mudou. A população que nunca tinha tido contacto com o vírus, podia desenvolver imunidade sem doença, de modo a estar preparado para quando houvesse contacto com o vírus. E assim teria a situação amenizada, como acontece com as vacinas, e como acontece com a gripe. Portanto, isso preparou-nos. Houve uma redução significativa do número de casos. Por isso, a partir de Outubro ou Setembro do ano passado, quando tínhamos 86% da população vacinada – só não estavam vacinadas as crianças, que nunca precisaram de ser vacinadas, e as pessoas que não se queriam vacinar, cuja opção eu respeito –, devíamos ter recuperado uma vida normal. Desenvolver uma vida normal.

    Vamos falar da vacina. É uma tecnologia nova, que não tinha sido ainda utilizada de uma forma massiva. Ora, estamos perante uma doença em que sabemos que acima de 80 anos a taxa de letalidade rondava os 15%, depois baixava para os 4% ou 5% nos septuagenários; na minha idade descia para 1%. E por aí fora… Num adulto jovem e numa criança era 0,00 qualquer coisa. Ora, conhecendo-se isso cientificamente, e sabendo-se ainda que, afinal, a vacinação não dava imunidade de grupo, que um vacinado podia infectar e ser infectado, justificava-se a vacinação universal, como fizemos, de uma forma praticamente coerciva?

    As crianças, não. Os jovens… [pausa] Repare: fez-se uma coisa que não existe na Medicina, que é tratar uma pessoa para prevenir a doença noutra. E essa foi a justificação para se vacinarem as crianças e os jovens.

    Isso é etico?

    É discutível.

    Mas, na sua opinião, é ético ou não?

    É discutível. A ética é um conceito relativo. É eticamente discutível fazê-lo.

    Desculpe insistir, mas não me respondeu. Imagine que estava num fórum sobre ética a discutir esta questão. Qual seria a sua posição? Pode dizer-me que ainda não tomou uma posição. Mas diga-me se é a favor ou se é contra, ou se ainda não tomou uma decisão…
    Nós não vivemos num mundo de extremos, de preto e branco. Temos os tons de cinzento. A ética é um conceito relativo e subjectivo.

    Mas eu coloquei-lhe a hipótese de não ter uma posição definitiva. Nem branco nem preto, estou ainda a reflectir…

    Digo-lhe que é eticamente discutível e não foi discutido. Por exemplo, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) não foi ouvido, e eu acho que devia ter sido ouvido. Não sou um eticista. Tenho o meu conceito de ética, mas eu gostaria de ter visto esta questão ser discutida pelos especialistas em ética. E eu soube de um representante do CNECV a dizer que deviam ter sido ouvidos e não foram. Eu não vou dizer preto ou branco, é ético ou não é ético, porque há imensas matizes na ética. Agora, eu gostaria de ter ouvido o CNECV pronunciar-se sobre vacinar pessoas que não beneficiam de uma vacina alegadamente para proteger outras. E é mesmo alegadamente – não é que a vacina lhes fizesse mal, atenção. Não está isso em causa, na minha opinião. Aliás, muitas pessoas perguntaram-me se deveriam vacinar os filhos ou não. E eu disse-lhes: façam como vocês entenderem, porque eles não precisam de ser vacinados, mas a vacina também não lhes faz mal. Dizia-se, por exemplo, que os jovens vacinados têm menos miocardites [do que os não-vacinados]. Sim, e depois? É verdade, têm menos miocardites; qualquer pessoa que tenha uma doença virusal pode ter uma miocardite, mas a mim não me interessa que tenha uma miocardite; sim interessa é saber se essa miocardite tem consequências.

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    É a velha questão dos casos e dos assintomáticos…

    Sim. O que me interessa termos 10 mil casos de covid-19, se muitos são completamente assintomáticos? Não contam. Portanto, pode-se dizer, até inequivocamente, que os jovens vacinados têm menos casos de miocardite, porque não têm uma infecção vírusal – embora a própria vacina, mas enfim de uma forma discutível, pudesse eventualmente desencadear casos de miocardite, porém numa taxa inferior aos não-vacinados. Mas a questão essencial é: beneficiaram disso? Não há provas nenhumas que beneficiem disso; por isso é que nos estudos de prevenção não se aceitam os endpoints intermédios, que são os casos, porque aquilo que tem peso são os hard endpoints, como as mortes e os internamentos em unidades de cuidados intensivos. Ora, não está demonstrado que as vacinas reduzam os hard endpoints nas crianças, portanto não precisavam de ser vacinadas.

    Ainda sobre a segurança das vacinas, e o tal princípio da prevenção…
    Eu não tenho dúvidas sobre a segurança das vacinas. Algumas pessoas receiam levar RNA mensageiro porque dizem que mexe com a nossa genética, porque entra na célula. É verdade, mas se nós levamos com o vírus, em vez de levarmos uma dose controlada de RNA mensageiro, apanhamos uma dose maciça de RNA mensageiro do vírus. Eu acredito na inocuidade da vacina. Vacinei-me com as três doses, embora ache que nem precisava da terceira dose, porque tinha anticorpos positivos. Aliás, estive a trabalhar em enfermarias-covid, lidei com o vírus todos os dias, já depois das duas doses de vacina. Eu tinha valores de anticorpos positivos, porque os medi. Não precisava da terceira dose, mas ok vacinei-me, para ter o certificado, porque aquilo também não me fez mal. Andei para aí um dia com cansaço anómalo, mas isso também faz parte.

    Falou dessa questão dos anticorpos, e vou aproveitar para uma “consulta”. Tive covid-19 com internamento em Junho do ano passado, nunca usei o certificado digital por considerar que não é método de controlo da pandemia, e serve apenas para discriminar, fui recusando os “convites” para me vacinar desde Agosto, li literatura científica sobre imunidade natural, sobre efeitos adversos. Em finais de Dezembro do ano passado, fiz um teste serológico (IgG) que deu um valor 427 BAU/ml; repeti agora em finais de Março e deu 438 BAU/ml, o que indicia que, provavelmente, até terei contactado com a Ómicron. Pergunto ao médico: devo vacinar-me ou não?

    Com anticorpos positivos, não vale a pena. A não ser para ter um certificado digital, que é o passaporte para a liberdade [dito com sarcasmo]…

    Mas que é isto do passaporte sanitário? Mas o que é que é isto de se usar um passaporte sanitário? E pergunto-lhe a si como cidadão e como médico. Onde está a Ciência no passaporte sanitário? Porque, salvaguardando a analogia, é o mesmo que impor, numa campanha de redução dos cancros da pele, que qualquer pessoa se besunte de factor 50 para entrar na praia, mesmo um negro do Senegal…

    É um exagero sanitarista, até porque isso é o resultado de as autoridades não acreditarem na vacina. Eu não preciso que se vacine, ou que tenha um passaporte, para eu me proteger. Para me proteger, vacino-me. Se eu quisesse, até podia estar aqui de máscara, enfim, também tinha uma proteção adicional, mas se me quero proteger, vacino-me. Quem se quer proteger, vacina-se. Eu não tenho nenhum problema com as pessoas que não se querem vacinar. Eu acho que não devia ser necessário passaporte sanitário nenhum. Quem não se quer vacinar, prefere estar desprotegido, corre riscos maiores, mas é uma opção. Aliás, a base do exercício da Medicina é o consentimento informado; ou seja, eu não posso obrigar nenhum doente a fazer uma coisa que ele não quer. Como é que eu posso obrigar alguém a vacinar-se se ele não quiser? Como é que eu posso obrigar alguém a ter um passaporte sanitário, se ele não quiser? Eu protejo-me da forma que entendo mais eficaz, e vacinei-me. No entanto, convém dizer que há alguma similitude, por exemplo, com febre amarela em alguns países. O conceito do passaporte sanitário já existe, não é novo, não há também razão para o diabolizarmos. Mas no caso da febre amarela – que pode ser uma chatice – está em causa sobretudo evitá-la quando se está em certos países com piores cuidados médicos.

    Mas voltando atrás. Se o certificado digital deixar de estar em cima da mesa, uma pessoa nas minhas circunstâncias deve vacinar-se?

    Nos outros coronavírus já sabemos que a imunidade, a memória imunológica, aos coronavírus é transitória, e é reactivada por ciclos regulares de reinfecção a cada dois a quatro anos. Já tivemos muitas infecções por coronavírus, e vamos ter muitas infecções por SARS-CoV-2, que está endémico. Por isso, andarmos de máscara agora, quando não há uma pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde, até é contraproducente. Por isso digo que a partir de Outubro do ano passado devíamos ter passado a fazer uma vida normal, porque tínhamos a população com a taxa máxima de vacinação. E, nessa medida, seria preferível ter um contacto com o coronavírus quando se tem ainda memória imunológica, e ele reactiva, do que quando a memória imunológica se perdeu completamente. Por isso, usar máscara depois de termos 86% da população vacinada não tem nenhuma fundamentação científica. Nenhuma.

    Ou seja, até convém que as pessoas recentemente vacinadas tenham novamente contacto com o vírus…

    Claro. Para reactivarem a sua memória imunológica, e irem fazendo uma transição progressiva entre as novas variantes do coronavírus, que se sucedem, porque assim ficarão mais bem preparadas.

    Quanto à questão do consentimento informado. Soube-se no mês passado que quatro membros da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 votaram contra o parecer que deu luz verde para o programa de vacinação de adolescentes em Agosto de 2021, mas isso foi escondido por meses pela DGS. Essa informação não deveria ter sido dada aos pais, tanto mais que não houve unanimidade, mas sim unanimismo?

    Claro que sim, claro que sim.

    E porquê que houve este unanimismo?

    Não me pergunte a mim, porque não participei dele.

    Entretanto, esta semana a directora-geral da Saúde defendeu ser ainda muito cedo para deixar as máscaras em espaços fechados.

    Eu gostaria que jogássemos pela Ciência. Eu gostaria de ter um debate com ela sobre esta questão do “seguro”. O que é isso “jogar pelo seguro”? Defina “jogar pelo seguro”. Vamos evitar alguma coisa num vírus endémico? Ou vamos adiá-lo?

    Ou esperar que tenhamos mortes zero…

    A DGS tem que decidir com rigorosas bases científicas. Ora, ela diz “vamos jogar pelo seguro”; o que é isso? Ela tem a certeza que se continuarmos a usar máscara é mais benéfico do que não-benéfico? Não tem nenhuma evidência. Aliás, temos agora uma epidemia de gripe A exactamente por termos estado a usar máscara durante dois anos. É evidente que usar máscara também tem efeitos negativos. Sim, foi necessária na fase pior; foi necessária enquanto não estávamos vacinados; foi necessária não para evitar casos, mas para adiar e achatar a curva. Agora, para um vírus que se tornou endémico, ou nós usamos máscara para toda a vida e andamos a ser vacinados de seis em seis meses, ou vamos ser infectados regularmente como acontece com os outros quatro coronavírus.

    O PÁGINA UM divulgou informação detalhada de uma base de dados oficial de internados-covid, revelando situações estranhas de contabilização de óbitos por covid-19. Temos doentes terminais de SIDA considerados vítimas do SARS-CoV-2, centenas e centenas de mortes por AVC e ataques cardíacos atribuídas à covid-19 apenas por causa de testes positivos. Quedas de camas e infecções nosocomiais não-covid são imensas. Uma mulher com queimaduras de 3º grau na cara e peito, metem-lhe a zaragatoa, testa positivo, acaba por morrer três dias depois, mas por covid-19. Num hospital, um doente atira-se pela janela, como está descrito, portanto suicidou-se…

    Foi o SARS-CoV-2. Provocou-lhe um surto psicótico…

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    Como foi possível tanta contabilização criativa?

    Houve uma contabilização sem rigor científico relativamente às causas de morte.

    E isso aumentou mais o pânico?

    Isso contribuiu para aumentar o pânico, porque aumentou a casuística. Por acaso, falei com um colega do Alentejo quando morreu o primeiro doente nessa região. E ele disse-me que era uma pessoa de idade com polipatologia, acamado, demenciado, a quem, por acaso, fizeram uma zaragatoa, já ele tinha falecido, ou estava a falecer. Aliás, como está já publicado, muitas das pessoas que morreram de covid-19 iriam falecer nesse mesmo ano pela sua doença de base, pela sua idade ou pela sua polipatologia.

    E o PÁGINA UM também noticiou que até Maio de 2021, em cada 10 internamentos-covid, quatro eram afinal por outras causas…

    A congestão dos hospitais também foi agravada por causa das determinações da DGS. Eu estive a coordenar três enfermarias-covid há um ano aqui no Hospital de Coimbra, e quisemos mandar doentes para as suas instituições de origem, e não podíamos porque, embora ao décimo dia estivessem absolutamente assintomáticos, tinham de ficar lá mais 10 dias sem necessidade nenhuma. Tudo por causa de regras não cientificamente fundamentadas da DGS. E eu reclamei por escrito, depois de falar com vários colegas do hospital, e nunca obtive resposta.

    (continua amanhã)

    Fotos da entrevista: António Honório Monteiro

  • ‘Vamos aprimorar a nossa democracia, e depois falamos de regionalização’

    ‘Vamos aprimorar a nossa democracia, e depois falamos de regionalização’

    Foi uma das surpresas das eleições autárquicas de Setembro do ano passado, apeando o histórico socialista Manuel Machado da presidência da Câmara Municipal de Coimbra. O antigo bastonário da Ordem dos Médicos, entre 2011 e 2017, o independente José Manuel Silva, fala sobre a “decadência” e o novo vigor (anunciado e defendido) da cidade do Mondego, com o director do PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira, que aí nasceu há 52 anos. E também aborda a descentralização e a regionalização do país. Mas preparem-se: esta é apenas a “introdução” de uma longa entrevista. Na segunda parte, o tema é mais escaldante e nacional: pandemia, médicos e Serviço Nacional de Saúde. Eis a primeira ENTREVISTA P1.


    Historicamente, Coimbra é a capital da Beira Litoral, mas perde população há 20 anos. Na última década registou uma sangria demográfica em freguesias rurais, com três a perderem mais de 10% da população. Tem a certeza de que Coimbra fica mesmo na Beira Litoral?

    Essa é uma boa pergunta. Coimbra tem uma localização extraordinária. Tem todas as vantagens de estar no litoral e a meio do país. Aliás, quando fui bastonário da Ordem dos Médicos, a maioria das reuniões dos colégios era em Coimbra, por ser central. Tem uma boa localização geográfica, apesar de algum problema de acessibilidades, nomeadamente para o interior, que nos prejudica um pouco. Mas possui um potencial extraordinário: foi durante 100 anos a primeira capital do país, tem uma História, um Património, uma Cultura que não existe em nenhuma outra cidade.  Os italianos dizem que Coimbra lhes lembra Florença. Temos uma universidade com características únicas, temos uma música própria…

    E também tem mais de 25% da sua população com curso superior, mas…

    Exactamente. Eu diria tem tudo, só lhe faltava uma coisa, que a prejudicou e justificou a esta recente mudança: uma Câmara Municipal que acompanhasse a evolução dos tempos, que fosse um motor de desenvolvimento, e não um factor de obstaculização. Eu agora tenho andado por muitos fóruns onde me dizem que é primeira vez que Coimbra aparece.

    José Manuel Silva, presidente da Câmara Municipal de Coimbra e antigo bastonário da Ordem dos Médicos (2011-2017)

    A sensação que tenho, que nasci em Coimbra mas estou há várias décadas em Lisboa, é de que a cidade vive muito à margem da sua universidade, e que a própria universidade foi perdendo – e acho que não foi por causa do seu irmão [José Gabriel Silva, reitor entre 2011 e 2019] – um certo élan nos últimos anos…

    Eu diria que começou a reganhar algum élan nos últimos anos. Perdeu durante muitos anos, mas começou a recuperar. Ainda esta tarde estive na apresentação da segunda call da INNOV-ID para projectos empresariais na área da inovação pela Portugal Ventures, e posso dizer-lhe que na primeira call oito dos 40 projetos financiados tiveram origem no Instituto Pedro Nunes [de Coimbra]. E, portanto, há também em Coimbra um potencial científico e cultural, eu diria inigualável, na área da Educação e da Ciência. Coimbra sofre um pouco de problema de marketing, mesmo se a marca Coimbra é fortíssima em todo o Mundo. Em muitos países, como no Brasil, é mais forte que a marca Lisboa.

    Exacto. Desde o século XVIII quem no Brasil queria estudar Direito vinha sempre para Coimbra…

    Estive agora também em Pavia num encontro de cidades do Cultural Cities Twinning. São cidades de média dimensão, não-capitais com uma universidade histórica. Coimbra é conhecida na Europa por ser a cidade com uma das universidades mais antigas do Mundo.

    Mas estamos apenas perante uma questão de marketing, ou de algo mais? Repare, além desse marketing intrínseco histórico, Coimbra viu em 2013 a zona da Universidade, da Alta e da Sofia ser classificada como Património Mundial pela UNESCO, e parece que não foi nada. O que faltou para dar o pulo?

    Faltou Câmara, na minha opinião, que é naturalmente enviesada. Mas faltou Câmara, faltou uma maior ligação entre a Câmara e a universidade – e eu aí sei, por razões familiares, das dificuldades de relacionamento entre a Universidade e a autarquia, e não por responsabilidade da Universidade. Durante os últimos quatro anos [como vereador independente da oposição no anterior mandato do socialista Manuel Machado], ouvi várias vezes a Universidade a ser vilipendiada nas reuniões da Câmara, e os seus professores diminuídos. Havia alguma reserva na Câmara face à Universidade. As duas principais instituições da cidade andavam de costas voltadas. E agora andam de braço dado.

    É normal, em cidades de média dimensão, uma ligação íntima, mas nem sempre pacífica, entre a sua universidade e a sua autarquia. Mas, no caso de Coimbra, a Universidade tem um passado institucional forte, chegou a ter uma polícia própria [os verdeais], o que cria antagonismos…

    Havia. Já não há. Durante muitos anos foi uma reserva mútua, que depois deixou de ser por parte da Universidade, mas manteve-se por parte da Câmara. Por exemplo, o Pólo II da Universidade está ilegal há praticamente 40 anos…

    Porquê?

    Não está legalizado por falta de aprovação do loteamento. E o Pólo III foi parcialmente legalizado, sob risco de Coimbra perder os financiamentos do UC Biomed, um dos maiores de sempre para edifícios de investigação.

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    O estacionamento caótico no Pólo II está relacionado com questões dessa natureza?  

    Sim, mas agora está a trabalhar-se no sentido de se ultrapassarem esses problemas do passado, de relacionamento. De forma tranquila, as duas principais instituições de Coimbra, e sem esquecer outras, como o Centro Hospitalar e o Instituto Politécnico, estão a trabalhar em conjunto, em bom diálogo. Se algum problema houver, eu e o reitor conversamos sem qualquer tipo de reserva. Outro exemplo: a Câmara Municipal não recebia empresários. Ora, uma Câmara que não recebe empresários é porque não quer investimento; se não quer investimento, não quer empresas, não quer emprego; e, portanto, se não há emprego, a população vai-se embora. Tenho um exemplo concreto: o IKEA quis instalar-se em Coimbra, comprou um espaço de oito hectares na encosta de Santa Clara, mas por obstáculos levantados pela Câmara nunca se instalou. Agora, a filosofia mudou, embora a pandemia tenha alterado a filosofia deste tipo de investimentos, porque se fortaleceu a componente de compras online.

    Vejo-o com grande optimismo. Significa então que aquele projeto que se ouve falar desde os anos 90 do século passado, e do qual a autarquia de Coimbra detém 14% do capital social da empresa, não vai continuar a ser uma obra de Santa Engrácia? Estou a falar do Metro do Mondego…

    [risos] Está bem… Temos 14% no Metro do Mondego. Mas agora está a andar, está a andar…

    E também está a andar por causa de si?

    Não, não; já estava acontecendo…

    Estava a brincar consigo. Aquilo que eu gostava de saber tem a ver com uma questão muito simples: quando estava a preparar a entrevista, fui consultar o site do Metro Mondego e só quase se via estudos e mais estudos; quase só papel…

    Sim, durante muitos anos foi assim. Mas esse é um projecto do Estado, não é da Câmara. Todos os grandes projectos em Coimbra, que são nomeados, são projetos do Estado.

    No Metro do Porto, o Estado também era maioritário, mas havia força política dos autarcas para se avançar mais rápido nas obras…

    Eu não sei quais eram os obstáculos antes no Metro do Mondego, porque não estava cá, mas a mobilidade e as acessibilidades em Coimbra ficaram sempre para trás. Veja o IP3, o IC6, o IC8. Este último projecto é uma vergonha. Aliás, por causa do IC8, ainda há pouco tempo tive uma reunião com os municípios desde a Raia até à Figueira da Foz, e mais uma vez foi dito que era a primeira vez que o município de Coimbra participava numa reunião. Os outros municípios têm a noção da importância de Coimbra na defesa da Região Centro. Coimbra não podia estar enquistada sobre si mesma e ignorar o que se passava à sua volta. Por isso, 10 anos depois de serem criadas, se fez finalmente uma reunião entre as Comunidades Intermunicipais de Coimbra e de Leiria para um diálogo sobre assuntos comuns, para investimentos comuns; para constituir um lobby da Região Centro.

    Qual a sua opinião sobre a regionalização?

    Eu diria que é a mesma que tenho sobre a descentralização. A descentralização é um bom conceito mal aplicado, porque houve transferência de responsabilidades que podem ser exercidas com melhor propriedade pelas Câmaras Municipais, mas não vieram acompanhadas do financiamento necessário. O Estado descentralizou “chatices administrativas” e défice do Orçamento Geral, criando constrangimentos e dificultando o exercício das autarquias. Isto é uma perversidade sobre um conceito que era de acarinhar, pois não foi devidamente financiado. O Estado deveria transferir pelo menos o mesmo montante que gastaria se exercesse essas competências. Se calhar o principal objectivo, oculto, da descentralização foi descentralizar o défice do Orçamento Geral do Estado.

    Portanto, a regionalização pode ser má se o caminho for semelhante ao da descentralização…

    Aí, mais vale estarem quietos. Eu acredito no processo de regionalização se for conquistado pelas regiões. Se for feito pelo Estado, em benefício do Estado Central, então não; mais vale estarem quietos. Basta, aliás, ver aquilo que sucedeu com a intenção de desconcentração de algumas instituições, como o Supremo Tribunal Administrativo e o Tribunal Constitucional: alguns juízes acharam ser uma indignidade vir para uma cidade como Coimbra, quando eu dou repetidamente o exemplo da Alemanha onde não há nenhum tribunal superior na capital. Se calhar é por esta mentalidade centralista de Lisboa que a descentralização não está a correr bem. Aliás, recusamos assinar o auto de transferências em Saúde, e agora quiseram-nos impor, a partir de Janeiro de 2023, a descentralização na Acção Social, fazendo uma coisa que eu não compreendo: exigindo que criássemos uma estrutura enquanto a nível central se mantém tudo igual, para fazer não sei o quê. Assim, só vamos duplicar estruturas, ainda por cima com um financiamento claramente insuficiente. Por amor de Deus, isto não é descentralização.

    Deduzo então que também não concorde muito com o actual modelo das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), que já não é completamente dominado pelo Governo…

    É completamente…

    O presidente e um vice-presidente são agora eleitos pelos autarcas. São órgãos desconcentrados da Administração Pública…

    Eu acho que a presidente da CCDR do Centro [Isabel Damasceno, ex-presidente da autarquia de Leiria pelo PSD] é uma pessoa muito estimável com quem temos tido várias reuniões construtivas. Mas, com todo o respeito pelas pessoas, mais importante do que os modelos são as pessoas, e um modelo de organização funciona bem com as pessoas certas no lugar certo, e qualquer modelo de organização funciona mal com as pessoas erradas no lugar errado. Portanto, sem estar devidamente explorado este modelo de CCDR, quer-se acelerar um processo de regionalização sem estar suficientemente debatido. Tem de haver primeiro uma proposta de regionalização, exaustivamente discutida. Dou-lhe um exemplo: vamos regionalizar com partidos nacionais? Eu não sei que regionalização é essa se vamos regionalizar o país, mas mantendo, à frente das regiões, partidos nacionais. Isso é a verdadeira regionalização? Não sei se é; e eu acho que não é.

    Serão satélites do Governo ou da oposição…

    Mas a nossa Constituição proíbe partidos regionais. Então, como é que nós regionalizamos sem permitir criar forças políticas regionais? Isso não é uma verdadeira regionalização; é um eufemismo de regionalização. Mas por que é que a Constituição tem essa essa alínea que proíbe partidos regionais? Se nós olharmos para a vizinha Espanha começamos a perceber porquê. Nós criticamos o Governo de Madrid pela forma como actuou na Catalunha, mas ninguém foi capaz de dizer que os partidos regionais do tipo catalão são proibidos em Portugal. Estamos a falar de realidades diferentes. Se avançarmos no sentido de uma regionalização com partidos regionais podemos, de facto, daqui a duas gerações, pôr em causa a coesão nacional. Mas eu não sei, com a nossa tradição municipalista e agora desenvolvida com o conceito das comunidades intermunicipais, como é que vamos regionalizar com partidos nacionais. Eu acho que é algo incompatível, porque se queremos uma região a defender os seus interesses, temos de permitir a criação de forças políticas regionais.

    E locais… Nas eleições autárquicas admitem-se movimentos cívicos mas não partidos formais…

    Sim. Por exemplo, há quatro anos quando criámos o nosso movimento independente [Somos Coimbra], este deixou formalmente de existir por lei no dia das eleições, quando fomos eleitos como autarcas. Também é proibido que um movimento independente faça uma coligação com um partido político. Porquê? Isso é uma limitação à democracia. Portanto, vamos aprimorar a nossa democracia, e depois falamos de regionalização. Se não permitimos verdadeiras manifestações de cidadania, então estamos a falar de regionalização com que objetivos? A nossa legislação autárquica nunca mais foi modernizada. Hoje tem seríssimas limitações, eu diria que é pouco democrática. Portanto, a regionalização transformou-se num chavão político, e eu tenho muito receio de chavões políticos.

    Os célebres chavões políticos…

    Muitas vezes dizem-me: ah, as decisões são políticas, isso é político. Pois é, mas a política paga-se com euros, não é? Eu digo sempre: a decisão pode ser política, mas vamos avaliar as consequências económicas, porque depois do 25 de Abril já fomos três vezes à bancarrota. Eu não gostava de ir uma quarta vez. Vamos avaliar as consequências do impacto económico para depois decidirmos então, dentro do critério de não causar mais prejuízo do que benefício – como na medicina, com o célere primum non nocere –, e depois, sim, pôr um uma componente política na decisão.

    Já que fala dos investimentos, como avalia a situação do iParque, o vosso centro de Ciência e Tecnologia? Temos ali 30 hectares e 34 lotes para instalar empresas. Quantas lá estão neste momento?

    Estão poucas. O projeto do iParque autolimitou-se um bocado no seu início ao restringir os investimentos à área tecnológica e da saúde. Algumas empresas que se poderiam lá instalar ficaram impedidas por não caberem neste conceito devido às condições dos financiamentos europeus. Depois, esteve parado durante vários anos, e agora está outra vez a procurar desenvolver-se, até porque esteve tecnicamente falido por dívidas ao Novo Banco.

    Qual era o valor da dívida?

    Da ordem dos quatro milhões de euros. Com a falência do Banco Espírito Santo, e a criação do Novo Banco, grande parte da dívida do iParque foi vendida a fundos, e assim perdoou-se talvez 75% da dívida, o que permitiu que a Câmara repusesse o equilíbrio financeiro. Mas quando se diz agora que o iParque tem contas equilibradas, deve dizer-se que sim, mas porque nós todos, portugueses, pagámos a dívida.

    Sente sinais de mudança no iParque?

    A fase II tem agora interessados. Eu diria que há grandes critérios para um empresário seleccionar o investimento: a localização e as acessibilidades. Nós temos boas acessibilidades longitudinais – não tanto transversais –, uma boa universidade, um bom hospital, uma boa localização geográfica. Temos, no essencial, tudo o que é necessário para um empresário investir, e com potencial imenso. Por exemplo, fala-se pouco – se fosse em Lisboa seria certamente diferente –, mas temos em Coimbra a sede em Portugal da única empresa unicórnio nacional, a Feedzai. Temos muita procura. Aquilo que nos diziam os empresários é que nem valia a pena ir a Coimbra. A ideia que se instalou é que tudo esbarrava na Câmara, e agora as pessoas já perceberam a mudança.

    Pode então perspectivar-nos onde se estará daqui a quatro anos? Quanto daqueles 34 lotes do iParque estarão ocupados?

    Eu não me comprometo. Não sou eu que vou comprar os lotes, não tenho dinheiro para isso, mas estamos a trabalhar…

    Então eu reformulo a pergunta: porque está a dar um destaque ao papel fundamental da Câmara na atracção de investimentos, o que seria um insucesso?

    Não meço isso no caso do iParque.

    Eu queria que determinasse uma métrica. Por exemplo, que consegue ter 10 lotes ocupados, ou 20, para ficar satisfeito…

    Aquilo que nós queremos é aumentar, ano após ano, o investimento empresarial em Coimbra.

    Isso é muito vago.

    Claro que é vago. Não tenho uma métrica para dizer: olha, agora vamos vender mais seis lotes do iParque e ficamos contentes.

    Os investimentos também não devem traçar objetivos e ter métricas?

    Métricas que dependem de nós, sim. Para captar investimento, por exemplo, há tantos a tantos factores imponderáveis, como vimos com a pandemia da covid-19. Agora, a guerra na Ucrânia também, que vai “comer”, se nada mudar, seis milhões de euros do nosso orçamento. Veja-se o aumento do custo dos materiais, da energia e dos combustíveis. Somos uma cidade com 100 autocarros por dia a circular.

    Qual o impacte desse acréscimo no orçamento camarário?

    Cerca de 4% do orçamento; é um impacto brutal, porque a capacidade de investimento próprio da Câmara é muito baixa, rondando os cinco ou seis milhões de euros. A diferença entre as receitas e as despesas correntes é muito pequena. Aquilo que podemos fazer é captar investimentos. E estamos numa fase de transição entre dois quadros dos fundos estruturais: o Portugal 2020 acabou e o Portugal 2030 ainda não começou. Quando aqui cheguei, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) já estava alocado, e perguntaram-nos apenas se tínhamos projectos maturados na Câmara, porque aí poderia ser que entrasse. Mas não há. Um dos nossos problemas era não ter projetos em desenvolvimento a nenhum nível, excepto aqueles relacionados com a rotina diária da gestão autárquica. Isso mudou. Já me disseram dos serviços que nunca trabalharam tanto como agora. Imprimimos outro ritmo, também com a informatização e digitalização. Nos processos de urbanismo ainda não está completado, mas a digitalização sim. Se eu tiver um processo por despachar mais de 10 dias fica registado. Tem havido uma maior pressão para uma aceleração processual, e tem sucedido com a participação dos trabalhadores da Câmara, a quem eu tenho de estar reconhecido e agradecido.

    Um cunho pessoal?

    Temos aqui muita gente de valor, que estavam numa organização completamente disfuncional. As pessoas não falavam umas com as outras. Agora, fazemos reuniões que juntam directores de departamento para discutir problemas, e ouvir as suas opiniões. Isto não era feito antes. Trabalhar com as pessoas, envolve-as, e ganha-se com isso, porque têm muito conhecimento e muita experiência. E isso depois atrai investimento. O parque industrial de Taveiro está cheio, o de Eiras está praticamente cheio, o iParque em desenvolvimento. E não temos muito mais. Há ainda lotes industriais que podem ser vendidos, mas a infraestruturação é muito deficiente, mas podemos sempre inverter agulhas. Não temos dúvidas que Coimbra vai crescer em termos de investimento empresarial, mas sem métricas quantitativas. 

    O impacto da pandemia agudizou a situação do comércio e dos serviços também em Coimbra. A Baixa já sofre de problemas de segurança. Como pretende revitalizar aquela zona?

    A Baixa foi abandonada ao investimento por parte da Câmara durante muitos anos. Com a colaboração negativa da autarquia concentrou-se na Baixa quase todos os apoios sociais da cidade. Não se resolveram os problemas das pessoas e criou-se sim um problema social na Baixa, que é necessário inverter. Isso é um trabalho de fundo. Queremos, por exemplo, reabilitar a entrada da Rua Direita, que está degradadíssima. Apesar da Câmara deter a maioria dos activos imobiliários daquela zona, há um proprietário que tem criado obstáculos numa zona essencial. Antes, a autarquia nunca tentou um diálogo. Aquilo está assim há anos. Já não me lembro de ver o início da Rua Direita de outra maneira. Agora, já dialogamos com um representante do proprietário, e está a correr bem. Eu próprio já me disponibilizei para ir falar com o proprietário, que vive em Poiares. É o nosso interesse de resolver o problema; não tenho nenhuma questão em ir falar com o próprio.

    Conversa de médicos: José Manuel Silva com o psiquiatra Pio Abreu, antes da entrevista.

    Para a reabilitação da Baixa de Coimbra vai ser preciso uma espécie de Polis?

    Chamo-lhe um Plano Marshall. É preciso investimento e a Câmara tem de dar o exemplo, resolvendo as questões que estão sob sua responsabilidade directa. Estamos também a desviar para a Baixa muitos eventos culturais; para a Praça do Comércio, por exemplo. Qualquer pessoa fica deslumbrada com o potencial daquela praça, que basicamente estava ao abandono por parte da Câmara, e os empresários viam a autarquia a não responder às solicitações para lá dinamizarem eventos. Agora já respondemos. Em qualquer cidade espanhola, a Praça do Comércio seria uma plaza com vida 24 horas por dia. Nós estamos a pensar também poder adquirir um edifício na Baixa – há vários à venda, o que não é um sinal muito positivo – para dar um exemplo de investimento e criar um espaço co-work. Queremos trazer os estudantes para a Baixa, criando ali residências. Estamos a distribuir agora as pessoas com carências habitacionais por outras zonas da cidade, dando-lhes apoio condigno. Não podemos concentrar todos os problemas na Baixa. Vamos repensar a videovigilância e melhorar o policiamento. O seu potencial é imenso.

    Fotos da entrevista: António Honório Monteiro

  • Antigo bastonário da Ordem dos Médicos preferia que Graça Freitas jogasse ‘pela Ciência’ e não ‘pelo seguro’

    Antigo bastonário da Ordem dos Médicos preferia que Graça Freitas jogasse ‘pela Ciência’ e não ‘pelo seguro’

    A Direcção-Geral da Saúde quer manter por tempo indeterminado a obrigatoriedade de máscaras em recintos fechados, mas a falta de Ciência desta medida faz com que José Manuel Silva, que ocupou o cargo de bastonário da Ordem dos Médicos durante seis anos e é agora presidente a autarquia de Coimbra, desafie Graça Freitas para um debate, e acusa muitas medidas de serem “irracionais”. Esta é a antevisão da primeira ENTREVISTA P1, a publicar amanhã no PÁGINA UM.


    José Manuel Silva – bastonário da Ordem do Médicos por dois mandatos, entre 2011 e 2017, o segundo com uma votação de 91,25% – acusa a Direcção-Geral da Saúde de falta de rigor científico por pretender manter o uso de máscaras por mais tempo.

    O actual presidente da Câmara Municipal de Coimbra – que concedeu ontem uma longa entrevista ao PÁGINA UM, a publicar amanhã – questiona muitas das “medidas irracionais” ao longo da pandemia, e sobretudo a estratégia não-científica dos últimos meses, desafiando mesmo a também médica Graça Freitas, directora-geral da Saúde, para um debate onde esta explique “o que é jogar pelo seguro”.

    Ontem, em entrevista à Rádio Renascença, Graça Freitas considerou não ser ainda tempo de abandonar a máscara em espaços fechados, defendendo a importância de “jogar com segurança e não perder nada do que já foi adquirido”, sendo assim, na sua opinião de Autoridade de Saúde Nacional, “seguro esperar mais uns dias”, sem adiantar um período.

    José Manuel Silva, antigo bastonário da Ordem dos Médicos (2011-2017) e actual presidente da Câmara Municipal de Coimbra em entrevista ao PÁGINA UM. (Foto: ©António Honório Monteiro)

    Também sem explicar a base científica desta métrica, a directora-geral da Saúde diz que “a mortalidade [causada pela covid-19] ainda não atingiu aquele valor que impusemos – que é a mortalidade baixar de 20 óbitos por milhão de habitantes a 14 dias”, a fasquia supostamente necessária para implementar “outro pacote de medidas menos restritivas”.

    Entretanto, conforme noticiou hoje o Público, as escolas receberam uma orientação da Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares para garantirem a disponibilização de equipamentos de protecção individual no terceiro período, o que indicia a possibilidade de dois anos lectivos sucessivos sempre com os estudantes “mascarados” em sala de aula.

    Comentando ao PÁGINA UM as afirmações da directora-geral da Saúde, José Manuel Silva diz que gostaria “que jogássemos pela Ciência”. E lança o desafio: “Eu gostaria de ter um debate com ela [Graça Freitas] sobre esta questão. A Direcção-Geral da Saúde tem de decidir com bases científicas rigorosas”, salienta, alertando que não existe nenhuma evidência clínica sobre os benefícios da manutenção das máscaras nas actuais circunstâncias.

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    “As máscaras foram necessárias na fase pior da pandemia”, recorda o antigo bastonário da Ordem dos Médicos, salientando, contudo, que “agora, em que não há uma pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde, acho até contraproducente”. E acrescenta ainda: “andar de máscara depois de termos 86% da população vacinada não tem nenhum fundamento científico”, concluindo que com o SARS-CoV-2 a ser agora endémico a normalidade já deveria ter regressado em Outubro do ano passado.

    Na entrevista a publicar amanhã ao final da tarde, realizada no gabinete do novo presidente da Câmara Municipal de Coimbra, sem qualquer dos presentes usar máscara, José Manuel Silva – que foi uma das surpresas das autárquicas de Setembro ao derrotar esmagadoramente o histórico socialista Manuel Machado – aborda os constrangimentos e desafios da cidade do Mondego, as relações com a Universidade, o processo de regionalização e descentralização.

    Mas também analisa, em detalhe, e de forma por vezes contundente, a gestão da pandemia, o papel dos médicos e da sua Ordem, as relações perigosas com as farmacêuticas e a situação do SNS.

  • PÁGINA UM lança FUNDO JURÍDICO para intimação de entidades públicas em prol da transparência

    PÁGINA UM lança FUNDO JURÍDICO para intimação de entidades públicas em prol da transparência


    Poder ir mais longe do que o inicialmente previsto é um dos nossos objectivos. Por isso, anunciamo-vos a criação do FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM.

    Desde Dezembro, dos 16 pareceres da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) que analisaram queixas de jornalistas por falta de transparência de entidades públicas na divulgação de informação, nove são do PÁGINA UM.

    Desses pareceres, quase todos se referem à Direcção-Geral da Saúde (DGS), e há ainda dois que incidem no Infarmed (informação sobre efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 e do remdesivir), um na Ordem dos Médicos e ainda outro no Conselho Superior da Magistratura (CSM).

    Apesar do sucesso junto da CADA – que, com excepção de um caso muito discutível (acesso aos dados anonimizados do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) – fomos constatando estarmos perante vitórias de Pirro: além de os pareceres da CADA demorarem entre três e quatro meses para chegaram a uma deliberação, depois víamos as entidades requeridas quase sempre a menosprezarem o dito parecer.

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    Ou seja, concluímos que a única solução será envolver, no processo, o Tribunal Administrativo, mas isso acarreta um esforço financeiro relevante. Só em custas judiciais, à cabeça, mais de 600 euros por cada intimação, caso se queira precaver a necessidade de recorrer até ao Supremo Tribunal Administrativo.

    Posto isto, a campanha de recolha de fundos, iniciada pelo PÁGINA UM no dia 1 de Abril, para que os leitores pudessem contribuir para os gastos processuais para a intimação do Infarmed no Tribunal Administrativo tem sido um sucesso.

    Em pouco mais de uma semana, recolhemos já quase 4.000 euros, através do MightyCause e por vias tradicionais, e temos já um advogado com experiência em Direito Administrativo a preparar o processo, que deverá estar concluído (até por via do cumprimento de prazos apertados) na próxima semana.

    Mas é esse sucesso (relativo) que faz o PÁGINA UM desejar mais, porque considera que está a cumprir uma missão do jornalismo: contribuir para uma melhor e mais participada democracia.

    Assim, para já, não será apenas sobre o Infarmed que iremos intentar uma acção, mas também sobre o CSM, que recusou liminarmente cumprir um parecer da CADA, convidando o jornalista do PÁGINA UM a recorrer ao Tribunal Administrativo.

    E vamos fazer isso. Mesmo sabendo que o juiz do Tribunal Administrativo que decidir este processo está sob avaliação da qualidade do seu desempenho pelo próprio CSM. Este processo do PÁGINA UM será assim também um teste ao sistema judiciário português.

    E vamos também coligir todos os processos da DGS, e fazer, no final deste mês, também intimação junto do Tribunal Administrativo. Estamos apenas a aguardar mais um parecer da CADA para avançar com o processo.

    Por todos estes motivos, o PÁGINA UM vai manter activa e pública uma angariação de fundos por tempo indeterminado para processos judiciais.

    Constituirá um FUNDO JURÍDICO (neste momento já com quase 4.000 euros) que servirá não apenas para as acções em tribunais mas também para mostrar às entidades públicas – a quem legitimamente pedimos dados administrativos (e dentro daquilo que está previsto na Constituição e, de forma ainda mais clara, numa lei de promoção do “arquivo aberto”, criada em 1993) – que não iremos vacilar em os colocar em Tribunal se continuarem a esconder informação que deveria ser pública.

    Prinscreen da plataforma do Fundo Jurídido do PÁGINA UM, inicialmente criado em 1 de Abril de 2022 para apresentação da intimação do Infarmed junto do Tribunal Administrativo.

    Este FUNDO JURÍDICO terá os montantes recebidos tornados públicos. E será feito, e divulgado trimestralmente, um breve relatório sobre gastos e sobre o desenvolvimento dos processos concluídos e em curso, numa contabilidade distinta da do funcionamento do PÁGINA UM.

    Três notas finais para o caso de ainda não terem reparado, ao fim de quatro meses.

    1 – O PÁGINA UM não nasceu para criar amigos entre políticos e empresários, nem para colocar paninhos quentes em assuntos de melindre, nem para ladrar sem morder.

    2 – O PÁGINA UM nasceu, e mesmo podendo ser ainda pequeno (exactamente por ter poucos amigos no meio político e empresarial), para dar um contributo decisivo para mostrar o que é o Norte de uma democracia: um ponto único e preciso, uma direcção com um só sentido. Para nós, um pouco mais para a esquerda deixa de ser Norte, para passar a ser Noroeste; um pouco mais para a direita deixa de ser Norte para ser Nordeste.

    3 – O PÁGINA UM viverá até os leitores e seus apoiantes quiserem.


    Para apoiar o FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM aceda aqui: MIGHTYCAUSE.

    Pode também escrever, para outras alternativas para o e-mail geral@paginaum.pt.

    Para apoios directos ao jorbalismo do PÁGINA UM pode conceder o seu donativo directo para esta outra campanha, também no MIGHTYCAUSE.

    Para apoios regulares podem utilizar a plataforma STEADY.

  • Sei o que fizeste no Verão passado, Manuel Carvalho…

    Sei o que fizeste no Verão passado, Manuel Carvalho…


    No seu editorial do passado 4 de Abril no jornal Público, Manuel Carvalho zurze em “majores generais” e em “aprendizes de espiões” que promovem a desinformação.

    Omitiu ele que o Público foi já um promotor de desinformação na primeira fase da injustificável invasão da Rússia, quando anunciou, em 25 de Fevereiro, que 13 soldados ucranianos tinham sido massacrados na ilha das Serpentes, para surgir três dias depois com uma, enfim, “actualização” (sic): afinal os homens estavam vivos. O Polígrafo tratou de fazer a “limpeza“. Ou tentar fazer.

    O Público, esse, e Manuel Carvalho, esse, não pediram desculpas aos leitores. Por quem sois.

    Nem se lembrou ele serem essas atitudes desresponsabilizantes – que perpassam a legacy media –, que alimentam hoje a falta de confiança dos leitores na imprensa, nos jornalistas.

    Colocar dúvidas sobre os agentes do massacre de Bucha não se deve à desinformação que possa vir da propaganda russa – como em tempos houve propaganda norte-americana para justificar a invasão do Iraque – nem às análises mais ou menos enviesadas e erradas de “majores generais” alegadamente putinistas ou de “aprendizes de espiões” sem o corte de cabelo de Nuno Rogeiro.

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    A incredulidade deve-se à situação da imprensa, à qualidade da sua informação, porque quase todos os jornalistas deixaram de querer ser meros observadores ou árbitros, que são funções nobres e primordiais numa sociedade democrática, para se transformarem em diligentes arautos da verdade imediatista, em sacerdotes de uma doutrina maioritária.

    Na pressa, e sobre a pressão de serem os primeiros, muitos jornalistas optam por “publicar” agora primeiro e “confirmar” depois, subvertendo o princípio basilar do jornalismo. Na verdade, nem sequer confirmam depois, ou se o fazem e verificam que meteram os pés pelas mãos, saem de mansinho como sendeiros.

    Nunca a imprensa mainstream gosta de admitir ser o rei que vai nu, e até tem horror ao espelho. Não acredita sequer que não acreditam nela, e quando se lhe mostra o descrédito, apontam-no como mera maledicência de uma minoria sem expressão da realidade.

    Não é, por mais vezes e vozes que lhes diga o contrário.

    O descrédito de jornalistas como Manuel Carvalho é um descrédito que plasma sobretudo nos momentos em que, pomposamente, se entoam grandiloquentes princípios de ética jornalística.

    Note-se esta passagem do seu editorial de 4 de Abril, após a zurzidela nos “majores generais” e “aprendizes de espiões”, e onde defende até o seu direito a expressarem-se [presumo que com um letreiro a atestar serem “desinformadores, pela forma como ele os destrata]:

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    Se há um reduto inexpugnável para o jornalismo é o da liberdade de expressão. Um bem precioso, mas delicado, que é melhor ter a mais do que a menos. Uma leve amputação pode confortar a consciência no presente – mas implica um risco para o futuro.”

    Ui! Palavras como boomerangs!

    Vamos ser claros: sei o que fizeste no Verão passado, Manuel Carvalho…

    Ou, pelo menos, no dia 19 de Agosto de 2021.

    “Despublicaste” um artigo de opinião do médico Pedro Girão, e ainda escreveste, para opróbrio do dito, a seguinte nota editorial intitulada “Um erro e um pedido de desculpas”:

    Um erro de controlo editorial corrigido nesta quinta-feira às 17h42 permitiu que um artigo de opinião (‘Uma vacina longe de mais’) assinado pelo médico anestesiologista Pedro Girão estivesse disponível na nossa edição digital durante horas.

    A sua despublicação justifica-se não apenas pelo tom desprimoroso e supérfluo usado pelo autor em relação a várias personalidades da nossa vida pública, como pelo seu teor que, de forma ora mais velada, ora mais explícita, tende a instigar a ideia de que a vacina contra a covid-19 é ‘uma experiência terapêutica’ sem validade científica.

    Como é do conhecimento dos nossos leitores, o PÚBLICO é um jornal que cultiva e estimula a diferença de opiniões que alimenta as sociedades democráticas. Mas há padrões e valores que não podem ser cedidos em nome do pluralismo. Numa questão tão sensível como a da pandemia, recusamos em absoluto promover juízos que tendem a negar a importância ou o relativo consenso científico em torno das vacinas.

    Por isso errámos ao publicar o texto e por isso agimos com a celeridade possível para corrigir esse erro, despublicando o artigo em questão e pedindo desculpas aos nossos leitores pelo sucedido.

    Ora, hoje sabemos que Manuel Carvalho errou, mas não foi apenas por ter exercido um reles acto de censura, ainda mais eufemisticamente auto-classificado de “despublicação”.

    Manuel Carvalho cerceou uma opinião porque, entre outros considerações, recusava “em absoluto promover juízos que tendem a negar a importância ou o relativo consenso científico em torno das vacinas”, e Pedro Girão era uma das vozes que publicamente criticava o tema quente de então: a vacinação de adolescentes.

    Mas hoje sabemos sobretudo que o consenso em redor das vacinas em adolescentes nunca existiu mesmo no seio da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC), que integra 12 insuspeitos “peritos”.

    E sabemos não graças a perguntas de Manuel Carvalho ou dos jornalistas do Público – que sempre se mantiveram unha com carne da narrativa do Governo, do Presidente da República e da Direcção-Geral da Saúde – alvos das críticas do artigo “despublicado” de Pedro Girão –, mas das insistências e da luta do PÁGINA UM.

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    Sabemos hoje porque o PÁGINA UM perguntou pelos documentos à DGS, e não ficou satisfeito com o silêncio, e recorreu à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, e insistiu e insistiu, e ganhou para os “arrancar”. Não foi o Público nem Manuel Carvalho que fez isso.

    Sabemos hoje porque o PÁGINA UM foi o único órgão de comunicação social que fez perguntas incómodas à DGS e lhe pediu documentos para comprovar ou desmentir a narrativa. Não foi o Público nem Manuel Carvalho que fez isso.

    Sabemos hoje, graças ao PÁGINA UM, que em 8 Agosto do ano passado, 11 dias antes do acto de censura do Público a Pedro Girão, que cinco membros da CTVC não votaram favoravelmente o parecer que recomendava a vacinação dos adolescentes. Quatro dos 12 peritos votaram contra, e um decidiu não votar. Não foi o Público nem Manuel Carvalho que divulgou essa informação.

    Informação essa que deveria ser agora cruzada com o acto de censura de Manuel Carvalho em Agosto de 2021 e com esta frase do mesmo Manuel Carvalho em Abril de 2022: “uma leve amputação [leia-se, censura] pode confortar a consciência no presente, mas implica um risco para o futuro”.

    Nunca vai haver desculpas de Manuel Carvalho, porque não se pode esperar desculpas quando se andou meses e meses a fio alimentando e propalando o mito do consenso, o mito da certeza absoluta baseada na Ciência, o mito da existência de uma estúpida, tresloucada e marginal franja de “negacionistas assassinos” anti-vacinas, onde se metia todos aqueles que questionavam e incomodavam com perguntas e opiniões dissonantes.

    Aquilo que Manuel Carvalho e o Público fizeram, ao longo de toda a pandemia, não foi defenderem a liberdade de expressão e de opinião; foi sim o oposto. Chegaram ao cúmulo de se munirem de um lápis negro para “limpar” supostas heresias, quando, por engano, não se aperceberam do conteúdo.

    Isto não pode jamais ser esquecido, e deve ser agora sobrelevado mais ainda por causa do fingido editorial de Manuel Carvalho do passado 4 de Abril.

    Mas, para mim, pior do que aquilo que Manuel Carvalho fez no Verão passado, é aquilo que Manuel Carvalho fez no final do Inverno passado e na Primavera que se iniciou. E continuará a fazer.

    Já passaram 24 dias – não são 24 horas, são 24 dias – desde que o PÁGINA UM publicou integralmente – até para a concorrência ver, ler e usar – todos os pareceres da CTVC, incluindo aquele de 8 de Agosto de 2021 sobre o programa de vacinação dos adolescentes.

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    Nesse parecer mostra-se, prova-se, de forma indesmentível, que o consenso nunca existiu sobre a vacinação de adolescentes. Mostra-se, prova-se, que Pedro Girão tinha razão quando escreveu, por exemplo, que “a posição do Presidente da República nessa matéria [apoio incondicional à vacinação de adolescentes] é absolutamente escandalosa, parecendo baseada em conhecimentos débeis do assunto, em hipóteses duvidosas, em desvario emocional, ou em possíveis interesses.”

    Para Manuel Carvalho, isso pouco importa agora.

    O PÁGINA UM até chegou a aguardar três dias, depois de 14 de Março passado, antes de escrutinar o conteúdo daquele parecer dos adolescentes, e fazer a notícia sobre o assunto. Quis testar a legacy media; saber se a concorrência pegava no assunto.

    Confirmou-se. Ninguém quis. Pudera: arder-lhes-iam as mãos. Teriam de se vergar, e envergonharem-se pelos actos passados.

    Nem quando a própria DGS divulgou no seu site os ditos pareceres, que desmoronam toda a narrativa do alegado consenso, a imprensa mainstream se mexeu. Era o que faltava.

    Ah, mas talvez eu esteja a ser demasiado exigente com Manuel Carvalho. O Verão passado já passou.

    As suas incongruências e hipocrisias, não.

    Contudo, não se livra Manuel Carvalho de uma coisa: escrevendo ele agora, no ano da graça de 2022, que “se há um reduto inexpugnável para o jornalismo é o da liberdade de expressão”, então eu direi, ao abrigo da liberdade de expressão, que o jornalismo deveria expugnar-se de pessoas como ele.

    São pessoas como ele, Manuel Carvalho, que, infeliz e lamentavelmente, embora se espere não inexoravelmente, descredibilizaram a imprensa.

  • Ordem dos Médicos Dentistas compra entrevista no Diário de Notícias

    Ordem dos Médicos Dentistas compra entrevista no Diário de Notícias

    A Global Notícias está a guinar a informação portuguesa para campos perigosos. Pagar para ter notícias ou mesmo entrevistas é já possível, e até é agora feito às claras com papel escrito para apresentar à contabilidade. O PÁGINA UM descobriu um contrato comercial que garantiu à Ordem dos Médicos Dentistas uma entrevista nas páginas do Diário de Notícias ao seu bastonário e a cobertura de um evento sobre saúde oral a troco de quase 20 mil euros.


    Dias mundiais de qualquer coisa há, enfim, todos os dias. Por ironia, em 20 de Março coincidem o Dia Internacional da Saúde Oral, o Dia do Pontapé no Rabo (Kick Butts Day) e o Dia Internacional da Felicidade. E há pouco mais de duas semanas, houve uma estranha coincidência dos “astros” no jornalismo português: para se celebrar o primeiro daqueles dias – o da Saúde Oral –, Diário de Notícias (DN) e Jornal de Notícias (JN) deram um “pontapé no rabo” aos princípios da independência da imprensa e aceitaram vender directamente serviços noticiosos à Ordem dos Médicos Dentistas, incluindo uma entrevista ao seu bastonário, para felicidade da administração da Global Notícias, que assim recebeu 19.970 euros.

    Debate para uma sala vazia. Conferência sobre saúde oral em Viseu foi uma “prestação de serviços” paga pela Ordem dos Médicos Dentistas.

    De acordo com o Portal Base, dois dias antes da celebração do Dia Internacional da Saúde Oral, em 18 de Março, a Ordem dos Médicos Dentistas e a Global Notícias – detentora daqueles dois diários – formalizaram um contrato de “prestação de serviços de divulgação, promoção e cobertura do Dia Mundial de Saúde Oral”, que tiveram como ponto alto uma conferência em Viseu no dia 21. E pode-se dizer que os dois diários da Global Media cumpriram a preceito essa “prestação de serviço” a uma entidade externa, apesar de travestida de “conferência promovida pela Ordem dos Médicos [Dentistas]”, integrando um “debate, organizado em parceria com o DN e o JN”.

    Com efeito, além da participação, como moderador de dois debates, de Pedro Araújo, editor-adjunto do JN, a cobertura noticiosa – sem qualquer referência de se tratar de conteúdo pago – foi executada por uma jornalista, Marisa Silva (CP 7319). E inclui mesmo uma entrevista ao bastonário Miguel Pavão.

    Nessa entrevista, publicada no própria Dia Mundial da Saúde Oral (20 de Março), o bastonário dos dentistas aproveitou sobretudo para lançar críticas ao Serviço Nacional de Saúde e ao projecto do cheque-dentista e também a defender a redução das vagas dos cursos superiores de Medicina Dentária.

    Os mesmos tópicos haveriam de ser os pontos centrais também de uma notícia de Marisa Silva publicada no dia 22 de Março no Diário de Notícia que abordou o evento, onde também participou Graça Freitas, directora-geral da Saúde, através de vídeo-chamada.

    Ordem de Miguel Pavão pagou quase 20 mil euros para cobertura noticiosa de evento e entrevista no Diário de Notícias.

    Para que não surjam dúvidas de ser este o evento alvo da prestação de serviços, refira-se que o contrato estipulava um prazo de execução de sete dias. Ou seja, todas as notícias e a entrevista a Miguel Pavão foram publicadas entre os dias 18 e 25 de Maio.

    Recorde-se que o Estatuto dos Jornalistas (Lei nº 1/99) estipula que estes profissionais, para garantir a sua independência, estão impedidos de participar em acções de marketing ou de relações públicas. Além disso, a escrita de conteúdos comerciais “travestidos” de notícias e, em especial, a realização de entrevistas em que o entrevistador a pagou é incompatível com a actividade jornalística. E fomenta a desconfiança sobre a independência da imprensa.

    O PÁGINA UM tentou obter um comentário através de correio electrónico sobre este contrato de prestação de serviços junto do bastonário Miguel Pavão e da directora do DN, Rosália Amorim, e do JN, Inês Cardoso, mas não obteve qualquer resposta.

  • Das árduas batalhas em defesa do jornalismo independente e da transparência

    Das árduas batalhas em defesa do jornalismo independente e da transparência


    O PÁGINA UM tem mantido, muito por via do apoio dos seus leitores, uma postura intransigente na defesa do jornalismo rigoroso e isento, sabendo, desde o seu nascimento, que tem um caminho espinhoso a percorrer. Não tem sido batalha fácil, até porque desgastante, porque com várias frentes.

    Recordamo-nos que, dois dias após o nascimento formal do PÁGINA UM, a CNN Portugal encetou, em 23 de Dezembro do ano passado, um vil ataque, acusando-nos de ser uma “página negacionista” e “anti-vacinas”, acusação ‘apadrinhada’ pela Ordem dos Médicos, e acompanhada por outros órgãos de comunicação social, como Público, Expresso, Lusa e Observador.

    Recentemente, após uma estranha deliberação que ilibou o Público, e que está agora em fase de reclamação, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) acabou de tomar a decisão de obrigar a CNN Portugal a publicar na íntegra o meu texto de resposta em defesa dos valores do PÁGINA UM. Apesar de formalmente a notificação ter chegado ao PÁGINA UM na sexta-feira passada, e o mesmo terá sucedido com aquele canal televisivo, o direito de reposta não foi ainda publicado. Estaremos atentos.

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    A obrigatoriedade de publicar o texto de direito de resposta não será a única consequência para a CNN Portugal. A ERC determinou o envio do processo para a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, e o PÁGINA UM acompanhará com detalhe o assunto, para que não haja “esquecimentos”. E outras medidas ainda serão tomadas.

    Entretanto, esta manhã, o PÁGINA UM enviou a sua defesa relativamente à queixa junto da ERC por parte da Sociedade Portuguesa de Pneumologia e do seu presidente António Morais. A defesa do PÁGINA UM, que decidimos tornar pública desde já, conta com 39 pontos em 11 páginas.

    E como consideramos que a ERC tem a obrigação, porque está nas suas atribuições, defender o jornalismo de ataques soezes e sem provas, apresentámos uma queixa naquela entidade reguladora contra António Morais, presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia.

    Em causa estão frases daquele responsável que, por exemplo, acusam os artigos do PÁGINA UM, que denunciaram as relações comerciais entre a Sociedade Portuguesa de Pneumologia e o sector farmacêutico, de terem “consequências para a saúde públicas”. Estamos assim perante graves ofensas ao livre exercício do direito à informação e à liberdade de imprensa; uma torpe tentativa de condicionar a independência de um órgão de comunicação social independente perante os poderes económicos; e uma agressão à efectiva expressão e ao confronto das diversas correntes de opinião, em respeito pelo princípio do pluralismo e pela linha editorial do PÁGINA UM.

    Campanha de angariação de fundos para intervenções judiciais do PÁGINA UM no MIGHTYCAUSE

    Aguardamos que esta queixa, que agora também divulgamos publicamente, constitua também um teste à ERC, de modo a apercebermo-nos se estamos perante uma entidade reguladora, que defende a comunicação social, ou se esta apenas deseja supervisionar e controlar a comunicação social.

    Por fim, o PÁGINA UM está em fase de preparação da intimação junto do Tribunal Administrativo para obrigar o Infarmed a disponibilizar os dados em bruto dos efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 e do remdesivir, uma vez que esta entidade reguladora dos medicamentos se recusou a cumprir o parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA).

    O PÁGINA UM, através de uma angariação de fundos do MIGHTYCAUSE, que já recolheu um pouco mais de 2.200 euros, tentará usar esses apoios dos leitores para apresentar outras intimações, nomeadamente para a Direcção-Geral da Saúde disponibilizar dados escondidos.

    Nesta linha, e com o vosso apoio, contribuiremos para uma sociedade mais interventiva e esclarecida, e para uma Administração Pública mais transparente e acessível.

    Enfim, o PÁGINA UM fará sempre aquilo que se deveria esperar de um órgão de comunicação social: pugnar pelos princípios da democracia.

  • Nada há de mais humano do que a desumanidade

    Nada há de mais humano do que a desumanidade


    Não quero saber, por agora, se é ou não encenado. Se quem fez aquilo foram os russos ou os ucranianos para acicatar o Ocidente a diabolizar ainda mais alguém que é, era e será um diabo enquanto estiver no poder. Há fortes indícios de massacre. Deve ser investigado, de forma independente; não sei se para já. Não sei se se chegará alguma vez à verdade.

    A verdade é maleável, depende do poder, depende de quem sai vitorioso de uma contenda. Nem sempre coincide com a realidade. A verdade pode ser imposta. A mentira pode ser tornada verdade, por mais evidências que possam aparentemente existir. A História farta-se de nos dar desses ensinamentos.

    Mas importante, talvez sim, seja reflectirmos, desde já, noutro aspecto essencial: aquilo poderá ser real porque é possível? SIM.

    Sim, infelizmente é muito, muito possível que aquela situação em Bucha seja real, e que tenha sido causada pelos russos.

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    E mesmo que não seja, nada nega uma invasão, que tantas mortes já causou. E mesmo que sejam militares, essas vidas perdidas não são justificadas nem legitimadas por os corpos estarem vestidos com uma farda. Eram vidas.

    E ter acontecido mesmo um massacre de civis, será Bucha inédito, merece uma consternação em êxtase, o nosso estupor perante um horror inaudito, uma inqualificável desumanidade? NÃO.

    Lembro-me sempre, desde que escrevi essa frase, da passagem de um dos meus romances em que o narrador, por sinal o diabo, argumenta (cito de cor) que “nada há mais humano do que a desumanidade”.

    Bucha deveria chocar-nos não por ser inédito, não por ser uma surpresa, mas exactamente por ser expectável.

    Lembremo-nos, apenas para nos mantermos num cenário similar, de Grozny. Não foi assim há tanto tempo. Putin “esteve” lá.

    Mas lembremo-nos também que nenhuma guerra, nenhuma outra guerra mata ou matou com contos de fada.

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    Nenhuma das mais de 10 milhões de vidas perdidas em conflitos armados desde a barbárie da chamada II Guerra Mundial, muitos sem ser televisionados, foi através de doces canções de embalar.

    Nos últimos dois anos, antes da invasão da Ucrânia, a base de dados do Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED) contabilizou 73.199 mortes no Afeganistão em conflitos bélicos, 38.146 mortes no Iémen, 17.671 mortes Nigéria, 16.704 mortes no México, 14.083 mortes na Síria, 11.723 mortes no República Democrática do Congo, 11.365 mortes no Myanmar e 10.528 mortes no Brasil, que nem sequer está formalmente em guerra, mas onde a violência armada é endémica. Dois anos apenas, e mais conflitos se registaram.

    Os mesmo dirigentes políticos da Europa que agora correm a chamar nomes a Putin e a ameaçá-lo com o Tribunal Penal Internacional (TPI) andaram a banquetear-se à sua mesa e à dos seus oligarcas durante, pelo menos, duas dezenas de anos. E andaram a alimentar guerras e conflitos, nem que fosse através da indústria do armamento.

    Andaram em jogos perigosos com quem nunca foi de confiança.

    Por isso, não se surpreendam, pelo menos se honram a vossa inteligência, com as atrocidades na Ucrânia. Não são de agora nem são só de lá.

    Não esqueçam Bucha, não esqueçam Grozny, não esqueçam sobretudo como chegámos aqui.

    Porque se esquecerem, haverá sempre mais Buchas, com Putin e sem Putin. Com Zelenski e sem Zelenski.

    Haverá sim estas contínuas atrocidades, estas humanas desumanidades, se as democracias ocidentais mantiverem este estilo de virgens surpresas.

    E haverá os vossos horrores para amenizarem as vossas consciências. As nossas consciências. Pesadas. Sempre. Como se fôssemos todos culpados. E talvez sejamos, mas por inacção, antes dos conflitos. Por pouco pressionarmos os nossos dirigentes políticos. Preocupamo-nos só perante as monstruosidades, e pouco com aquilo que vai alimentando os monstros. E esses monstros são alimentados pela realpolitik.

  • Iniciativa da Comissão Europeia causa maior polémica de sempre, mas em Portugal é ignorada pelos partidos e imprensa mainstream

    Iniciativa da Comissão Europeia causa maior polémica de sempre, mas em Portugal é ignorada pelos partidos e imprensa mainstream

    Consulta pública para renovar por mais um ano a vigência do certificado digital está a merecer uma contestação nunca vista. Em situações normais, regulamentos em dicussão recebem poucas dezenas ou centenas de comentários antes da sua aprovação, mas o prolongamento do documento que é a imagem da discriminação a quem recusa vacinar-se, em muitos casos por ter imunidade natural, já conta com mais de 136 mil comentários de cidadãos e entidades sobretudo da Itália, Holanda, Alemanha, Bélgica e Eslováquia. Em Portugal, porém, no pasa nada. A imprensa mainstream ignora o assunto. E de todos os partidos políticos, apenas o PCP quis falar ao PÁGINA UM.


    Manter ou não manter por mais um ano o certificado digital de vacinação como forma de discriminar os não-vacinados contra a covid-19 no controlo transfrointeiriço ou locais públicos e privados: eis a magna questão.

    Falta menos de uma semana para terminar a mais concorrida e polémica iniciativa legislativa da Comissão Europeia, e quase todos os principais partidos políticos portugueses ignoram este assunto. E nem se mostram interessados em o debater. A imprensa mainstream também nada noticia sobre a intenção da Comissão von der Leyen, que tomará uma decisão após a consulta pública que termina na próxima sexta-feira, dia 8.

    A fase de consulta pública do projecto de regulamentação da Comissão von der Leyen em prolongar a vigência do certificado digital até Junho de 2023 – declaradamente para incentivar a vacinação contra a covid-19 está a sofrer uma contestação nunca vista.

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    De acordo com os registos no site da Comissão Europeia foram contabilizadas, até às 19:30 horas de hoje, um total de 136.039 comentários e apreciações à proposta de uso do certificado digital, praticamente todas contra.

    Em pouco mais de um mês, os comentários mais do que duplicaram. Em 24 de Fevereiro, num levantamento do PÁGINA UM, estavam então registados 61.532 comentários.

    A Itália – país onde o uso do certificado digital para uso interno se aplicou de forma radical, condicionando mesmo o acesso ao emprego, transportes públicos e a bens essenciais – lidera as estatísticas, com 24.413 comentários de cidadãos e entidades.

    Segue-se a Holanda e a Alemanha a pouca distância uma da outra, com 22.631 e 22.592 comentários, respectivamente. A França conta já com 17.282, e Bélgica e Eslováquia contam, cada, com mais de cinco mil.

    Portugal é apenas o 13º país com mais comentários, com um total de 1.257,o que se deverá, em grande medida, à falta de eco sobre a consulta pública, quase um boicote, pela imprensa mainstream.

    Para obter uma reacção sobre a necessidade de prolongamento do certificado digital – que cientificamente não garante a não transmissibilidade da covid-19 nem tão-pouco de mecanismo de controlo da pandemia –, o PÁGINA UM contactou durante a passada semana todos os partidos políticos com assento na Assembleia da República e/ou no Parlamento Europeu sobre esta matéria, a saber: Partido Socialista, Partido Social Democrata, Chega, Iniciativa Liberal, CDS, PAN, Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português (PCP).

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    Apesar de terem sido feitos dois contactos, apenas o PCP reagiu. Referindo que “quando da discussão e aprovação do ‘certificado digital’ no Parlamento Europeu”, discordou e repudiou “um regulamento que permitia aos Estados Membros imporem restrições à circulação de pessoas”, incluindo o acesso ao emprego, os comunistas dizem “não ver nenhuma razão para alterar a nossa posição”.

    E relembram ainda que “a Organização Mundial de Saúde, não só desaconselhou que tal decisão fosse tomada, como chamou a atenção para o facto de se estar a fazer tábua rasa do Regulamento Sanitário Internacional, subscrito por 196 países, que aponta soluções mais eficazes.”

    Para o PCP, que defende ser a vacinação eficaz no combate à covid-19, não é com o certificado digital, “com este tipo de imposições”, que se consegue convencer os mais reticentes, mas sim “através de outras medidas mais eficazes”. No entanto, para este partido político “não se justifica a introdução da obrigatoriedade.”

    O Governo português, por seu turno, aparenta querer manter a sua vigência, tanto mais que tomou a decisão deixar cair o prazo de validade dos certificados dos menores. Significa assim que os maiores de 18 anos terão de tomar reforços da vacina contra a covid-19 de 9 em 9 meses, independentemente do seu grau de imunidade, caso pretendam renovar o seu “passe sanitário administrativo”.

    Recorde-se que o regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, ainda em vigor, que criou, em Junho do ano passado, “um regime para a emissão, verificação e aceitação de certificados interoperáveis de vacinação, teste e recuperação da COVID-19 (Certificado Digital COVID da UE)” pretendia “facilitar a livre circulação de pessoas durante a pandemia”. Mas era temporário, com o prazo de um ano e apenas para controlo transfronteiriço.

    Porém, estes certificados foram depois abusivamente aproveitados por diversos Estados-membros, incluindo Portugal, para discriminarem não-vacinados (mesmo se recuperados há mais de seis meses) no acesso a determinados espaços.

    Em todo o caso, de acordo com um levantamento ontem apresentado pelo jornal ECO, há 15 países que já decidiram terminar com as restrições nas viagens para os cidadãos da União Europeia ou do Espaço Schengen, a saber: Dinamarca, Eslovénia, Finlândia, Hungria, Irlanda, Islândia, Lituânia, Luxemburgo, Noruega, Países Baixos, República Checa, Roménia, Suécia, Suíça e Liechtenstein.