Na vigésima quarta sessão da BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com o professor universitário e escritor Rui Zink.
Uma das figuras mais emblemáticas e provocadoras da literatura portuguesa contemporânea, Rui Zink nasceu em Lisboa em 1961, sendo um escritor que transita entre a seriedade da análise crítica e o humor irreverente que desconstrói convenções, tanto na escrita como na forma de estar na vida.
Formado em Estudos Portugueses pela Universidade Nova de Lisboa, Rui Zink seguiu carreira académica como professor universitário, leccionando na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Como escritor, estreou-se em 1987 com ‘Hotel Lusitano’, mas foi com ‘Apocalipse Nau’ (1996), ‘O suplente’ (2000), ‘O Anibaleitor’ (2006) e ‘A Instalação do medo’ (2012) que consolidou a sua posição enquanto autor de relevância cultural e social, reforçada ainda mais com ‘A dádiva divina’, em 2004. A sua escrita é ágil, irónica e profundamente crítica, explorando temas que vão desde os abusos de poder e os medos contemporâneos até à banalidade do quotidiano. É um mestre em provocar o leitor, ora arrancando gargalhadas inesperadas, ora colocando-o perante inquietações existenciais.
Para além da prosa, Rui Zink aventurou-se no teatro, na banda desenhada e na literatura infantil, mostrando uma versatilidade que reflecte a sua curiosidade e criatividade insaciáveis. O humor e a inteligência, por vezes ácidas, que perpassam a sua obra fazem dele uma espécie de cronista dos absurdos e das contradições do mundo moderno.
Nesta conversa com Pedro Almeida Vieira, Rui Zink fala na forma como a Literatura ‘venceu’ uma carreira desportiva, revisita o seu percurso ‘transgressor’, desde a sua juventude, e como tem vindo a ‘amadurecer’.
Entre os romances patentes na Biblioteca do PÁGINA UM, Rui Zink sugere o romance ‘Frei Luís de Sousa’, de Alberto Freitas da Câmara, publicado em 1935 – livro que não leu, mas que recomenda por via do protagonista – e ainda ‘A voz dos deus’, de João Aguiar, publicado em 1984.
Na vigésima terceira sessão da BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com o professor universitário e escritor Ernesto Rodrigues.
Transmontano, nascido em Torre de Dona Chama em 1956, Ernesto Rodrigues é uma figura de destaque da literatura e da academia portuguesa, com vasta obra ensaística, experiência em edição literária e docência na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo sido também director do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias entre 2015 e 2019.
Além do ensaio, com ênfase sobretudo no mundo das letras e do jornalismo do século XIX, ao longo da sua vida acumula uma experiência no jornalismo literário, a partir dos anos 1970, mas tem sido muito através da Literatura que se tem destacado. Como ficcionista, começou com ‘Várias bulhas e algumas vítimas’ (1980), seguindo-se mais dois romances na década de 1980: ‘A flor e a morte’ (1983) e ‘A serpente de bronze’ (1989). A partir de 1994 publicou mais seis romances, dos quais se destacam ‘O romance do gramático’ (2011), ‘A Casa de Bragança’ (2013), ‘Uma bondade perfeita’ (2016, que ganhou o Prémio PEN Clube) e o mais recente Liliputine (2023). Tem também publicado poesia e dramaturgia.
Além de integrar várias antologias de poesia, é também um dos poucos tradutores literários de húngaro, fruto da sua passagem como leitor de Português em Budapeste.
Sobre este seu percurso, e de tudo um pouco, desde a sua infância, nesta conversa com Pedro Almeida Vieira, Ernesto Rodrigues revisita os seus passos na Literatura, abordando desde a sua infância até temas como o estudo dos folhetins nos jornais – seu tema de doutoramento –, a sua paixão pela Hungria e a sua incansável procura pelo saber. E falam de muitas mais histórias e estórias.
Entre os romances patentes na Biblioteca do PÁGINA UM, Ernesto Rodrigues recomenda os romances ‘O bobo’, de Alexandre Herculano – publicado originalmente em 1843 n’O Panorama e em 1878, já postumamente – e ‘O prato de arroz doce’, de Teixeira de Vasconcelos, publicado em livro em 1875.
Vivemos em Portugal há quase meio século num regime democrático, que gostamos de abrilhantar com descidas pela Avenida da Liberdade, que nos prometeu liberdade e igualdade e, pensava eu, transparência. Contudo, o cravo na lapela tornou-se mais símbolo do que substância.
O peito de muitos continua a encher-se de orgulho com discursos comemorativos e celebrações públicas, brandindo a ameaça de tempos sombrios se os partidos populistas ascenderem ao poder, mas por baixo da retórica subsiste um sistema cada vez mais corrompido, corrompendo valores e princípios, alimentado por compadrios, nepotismos e uma cultura de opacidade que mina os fundamentos da democracia. É aqui que reside a grande tragédia do nosso país: instituições que deveriam ser o pilar de uma sociedade justa tornaram-se cúmplices da perpetuação de um poder corrupto e ineficaz. E no epicentro dessa disfunção encontra-se a Justiça.
A democracia portuguesa gosta de se apresentar como uma das mais consolidadas da Europa – e olhe-se o desdém como se olha para os Estados Unidos, o que se torna risível –, mas na prática temos uma democracia em ponto pequeno. Não por falta de votos ou alternância política, mas pela ausência de maturidade institucional que distingue as democracias verdadeiramente funcionais das pseudo-democracias que proliferam pelo Mundo.
Em Portugal, a transparência é uma palavra oca, usada em discursos institucionais como adorno, mas raramente praticada. A Administração Pública, politizada até à medula, opera sob a égide da “lei da rolha”, protegendo os seus interesses de grupo e bloqueando, por todos os meios possíveis, o exercício de direitos fundamentais como o acesso à informação.
Ora, sem transparência, não há democracia. E sem uma Justiça célere e imparcial que garanta esse princípio, aquilo que temos não é um Estado de Direito, mas um estado de arbítrio. O recente episódio envolvendo o Conselho Superior da Magistratura (CSM) – numa ‘guerra jurídica’ de mais de três anos – é sintomático de uma cultura de opacidade institucional que degrada a confiança dos cidadãos nos órgãos que deveriam zelar pelo bem público.
Quando uma entidade como o CSM recusa sistematicamente o acesso a documentos administrativos, não estamos apenas perante um problema de ineficiência ou burocracia; estamos perante um atentado ao direito à informação, ainda mais perpetrado contra jornalistas. E o cúmulo da indignidade acontece quando a mesma entidade cede apenas após uma ordem judicial, não por respeito à transparência, mas porque o tribunal ameaça tocar no bolso do próprio presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Suprema indignidade ter de se chegar a esse ponto.
Pior é que este não é um caso isolado. No PÁGINA UM, temos acumulado, ao longo dos nossos três anos de existência, um conjunto de experiências que ilustram a sistemática recusa do Estado e Administração Pública em partilhar informações de interesse público. Desde contratos de aquisição de vacinas até processos administrativos que envolvem decisões políticas, o padrão é sempre o mesmo: a Administração Pública – que até inclui, hélas, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e a Entidade Reguladora para a Comunicação Social – utiliza todas as manhas e artimanhas legais para evitar a divulgação de documentos.
Na maioria das vezes, somos forçados a recorrer à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) ou, mais frequentemente, aos tribunais administrativos. Estes processos, que deveriam ser céleres, tornam-se numa travessia penosa. Temos casos que se arrastam por anos a fio, como o dos contratos de aquisição das vacinas, que está há mais de dois anos em análise num tribunal administrativo. Sim, um processo de intimação, que por definição deveria ser urgente, torna-se um exercício de resistência.
Os custos desta batalha são elevados, e não apenas no plano financeiro. Até agora, gastámos mais de 20 mil euros em batalhas judiciais, um valor diminuto mesmo assim porque contamos com o apoio generoso de advogados que praticamente trabalham pro bono. Mas pagámos já milhares e milhares de euros em taxas de justiça – supremo deboche de um Estado que beneficia da sua falta de cultura democrática.
O desgaste emocional e o tempo consumido são incalculáveis. Entre a vontade de meter mais casos nos tribunais administrativos e a convicção de que haverá uma luta titânica de meses e anos, fico sempre com a sensação que, mesmo quando ganhamos, perdemos. Na verdade, a sociedade perde sempre.
Aliás, no recente caso contra o CSM, é certo que conseguiremos finalmente o acesso integral aos documentos, incluindo a possibilidade de os fotografar – é uma vitória, que se aplicará a outros casos. Contudo, como reagir quando, nesta luta de três anos, de prepotências dos magistrados do CSM, mesmo ganhando acabamos “condenados” a pagar custas porque, segundo o tribunal, não se provou má-fé da parte do CSM nem havia lugar a pagamento de indemnização por um processo que durava há três anos. Que lógica perversa é esta, em que o ónus da transparência recai sobre quem a exige e não sobre quem a nega?
A pergunta que se impõe é esta: que Justiça é esta? Uma Justiça que deveria ser o garante da equidade transforma-se num instrumento de protecção do status quo do Estado e da Administração Pública. Uma Justiça que deveria punir abusos de poder torna-se cúmplice dos mesmos. Quando os cidadãos olham para o sistema judicial e veem lentidão, opacidade e decisões que parecem proteger os mais poderosos, a democracia não resistirá.
Se esta postura institucional não mudar, a começar pelas cúpulas da Justiça, resta-me a amarga conclusão de que o estúpido, nesta história toda, sou eu, por acreditar que, neste país, a transparência é algo que se pode alcançar sem ser necessário anos de luta nos tribunais.
N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artifIcial.
Uma empresa brasileira de aeronáutica, a Desaer, acusa uma agência portuguesa, liderada pelo filho de Aguiar-Branco, de plagiar um avião que será produzido numa fábrica em Ponte de Sor, cuja escritura do direito de superfície do terreno foi celebrada no passado mês de Dezembro, estando prevista a sua operalização em 2028 num investimento de 30 milhões.
De acordo com um comunicado divulgado nesta segunda-feira pela empresa brasileira, a Aero.Next Portugal – que tem Frederico Aguiar-Branco, licenciado em Direito em 2016, como director-geral –, que é uma agência integrada na empresa EEA Aircraft and Maintenance, ligada ao Centro de Engenharia e Desenvolvimento de Portugal (CEIIA), está em fase final de desenvolvimento de uma aeronave denominada LUS 222 alegadamente idêntica ao modelo ATL 100 da Desaer.
A LUS 222 tem sido apresentada pela Aero.Next Portugal como a primeira aeronave (com 19 lugares) “desenvolvida, fabricada e comercializada em Portugal, de raiz, para integrar sistemas de propulsão convencionais, e híbridos e elétricos”. No entanto, a Desaer diz que “o anúncio dessa aeronave por parte do CEIIA foi feito após o envio de informações técnicas sigilosas […] durante a parceria que, posteriormente, foi suspensa”.
Frederico Aguiar-Branco, com cerca de 30 anos, tem dado a ‘cara’ pelo projecto da Aero.Next em Ponte de Sor, ao lado do presidente da EEA Aircraft and Maintenance, Miguel Braga. O filho do presidente da Assembleia da República é também sócio-gerente da One-Impact Sports International, empresa e agenciamento criada em 2018 por José Pedro Aguiar-Branco. Em Abril do ano passado, o político social-democrata viria a renunciar à gerência desta empresa, entregando as suas quotas pelos filhos Frederico e João Maria.
A Desaer, fundada em 2016 no Estado de São Paulo, alega “deter a propriedade intelectual e todos os direitos sobre o desenvolvimento e produção do ATL 100, lançado em Outubro de 2018 e registado no Brasil como Produto Estratégico de Defesa (PED)”. E acrescenta que, nesse sentido, “já notificou o CEIIA e está tomando as devidas medidas para ratificar seus direitos exclusivos sobre a aeronave”.
Esta decisão da empresa brasileira surge após o término de joint-venture com o CEIIA para a construção de um aeronave luso-brasileira, então denominada ATL 100. Em 2021, foi mesmo anunciado que seria criada a Desaer Portugal, com escritório em Évora e fábrica em Ponte de Sor, mas esta parceria, que teria 70% de capitais brasileiros, não levantou voo.
Mas levantou em Portugal. A CEIIA já teve aprovação de financiamento para a denominada “agenda Aero.Next Portugal”, onde se insere o projecto da fábrica de Ponte de Sor, tendo já recebido tranches de 16,75 milhões de euros de um ‘bolo’ de 34,52 milhões, com prazo de execução até ao final deste ano. E no mês passado, contratou uma outra empresa brasileira, a Akaer, para ser produzida, no Brasil, “a fuselagem, asa completa, estabilizadores horizontais e verticais e também todas as superfícies de controle” do LUS 222..
A Desaer diz em comunicado que, apesar deste litígio com a empresa portuguesa, que o desenvolvimento do ATL 100 segue conforme planeado, com fornecedores já sendo contratado para a produção de peças do protótipo.
No âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência, a CEIIA – onde Frederico Aguiar-Branco é director de programa (‘Program Manager’) – teve 12 projectos aprovados no valor total de 143,22 milhões de euros, dos quais já arrecadaram 58,9 milhões. A este valor juntar-se mais 15,45 milhões de euros que serão ainda entregues pelo Estado, através do IAPMEI, à EEA Aircraft and Maintenance, detida pela CEIIA. Saliente-se que a CEIIA tem vindo a receber sucessivos e chorudos financiamentos nos últimos meses.
Grande parte destes projectos estarão previsivelmente concluídos ao longo deste ano, e os restantes em 2016. Saliente-se também que em 2011, José-Pedro Aguiar-Branco, então ministro da Defesa do Governo de Passos Coellho, assinou contratos envolvenda também a CEIIA e a EEA, bem como a Embraer.
O PÁGINA UM está a tentar obter mais informações e esclarecimentos sobre este assunto, tanto junto da Aero.Next Portugal como da DESAER.
Apesar da diminuição da subvenção pública pela perda de deputados nas eleições de 2022 ter sido a principal justificação alegada pelo Bloco de Esquerda para uma redução de pessoal – que implicou o despedimento de duas mulheres lactantes –, o partido agora liderado por Mariana Mortágua tem tido uma generosa folga financeira, mesmo se o período entre 2019 e 2022 tenha mostrado algumas fragilidades, mas longe de serem dramáticas.
Com efeito, de acordo com a análise do PÁGINA UM às demonstrações financeiras depositadas na Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, o Bloco de Esquerda, bem antes das eleições legislativas de 2022 – que levaram à queda de 19 para apenas cinco deputados –, já andava com as contas no ‘vermelho’ por um longo período. Desde 2019, para ser mais preciso, registou um longo período de prejuízos, pouco normal na história deste partido de esquerda.
No final de 2012, culminando com a saída de Francisco Louçã da coordenação bloquista, o partido apresentava uma situação financeira já bastante desafogada, com um capital próprio de quase 2,3 milhões de euros. Não são montantes exorbitantes – comparando com PS, PSD e mesmo PCP –, mas aquilo que mais impressionava era o excelente controlo da dívida e a elevada liquidez. Nesse ano, o passivo era apenas de 71 mil euros, todo de curto prazo, e havia 680 mil euros em contas bancárias.
Nos anos seguintes, apesar de variações entre exercícios melhores e menos bons, o Bloco de Esquerda atingiu em 2018 a melhor situação financeira de sempre, com fundos patrimoniais de 2,96 milhões de euros, um passivo perfeitamente controlável (171 mil euros), sem dívidas de longo prazo. Com uma subvenção pública nacional e regional de quase 1,7 milhões de euros, o Bloco de Esquerda terminou esse ano com mais de 1,5 milhões de euros em contas bancárias. Em todo o caso, embora 2018 tivesse sido ainda de lucro, verificou-se uma redução significativa: no ano anterior tinha sido de 445 mil euros, baixando para 130 mil. Uma das razões terá sido o aumento de gastos com pessoal – que subiram, entre 2017 e 2018, de 365 mil para 672 mil euros – e de fornecimentos e serviços externos, que pularam de 616 mil euros para 1,06 milhões de euros.
A partir de 2019, as contas começam a mostrar alguns sinais de degradação. Embora o Bloco de Esquerda tenha mantido, nas legislativas desse ano, os 19 deputados que alcançara em 2015, os custos com as campanhas eleitorais, que incluiu também as europeias, atiraram as contas para o ‘vermelho’. Deste modo, em 2019, o Bloco de Esquerda teve um prejuízo de quase 378 mil euros. Em todo o caso, a liquidez manteve-se elevada: quase 1,1 milhões de euros em depósitos bancários.
A situação financeira do partido não melhorou, pelo contrário no triénio da pandemia (2020-2022), período em que o Bloco de Esquerda praticamente não fez oposição ao Governo socialista, acabando com uma ‘derrocada’ na representação parlamentar nas eleições de 2022, recuando para cinco deputados. Com inéditos custos de pessoal em 2020 da ordem dos 850 mil euros, o Bloco de Esquerda teve então o segundo ano consecutivo de prejuízos (-143 mil euros). E não parou por aí. Os gastos com pessoal reduziram-se em 2021 e 2022 (584 mil e 630 mil euros, respectivamente), mas a redução da subvenção pública neste último ano agravou as contas. Em 2021 o prejuízo foi de 58 mil euros e em 2022 foi de quase 303 mil euros.
Embora os prejuízos acumulados nesse quadriénio (2019-2022), rondando 882 mil euros, tenham ‘limpado’ parte dos fundos patrimoniais, o Bloco de Esquerda estava, até em comparação com os restantes partidos políticos, em situação de desafogo financeiro quando procedeu aos despedimentos das suas funcionárias lactantes.
Com efeito, o ano de 2022 terminou com fundos patrimoniais de 2,2 milhões de euros, um passivo de apenas 103 mil euros e com as contas bancárias a contabilizarem 792 mil euros. Ou seja, o Bloco de Esquerda não estava numa situação aflitiva que justificasse um despedimento de mulheres em situação delicada, sobretudo se se considerar ser essa uma das ‘bandeiras’ do partido. Em todo o caso, na análise das contas de 2023, as últimas apresentadas, nota-se que o ‘sacrifício das lactantes’ contribuiu para o bem económico do partido: as contas regressaram ao ‘verde’ (+ 35 mil euros).
Nota-se, aliás, que Mariana Mortágua impôs uma austeridade draconiana, tendo apenas gastos de pessoal de 456 mil euros, menos 44% do que no ano anterior. Porém, o dinheiro em contas bancária teve uma ligeira redução, para os 717 mil euros, mas com o passivo total a recuar para apenas 79 mil euros.
Se se excluir o Livre – por ter fundos patrimoniais ainda muito reduzidos (172 mil euros em 2023, não tendo praticamente passivo) – e o Chega – que em 2023 ainda tinha fundos patrimoniais de apenas 217 mil euros –, o Bloco de Esquerda é o partido que apresenta melhor situação económica relativa, com um rácio de autonomia financeira de 96%, bem à frente do PSD (86%) e do PCP e PAN, ambos com 85%. O PS apresenta um rácio de apenas 8%, mesmo assim uma melhoria face ao ano anterior, quando estava em falência técnica. Pior ainda só o CDS, que em 2023 estava com capitais próprios negativos de 302 mil euros, e encontra-se em falência técnica desde 2016, pelo que não tem qualquer autonomia financeira.
Em Agosto do ano passado, as investigadoras brasileiras Nádia Rodrigues e Mônica Andrade publicaram, em parceria com mais dois colegas, um artigo na prestigiada revista científica PLOS One sobre o risco de mortalidade por covid-19 na região sudeste daquele país. Incidindo no período entre 2020 e 2023, o estudo baseou-se em dados do sistema de vigilância epidemiológica brasileiro (SIVEP), e os resultados encaixavam-se em milhares de outros estudos. Mostravam que o ano mais crítico fora 2021 e que a idade avançada, o género masculino, a etnia a baixa escolaridade e as comorbilidades como doenças cardiovasculares e diabetes destacavam-se como factores de risco significativo.
Além de destacar que os indivíduos negros e residentes em áreas urbanas enfrentaram maiores probabilidades de mortalidade, ainda apontavam que o estado do Rio de Janeiro registara o maior risco de morte, enquanto São Paulo apresentara os índices mais baixos. E dava uma visão positiva sobre as vacinas contra a covid-19, salientando que “reduz[ia] significativamente o risco de morte”, com uma diminuição de 20% em 2021 e de 13% em 2022 entre os vacinados, apesar de apontarem que, mesmo com a vacinação, a vulnerabilidade de certos grupos, especialmente os mais pobres e com menor acesso a cuidados de saúde, permanecia relevante.
Do ponto de vista metodológico, o estudo de Nádia Rodrigues e Mônica Andrade – e de mais dois colegas, Joaquim Teixeira-Netto e Denise Monteiro – usou modelos estatísticos avançados, incluindo análises de sobrevivência e efeitos mistos, para identificar padrões de mortalidade. E as conclusões até sublinhavam a necessidade de intervenções direccionadas para proteger grupos de maior risco e reforçar a importância da vacinação, destacando que as estratégias de saúde pública precisavam de ser ajustadas às realidades socioeconómicas e geográficas.
Este estudo foi ‘acolhido’ com naturalidade. Mas esse acolhimento mudou com uma análise complementar de Nádia Rodrigues e Mônica Andrade, publicada noutra revista científica conceituada, a Frontiers em Medicine, na segunda quinzena de Dezembro passado. Neste caso, as duas investigadoras realizaram um estudo de coorte retrospectivo utilizando também os dados do SIVEP no período entre 2020 e 2023 com o fito de analisar os efeitos da mortalidade a médio prazo. E se no período médio após a covid-19, o risco de morte foi reduzido em 8% para aqueles que haviam sido vacinados, num período longo pós-covid, o risco de morte quase duplicou. E mais: enquanto no médio prazo houve redução na mortalidade para aqueles que tomaram duas ou mais doses, no longo prazo o risco de morte foi maior para aqueles que tomaram uma ou duas doses.
No estudo publicado, as duas investigadoras salientaram que “algumas possíveis explicações para o aumento do risco de morte por outras causas no longo prazo (após uma ou duas doses da vacina” são os “efeitos adversos das vacinas”, destacando que “embora as vacinas contra a covid-19 tenham demonstrado ser seguras para a grande maioria das pessoas, há preocupações sobre potenciais efeitos adversos de longo prazo (ainda que raros), como miocardite, trombose ou outras condições raras associadas à vacinação. E acrescentaram ainda que “estes efeitos podem ser mais pronunciados em alguns grupos, particularmente em indivíduos mais vulneráveis, o que poderia contribuir para um risco aumentado de morte por outras causas ao longo do tempo”.
Por outro lado, destacaram as investigadoras no seu artigo científico, “a vacina contra a covid-19 pode ter um efeito indirecto no sistema imunitário para pessoas com condições pré-existentes ou para aqueles com sistemas imunitários enfraquecidos (como pacientes com doenças autoimunes ou aqueles sob tratamentos imunossupressores)”, referindo que “a resposta imunológica ao vírus pode ter efeitos inesperados ou complexos que aumentam a vulnerabilidade a outras infeções ou levam a complicações de condições pré-existentes”.
Apesar de as duas investigadoras salientarem no artigo científico as limitações do estudo – avisos comuns em Ciência – e de fazerem uma avaliação prudente dos resultados, o facto de colocarem em causa eventuais efeitos prejudiciais das vacinas contra a covid-19 num contexto de longo prazo, causou uma ‘hecatombe’ de críticas no Brasil. A própria Fundação Oswaldo Cruz, também conhecida por Fiocruz – equivalente, em Portugal, à Escola Nacional de Saúde Pública Dr. Ricardo Jorge –, reagiu na semana passada, tentando desvalorizar o estudo e apontando fortes críticas metodológicas. Isto, mesmo sabendo-se que uma das investigadoras em causa, Nádia Rodrigues, é uma das suas conceituadas epidemiologistas, de créditos firmados com mais de uma dezena de artigos científicos relacionados com a covid-19, e que, por diversas vezes, tomou posição favorável à vacinação.
Com efeito, no início da semana passada, o denominado Comitê de Acompanhamento Técnico-Científico das Iniciativas Associadas a Vacinas para a Covid-19 – presidido pelo próprio presidente da Fiocruz, Mário Moreira, doutorado em Políticas Públicas – criticou severamente as conclusões, apontando falhas metodológicas e sustentando que “a hipótese apresentada pelo artigo [científico numa revista que teve revisão pelos pares] contrasta com o vasto corpo de conhecimento científico publicado sobre vacinas e vacinação, não apenas contra a covid-19, mas também contra muitas outras doenças evitáveis por vacinação”. E disse ainda ser “crucial manter o rigor científico, evitando a polarização ideológica na pesquisa sobre vacinas”, argumentando que “artigos submetidos para publicação científica abordando causalidade relacionada a condições de saúde, que são multifactoriais por natureza, devem usar bancos de dados múltiplos, apropriados e robustos para testar hipóteses multicriteriais, além de declarar claramente as limitações metodológicas do artigo e das inferências apresentadas”.
Esta posição seguiu em linha com uma nota da Fiocruz pouco dias antes, tomada para “reiterar a posição institucional de que as vacinas contra covid-19 aprovadas pelas autoridades sanitárias no Brasil são efectivas na redução dos casos graves e das mortes pela doença”, insistindo que “a vacinação contra covid-19 salvou milhões de vidas e foi fundamental para a contenção da doença e decretação pela Organização Mundial da Saúde (OMS) do fim da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional em Maio de 2023”.
As pressões políticas, que também surgem do próprio Ministério da Saúde, sobre um artigo científico incómodo, chegaram, entretanto, à própria revista Frontiers of Medicine que, na passada quarta-feira, publicou uma “manifestação de preocupação” anunciando que uma “equipa de integridade de pesquisa conduzirá uma investigação em total conformidade com nossos procedimentos”, adiantando que “a situação será actualizada assim que a investigação for concluída.”
Note-se, porém, que o artigo científico publicado na Frontiers of Medicine – e que contabiliza, só este mês quase 27 mil leituras, valores elevadíssimos para este tipo de revistas – teve edição e revisão entre pares. Um dos revisores foi o italiano Marco Rocetti, investigador com larga experiência em análise de dados aplicada à pandemia da covid-19. Aliás, num dos seus artigos, publicado em 2023 na Mathematical Biosciences and Engineering, destacava então existir uma “correlação positiva entre mortes por COVID-19 e excesso de mortalidade por todas as causas”.
Contactadas pelo PÁGINA UM sobre esta inusitada polémica, que transcende já a esfera científica, sendo mais política, Nádia Rodrigues e Mônica Andrade defendem a integridade do seu estudo, salientando que “a discussão dos resultados foi abrangente e feita de forma imparcial considerando todas as possibilidades e com embasamento [base] em outros artigos”, refutando que não tenham usado outra informação disponível. “Existem poucos estudos sobre a curva de sobrevida de pacientes graves em médio e longo prazo e portanto, não encontramos estudos brasileiros com esta temática”, referem as investigadoras. E respondem às críticas argumentando que “embora vários pontos levantados estivessem presentes na discussão, notou-se que deveriam ser enfatizados como limitações do estudo e posteriormente, solicitamos a incorporação destas”.
Sobre os “recentes ataques disseminados em mídias sociais, associando nossas pessoas a grupos antivacinas”, Nádia Rodrigues e Mônica Andrade dizem que, tanto a título profissional como pessoal, são “defensoras incondicionais do Programa Nacional de Vacinação [do Brasil], um pilar fundamental em nossas actividades académicas, práticas profissionais, e na promoção da saúde em ambientes familiares e sociais”. E dizem ainda acreditar que “as vacinas são um dos maiores avanços da Medicina, responsáveis por salvar milhões de vidas e prevenir doenças”, reafirmando “o irrestrito apoio ao programa de imunização, que é essencial para a manutenção da saúde pública no Brasil”.
Por fim, as duas investigadoras rejeitam “qualquer tentativa de distorção ou desinformação a esse respeito, com o compromisso de seguir promovendo a saúde e o bem-estar de nossa sociedade”.
O tom da mensagem transmitida pelas duas investigadoras brasileiras faz, em certa medida, lembrar a célebre abjuração de Galileu Galilei perante a Inquisição em 1633, e a frase a si atribuída como lamento: “E pur si muove“, aludindo ao facto de, apesar do que então lhe impunham dizer, a Terra continuaria a mover-se em torno do Sol.
Fraude. Não há outra palavra que possa caracterizar a mais recente sondagem da Pitagórica para a TVI e CNN Portugal que teve as Presidenciais de 2026 como ‘prato forte’. Apresentada no passado dia 9 de Janeiro, a sondagem – cujos detalhes só esta madrugada [ontem pelas 23:03 horas ainda não estavam] foram disponibilizados pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) –, a sondagem destacou que “Gouveia e Melo é o preferido dos portugueses para a Presidência”, mas a metodologia para a obtenção desta conclusão radica em erros e enviesamentos graves que anulam a sua validade (e até a legalidade).
Com efeito, de acordo com a primeira notícia desta sondagem da TVI – que seria repercutida, de forma acrítica, pela imprensa generalista, tornando-se alvo de inúmeros debates e artigos de opinião –, “o até há pouco tempo chefe do Estado-Maior da Armada é quem reúne as preferências, ficando à frente de figuras que ainda não abriram o jogo quanto a uma candidatura, mas também de outras pessoas que estariam potencialmente bem colocadas”.
A notícia salientava que “a sondagem dividia-se em quatro respostas: ‘votaria de certeza’; ‘talvez votasse’; ‘jamais votaria’; ‘não conhece o candidato / não consegue ou não quer avaliar o candidato’”, e acrescentava então que, “neste cenário, Gouveia e Melo obteve 28% no ‘votaria de certeza’, um número só igualado por António Guterres” e que, “ainda assim, há mais pessoas que ‘talvez votassem’ no almirante (29%) do que no antigo primeiro-ministro (26%)”.
Numa apresentação televisiva desta sondagem, o jornalista Pedro Benevides, além de mostrar uma lista exaustiva de proto-candidatos, com as percentagens relativas à questão “em quem votaria?”, afirmou, de forma categórica, que Gouveia e Melo, colocado na primeira posição, tinha “28% das intenções de voto dos portugueses que foram consultados nessa sondagem; 28% que dizem que vão mesmo votar nele”.
Mostra-se evidente que a sondagem, por dolo, negligência ou incompetência, deveria ter tido um único destino: o ‘caixote do lixo’. Com efeito, tendo sido inquiridas apenas 400 pessoas – um número que, estatisticamente, para o universo dos recenseados, implica uma margem de erro anormalmente elevada (5%) –, se se somarem apenas os números relativos às respostas ‘votaria de certeza’ alcançar-se-iam 1.032 votos. Ou seja, em média, cada inquirido terá indicado que ‘votaria de certeza’ em 2,6 candidatos.
Em concreto, se Gouveia e Melo teve 28% dos inquiridos a dizerem que votariam nele ‘de certeza’, então foi porque 112 pessoas assim o garantiram na sondagem; se António Guterres teve a mesma percentagem, correspondeu então a 112 pessoas; se Passos Coelho teve 23%, então contam-se mais 92 pessoas; se António Costa teve 22%, significa mais 88 pessoas. Ora, só com estes quatro proto-candidatos se contabilizavam 404 votos em 400 inquiridos.
Junte-se mais os 60 inquiridos que supostamente garantiram também que votariam de ‘certeza’ em Marques Mendes (15%); mais os 52 que supostamente garantiram também que votariam de ‘certeza’ em Rui Rio (13%), outros tantos em Durão Barroso, e outros tantos em Cotrim Figueiredo, então os ‘votos de certeza’ sobem para 620 votos em 400 inquiridos. Se se juntar ainda mais os votos ‘de certeza’ em Paulo Portas (48), em Ana Gomes (mais 48), em António Vitorino (mais 44) e André Ventura (mais 44), o pecúlio de votos ‘de certeza’ – e que foram interpretados como “intenções de voto” – ascende então aos 805 votos em apenas 400 inquiridos. Juntando os votos ‘de certeza’ dos restantes proto-candidatos (António José Seguro, Aguiar-Branco, Francisco Louçã, Santana Lopes, Jerónimo de Sousa e Rodrigo Saraiva), atinge, então, um total de 1302 votos.
Esta impossibilidade democrática (cada pessoa ‘vale’ apenas um voto) e semântica (‘de certeza’ significa uma decisão convicta, garantida e exclusiva perante um candidato) invalida qualquer credibilidade à sondagem da Pitagórica e às conclusões retiradas, designadamente aquelas que colocaram Gouveia e Melo como o preferido dos portugueses. De facto, declarar um voto “de certeza”, em democracia, não admite múltiplas escolhas igualmente certas para diferentes opções num mesmo contexto.
Além disso, o inquirido que votasse ‘de certeza’ num determinado candidato deveria, além de ficar automaticamente bloqueado para votar ‘de certeza’ noutro candidato, não ter a possibilidade de ponderar votar em qualquer outro (ou seja, em responder, uma ou mais vezes, na opção ‘talvez votasse’). De igual modo, um voto ‘de certeza’ num determinado candidato, pela assertividade da decisão, implicaria que todos os outros proto-candidatos teriam de receber, de forma automática, um igualmente assertivo ‘jamais votaria’.
Contudo, nem sequer se sabe, na verdade, quantos, de entre os 400 inquiridos, votaram ‘de certeza’ apenas uma vez, nem quantos votaram ‘de certeza’ em dois ou mais candidatos. Aliás, seria curioso saber em quantos proto-candidatos votou o inquirido mais ‘liberal’. Note-se que na Ficha Técnica, hoje divulgada no site da ERC, se omite completamente que os inquiridos podiam optar várias vezes, em diversos proto-candidatos, algo que desvirtua também a sondagem por falta de transparência. Certo é que, havendo ainda indecisão – e daí até a possibilidade de se escolher ‘talvez votasse’ (que poderia ‘beneficar’, aqui sim, vários proto-candidatos –, seria de esperar que o número de votos ‘de certeza’ fosse até substancialmente inferior ao número dos inquiridos.
Os resultados da sondagem sobre as Presidenciais, agora divulgada em pormenor no site da ERC, permite, com maior detalhe, a repetição de votos ‘de certeza’ sobre vários quadrantes. Através dos dados em percentagem, o PÁGINA UM conseguiu saber como os diversos ‘simpatizantes’ dos partidos distribuíram os seus votos na opção ‘votaria de certeza’. Por exemplo, no caso dos eleitores da Aliança Democrática – que representavam 123 dos 400 inquiridos –, houve 53 votos em Passos Coelho, 35 em Gouveia e Melo, 30 em Marques Mendes, 29 em Paulo Portas, 27 em António Guterres, 26 em Durão Barrosos, 23 em Rui Rio, 19 em Aguiar-Branco, 18 em Cotrim Figueiredo, 16 em António Costa, 10 em Ana Gomes, 10 em, António Vitorino e mais 34 nos restantes proto-candidatos (Mário Centeno, António José Seguro, André Ventura, Francisco Louçã, Jerónimo Sousa e Rodrigo Saraiva. Soma-se tudo e dá 2,8 votos ‘de certeza’ nos eleitores da Aliança Democrática.
No caso dos eleitores do PS – que representam 116 dos 400 inquiridos – repete-se este padrão. Há 47 inquiridos que ‘juraram’ que votariam em António Costa, 46 que ‘juraram’ votar em António Guterres e 36 em Gouveia e Melo. Somente com estes três proto-candidatos há um problema: para um universo de 116 eleitores socialistas já se contam 129 votos ‘de certeza’. Mas isto agrava-se porque os restantes 16 proto-candidatos recolhem ‘de certeza’ mais 163 votos. Daqui se conclui que em 116 eleitores socialistas, a Pitagórica recolheu 292 votos ‘de certeza’, uma média de 2,52 votos ‘de certeza’.
No terceiro partido com maior representatividade parlamentar, o Chega, também houve muitos eleitores inquiridos que votaram ‘de certeza’ em mais do que um proto-candidato. E nem a absurda possibilidade de se votar várias vezes com convicção em diversos candidatos beneficiou o líder deste partido. Tendo sido ‘seleccionados’ 66 eleitores do Chega, apenas 30 disseram que votariam ‘de certeza’ em André Ventura, pouco à frente de Gouveia e Melo (27). Mas é muitíssimo provável que tenha havido eleitores que garantiram o seu voto a ambos – fazendo relembrar a famosa música de Marco Paulo –, porque os 66 eleitores do Chega votaram 176 vezes ‘de certeza’.
Houve, porém, eleitores de outros partidos mais ‘incertos’ na certeza, ou seja, que deram o voto ‘de certeza’ mais candidatos. Por exemplo, os sete eleitores do PAN, que integraram esta sondagem, concederam 27 votos ‘de certeza’ por diversos candidatos. Cada um teve direito a votar, média, quase quatro vezes (3,86). Os 18 eleitores do Livre também tiveram, segundo a sondagem da Pitagórica, dificuldades em perceber que votar ‘de certeza’ não implica votar em vários candidatos. Com efeito, contabilizaram-se, neste grupo, um total de 59 votos ‘de certeza’, dando assim uma média de 3,28 votos por cada eleitor.
Os eleitores com menor número médio de votos ‘de certeza’ são os do PCP. Em 13 inquiridos, no universo de 400 inquiridos, ‘só’ se contabilizam 19 votos ‘de certeza’. Curiosamente, apenas três se direccionaram para o único militante comunista (Jerónimo Sousa) na lista de proto-candidatos.
Se isto não bastasse, a Estatística Inferencial comprovaria a absoluta fraude desta sondagem da Pitagórica, usada, primeiro, pela TVI e CNN Portugal, e depois amplificada pela imprensa generalista. Com base nos dados conhecidos da sondagem, se se usar uma distribuição de Poisson, a probabilidade de um inquirido ter votado na opção ‘de certeza’ em apenas um proto-candidato foi somente de 19,6%. Usando o método de distribuição binomial, a probabilidade estimada desce para 18,9%, enquanto na simulação multinomial (Monte Carlo) surge a indicação de que todos os inquiridos votaram na opção ‘de certeza’ em mais do que um proto-candidato, reflectindo assim o enviesamento estrutural dos dados da Pitagórica.
O PÁGINA UM contactou Alexandre Picoto, patrão da empresa de sondagens Pitagórica, e próximos dos círculos do PSD, que confirmou a existência da possibilidade de os inquiridos puderem votar em mais do que um dos proto-candidatos na opção ‘votaria de certeza’. “Este tipo de sondagens tem como principal objectivo avaliar a taxa de conhecimento que os eleitores têm dos candidatos, a sua taxa de rejeição e a capacidade potencial de angariar votos, conjugando a opção ‘votaria de certeza’ e ‘talvez votasse’”, alega o responsável pela empresa de sondagens, descartando responsabilidade sobre a interpretação dos resultados feita pelos clientes (TVI e CNN Portugal) pela outra imprensa generalista.
Como Alexandre Picoto não deu uma explicação razoável sobre ter sido possível (contra a lógica democrática e semântica) os inquiridos optarem por ‘votaria de certeza’ em diversos proto-candidatos, o PÁGINA UM decidiu apresentar uma queixa formal junto da ERC, uma vez que a ausência de regras que assegurassem exclusividade nas respostas torna esta sondagem incapaz de captar intenções de voto reais e confiáveis, convertendo-a num exercício vazio de significado e sem qualquer utilidade prática ou analítica. Ou seja, um puro objecto de manipulação e de desinformação.
A Lei das Sondagens determina, como uma das regras gerais, que “a interpretação dos resultados brutos deve ser feita de forma a não falsear ou deturpar o resultado da sondagem”, impondo, de igual modo, que “a publicação, difusão e interpretação técnica dos dados obtidos por sondagens de opinião devem ser efectuadas de forma a não falsear ou deturpar o seu resultado, sentido e limites”.
Na queixa do PÁGINA UM, com cinco páginas, explicitaram-se as “falhas metodológicas”, salientando que “comprometem seriamente a utilidade desta sondagem, e a sua divulgação constituiu um gravíssimo atropelo legal, mais ainda sendo extremamente fácil a detecção das anomalias metodológicos e a falsidade dos resultados, como indicativo de intenções reais de voto”. E solicitava-se que a ERC determinasse a obrigatoriedade da “assumpção pública dos erros metodológicos e de interpretação abusiva por todos os órgãos de comunicação social que [tivessem] abordado a sondagem da Pitagórica”.
Porém, apesar da Lei das Sondagens, explicitamente, indicar que “as queixas relativas a sondagens ou inquéritos de opinião publicamente divulgadas, que invoquem eventuais violações do disposto na presente lei”, devem ser alvo de deliberação pela ERC “no prazo máximo de oito dias após a sua recepção”, o Conselho Regulador fez vista grossa a esta sua obrigação.
Tendo o prazo legal para deliberar sobre a queixa do PÁGINA UM terminado na passada segunda-feira, a ERC nada decidiu, dizendo apenas que “se encontra, nos moldes habituais, em apreciação pelos serviços”. Saliente-se que os “moldes habituais” da ERC tem sido mandar para as calendas uma decisão, esvaziando por completo a sua função de regulação e de zeladora contra a manipulação e desinformação. Com efeito, de entre as diversas queixas envolvendo sondagens, o hiato entre a participação e a deliberação da ERC tem sido de vários meses e mesmo anos. E nos casos mais gravosos, que implicaram a violação da Lei das Sondagens, a admoestação é geralmente a sanção aplicada.
Por exemplo, uma queixa contra um jornal de Vila Nova de Famalicão sobre uma sondagem política local apresentada à ERC em 26 de Setembro de 2013 só teve uma deliberação praticamente dois anos depois, em 23 de Setembro de 2015, que concluiu pela abertura de um processo de contra-ordenação. A decisão final, através de uma admoestação, demorou mais de quatro anos e sete meses, ou seja, foi proferida em 7 de Maio de 2020.
Outra queixa, sobre a actuação do jornal I face a uma sondagem da Pitagórica sobre as eleições legislativas, apresentada em finais de Agosto de 2015, somente teve uma deliberação em 4 de Maio de 2016. Neste caso, o processo de contra-ordenação até resultou numa coima de 15 mil euros, mas a decisão foi proferida em 15 de Dezembro de 2021. Ou seja, seis anos e quatro meses após os factos.
A passividade e a lentidão da ERC contribuem, assim, e de forma decisiva, como um convite para a manipulação pura e dura das sondagens e inquéritos de opinião num clima propício à impunidade. E mesmo se um dia houver penalidades, o objectivo da manipulação foi alcançado, por se tornar inútil e intempestiva posterior acção do regulador. Aliás, perante o incumprimento dos prazos legais por parte da ERC, o PÁGINA UM perguntou a esta entidade se, pelo menos, uma deliberação sobre a sua queixa contra esta sondagem fraudulenta sairia antes das Presidenciais previstas para Janeiro de 2026. Não obteve resposta.
N.D. As 16h53, de 23 de Janeiro de 2023, o PÁGINA UM recebeu uma mensagem da ERC, em correio electrónico, que se transcreve na íntegra:
“A ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social atua em estrito cumprimento da lei e para o fazer tem obrigatoriamente de conciliar tempos de decisão variáveis, ponderando sobre a melhor forma de compatibilizar direitos dos interessados e disposições legais previstas nos diferentes enquadramentos jurídicos das questões que analisa; este exercício nalgumas situações confronta o processo de decisão com prazos processuais contraditórios entre si.
No caso em apreço, estão a ser cumpridos o ‘direito de defesa’ das partes visadas conforme disposto nos Estatutos da ERC (cf. n.º2, art. 56.º) e o direito de ‘audiência dos interessados’ nos termos gerais do Código do Procedimento Administrativo.
Mais se informa que o depósito da sondagem considerada neste processo encontra-se disponível para consulta pública desde ontem, de acordo com os prazos estabelecidos para consulta pública de sondagens e estudos de opinião (cf. Deliberação 1/SOND/2009).”
O PÁGINA UM reitera o que escreveu: a Lei das Sondagens é clara no tempo definido para tomar uma deliberação: oito dias, prazo que se encurta para apenas dois dias durante os períodos de campanha eleitoral. Como se compreende, se os membros do Conselho Regulador da ERC não concordam com essa imposição legal, têm um de dois caminhos: ou procuram, junto da Assembleia da República, a alteração da lei; ou optam por se demitir, considerando-se incompetentes para executar uma norma legal. Uma deliberação deve ser sustentada, neste caso, por uma analise inicial, que pode desencadear um arquivamento ou a abertura de um processo de contra-ordenação, aí sim com possibilidade de defesa. Aquilo que não pode suceder é o benefício do potencial infractor: ou seja, passar para a opinião, durante meses ou até anos, que uma sondagem fraudulenta tem validade com as repercussões públicas e políticas conhecidas.
Após mais de três anos de litígios, João Cura Mariano, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, e por inerência do Conselho Superior da Magistratura (CSM), manifestou ontem ao final da tarde a intenção de acatar a sentença proferida no passado dia 14 de Janeiro pelo Tribunal Administrativo de Lisboa, que obrigou a cúpula da justiça portuguesa de disponibilizar e permitir a cópia em fotografia do inquérito sobre a distribuição da Operação Marquês. Através de mensagem de correio electrónico, foi solicitado ao PÁGINA UM que indicasse “o dia em que pretende proceder à consulta requerida, nas instalações do CSM”.
O caso remonta a finais de 2021, tendo sido a primeira de uma longa lista de mais de duas dezenas de intimações já colocadas pelo PÁGINA UM nos tribunais administrativos, com o apoio financeiro dos leitores através do FUNDO JURÍDICO. Em causa estava então o acesso ao inquérito do CSM sobre a distribuição do processo da Operação Marquês, entregue sem sorteio ao juiz Carlos Alexandre. Este inquérito, que revelou irregularidades como a ausência de sorteio electrónico, foi mantido secreto pelo CSM, apesar de ser classificado como documento administrativo. Após uma recusa inicial e um parecer favorável da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), o CSM continuou a negar o acesso, alegando questões de confidencialidade.
A resistência do CSM levou o PÁGINA UM a recorrer ao Tribunal Administrativo de Lisboa, onde, em Junho de 2022, uma primeira sentença favorável ordenou a entrega integral dos documentos, sem restrições. O CSM apelou da decisão, mas o Tribunal Central Administrativo do Sul confirmou, em 2023, a sentença inicial. Apesar disso, o CSM dificultou o acesso integral, impedindo que fosse fotografados os documentos, e mutilando partes consideráveis do texto em fotocópias então disponibillizadas, o que levou o PÁGINA UM a recorrer novamente ao Tribunal Administrativo. Se o CSM não acatasse agora a nova sentença deste mês, o juiz conselheiro João Cura Mariano seria pessoalmente responsável pelo pagamento de 50 euros por dia de atraso.
Este desfecho marca uma vitória histórica para o PÁGINA UM, que, desde a sua fundação, tem lutado pela transparência e pelo acesso à informação. No entanto, este caso também levanta questões cruciais sobre a responsabilização individual de altos dirigentes em situações de incumprimento de decisões judiciais e sobre o papel das instituições judiciais no respeito pelos princípios democráticos e pela liberdade de imprensa.
Recorde-se, aliás, que o PÁGINA UM tem em curso outros dois casos absurdos de incumprimento de acórdãos dos tribunais administrativos superiores. O primeiro caso refere-se à consulta da base de dados dos Grupos de Diagnósticos Homogéneos (BD-GDH), que inclui toda a informação dos internamentos, sem qualquer identificação de pessoas, há muito prevista nas próprias competências da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). Apesar de uma ‘luta jurídica’ iniciada em Setembro de 2022, que culminou em três decisões judiciais, incluindo um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo em 1 de Junho de 2023, a ACSS mutilou completamente a base de dados, eliminando ou agrupando variáveis, comprometendo toda a integridade da informação. O pedido de intervenção ao Tribunal Administrativo ainda não teve um epílogo.
O outro caso envolve a base de dados das reacções adversas das vacinas contra a covid-19, um processo iniciado também no final de 2021, e que teve um acórdão favorável do Tribunal Central Administrativo do Sul ao PÁGINA UM em 11 de Julho do ano passado. Esse acórdão, que alterara uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, ordenava que se facultasse o acesso aos dados pretendidos no Portal RAM. Mas o Infarmed, liderado por Rui Santos Ivo, enviou os elementos mas mutilando informação, agregando variáveis e escondendo outras variáveis, incluindo a causalidade. Embora o PÁGINA UM tenha já feito diversas insistências para que Rui Santos Ivo deixe de esconder intencionalmente essa informação, ainda não se conseguiu reverter a postura obscurantista de um funcionário público que não cumpre decisões dos tribunais administrativos.
Um caso sem precedentes em Portugal. E sobretudo um caso singular do espinhoso caminho contra a prepotência do poder e contra a falta de transparência. Através de uma sentença inédita de um juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa, o presidente do Conselho Superior da Magistratura (CSM) foi alvo de uma sanção pecuniária compulsória se este órgão de cúpula do poder judiciário continuar a recusar ao PÁGINA UM o acesso integral ao inquérito sobre a distribuição da Operação Marquês. Uma luta judicial que se iniciou em finais de 2021, e que constituiu a sua primeira iniciativa com o apoio do FUNDO JURÍDICO.
Uma sanção pecuniária compulsória é uma multa aplicada como meio de coerção para obrigar alguém, geralmente uma entidade ou autoridade, a cumprir uma obrigação legal ou decisão judicial. O PÁGINA UM consultou vários juristas para saber se são conhecidas sentenças similares contra o CSM, e nenhum tem memória de uma sentença desta natureza contra o órgão de cúpula responsável pela gestão e disciplina dos magistrados judiciais em Portugal.
De acordo com a decisão do juiz Bruno Gomes – que não está sob a alçada do CSM –, a partir do trânsito em julgado da sua sentença do passado dia 13 deste mês, o juiz conselheiro João Cura Mariano – presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que lidera por inerência a cúpula da magistratura – terá de pagar, do seu bolso, uma ‘multa’ de 50 euros por dia se mantiver o incumprimento de uma sentença de 2022 favorável ao PÁGINA UM. Em causa está o acesso integral e sem restrições, requerido no final de 2021, ao inquérito do CSM relativo à distribuição do processo da Operação Marquês.
Apesar de nesse inquérito se ter apurado que não houve sorteio electrónico na entrega do processo ao juiz Carlos Alexandre e que se fez à margem da lei, o CSM manteve o relatório secreto, recusando divulgá-lo à comunicação social, apesar de se tratar de documentos administrativos. No início de Janeiro de 2022, o jornal ECO revela a resposta taxativa da CSM: “Sobre o pedido de acesso ao relatório em questão, informa-se que o mesmo não será disponibilizado”.
O PÁGINA UM – que, desde a sua fundação, colocou como ‘bandeiras’ a transparência e o acesso à informação pelos jornalistas – não aceitou esta ilegítima postura do CSM, ademais tratando-se da cúpula da magistratura, a saber: o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, dois membros designados pelo Presidente da República, sete membros eleitos pela Assembleia da República, por sete membros eleitos por Magistrados Judiciais, dois juízes dos Tribunais da Relação e quatro juízes de Direito.
Após um requerimento inicial do PÁGINA UM ainda em 2021, o CSM exigiu o impensável numa democracia que constitucionalmente deveria preservar a liberdade de imprensa: saber “qual a finalidade do acesso e da recolha” dos documentos solicitados. O PÁGINA UM insistiu que a lei não determinava tal obrigatoriedade, muito menos a jornalistas, e assim, num parecer, a juíza Ana Sofia Wengovorius – curiosamente, filha de um advogado do Sindicato dos Jornalistas durante duas décadas, entre 1970 e 1991 – considerou que os documentos do CSM estavam acima de meros documentos administrativos.
E começava aqui a estranha interpretação da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA) por parte do CSM. A mesma juíza, num segundo parecer, em finais de Dezembro de 2021, considerava que “o acesso e/ou recolha solicitado só é lícito se forem recolhidos apenas os dados estritamente necessários para uma finalidade reconhecida por Lei que o legitime, pelo que só conhecendo a finalidade se pode fazer a ponderação que a lei impõe”, acrescentando que “dentro das condicionantes próprias do procedimento em causa que é confidencial o requerente deve esclarecer qual a finalidade do acesso e da recolha de tais documentos ou se pretende a decisão final”. E de forma paternalista concluía a juíza do CSM: “Mais sugiro que seja remetida cópia do anterior parecer emitido para melhor compreensão”.
Passaram mais de três anos desde o parecer desta juíza e aquilo que se pode concluir é que quem precisava de uma melhor compreensão da lei e sobretudo da convivência democrática era o CSM. Mas não era preciso tanto tempo. Logo no início de 2022, o PÁGINA UM recorreu à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), então presidida pelo juiz conselheiro Alberto Oliveira, que viria considerar que o acesso era devido, através de um parecer de meados de Fevereiro desse ano.
Mas nem assim o CSM se disponibilizou a ceder os documentos do inquérito, advogando que o parecer da CADA não era vinculativo, acabando mesmo por “convidar” o PÁGINA UM a ‘usar’, com custos e tempo, o Tribunal Administrativo de Lisboa.
O órgão superior de gestão e disciplina dos juízes dos tribunais judiciais portugueses considerou então, através da também juíza Ana Cristina Chambel Matias que “o Requerente [director do PÁGINA UM] não invocou, nem demonstrou que o acesso aos documentos constantes do processo de averiguações em causa são necessários para a tutela de um qualquer seu direito ou interesse legalmente protegido para que lhe seja conferido o direito a esse acesso”, acrescentando que “apesar de notificado por mais de uma vez pelo CSM, não concretizou cabalmente os elementos pretendidos dentro das condicionantes próprias do procedimento e não esclareceu qual a finalidade do acesso e da recolha de tais documentos”.
A prepotência do CSM mantinha-se.
E a inflexibilidade do PÁGINA UM também. E iniciou-se então uma verdadeira luta judicial entre David e Golias. Em sede da intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa – naquele que viria a ser o primeiro processo judicial do PÁGINA UM financiado pelos seus leitores através do FUNDO JURÍDICO. Em sede de contestação, o CSM insistiu na tese da existência de “dados nominativos” no relatório do inquérito. Porém, em vez de acreditar piamente no CSM, o juiz Pedro Almeida Moreira exigiu que lhe fosse enviado “em envelope selado, cópia dos documentos a que o Requerente [director do PÁGINA UM] pretende aceder, de molde a permitir a este Tribunal aquilatar se os mesmos contêm ou não ‘múltiplos dados pessoais’ e, ‘se a isso se chegar, tecer um juízo de proporcionalidade concernente aos interesses que aqui se encontram concretamente em jogo’”.
Em 30 de Junho de 2022, a sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa deveria ter sido o tira-teimas. acabou assim por comprovar que o CSM, desde o início, estava a alegar com argumentos muito distantes da verdade factual. Na sua sentença, o juiz Pedro Almeida Moreira teceu mesmo duras críticas às alegações do CSM, considerando que “a vingar a interpretação que aqui é propugnada pelo Requerido [CSM], isso significaria que o mero nome de um funcionário público que tenha intervindo num qualquer procedimento administrativo apenas poderia ser tornado acessível aos interessados após a ponderação dos interesses em jogo no âmbito de um juízo de proporcionalidade, o que não se mostra aceitável em face das exigências de transparência que impendem sobre a Administração, nos termos constitucional e infraconstitucionalmente consagrados.”
E concluía: “Não perscrutando este Tribunal motivos plausíveis para se afastar da regra geral de livre acesso dos interessados a documentos administrativos nos termos acabados de expender, e nada mais vindo invocado pelo Requerido, não lhe restam alternativas que não concluir pela procedência da presente intimação, o que se julga de seguida, sem necessidade de maiores desenvolvimentos”. A sentença deveria ter sido cumprida no prazo de 10 dias.
Já com duas ‘derrotas’ – CADA e Tribunal Administrativo de Lisboa –, o CSM quis arriscar ter uma terceira, até porque as taxas de justiça e os custos de patrocínio não lhe pesam. E recorreu, para assim adiar a sentença, e conseguiu… perder uma terceira vez, desta vez no Tribunal Central Administrativo do Sul.
O acórdão demorou sete meses, mas veio demolidor, mais uma vez, para o CSM. Votado por unanimidade pelos desembargadores Lina Costa (que foi a relatora), Catarina Vasconcelos e Rui Pereira, este acórdão arrasou em toda a linha a argumentação que o CSM usou para evitar o acesso ao inquérito.
Para os desembargadores, a sentença inicial do juiz Pedro Almeida Moreira seria para manter em toda a linha, concluindo não haver qualquer “erro de julgamento da não pronúncia sobre a não indicação da finalidade do acesso solicitado, nem sobre a natureza pré-disciplinar da informação, além de não ter havido qualquer “erro de julgamento de falta de fundamentação do juízo de proporcionalidade efectuado”.
O acórdão mostrava-se, aliás, particularmente importante por clarificar a questão da suposta protecção de dados nominativos, que tem estado a ser levado ao extremo em muitos outros processos de intimação protagonizados pelo PÁGINA UM.
Nessa linha, os desembargadores salientaram que “essa presunção devia ter sido efectuada, nos termos da lei [nº 9 do artigo 6º da LADA], pelo Recorrente [CSM], enquanto entidade administrativa que recebeu o pedido (…) e conhece o teor dos documentos em referência, sabendo ou podendo verificar que não respeitam a origem étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a filiação sindical, dados genéticos, biométricos ou relativos à saúde, ou dados relativos à intimidade da vida privada, à vida sexual ou à orientação sexual de uma pessoa, titular/es dos dados pessoais neles constantes”. E sabendo-se que o relatório da inspecção não tinha esse tipo de dados, o CSM deveria ter permitido logo o acesso.
Porém, “não o fez”, como escrevem os desembargadores, “recusando o acesso requerido com fundamento de que os documentos eram nominativos e, sustentando no recurso, que têm de ser cumpridos os princípios plasmados no RGPD (Regulamento Geral da Protecção de Dados], como sejam a demonstração e concretização da finalidade do acesso aos dados pessoais contidos em tais documentos e do interesse pessoal e directo no mesmo.”
Os desembargadores concluíram ainda que o CSM não poderia ter decidido assim, uma vez que o PÁGINA UM, “ao abrigo do direito de acesso a informação não procedimental, pretend[ia] saber o que consta dos documentos e não apenas os dados pessoais, não tendo aquele que observar o que consta do RGPD, mas sim na LADA [Lei do Acesso aos Documentos Administrativos], até em decorrência do disposto no artigo 26º da Lei da Protecção de Dados Pessoais.”
Numa situação ‘normal’, num Estado de Direito e no respeito pelos princípios da liberdade de imprensa, o CSM deveria ter, enfim, dar-se por convencido, mesmo que não se quisesse dar por vencido.
E aparentou ir abrir mão dos documentos, quando, em finais de Julho de 2023, se agendaram as visitas de consulta dos documentos. Porém, o CSM começou por impor um pagamento de taxas exorbitantes em caso de se solicitar fotocópias. E no dia da consulta, pouco depois de o PÁGINA UM ter começado a fotografar as páginas dos dossiers do processo, foi proibida por ordem expressa da juíza secretária do CSM. Além disso, quis que as fotocópias fossem expurgadas de determinadas partes, o que contrariava a sentença. Dois requerimentos do PÁGINA UM não demoveram o CSM, que se achou no direito de criar regras próprias em vez de seguir regras legais. E, mais uma vez, só restou ao PÁGINA UM socorrer-se novamente do Tribunal Administrativo.
Nesta fase, o processo tornou-se ainda mais kafkiano. Apesar da intimação do PÁGINA UM para a execução da sentença ter entrado no Tribunal Administrativo de Lisboa em Outubro de 2023, durante praticamente um ano esteve absurdamente parado. Uma das razões foi ter saído a jurista do CSM responsável do processo, tendo só sido substituída largos meses depois. O juiz acabou por aceitar renovar a notificação.
Seja como for, mais de 37 meses depois de ter sido feito o requerimento inicial, o juiz Bruno Gomes foi peremptório na sua sentença ao conceder razão ao PÁGINA UM para aceder e também fotografar integralmente os documentos em posse do CSM, por este ser um método previsto na lei, “equivalente ao envio por correio elecrónico”, ao qual, saliente-se, “não é devida qualquer taxa”. E disse ainda que não acolhe a posição do CSM de que a obtenção se faz “através de um único exemplar, sujeito a pagamento, pelo requerente, da taxa fixada”.
Além disto, a sentença diz ainda que, sendo certo que “perpassa ao longo dos requerimentos” que o PÁGINA UM pretendia aceder aos “documentos através de reprodução por registo fotográfico, de modo a evitar os custos inerentes à reprodução por fotocópia”, mesmo que fossem requeridas fotocópias, estas teriam de ser entregues em “termos rigorosamente correspondentes ao do conteúdo do registo”. Ou seja, sem qualquer mutilação.
Saliente-se que, em Agosto de 2023, o CSM chegou a disponibilizar ao PÁGINA UM diversas fotocópias completamente mutiladas, apagando assim os nomes dos intervenientes no processo disciplinar, a descrição dos eventos, o número do processo, a data da distribuição e o nome do escrivão que interveio.
Apesar desta evidente e histórica vitória do PÁGINA UM, e apesar da necessidade de duas sentenças e um acórdão – e de mais de três anos de luta em tribunal –, o juiz Bruno Gomes considerou que o CSM não foi litigante de má-fé. Certo é que somente por esta derradeira luta para conseguir fotografar os documentos, o PÁGINA UM vai ter de despender mais cerca de 300 euros em custas. Todo o processo, em taxas judiciais, envolveu mais de um milhar de euros.
As duas empresas do demissionário director executivo do Serviço Nacional de Saúde, Gandra d’Almeida, nas quais foi gerente até meados do ano passado, receberam mais de meio milhão de euros apenas em 2022 e 2023, quando este era em simultâneo director da Delegação Regional do Norte do INEM. Os salários como gerente na Raiz Binária e na Tarefas Métricas, ambas tendo a prestação de serviços de saúde no seu objecto social principal, totalizaram uma verba duas vezes superior ao que auferia no INEM.
De acordo com uma análise às contas destas duas empresas nos dois exercícios completos em que Gandra d’Almeida liderava o INEM do Norte, a Raiz Binária – criada em 2014, com a então namorada, hoje sua mulher, com sede numa vivenda em Gulpilhares (Vila Nova de Gaia) – facturou 195.633 euros em 2022 e 198.533 euros no ano seguinte. Neste período, como gerente único – e acumulando com o salário de dirigente de direcção intermédia no INEM (cerca de 3.500 euros, incluindo despesas de representação) –, Gandra d’Almeida ‘sacou’ 126.612 euros nos dois anos.
Saliente-se, contudo, que nenhum desta facturação provém de contratos inseridos no Portal Base, que inclui todos os contratos públicos. Porém, por vezes existem incompreensíveis atrasos na introdução de registos de contratos. Com efeito, por agora, no Portal Base todos os 13 contratos públicos da Raiz Binária com centros hospitalares foram celebrados entre Julho de 2016 e Junho de 2020, sendo que o último vigorou até meio de 2021, ou seja, antes da entrada em funções de Gandra d’Almeida no INEM do Norte.
Quanto à Tarefas Métricas, trata-se de uma empresa unipessoal, ou seja apenas detida por Gandra d’Almeida, criada em Junho de 2019, com similares objectos sociais da Raiz Binária: a prestação de serviços como categoria principal, seguindo-se uma actividade imobiliária. A Tarefas Métricas teve, em 2022 e 2023, uma facturação menor do que a da sua ‘irmã’ Raiz Binária: 60.413 euros e 66.214 euros, respectivamente. Mas, mesmo assim, Gandra d’Almeida recebeu, como gerente desta novel empresa, um total de 64.858 euros nesses dois anos.
Tudo somado, apenas nos dois últimos anos ‘empresariais’ – as contas de 2024 não estão concluídas –, e enquanto liderava o INEM do Norte, Gandra d’Almeida recebeu a título de gerente da Raiz Binária e Tarefas Métricas, sem contabilizar outros recebimentos, um total de 191.470 euros, significando, assim, um salário médio mensal bruto (14 meses por ano) de 6.838 euros.
Além deste montante ser quase o dobro do montante que Gandra d’Almeida auferia então no INEM do Porto, a gerência de empresas privadas, ainda mais no sector da saúde, mostra-se profundamente incompatível. De acordo com a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, não pode existir acumulação com actividades privadas que sejam concorrentes, similares ou conflituantes com as funções públicas, especialmente quando envolvem conteúdo idêntico ou o mesmo público-alvo de forma permanente ou habitual.
A acumulação, segundo o diploma de 2014, somente é permitida se as actividades privadas não forem legalmente incompatíveis com as funções públicas, não coincidirem, mesmo que parcialmente, com o horário de trabalho, não comprometerem a isenção e a imparcialidade exigidas e não prejudicarem o interesse público ou os direitos dos cidadãos. Caso sejam praticados actos contrários ou conflituantes com os interesses do serviço público no âmbito das atividades privadas autorizadas, a autorização para acumulação será revogada, configurando ainda uma infracção disciplinar grave.
Gandra d’Almeida só renunciou à gerência das duas empresas em Maio do ano passado, semanas antes de ser nomeado para o cargo de director executivo do SNS. Além disso, também cedeu as quotas à sua família, à mulher e três filhos menores de 12 anos. No caso da Tarefas Métricas, apesar da gerente ser a sua mulher, uma parte da quota (70%) é da Raiz Binárias e as restantes quotas foram distribuídas pelos três filhos menores de 12 anos, um dos quais terá cerca de três anos, pelo número de identificação fiscal.
Destaque-se que ambas as empresas têm, como actividade secundária, o sector imobiliário e, no caso da Raiz Binária ainda o alojamento local e o comércio. Contudo, não é conhecida outra actividade efectivamente exercida nas duas empresas e a componente imobiliária servirá, ao que o PÁGINA UM apurou, para encaixar despesas gerais da família de Gandra d’Almeida, uma vez que a sede das duas empresas coincide com a vivenda onde o médico vive com a sua mulher e dois filhos menores.
Aliás, a empresa Raiz Binária, apesar de um capital social de apenas 100 euros, possui um activo tangível da ordem dos 600 mil euros. Ou seja, ao que tudo indica, o ex-director executivo terá transferido o seu património para a empresa, tanto mais que surge no passivo um endividamento bancário de longo prazo de 316 mil euros, além de outros passivos correntes de 175 mil euros.
O PÁGINA UM pediu esclarecimentos a Gandra d’Almeida, através do contacto disponível das empresas agora geridas pela mulher com sede na habitação comum, mas ainda não obteve qualquer reacção.
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