Autor: Pedro Almeida Vieira

  • É verdade que o Polígrafo sabe fazer verificação científica? Falso

    É verdade que o Polígrafo sabe fazer verificação científica? Falso


    Há muito que o Polígrafo deixou de ser um órgão de “verificação de factos” para se tornar um curioso laboratório de legitimação de financiadores. O projecto, que nasceu sob o pretexto da “verificação da verdade”, é hoje uma caricatura daquilo que pretendia denunciar: consolida-se como um veículo de desinformação institucionalizada, moldado aos patrocínios que lhe asseguram os lucros.

    Se o maná da pandemia lhe trouxe os milhões — sim, já ultrapassou um milhão — do Facebook e, também, agora do TikTok, o Polígrafo virou-se para uma estratégia sui generis e despudorada: em poucos meses abriu três linhas de facturação explícitas — futebol (financiada pela Betclic), finanças (financiada pela Ordem dos Contabilistas Certificados) e cancro (financiada pela Fundação Champalimaud, desde Agosto). Não se conhecem montantes envolvidos nem condições.

    O Polígrafo dá a mão a quem lhe dá dinheiro para fazer fact checking.

    Se calhar houve mais parcerias que me passaram despercebidas — ou que o seu fundador, Fernando Esteves, se esqueceu de nos revelar. Não se conhecem valores, contratos nem condições editoriais. Conhece-se apenas o resultado: uma deriva editorial que substitui o espírito crítico pelo conformismo rentável.

    Nada disto surpreende. O Polígrafo é um projecto torto, nascido do conceito de que a desinformação vem de fora — sobretudo das redes sociais —, quando, na verdade, radica na perda de credibilidade da imprensa e na sua incapacidade de convencer os leitores a usar informação fidedigna e produzir análises rigorosas sem enviesamentos. E fazer secções editoriais a pedido — ou seja, criar secções se houver patrocinador, como sucede num programa televisivo de domingo com o João Baião — é cavar ainda mais a sepultura da moribunda credibilidade jornalística.

    E isto com a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) a fingir que nada vê. A ERC, aliás, tem sido cúmplice silenciosa desta perversão: permite, sem pestanejar, que se pratique um “jornalismo a pedido” — não de cidadãos, mas de quem paga. A verificação de factos tornou-se, assim, um serviço de consultoria disfarçado de jornalismo.

    Qual a razão para o Polígrafo se dedicar ao futebol agora com afinco? Porque uma empresa de apostas de Malta, a Betclic, lhe começou a pagar para escrever especificamente sobre futebol – e não sobre outros temas quaisquer.

    O caso mais revelador desta promiscuidade é a secção Vital — o portal do cancro, financiada pela Fundação Champalimaud —, que tanto surge em site autónomo, com textos não assinados, como no próprio Polígrafo, assinados por jornalistas. Só isso já choca, porque, obviamente, o Polígrafo analisa questões relacionadas com o cancro porque há uma entidade que trabalha nessa área que lhe paga. Se um dia houver uma congregação que lhe mande fazer fact-checking sobre enchidos, aparecerão textos, tal como sucede no futebol e nas finanças.

    Enfim, sempre se poderá defender que o tema das doenças oncológicas — onde subsistem muitos mitos e desinformação — é bastante relevante e que, enfim, até justifica que a imprensa possa contribuir para melhorar a informação.

    Porém, o Polígrafo, mais uma vez — e com a chancela da Fundação Champalimaud e a pena de jornalistas inexperientes —, aventura-se por terrenos científicos com a ligeireza de quem nunca abriu um artigo numa revista científica, pretendendo combater a desinformação em saúde com um amontoado de simplificações, erros conceptuais e juízos dogmáticos que ofendem a inteligência de quem conhece minimamente o método científico.

    Escrever sobre cancros: o espaço alargou-se no Polígrafo por uma só razão: a Fundação Champallimaud paga.

    Tomemos o exemplo recente de um artigo sobre a vitamina D, que o Polígrafo classificou como “FALSO”. Segundo a peça, um “alegado médico e escritor de livros de auto-ajuda” teria dito, numa entrevista, que a vitamina D funcionava como uma “vacina para o cancro”. O Polígrafo decidiu pegar na frase — isolada, sem citar o nome do autor nem o contexto — e analisá-la literalmente. Ora, esse é o primeiro erro científico: confundir linguagem metafórica com proposição factual. Quando alguém diz que a vitamina D é “como uma vacina”, a comparação não é imunológica, é simbólica — remete para o potencial preventivo ou terapêutico, não para um mecanismo biológico idêntico ao das vacinas contra bactérias ou vírus.

    O segundo erro é mais grave: o Polígrafo ignora a complexidade epistemológica da ciência biomédica e submete o raciocínio ao mesmo esquema binário com que decide se um político mentiu sobre o preço do gasóleo. Em ciência, a dicotomia “verdadeiro/falso” é um disparate. A investigação opera sobre probabilidades, evidências parciais, correlações, hipóteses e margens de erro. Nenhum investigador sério, nem na Fundação Champalimaud, nem em Harvard, classificaria, por regra, um enunciado científico com um carimbo de “FALSO” — porque o conhecimento científico é, por definição, provisório e refutável.

    Curiosamente, no caso em apreço, o próprio Polígrafo, ao tentar justificar o seu veredicto, cita estudos que desmontam a sua própria sentença. Refere o ensaio clínico VITAL, publicado no New England Journal of Medicine em 2019, que concluiu que a suplementação de vitamina D não reduziu significativamente a incidência de cancro, mas revelou uma tendência favorável para menor mortalidade em quem já estava diagnosticado. Em português corrente: a vitamina D não previne o aparecimento da doença, mas pode ajudar quem já a tem. Acrescenta ainda uma meta-análise que confirmou o mesmo padrão: ausência de efeito preventivo, mas sinal positivo na sobrevivência.

    Analise-se a qualidade da análise do Polígrafo em fact checking de ciência feita por uma jornalista ‘junior’ formada em Comunicação Social.

    Ou seja, a própria evidência que o Polígrafo cita demonstra que o enunciado não é “falso” — é, na melhor das hipóteses, não comprovado em termos preventivos e parcialmente corroborado em termos de prognóstico. O jornalismo científico, se o fosse, deveria dizer isto. Mas o Polígrafo prefere a sentença categórica. É mais vistosa. E, sobretudo, mais conveniente para um patrocinador que, ironicamente, é uma fundação ligada à investigação oncológica e que dificilmente apreciaria um artigo a sugerir que a vitamina D possa ter efeitos benéficos que a sua própria instituição ainda não estudou.

    Esta ironia é amarga: um projecto financiado pela Fundação Champalimaud escreve artigos de fact-checking que impõem certezas onde a ciência admite dúvidas. Por isso, é o contrário da investigação científica: é a dogmatização do provável.

    Em ciência, não se trabalha com selos de “verdadeiro” ou “falso”. Trabalha-se com níveis de evidência: plausível, não comprovado, consistente, em revisão, refutado. Quando um estudo sugere associação, outro contesta e um terceiro encontra efeito apenas num subgrupo, o papel do comunicador científico é explicar essa incerteza, não abafar a discussão. A missão do jornalista na área da ciência não é decretar sentenças, é iluminar zonas de dúvida.

    O Polígrafo, porém, transforma o conhecimento em moral, a nuance em pecado e o método científico em catecismo. Usa a retórica da ciência para impor uma autoridade dogmática — e fá-lo em nome da luta contra a “desinformação”. Eis um paradoxo digno de figurar num manual de epistemologia: o verificador que desinforma ao simplificar.

    green plant in clear glass vase
    Secções do Polígrafo crescem em função do patrocínio. Os temas editoriais em função de critérios financeiros: a antítese do jornalismo.

    A culpa, contudo, não é apenas do Polígrafo: é de um ecossistema mediático e regulatório que permite esta farsa. A ERC, que devia garantir a independência editorial, assiste calada enquanto órgãos de comunicação social se financiam por rubricas temáticas pagas por entidades com interesse directo na narrativa. Até porque secções patrocinadas estão a invadir as redacções e a infeccionar o jornalismo. Já não surpreende se houver laboratórios farmacêuticos a pagar aos jornais para decidir o que é “falso” ou “verdadeiro” em farmacologia. A independência morre, o jornalismo prostitui-se e a verdade torna-se um produto com recibo verde.

    Este caso da vitamina D é apenas um exemplo. Amanhã será outro. O Polígrafo, e outros, já abriram a porta. No fundo, aquilo que este episódio revela é um fenómeno mais vasto: a transformação da verificação de factos num mercado de opiniões sancionadas. A verdade já não é investigada; é subcontratada. O Polígrafo é o sintoma perfeito de uma era em que o jornalismo prefere agradar a quem paga — e está intimamente ligado aos temas tratados — do que enfrentar a complexidade do real. Até porque nunca se assumem quais os valores envolvidos.

    O verdadeiro jornalista, como o verdadeiro cientista, sabe que a dúvida é a forma mais elevada de honestidade. O Polígrafo, infelizmente, parece ter optado pela certeza remunerada.

  • Elevador da Glória: confira o que escrevemos e o que o relatório preliminar agora desvenda

    Elevador da Glória: confira o que escrevemos e o que o relatório preliminar agora desvenda


    O Relatório Preliminar do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF) sobre o acidente do Elevador da Glória de 3 de Setembro hoje revelado pode e deve ser confrontado com todo o trabalho de investigação do PÁGINA UM – e que demonstra a virtude do jornalismo independente. Confronte-se aquilo que diz o relatório com aquilo que fomos revelando desde o dia do acidente:

    O que o relatório estabelece, em pontos-chave

    1) Onde e como falhou o sistema? A ruptura do cabo ocorreu dentro do destorcedor do trambolho superior da cabina 1, a poucos centímetros da pinha (soquete) de amarração. A análise macroscópica realizada pelo GPIAAF mostra roturas progressivas dos arames (degrau a degrau, ao longo do tempo). Após a libertação, formou-se a meio do traçado um laço no sentido de torção — assinatura típica de rotação acumulada. Este ponto de ruptura não era visível numa inspeção convencional sem desmontar o destorcedor.

    2) Que cabo estava montado? O cabo era um 6x36WS-FC, grau 1960, 32 mm, torção Lang direita (zZ), com alma de fibra sintética. Entrara em serviço a 1 de Outubro de 2024; à data do acidente tinha 337 dias. Embora a sua carga mínima de rupttura (662 kN) fosse “largamente suficiente” para a carga do sistema, não estava conforme com a especificação interna da Carris para o Ascensor da Glória e, mais grave, o certificado do fabricante proibia o uso com destorcedor — exatamente o que existe no Glória.

    3) Porquê a incompatibilidade com destorcedor? A norma EN 12385-3  classifica cabos que não são resistentes à rotação e não devem trabalhar com extremidades livres de girar (caso de destorcedores). O cabo 6x36WS-FC enquadra-se nesse grupo; o certificado entregue ao operador também o dizia. Nada disto foi considerado na recepção e aplicação do cabo.

    4) A pinha (soquete): defeitos internos e método empírico. Radiografias às duas pinhas do trambolho, realizadas pelo GPIAAF, onde a ruptura ocorreu detectaram zonas menos densas e vazios numa delas. A execução das pinhas seguia um processo empírico histórico, registado num “caderno antigo” da Carris fora do sistema documental, sem norma interna específica para preparação do cabo, composição da liga, ensaios ou critérios de aceitação. O procedimento não cumpria os preceitos das normas EN 12927 (instalações por cabo – requisitos de segurança) e EN 13411-4 (terminações metálicas/resina), que exigem preparação, qualificação e inspeções periódicas à zona da pinha.

    5) Sequência operacional e falência da redundância. Após a ruptura do cabo no acidente do Elevador da Glória, a cabina 1 acelerou pela calçada; o guarda-freio actuou corretamente, mas os freios não imobilizaram o veículo. O primeiro embate, já com descarrilamento e tombamento parcial, deu-se entre 41 e 49 km/h, cerca de 20 segundos após o início de movimento. A cabina 2 recuou e ficou presa no limite inferior. O relatório descreve um sistema de frenagem cuja eficácia não estava assegurada para o cenário de falha de cabo, sem ensaios regulares para esse caso.

    6) Manutenção, aceitação e qualidade. Existia um plano de manutenção, mas os registos nem sempre correspondiam ao executado. A MNTC actuava de facto como “mão de obra” sob orientação da Carris. Não houve ensaios/controlo após a execução das pinhas nem inspeções magneto-indutivas que cobrissem os últimos 2 metros junto às terminações. Em 2024–25 ocorreram ainda dois incidentes (colisão da cabina 1 nas escadas e embate com veículo de manutenção) que solicitaram anormalmente o cabo e as fixações.

    7) Compras e especificação do cabo: o desvio de 2022. A investigação do GPIAAF documenta como, numa consulta lançada para o Elevador de Santa Justa, foram adicionados os artigos do Glória/Lavra e acabou contratualizado (e depois rececionado e aceite) um tipo de cabo divergente da especificação interna da Carris para o Elevador da Glória (que pedia 6x19S-IWRC gr1770, admitindo 6x19S-FC gr1770 como alternativa). Desde Dezembro de 2022 passou a ser usado no Glória o cabo 6x36WS-FC gr1960 zZ, não conforme com a especificação. O primeiro desses cabos durou 601 dias sem incidentes registados; o segundo foi o do acidente.

    8) Enquadramento legal e supervisão pública. O relatório do GPIAAF reconstrói a “zona cinzenta” jurídica que deixou os Elevadores da Glória e Lavra fora da supervisão regular do IMT/ANSF, ao contrário da Bica e de Santa Justa. Mas afirma explicitamente que nada impedia a aplicação adaptada de regras e supervisão efetiva — por iniciativa do operador ou do IMT — e recomenda agora um quadro legislativo que cubra todos os funiculares e sistemas assimiláveis.

    ***

    Onde a nossa investigação bateu certo — e cedo

    O Relatório Preliminar do GPIAAF hoje conhecido confirma, com linguagem pericial, o essencial do que o PÁGINA UM apurou e publicou entre 5 e 27 de setembro. Abaixo confrontamos, ponto por ponto, as constatações oficiais com as nossas peças — com títulos e datas — mostrando como o jornalismo independente chegou primeiro aos nós críticos desta tragédia.

    1) O ponto de falha estava “escondido” — e nós avisámos

    O GPIAAF localiza a ruptura dentro do destorcedor, a poucos centímetros da pinha/soquete, com rupturas progressivas e formação de laço por rotação acumulada — um local invisível numa inspeção visual sem desmontar. Já a 27/09/2025, explicámos que a questão decisiva não era “partir como corda velha”, mas ceder na união cabo–soquete, um ponto que exige processos e ensaios formais de selagem, e não meras rotinas visuais.

    2) O cabo aplicado desde 2022 era de alma de fibra — e isso importa na amarração

    O relatório descreve umcabo 6x36WS-FC, grau 1960, 32 mm, torção Lang (zZ), colocado 01/10/2024, com 337 dias de serviço — não conforme com a especificação da Carris e vedado pelo próprio certificado a uso com destorcedor. Em 22/09/2025, mostrámos a viragem de 2022 de IWRC (alma de aço) para CF (alma de fibra), e revelámos as facturas, e a poupança de 43%, sublinhando que o risco não estava na carga mínima de ruptura (CRM) nominal, mas no comportamento em serviço na amarração. Em 25/09/2025, detalhámos por que a CF é mais vulnerável à compactação e à perda de eficácia no soquete.

    3) Incompatibilidade cabo–destorcedor-soquet: a regra técnica que foi ignorada

    O relatório preliminar do GPIAAF regista que o próprio certificado do cabo proibia o trabalho com extremidade livre para girar (destorcedor), pelo facto de o cabo não ser resistente à rotação — justamente o caso do 6x36WS-FC. Na nossa leitura técnica (27/09/2025) já alertávamos para a eventual não conformidade normativa das terminações e da compatibilidade geometria–material, por serem determinantes na segurança.

    4) Pinha executada por “método empírico” e sem ensaios — aquilo que denunciámos

    Radiografias revelaram vazios internos numa das pinhas e um procedimento transmitido por “caderno antigo” da Carris, sem norma, sem ensaios e sem critérios de aceitação. A 27/09/2025 já escrevêramos que a selagem não é artesanato: exige materiais, provas de carga e qualificação em linha com as normas europeias de segurança. A ausência destes controlos deixava o sistema exposto.

    5) Falhou a redundância: travões que não param sem o cabo

    O guarda-freio (que morreu no acidente) actuou, mas os travões não imobilizaram a cabina; o primeiro embate deu-se entre 41–49 km/h, cerca de 20 segundos após a rutura do cabo. Nunca se ensaiou o cenário de falha de cabo. Em 05/09/2025, denunciámos a “inspeção por olhómetro” feita sem parar o equipamento (tempo real de paragem: 00:00:00), sem testes funcionais sob carga; e em 06/09/2025 provámos que o caderno de encargos nem exigia ensaios mecânicos ou não destrutivos ao cabo. Revelámos também em 13/09/2025 que, ao contrário do que sucedia na Carris, a manutenção no Porto, feita para os eléctricos dos STCP também pela MNTC, eram muitíssimo mais exigentes.

    6) Manutenção e aceitação: registos formais ≠ trabalho real

    O GPIAAF aponta registos que não batiam com as tarefas, formação sobretudo on-the-job, ausência de ensaios após execução das pinhas e inspeções magneto-indutivas que não cobriam os últimos 2 metros junto à terminação; documenta ainda incidentes em 2024–25 que solicitaram cabo e fixações. A 08/09/2025, revelámos a opacidade documental (sem relatório de instalação de 2024, sem prova de qualificações) e exigimos traçabilidade técnica e ensaios de aceitação. Em 06/09/2025, expusemos o modelo de manutenção reduzido a checklists visuais e a ausência de prescrições técnicas para desmontagens/medições/ensaios.

    7) Compras e especificação: o pivot de 2022 ficou provado

    O GPIAAF reconstruiu o processo que levou à escolha, para o elevador da Glória, de um cabo de alma de fibra em 2022. Em 22/09/2025, já tínhamos ligado os pontos: 2020 (cabos IWRC com certificação EN 12385-8) vs 2022 (CF), com uma poupança de 43% no preço e dúvidas de certificação — uma poupança ilusória com custos de segurança. Em 25/09/2025, identificámos a decisão de topo (de Tiago Lopes Faria, então presidente da Carris e professor do Instituto Superior Técnico) em 2022 e a ausência de ensaios/pareceres prévios à mudança.

    8) Enquadramento legal e supervisão: a “zona cinzenta” não desculpa ninguém

    O relatório do GPIAAF explica por que os elevadores da Glória e Lavra ficaram fora da supervisão regular do Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres (IMT), mas acrescenta que nada impedia regras e supervisão adaptadas. Em 11/09/2025, demonstrámos que a substituição do cabo é alteração significativa: exige projecto, plano de ensaios, análise de segurança independente e autorização prévia do IMT, além de documentação e inspeções periódicas.

    9) Quem tinha a incumbência de trocar o cabo — e quem o fez

    Revelámos em 08/09/2025 que a substituição do cabo era incumbência contratual da MNTC, sem prova pública de que a equipa tivesse as certificações exigidas. A Carris nunca respondeu e confirmou-se agora que foram técnicos da empresa municipal que procederam á substituição sem garantias de cumprimento das normas.


    Linha do tempo das nossas publicações (antes do relatório)


    Balanço

    O relatório preliminar corrobora o núcleo das nossas revelações: cabo errado e não conforme, incompatível com destorcedor e aplicação no soquete; falha na terminação com método empírico; manutenção/aceitação deficitárias; e supervisão pública omissa onde devia existir. A diferença é que hoje tudo isso vem escrito na gramática da peritagem. O jornalismo do PÁGINA UM chegou lá antes, e continuará acompanhar este caso para que o acidente da Glória modifique práticas e responsabilidades.

  • Não andar a beber vinho (provavelmente) transformou o David Marçal num mau divulgador de ciência

    Não andar a beber vinho (provavelmente) transformou o David Marçal num mau divulgador de ciência


    Há quem confunda divulgar ciência com a missão de nos salvar de nós próprios. Quando isso acontece, o rigor cede à retórica e o discurso científico transforma-se em catequese pública. O recente ensaio de David Marçal no Público, intitulado Beber vinho é dar cancro a muitos portugueses, é exemplo cristalino dessa deriva: uma peça em que o pânico se sobrepõe à ponderação, e a convicção ideológica suplanta a nuance científica.

    O título, digno de uma campanha de abstinência radical, revela o propósito: substituir a dúvida metódica pelo susto pedagógico. É a velha pedagogia do medo aplicada ao copo de vinho, de que Marçal foi um apologista durante a pandemia da covid-19 — afinal, não é defeito; é feitio. Marçal, que tem cultivado um estilo de comunicação científica centrado na dramatização — como se o público só aprendesse quando levado ao sobressalto —, parece ter esquecido que o papel do divulgador é informar, não alarmar.

    people tossing their clear wine glasses

    Ao colocar o vinho ao mesmo nível do uísque ou da vodka, o autor ignora diferenças fundamentais de composição, concentração alcoólica, modo de consumo e efeitos metabólicos. É uma equiparação cientificamente falha e conceptualmente grosseira. Além disso, vai buscar uma análise, ainda por cima, nem muito recente, esquecendo de fazer uma abordagem mais holística.

    O vinho é uma bebida fermentada, integrada numa matriz alimentar e cultural; os destilados são concentrados etílicos, de ingestão rápida e efeito tóxico superior. Misturar tudo em nome da “mensagem de saúde pública” é um erro metodológico — e, sobretudo, uma forma de transformar complexidade científica em moral simplificada.

    O ensaio de Marçal recorre ainda à classificação da Agência Internacional para a Investigação em Cancro (IARC) de forma equívoca. A categoria de “carcinogénio de grupo 1” não significa que uma substância seja igualmente perigosa em qualquer dose — apenas que há evidência de associação causal. A luz solar pertence à mesma categoria, e ninguém propõe o encerramento das praias.

    Arvorando-se divulgador de ciência, David Marçal escolheu um tema para ser sensacionalista.

    A diferença entre informação e alarmismo é a mesma que separa ciência de propaganda. Uma análise séria exige escala e contexto. O relatório mais recente e abrangente sobre o tema — a Review of Evidence on Alcohol and Health (National Academies of Sciences, Engineering, and Medicine, 2025) — conclui que o consumo moderado de álcool está associado a menor mortalidade global (redução média de 16%), e a menor mortalidade cardiovascular (redução de 18 a 22%, consoante o estudo).

    Quanto ao cancro, as evidências são modestas: um ligeiro aumento de risco de cancro da mama (cerca de 10%), mas nenhuma associação consistente com outros tumores em padrões moderados de consumo.

    Estes dados, provenientes da mais prestigiada instituição científica norte-americana, mostram que a relação entre álcool e saúde é de gradação, não de absolutos. O risco existe, sim, mas não legitima a retórica do interdito. Estudos têm revelado que o vinho tinto, consumido moderadamente, está associado a menor mortalidade e a melhor saúde cardiovascular mesmo em doentes cardíacos.

    person holding grapes

    A tradição mediterrânica — que integra o vinho nas refeições, em quantidades contidas e socialmente mediadas — tem sido reconhecida pela Organização Mundial da Saúde como modelo de longevidade e equilíbrio nutricional. Ignorar essa evidência para alinhar o vinho com o tabaco é uma forma de revisionismo biológico, em que a história cultural é varrida em nome de uma moral higienista.

    A comunicação científica, quando se entrega ao moralismo, deixa de esclarecer e passa a punir. O divulgador que fala em nome da ciência deve distinguir o risco individual do fenómeno populacional, a estatística do dogma. E por isso, quando o discurso se torna sermão, como sucede com David Marçal, a ciência perde a sua razão de ser: a dúvida crítica.

    É legítimo alertar para os perigos do consumo excessivo de álcool; é irresponsável transformar esse alerta em catecismo de abstinência. O público merece ser tratado como adulto — capaz de compreender que entre o copo diário e a garrafa diária há um mundo de diferença.

    four wine glasses

    A ciência não é abstinente, é prudente. O vinho não é uma substância maligna, mas uma expressão de cultura e de sociabilidade. E se há algo verdadeiramente cancerígeno no debate público, é o medo travestido de ciência — esse que, de tanto se repetir, começa a corroer o pensamento crítico.

    Em última análise, o que deve ser combatido não é o vinho, mas o discurso alarmista e sensacionalista do David Marçal, que reduz a complexidade da evidência científica a slogans de indignação. Beber vinho não é dar cancro — é, quando sensatamente praticado, uma expressão de cultura, de convivência e de equilíbrio. É isso que a ciência, quando é fiel a si própria, continua a demonstrar. E a vida.

  • Vá lá, Dino d’Santiago, tu és capaz: processa lá um jornalista por fazer jornalismo

    Vá lá, Dino d’Santiago, tu és capaz: processa lá um jornalista por fazer jornalismo


    O primeiro dever de um jornalista é o da verdade, e o segundo é o da coragem. Entre ambos não pode existir hesitação. O jornalismo não serve para confortar consciências nem para proteger reputações, mas para escrutinar o poder e a influência — sejam de ordem política, económica, social ou cultural.

    Dito isto, toda a actividade nobre deve ser reconhecida, mas nenhuma, por mais virtuosa que se proclame, pode ser transformada em reduto imune ao olhar público. A missão do jornalista é, de facto, desconfortável: quando cumpre o seu dever, inevitavelmente fere susceptibilidades. Porém, se o medo das consequências orientar a sua investigação, então já não se pratica jornalismo — pratica-se reverência.

    Não coloco em causa o mérito de causas sociais cívicas – fui dirigente nacional da Quercus nos anos 90 – nem o valor de quem as promove; o que coloco em causa é a ideia de que a nobreza de um propósito justifica o silêncio sobre a origem e a aplicação dos dinheiros públicos. O Estado não deve ter beneficiários especiais. Quando a visibilidade mediática se torna porta de acesso privilegiado a fundos públicos, o dever de escrutínio torna-se ainda mais imperativo. As boas intenções não substituem a prestação de contas.

    O PÁGINA UM publicou, em dois artigos ao longo desta semana (aqui e aqui), uma investigação documentada sobre os financiamentos públicos recebidos pelo músico Dino d’Santiago — quer através da sua empresa unipessoal, a Batuku Roots, quer através da associação que fundou e preside, a Mundu Nôbu. É uma história que não se resume a música ou a filantropia, mas que envolve quase 1,6 milhões de euros de dinheiros públicos.

    A associação, criada há menos de dois anos, garantiu já perto de 800 mil euros em apoios e contratos, incluindo concertos a preço hiperinflacionado. E, apesar de se apresentar como entidade de intervenção social, não divulga os seus órgãos sociais, não revela o número de associados, não promove adesões e não apresenta relatórios e contas aprovados. Aparenta ser um clube de Dino d’Santiago e Liliana Valpaços sob a capa de associação para se livrar do estatuto de empresa, menos escrutinável.

    Sublinhe-se: em democracia, ninguém, por muito admirado que seja, está acima do escrutínio. Não é o talento musical, a cor da pele, a fé política ou o empenho comunitário que conferem imunidade à fiscalização pública. Quando um cidadão, como Dino d’Santiago, gere dinheiros do Estado, a opacidade é um insulto a todos os contribuintes. É precisamente em nome da igualdade e da justiça que o jornalismo não pode distinguir entre “bons” e “maus” destinatários de fundos.

    Reconheço — e é preciso dizê-lo sem hipocrisia — que investigações como esta podem gerar reacções indesejáveis, e pessoalmente não aprecio absolutamente nada (e até abomino) algumas reacções que li nas redes sociais sobre os artigos do PÁGINA UM. Há quem procure distorcer a crítica legítima em ataque pessoal, ou até em insinuação racial.

    Mas o jornalista que se retrai, por receio das interpretações do seu trabalho, trai o próprio sentido da profissão. Um jornalista não é juiz de intenções nem profeta de reacções; é apenas alguém que procura e expõe a verdade factual. Se dessa verdade emergem desconfortos, e reacções inflamadas, que se trate então de os resolver com transparência — não com vitimizações ou ameaças ao mensageiro.

    Aquilo que é verdadeiramente se mostra intolerável é transformar o mérito artístico ou o activismo social em arma contra a liberdade de imprensa. Quando um protagonista público, como fez Dino d’Santiago, responde a perguntas legítimas de um jornal com ameaças de processos judiciais e acusações de difamação, demonstra precisamente o contrário do que proclama: falta de abertura e ausência de confiança na força dos seus próprios argumentos. A transparência não teme perguntas; teme-as quem tem algo a esconder.

    Não ignoro que existam associações de base voluntária, frágeis na sua gestão e sustentadas por orçamentos diminutos. Essas merecem compreensão e até auxílio técnico. Mas não é esse o caso da Mundu Nôbu: em menos de dois anos, obteve somas avultadas de várias entidades públicas e estabeleceu mais de uma dezena de parcerias privadas. Uma estrutura com tal envergadura deve cumprir escrupulosamente as obrigações legais e morais de prestação de contas – até para dar o exemplo aos jovens que auxilia. Se o não faz, a legítima suspeita instala-se.

    Dino d’Santiago, cidadão português nascido em democracia, com plenos direitos e também (presumo) deveres, deve compreender que viver de apoios públicos implica responsabilidade pública. Nenhuma biografia, por mais inspiradora, suspende as regras da República. As causas sociais não são licença para o sigilo, e a popularidade não é escudo contra o dever de transparência. É esse o princípio elementar de uma sociedade decente — e é esse o princípio que o PÁGINA UM defenderá até ao fim.

    Deixo, pois, um repto claro: se Dino d’Santiago se julga injustiçado e difamado, que concretize a ameaça e me processe. Terá então oportunidade de nos explicar, em tribunal, como foram geridos os fundos públicos que recebeu. Do meu lado, não espere simpatias. Aliás, porque também sou cidadão, e não aprecio ameaças desta natureza (que andam a aumentar) pedirei à Inspecção-Geral das Finanças e ao Tribunal de Contas uma averiguação rigorosa sobre o destino das verbas públicas entradas na associação de Dino d’Santiago.

    A transparência, devia ele saber, não é ofensa; é um dever. E o jornalismo não é instrumento de perseguição; é um serviço público. Quem verdadeiramente acredita na sua integridade não teme a luz da verdade. Que se acendam, pois, todos os holofotes: não apenas para a música de Dino d’Santiago, mas para a sua postura.

  • A fortuna de Dino d’Santiago: em cinco anos, Estado dá-lhe 1,6 milhões de euros para ‘empoderamento social’

    A fortuna de Dino d’Santiago: em cinco anos, Estado dá-lhe 1,6 milhões de euros para ‘empoderamento social’


    No final de 2021, Dino d’Santiago — o músico português nascido no Algarve mas com orgulhosas raízes cabo-verdianas — dizia ao Observador: “Hoje já me sinto merecedor de tudo.” E tem sido isso mesmo que sucedeu a Claudino Jesus Borges Pereira, hoje com 42 anos.

    Ao sucesso musical, Dino d’Santiago somou o reconhecimento político, tendo sido, em 2023, condecorado com a Medalha de Mérito Cultural, é agora membro da Comissão para a Igualdade e Luta Contra a Discriminação Racial e até do Conselho Geral da Universidade de Aveiro . Tudo isto muito por ter assumido um papel de relevância pública nos projectos sociais em que se envolveu, sobretudo nas áreas da raça e da discriminação. Publicou recentemente o livro Cicatrizes, com prefácio da escritora (e conselheira de Estado) Lídia Jorge, e recebeu ainda um convite para conceber uma ópera “estrelada” no Centro Cultural de Belém, numa encomenda da Bienal de Artes Contemporâneas. Por isso, é amiúde visto em companhia de figuras públicas e de poder.

    Dino d’Santiago com Carlos Moedas em Osaka, numa acção social da Mundu Nôbu, que levou um jovem á Exposição Mundial de Osaka: Foto: DR.

    Mas há outro lado da história: Dino d’Santiago tem sido copiosamente apoiado, como poucos, pelos poderes públicos. E o apoio não é apenas de solidariedade e ‘pancadinhas nas costas’. É com ‘txeu dinheru’ – como se dirá na ilha de Santiago para ‘”muito dinheiro”. Com efeito, ao longo dos últimos cinco anos, Dino d’Santiago tem conseguido implementar, graças à sua popularidades nos corredores da política, um modelo de financiamento que, sendo formalmente escorreito, choca pelas verbas envolvidas.

    Na passada terça-feira, o PÁGINA UM revelou que, através da associação Mundu Nôbu — que fundou em finais de 2023 e que preside, sem se conhecerem outros membros da direcção além de Liliana Valpaços —, Dino d’Santiago conseguiu garantir, nos últimos 13 meses, 481 mil euros de duas empresas municipais (Gebalis e EGEAC) para a prestação de serviços sociais e para dois espectáculos musicais contratualizados por valores inflacionados. Mas essa era apenas uma parte da história.

    Uma investigação mais aprofundada nos últimos dias apurou que, de forma directa e indirecta, desde 2021, Dino d’Santiago já garantiu muito mais em subsídios e contratos públicos: quase 1,6 milhões de euros, grande parte através de uma empresa da qual é o único sócio.

    Ligações privilegiadas ao poder não têm trazido apenas capacidade de intervenção, mas também muito dinheiro. Foto: DR.

    Antes de fundar a associação Mundu Nôbu — nome retirado do álbum homónimo de 2018 —, o músico criou, em 2019, a empresa unipessoal Batuku Roots, com sede em Albufeira, que incluía, além das actividades musicais, o arrendamento de imóveis e a comercialização de vestuário e brindes. Contudo, foi em Lisboa, e sobretudo a partir de 2021, que a empresa começou a facturar em grande escala.

    Nesse ano, ainda com fortes limitações impostas pela pandemia — período em que muitos artistas foram severamente penalizados —, a Câmara Municipal de Lisboa entregou-lhe 250 mil euros de subsídio para lançar um projecto online denominado “Lisboa Criola”. No mesmo ano, o Turismo de Portugal, no âmbito das medidas de mitigação dos efeitos económicos da pandemia, concedeu-lhe mais de 20 mil euros.

    Em 2022, já sem restrições sanitárias, o projecto de Dino d’Santiago manteve-se activo, centrando-se num festival de música com workshops e conferências durante três dias. Resultado: mais 250 mil euros atribuídos à Batuku Roots, valor que, segundo as demonstrações financeiras consultadas pelo PÁGINA UM, representou praticamente a totalidade das suas receitas desse ano. E, como não há duas sem três, em 2023 a empresa de Dino d’Santiago voltou a receber 250 mil euros da autarquia liderada por Carlos Moedas. Nesse exercício, a Batuku Roots registou receitas de 346 mil euros, não se sabendo se os cerca de 100 mil euros adicionais provêm de actividade empresarial ou de outros subsídios públicos.

    Em três edições da ‘Lisboa Criola’, uma das quais online, a empresa unipessoal de Dino d’Santiago, a Batuku Roots, recebeu 750 mil euros da autarquia liderada por Carlos Moedas.

    Na lista de entidades subvencionadas em 2024 pela autarquia de Lisboa, a Batuku Roots já não surge, mas a razão parece simples: com a criação da associação Mundu Nôbu no final de 2023, Dino d’Santiago deslocou as suas atenções e passou a beneficiar de um estatuto ainda mais privilegiado nos corredores do poder — deixando de necessitar de apresentar candidaturas e passando a celebrar contratos directos com a Câmara de Lisboa, através da Gebalis e da EGEAC. Entre 2024 e 2025, essas contratações já totalizam 481 mil euros.

    A associação Mundu Nôbu recebeu ainda, em Setembro de 2023, um apoio adicional de 314.863 euros no âmbito do Portugal Inovação Social, destinado a um projecto de “empoderamento e capacitação de jovens afrodescendentes” com duração de três anos. O projecto é um dos que a autarquia de Lisboa apoiou este ano.

    Contas feitas, e não tendo sido possível confirmar se houve outros financiamentos por outras entidades públicas de menor dimensão, Dino d’Santiago obteve, através da empresa e da associação, cerca de 1,6 milhões de euros em apoios e contratos públicos desde 2021, sendo que no caso da Mundu Nôbu a verba de subsídios atinge quase 800 mil euros. E a autarquia de Lisboa é, de longe, o principal financiador:Ç mais de 1,2 milhões de euros, entre a Batuku Roots e a Mundu Nôbu. No caso da associação, são também divulgadas mais de uma dezena de entidades privadas como parceiras, designadamente o Banco BPI, a Fundação La Caixa, o BNP Paribas, a Fundação Calouste Gulbenkian, a FNAC, a Emerald Group, a PwC, a Microsoft, a IKEA, a Worten, a Randstad, a Euro M e o ISPA. Mas nada se indica sobre os montantes envolvidos ou se se trata de prestação de serviços ‘pro bono’.

    Concerto do ano passado, que incluiu uma conferência, que deu à Mundu Nôbu 130 mil euros pagos pela EGEAC. Como artista, Dino d’Santiago recebe, por norma, menos de 20 mil euros.

    Contactados novamente a associação Mundu Nôbu e Dino d’Santiago, houve desta vez resposta — embora evasiva. O PÁGINA UM quis saber o valor total dos financiamentos públicos obtidos desde 2021, quer através da associação, quer da empresa, bem como as respectivas proveniências. Foi ainda questionado se, dado que a Batuku Roots deixou de receber financiamento da autarquia em 2024, Dino d’Santiago passou a prestar serviços remunerados à associação Mundu Nôbu. Reiterou-se também o pedido de relatório e contas de 2024 — que já deveriam estar aprovados até Março —, bem como a lista de membros dos órgãos sociais e o número de associados, informações que continuam a não ser divulgadas.

    Em resposta individual, Dino d’Santiago afirmou que “a Batuku Roots é a empresa onde desenvolvo a minha actividade profissional e artística, sendo a Mundu Nôbu uma associação privada sem fins lucrativos, no âmbito da qual procuro, enquanto cidadão, contribuir com o meu empenho cívico, social e solidário”. Garantiu ainda que “até à data, nem eu, nem a minha empresa ou qualquer familiar meu, recebemos qualquer verba por parte da Mundu Nôbu”, acrescentando que, “pelo contrário, tal como a minha co-fundadora Liliana Valpaços, aloquei verbas significativas na Mundu Nôbu, a título pessoal”.

    Contudo, sem relatório e contas aprovados nem documentos contabilísticos disponíveis, esta declaração não é comprovável. O PÁGINA UM voltou a questionar Dino d’Santiago sobre os montantes que ele e a sua parceira Liliana Valpaços supostamente alocaram à associação, e que modelo contabilístico foi usado, mas não houve ainda resposta.

    O empoderamento de jovens tem incluído visitas de Dino d’Santiago e dos jovens dos projectos da Mundu Nôbu à Presidência da República. Foto: DR.

    Já na resposta conjunta de Dino d’Santiago e Liliana Valpaços, enquanto representantes da associação Mundu Nôbu, foram repetidos os mesmos argumentos, e acrescentaram que, quanto às informações financeiras e plano de actividades, “agindo com a transparência que caracteriza a associação, após aprovação em Assembleia Geral, o que se prevê ocorrer a curto prazo, aquela poderá ser disponibilizada para consulta, verificados os pressupostos para tal aplicáveis”.

    Importa salientar que os planos de actividades devem ser elaborados no início do ano a que dizem respeito, e os relatórios e contas de um determinado exercício têm de ser aprovados até Março do ano seguinte. Ora, já passaram mais de seis meses do prazo.

    Uma associação não está obrigada à mesma transparência que uma empresa privada – e esse modelo está cada a enraizar-se mais -, mas o facto de a Mundu Nôbu receber avultados apoios públicos coloca-a sob a alçada da Inspecção-Geral das Finanças e do Tribunal de Contas, para eventual verificação da boa aplicação dos dinheiros públicos.

    Acresce ainda que, recebendo já mais de 800 mil euros em tão pouco tempo, a associação aparenta ser uma estrutura fechada, porque repetidamente Dino d’Santiago não responde aos pedidos de divulgação dos membros dos distintos órgãos sociais. E o facto de, por lei, uma associação não poder distribuir lucros, tão não significa que esteja impedida de desviar receitas através de fornecimentos de serviços ou mesmo remunerações dos seus dirigentes.

    Site do Mundu Nôbu com informações genéricas e sem qualquer menção aos órgãos sociais nem ao plano de actividades nem a contas. A equipa não inclui sequer o nome da directora executiva, Liliana Valpaços, e Dino d’Santiago surge como fundador, não havendo indicação dos órgãos sociais.

    E apesar de não terem respondido a parte das questões nem revelado documentos sobre a associação — que, mesmo admitindo mérito social, se mantém envolta em opacidade —, Dino d’Santiago e Liliana Valpaços deixam um aviso ao PÁGINA UM: “Gostaríamos de sublinhar que qualquer informação que venha a ser veiculada em canais públicos com carácter difamatório, ofensivo ou contrária à realidade dos factos, bem como os prejuízos, designadamente financeiros, da mesma decorrentes, serão tratados em sede própria. Não pode a Mundu Nôbu permitir que uma missão que se quer humanitária seja alvo de qualquer acção de descredibilização, com impacto em todos os que para a mesma contribuem.

    Ou seja, uma associação que já recebeu quase 800 mil euros de dinheiros públicos foi convidada por um jornal a mostrar transparência e, em vez disso, ameaça com um processo judicial – algo que, aliás, pode ser até patrocinada pela pbbr — Sociedade de Advogados, outra das parceiras do Mundu Nôbu.

  • Associação de Dino d’Santiago já ‘sacou’ 481 mil euros à autarquia de Lisboa em prestação de serviços e cantorias

    Associação de Dino d’Santiago já ‘sacou’ 481 mil euros à autarquia de Lisboa em prestação de serviços e cantorias


    Nos últimos 13 meses, a associação Mundu Nôbu, presidida pelo músico Dino D’Santiago e gerida pela sua parceira Liliana Valpaços, conseguiu encontrar um verdadeiro mundo novo de financiamento público através de alegadas prestações de serviços a empresas municipais de Lisboa.

    À margem dos habituais concursos e candidaturas públicas, a que estão sujeitas dezenas de organizações não-governamentais, a associação criada no final de 2023 pelo músico residente no Algarve, mas com forte projecção mediática na capital, já conseguiu firmar, desde Agosto do ano passado, quatro contratos directos com estruturas da Câmara Municipal de Lisboa, no montante global de 481 mil euros (equivalente a 385 mil euros acrescidos de IVA).

    Carlos Moedas e Dino d’Santiago no ano passado num concerto na Praça do Município. Foto: CML.

    O expediente foi simples: em vez de subsídios ou apoios sujeitos a regras de concurso, a Mundu Nôbu passou a figurar como prestadora de serviços, assinando contratos de aquisição directa — ora para a execução de projectos sociais com a Gebalis, empresa municipal de habitação, ora para a organização de concertos a preços manifestamente inflacionados com a EGEAC, responsável pela gestão cultural da cidade.

    O primeiro grande contrato surgiu em Agosto do ano passado, quando a EGEAC assinou com a recém-criada associação um acordo de 130 mil euros para a “concepção, coprodução e apresentação ao público do Festival Mundo Novo 2024”. O evento, integrado nas Festas na Rua, foi apresentado com o tema “A interculturalidade portuguesa no topo do Spotify”, mas, na prática, resumiu-se a uma conferência com Dino D’Santiago e convidados, seguida de um concerto nocturno na Praça do Município, com actuações de Dino D’Santiago, Irma, Soluna, Crioulo, Maro e Bateu Matou. Pelas imagens disponíveis, o público presente não terá ultrapassado o milhar de pessoas, embora o evento tenha contado com a presença do presidente da autarquia, Carlos Moedas.

    O ritmo de contratos acelerou este ano. Em Junho, a Gebalis adjudicou à Mundu Nôbu um contrato de 20 mil euros, por ajuste directo, para um projecto de intervenção comunitária denominado “O Teu Lugar no Mundo”, destinado a jovens entre os 14 e os 22 anos. A descrição contratual era vaga: realização de reuniões semanais de duas horas com até 160 participantes, divididos por grupos. Não há registos fotográficos nem informação sobre o local de realização das sessões, mas a empresa municipal pagou integralmente a verba correspondente a oito encontros, uma vez que o contrato teve a duração de 60 dias. Curiosamente, o valor adjudicado coincidiu com o limite máximo legal que dispensa concurso público.

    Concerto do ano passado, que incluiu uma conferência, que deu à Mundu Nôbu 130 mil euros pagos pela EGEAC. Como artista, Dino d’Santiago recebe, por norma, menos de 20 mil euros.

    Mal terminou esse contrato, a Gebalis renovou a prestação de serviços por mais doze meses, agora no valor de 125 mil euros, sob a designação “fase de desenvolvimento”. Este novo acordo, celebrado em Agosto, foi classificado como uma “contratação excluída” — expressão que, na prática, significa um procedimento fora das regras habituais da contratação pública, situação de legalidade duvidosa no contexto deste serviço. Assim, um apoio temporário transformou-se num contrato anual que assegura mais de 10 mil euros mensais à associação de Dino D’Santiago, com cláusulas invulgares.

    Mais do que um instrumento de intervenção social, o contrato revela-se um veículo de promoção da própria associação. De acordo com o documento, e sob o pretexto de “articulação” com a empresa municipal, prevê-se a realização de visitas mensais aos bairros para “apresentar o projecto e convidar jovens e famílias a conhecer a Mundu Nôbu”, bem como a produção de conteúdos digitais com menções expressas à entidade.

    Em vez de actividades concretas e metas mensuráveis, o contrato estabelece uma rotina de reuniões, relatórios e intercâmbios vagos, que acabam por servir sobretudo para dar visibilidade e notoriedade à associação beneficiária, mais do que para gerar resultados tangíveis junto dos moradores dos bairros municipais.

    Dino d’Santiago e Liliana Valpaços: uma associação em Lisboa que encontrou um expediente para não ter de andar com arrelias e burocracias em candidaturas para apoios públicos: basta fazerprestação de serviços à Gebalis e uns concertos inflacionados para a EGEAC. Foto: CML.

    O quarto e mais recente contrato foi assinado no passado dia 19 de Setembro, novamente com a EGEAC, para a coprodução e apresentação do “Mundo Nôbu Experience 2025”, por um valor total de 110 mil euros. O evento, previsto para 12 de Novembro no Capitólio, está descrito apenas como um “concerto” entre as 20h30 e as 23h00. O documento não especifica o conteúdo artístico, nem há qualquer referência a orçamentos detalhados. Curiosamente, nem o Capitólio, nem a EGEAC, nem a Agenda Cultural de Lisboa incluem o espectáculo nas respectivas programações, o que levanta dúvidas quanto à efectiva execução do contrato.

    Mais surpreendente ainda é o contraste entre estes valores e os cachês de Dino D’Santiago. Nos últimos anos, os concertos do músico, de ascendência cabo-verdiana, têm oscilado geralmente abaixo dos 20 mil euros. A Câmara de Lisboa pagou-lhe 6.000 euros em 2018, no âmbito da Moda Lisboa; em 2019, recebeu 5.500 euros da Associação Vicentina, 17.000 euros da Câmara de Alcobaça e 15.000 euros da de Aveiro (num espectáculo conjunto com Branko). Em Viana do Castelo o valor foi de 10.500 euros, na Figueira da Foz de 5.000 euros, e apenas em Albufeira, sua região natal, atingiu o valor excepcional de 71.400 euros no ano passado. Em 2024, só se encontra um contrato público de espectáculo, com a Câmara de São João da Madeira, no montante de 9.000 euros.

    A associação Mundu Nôbu parece, assim, ter descoberto um modelo engenhoso: usar uma figura pública de grande visibilidade para obter financiamentos públicos regulares, com um modelo de gestão pouco transparente, sem depender de candidaturas competitivas ou de voluntariado associativo. Apresentando-se como uma organização sem fins lucrativos, actua de facto como uma estrutura profissional, concentrada e opaca. Apesar de se afirmar aberta a novos sócios, apenas duas figuras estão visivelmente associadas ao projecto: Dino D’Santiago, presidente, e Liliana Valpaços, responsável pela execução dos contratos e, desde o ano passado, alegadamente remunerada após uma alteração estatutária.

    Site do Mundu Nôbu com informações genéricas e sem qualquer menção aos órgãos sociais nem ao plano de actividades nem a contas. A equipa não inclui sequer o nome da directora executiva, Liliana Valpaços, e Dino d’Santiago surge como fundador, não havendo indicação dos órgãos sociais.

    O PÁGINA UM contactou por duas vezes a associação Mundu Nôbu, solicitando esclarecimentos sobre as contas do exercício de 2024, o plano de actividades dos seus dois anos de existência, os órgãos sociais e o número de sócios efectivos. Não houve qualquer resposta — talvez por se entender que não é necessário prestar contas à imprensa quando se gerem dinheiros públicos.

    No site da associação surge a equipa da Mundu Nôbu constituída por uma psicóloga, uma responsável pela comunicação e marketing, um responsável administrativo e financeiro e três monitores. Nada consta de relatórios, nem os nomes dos órgãos sociais (direcção, assembleia geral, conselho consultivo e fiscal único), nem planos de actividades. Apenas se exibem fotografias genéricas e frases inspiracionais sobre “interculturalidade” e “empoderamento”.

    Não há sequer referências a eventos realizados nem a iniciativas futuras, e mesmo o anunciado concerto de 12 de Novembro no Capitólio permanece envolto em silêncio. Já a lista de parceiros institucionais e privados é extensa e bem exposta — mais de uma dezena —, uma espécie de convite da Mundu Nôbu para se apoiar uma história de sucesso: só com sorrisos, palmadinhas das costas, dinheiro público… e sem questionamentos.

  • Portugueses ‘divorciaram-se’ dos jornais em papel

    Portugueses ‘divorciaram-se’ dos jornais em papel


    O hábito matinal de parar no quiosque, comprar o jornal e folheá-lo no café, no trabalho ou nos transportes públicos desapareceu. O ritual que durante décadas marcou o quotidiano português está em vias de extinção. Os números de exemplares vendidos da imprensa escrita relativos ao ano passado, hoje divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), mostram um colapso contínuo. Em 2024, venderam-se apenas 76,3 milhões de exemplares impressos, entre jornais, revistas, boletins, anuários, folhetos e outro tipo de publicações — o valor mais baixo desde que há registos sistemáticos.

    Os jornais representaram 56,9 milhões de exemplares, enquanto as revistas 19,4 milhões, o que, podendo parecer, à primeira vista, números expressivos, acabam por ser deploráveis numa população que ronda os 10,5 milhões de habitantes. Ou seja, cada português comprou, em média, apenas sete publicações no ano passado — menos de um jornal a cada cinquenta dias. Há trinta anos, um leitor habitual comprava, em média, quase essa quantidade num único mês.

    Foto: PÁGINA UM

    A crise mostra ser estrutural. Em 2019, antes da pandemia, o país ainda somava 151,5 milhões de exemplares vendidos, dos quais 105,4 milhões foram jornais. Em cinco anos, a quebra foi de quase 50%. E se recuarmos ao final dos anos 90, o panorama é ainda mais devastador: em 1999 e 2000 venderam-se mais de 400 milhões de exemplares de publicações por ano. Hoje, vende-se menos de um quinto. A imprensa escrita portuguesa atravessa, portanto, a maior derrocada da sua história moderna.

    A erosão tem sido constante nesta era do digital. A partir de 2009, com a crise financeira e a ascensão das plataformas online, as tiragens começaram a ruir. A Internet ofereceu de graça — e com menor qualidade — aquilo que até então se comprava. E os jornais foram os seus próprios coveiros: colocaram online o conteúdo que justificava o papel, antecipando a notícia. O jornal impresso acabou por se transformar num repositório das versões digitais do dia anterior.

    A pandemia da covid-19 acelerou o processo. Entre 2020 e 2024, desapareceram quase 45 milhões de exemplares anuais. Mesmo em relação ao ano anterior, a queda é evidente: menos 8,6 milhões de exemplares face a 2023. A leitura de jornais impressos tornou-se um resquício geracional. O quiosque, outrora espaço de sociabilidade e curiosidade cívica, é agora um posto de sobrevivência comercial. E a quebra de leitores em papel arrasta consigo toda uma economia paralela: distribuidores, tipografias, publicitários e pequenas editoras.

    Evolução das vendas totais de publicações impressas, de jornais e de revistas entre 1995 e 2024. Fonte: INE.

    A comparação europeia sublinha, ainda mais, o declínio português. A comparação europeia sublinha, ainda mais, o declínio português. De acordo com dados compilados pela World Association of Newspapers and News Publishers (WAN-IFRA) e com as estatísticas nacionais de circulação da ACPM (França), BDZV (Alemanha) e OJD (Espanha), em países como a Alemanha e a França vendem-se entre 30 e 40 exemplares de publicações impressas por habitante e por ano, enquanto em Espanha o número ronda os 20. Portugal, o país que nos anos 90 chegou a ser um dos mais fiéis leitores de jornais per capita do sul da Europa, é hoje um deserto de notícias em papel.

    Para Eduardo Cintra Torres, professor e crítico de media, ouvido pelo Página Um, a explicação é multifactorial. “Por um lado, a oferta dos conteúdos na Internet pelos que os vendiam até à véspera foi uma das causas. As alternativas gratuitas — jornalísticas, não-jornalísticas e até roubadas — tornaram desnecessário para muita gente o investimento na compra diária ou casual de imprensa.” O académico lembra ainda que “os próprios media fazem concorrência a si mesmos, com edições em papel e digital”, e que “o confinamento durante a pandemia erradicou o hábito da compra de jornais por muita gente. Muitos quiosques fecharam”.

    Mas a crise não é apenas tecnológica: é também cultural e económica. A perda de leitores coincide com a perda de confiança e de relevância. O jornalismo transformou-se num produto rápido, opinativo, repetido, dependente da agenda oficial e cada vez mais desligado da vida real dos cidadãos. A falta de leitores pagantes gerou a dependência do Estado, da publicidade institucional e das grandes empresas. E uma imprensa que já não vive dos leitores deixa inevitavelmente de os servir.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    Os dados das tiragens em papel revelados pela Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação (APCT) deste ano confirmam o colapso: o Público vende menos de 10 mil exemplares diários em papel, o Diário de Notícias mal ultrapassa 900, o Jornal de Notícias desceu para 16 mil, o Expresso para cerca de 33 mil por edição, e a revista Sábado fica-se nos 13 mil. O Correio da Manhã, outrora o bastião popular, regozija-se por vender “mais de 34 mil por dia”, o que ainda assim representa menos de um terço do que vendia em 2011. A popular revista Maria, que em 2008 vendia 325 mil exemplares por semana, está agora com vendas da ordem dos 23 mil. São números que confirmam a tendência captada pelo INE: um colapso social e económico da leitura impressa.

    Em todo o caso, Eduardo Cintra Torres mostra-se optimista: “Como não há democracia sem jornalismo, e como as sociedades precisam dele, penso que estamos num período de ajustamento numa situação de mudança brutal na comunicação nacional e mundial e que terá de haver modelos rentáveis de comercialização dos conteúdos jornalísticos e informativos”.

  • Comissão Nacional de Eleições ‘aprova’ com silêncio a realização de debates patrocinados

    Comissão Nacional de Eleições ‘aprova’ com silêncio a realização de debates patrocinados


    A Comissão Nacional de Eleições (CNE), presidida pelo juiz-conselheiro Pires Trindade, recusa comentar e revelar se adoptará alguma posição sobre o patrocínio da secção regional do Norte da Ordem dos Engenheiros (OERN), através do pagamento de 25 mil euros, à realização de quatro debates autárquicos promovidos pelo Jornal de Notícias (JN) com candidatos às presidências das Câmaras Municipais do Porto, Braga, Viana do Castelo e Bragança, mas cujo contrato excluía alguns dos partidos concorrentes.

    Apesar de três mensagens de correio electrónico enviadas pelo PÁGINA UM desde quarta-feira terem sido confirmadas como recebidas pelos serviços da CNE, não houve qualquer resposta deste organismo independente quanto à legalidade e oportunidade da iniciativa. A menos de um dia das eleições, o silêncio da entidade fiscalizadora deixa sem escrutínio um modelo inédito — e potencialmente perigoso — de “debates patrocinados” em plena campanha. E abre portas, no futuro, para ‘modalidades’ ainda mais promíscuas e desviantes.

    Como o PÁGINA UM revelou, o JN introduziu nesta campanha uma “inovação”: debates financiados por um terceiro, que assume a definição dos temas a discutir. No caso, a OERN celebrou mesmo um contrato público para estabelecer as condições dos debates, tendo estes se centrado em exclusivo nos temas da “habitação” e “mobilidade”. A cláusula contratual, firmada entre a OERN e a Notícias Ilimitadas (proprietária do JN), limitou convites a forças com representação nas Assembleias Municipais, provocando exclusões em todos os concelhos abrangidos.

    No Porto, por exemplo, apenas 8 das 12 candidaturas estiveram no palco; em Braga, participaram 7 de 10; em Viana do Castelo a CDU ficou de fora; em Bragança subiram ao debate 4 de 7 listas. Para além de condicionar temas e formato, o financiador viu ainda assegurada visibilidade institucional: o presidente da OERN, Bento Aires, foi o centro das atenções, sendo até fotografado no meio dos candidatos.

    O carácter polémico destes debates patrocinados decorre de três planos. Primeiro, a natureza da OERN: sendo uma associação pública profissional que exerce poderes públicos (inscrição, disciplina, regulação profissional), está sujeita a legalidade, imparcialidade, prossecução do interesse público e neutralidade institucional. Financiar debates com candidatos, em período eleitoral, pode colidir com a neutralidade e condicionar o pluralismo.

    Segundo, a parceria com um órgão de comunicação social, remunerada e com temas predeterminados, fere a necessária separação entre jornalismo e patrocínio, agravada pelo facto de o conteúdo ter sido divulgado em formato informativo e moderado por um ex-jornalista com funções comerciais, o que suscita dúvidas de incompatibilidade ética e autonomia editorial. Terceiro, as exclusões de candidaturas legalmente admitidas afectam a igualdade de oportunidades entre concorrentes, princípio basilar da disputa eleitoral.

    Debate eleitoral no Porto dinamizado pelo Jornal de Notícias e pago pela Ordem dos Engenheiros. Presidente da secção regional do Norte, Bento Aires, teve direito a foto de conjunto no meio dos candidatos.

    Questionado pelo PÁGINA UM, Bento Aires, líder da OERN, justificou por escrito que “a Engenharia está envolvida no desenvolvimento das autarquias em diferentes dimensões”, garantindo, contra o que resulta do contrato, que “todos os candidatos (…) foram convidados”. E assegurou que os debates decorreram “com total imparcialidade e isenção”. Porém, nem nos vídeos alojados nas páginas do JN e da OERN, nem nas peças de enquadramento, é referida a existência de patrocínio remunerado nem a interferência do financiador na escolha de temas. Esse défice de transparência é grave em qualquer circunstância; em campanha, é inaceitável.

    Perante este quadro, qual deveria ser o papel da CNE? De acordo com as suas competências, esta Comissão tem o dever de zelar pela regularidade dos actos eleitorais, assegurar a igualdade de tratamento das candidaturas e vigiar a neutralidade das entidades públicas, emitindo recomendações e deliberações quando detecta riscos para a liberdade de voto, a isenção informativa e a equidade. Pode ainda instar correcções imediatas e encaminhar ocorrências para a competente actuação contra-ordenacional quando aplicável.

    Num contexto em que uma entidade do sector público financia debates e define regras de participação e temas, esperar-se-ia, no mínimo, um esclarecimento célere sobre se é compatível com a lei eleitoral e com os princípios de neutralidade e igualdade que um patrocinador externo seleccione temas e, por via contratual, condicione quem pode ou não subir ao palco.

    Debate eleitoral em Braga pago pela Ordem dos Engenheiros.

    A urgência de uma posição não é meramente formal. O precedente criado pela OERN e pelo JN abre a porta a que, no futuro, associações empresariais, ordens públicas, fundações ou grupos sectoriais ditem, mediante pagamento, as agendas de debate e o perímetro dos convidados em plena campanha. Se hoje foram “habitação” e “mobilidade”, amanhã poderão ser interesses agrícolas, energéticos, imobiliários ou securitários, com o risco de privatizar a agenda pública e moldar a cobertura informativa segundo quem paga. O mercado dos debates substitui a mediação editorial e o interesse público por contratos comerciais, dissolvendo a fronteira entre informação e publicidade em matéria eminentemente política.

    Recorde-se que, além das exclusões, houve ganhos de imagem para o financiador: a marca da OERN esteve permanentemente associada aos debates, e o seu presidente apareceu em destaque ao lado dos candidatos. Os encontros foram moderados por um quadro comercial do grupo de media, circunstância que aumenta a percepção de promiscuidade entre áreas comerciais e conteúdos editoriais. Tudo isto, em período de campanha, quando a legislação e as boas práticas impõem especial rigor.

    N.D. (15/10/2025) O PÁGINA UM escreveu inicialmente que o actual presidente da CNE era o juiz conselheiro Santos Cabral, antigo director nacional da Polícia Judiciária. Essa informação constava no site da CNE à data da publicação. O PÁGINA UM foi alertado por Santos Cabral informando que já cessara funções em 21 de Julho. Contactado o CNE sobre essa situação, André Wemans, porta-voz desta entidade, esclareceu hoje que “que detetado ontem que uma outra página (constante de um submenu designado “História”) não continha a data de fim de mandato do anterior Presidente da CNE – 18.ª CNE – a mesma foi completada com essa data e aditado o espaço do atual Presidente em funções”. Informou também que “relativamente ao V/ pedido sobre os debates, informo que o mesmo se encontra pendente para informação dos Serviços, com vista a submeter à Comissão.”

    Embora por um erro de uma entidade (que deveria ter a informação actualizada), o PÁGINA UM lamenta a informação inicialmente transmitida e pede desculpas ao juiz conselheiro Santos Cabral pela referência na notícia original, entretanto corrigida neste aspecto, que não altera a substância.

  • Salvar a revista Visão? Não, obrigado! – e muito menos obrigado

    Salvar a revista Visão? Não, obrigado! – e muito menos obrigado


    Há um limite para tudo — até para a mistificação. O apelo na rede social X de Pedro Coelho — um reconhecido jornalista da SIC e com especiais responsabilidades na formação de futuros jornalistas (é professor da Universidade Nova de Lisboa – a que o Estado e os credores públicos “criem condições” para salvar a revista Visão, é um desses momentos em que o absurdo ultrapassa a fronteira do aceitável.

    Lamenta ele que “não alertámos a tempo para a crise da Visão e da TIN [Trust in News]” – abusando da primeira pessoa do plural –, mas anuncia que para “salvar” um título jornalístico há por aí “um grupo de jornalistas corajosos” que “precisam de nós” — mas o que realmente propõe é que se varra para debaixo do tapete uma gestão ruinosa que custou, no mínimo, 15 milhões de euros ao erário público. Em suma, propõe um perdão moral e financeiro a quem conduziu a TIN ao colapso, e uma indemnização indireta à irresponsabilidade. É o mais torpe apelo que um jornalista pode fazer.

    Quando um profissional da comunicação, pertencente a um grupo mediático (Impresa) que se libertou em 2018, através de esquemas com o Novo Banco, de um ‘cancro financeiro’ – transmitindo-o a Luís Delgado que investiu 10 mil euros para sacar cerca de 350 mil euros em salários para si logo nos dois primeiros anos –, pede que o Estado e os contribuintes reparem os desmandos privados, abdica do seu papel mais elementar: o de fiscal do poder e guardião da ética.

    A Visão (e as outras revistas) não caem por um acaso, um azar, ou pela conjectura, ou pela desinformação. Caíram porque a TIN foi gerida com leviandade, sem escrutínio interno, e com uma conivência quase eclesiástica entre jornalistas que se julgavam imunes às leis da economia e da decência. Enquanto os jornalistas da Visão recebiam salários, somavam-se dívidas ao Estado e à Segurança Social, acumulavam-se calotes a fornecedores e mascarava-se tudo mentindo e omitindo à ERC e fazendo contabilidade criativa.

    E a qualidade jornalística decaía, reflectindo-se na perda de leitores: em 2017, a revista Visão ainda chegou a vender quase 61 mil exemplares por semana e tinha seis mil assinaturas digitais. No último trimestre de 2023 — última vez que houve auditoria da APCT —, a Visão já só vendia 20.047 exemplares em banca por semana e tinha apenas 3.169 assinaturas digitais. Hoje, não havendo sequer números oficiais, apontam-se para menos de 10 mil exemplares.

    Post de Pedro Coelho a apelar para que os “credores públicos” criem condições para salvar uma empresa que ainda nem sequer apresentou contas no ano passado e terá uma dívida ao Estado de mais de 15 milhões de euros e um passivo superior a 30 milhões de euros, tudo sob a gestão de uma empresa criada com um capital social de 10 mil euros.

    Perante isto, dizer agora que há um grupo de “jornalistas corajosos” prontos a “assumirem o barco” é de uma ironia cruel. Onde estavam esses heróis quando o casco começou a meter água, ainda no tempo da Impresa? Onde estavam quando a TIN acumulava dívidas e escondia balanços? O PÁGINA UM alertou, documentou e publicou uma extensa investigação, a partir de Julho de 2023 (p. ex., aqui, aqui e aqui), aquilo que todos os outros não queriam sequer ver. E fomos ignorados ou mesmo insultados – aliás, a postura corporativista da imprensa é um dos piores males do nosso jornalismo.

    Chamaram até “fantasiosas” às notícias do PÁGINA UM que, linha por linha, antecipavam a derrocada inevitável. A própria então directora e publisher da Visão durante anos, Mafalda Anjos, escreveu em carta formal ao PÃGINA UM que não se pronunciava sobre “artigos fantasiosos que versam as contas da TIN”. Mas a sua maior preocupação nesse e-mail estava no facto de usaremos fotografias dela que constavam das suas redes sociais. Hoje, a mesma Mafalda Anjos, desmentida pelos factos, tenta reescrever a história nas redes sociais, como se o descalabro da TIN fosse um relâmpago vindo do nada.

    Não é, pois, de coragem que se trata quando se quer “salvar” a Visão – e o mesmo sucede com o Diário de Notícias e o Jornal de Notícias –, mas de oportunismo. Há uma diferença abissal entre quem luta para criar um projecto sustentável e quem pede indulgência pública para manter um título. Se os jornalistas da Visão acreditam que existe mercado para o seu trabalho, façam o que qualquer profissional decente faz: criem uma nova revista, registada na ERC, com outro título, outro modelo e contas limpas. Tão simples como isto.

    O PÁGINA UM publicou a primeira notícia sobre a situação financeira da Trust in News em 24 de Julho de 2023, há mais de 26 meses. Mafalda Anjos, sorridente ao lado de António Costa, apelidaria então de “fantasiosas” as notícias sobre esta matéria.

    Aliás, a TIN tinha um capital social de apenas 10 mil euros, não é muito: é o mesmo valor do PÁGINA UM. Não precisam de milagres nem de perdões fiscais — precisam de ética, investimento privado e responsabilidade. Uma Empresa na Hora basta – e podem começar a nova revista na próxima semana com essa estrutura e o conhecimento desse “grupo de jornalistas corajosos”. O resto é vitimização.

    Bem sei que esta súbita onda de solidariedade não é inocente. É uma tentativa de limpeza simbólica, de apagar os rastos de uma gestão calamitosa que muitos preferiram ignorar enquanto o dinheiro público e privado era esbanjado. Luís Delgado não cavou o buraco sozinho: contou com o silêncio cúmplice de quem, dentro das redacções, fingia que a crise não existia. Contou com a inércia da ERC, que tudo permitiu, e com a cegueira de uma classe jornalística que só reage quando sente o frio do abismo.

    A insolvência da TIN – e por arrasto o fim de muitos títulos – é um acto de justiça económica e moral. Não significa o fim do jornalismo, nem a morte da revista Visão enquanto conceito — apenas o encerramento de um ciclo de impunidade. O jornalismo que merece ser salvo é aquele que se sustenta na verdade, não o que se alimenta de subsídios e de nostalgia. Se o Estado se põe agora a “salvar” empresas privadas falidas só porque são do sector da imprensa, estará, além de minar a independência necessária em democracia, a consagrar o princípio de que a irresponsabilidade é um direito adquirido. E isso seria o golpe final na credibilidade do sector.

    Mafalda Anjos escreveu em 26 de Julho de 2023 ao PÁGINA UM, de forma voluntária, dizendo que não se pronunciava sobre “artigos fantasiosos que versam contas da TIN”. Apontava depois o erro de não se publisher desde finais de 2022 e de não ter responsabilidades de gestão financeira na Visão. Convém referir que a Lei da Imprensa concede o direito de um director ser informado da situação financeira em detalhe do órgão de comunicação social que dirige.

    Não querendo ser moralista, tenho mesmo de defender que está na hora de moralizar o campo mediático. Não desejo o desemprego de ninguém, mas também não aceito que se confunda solidariedade com complacência. A regeneração do jornalismo português passa por enterrar os ‘cadáveres corporativos’ que há demasiado tempo poluem a profissão. É preciso criar novos projectos, independentes e transparentes, que não se escondam atrás de marcas antigas. O cemitério da imprensa está cheio de títulos ilustres — e nenhum ressuscitou pela vontade piedosa do Estado. A Visão é apenas um nome. O que deve importar é a lucidez, a honestidade e a coragem de enfrentar a realidade.

    A morte da Visão — enquanto símbolo de um modelo falido — é um acto de higiene estrutural. Que sirva de exemplo. O bom jornalismo não se faz de esmolas do Estado, nem de piedade dos contribuintes. Faz-se de verdade e de carácter. Faz-se até os leitores decidirem – e tem sido essa a máxima do PÁGINA UM: somos aquilo que os leitores querem que sejamos. E se hoje ainda fazemos um jornalismo de nicho, porque ainda escasseia um número suficiente de apoiantes, a solução mais cordata não parece ser endividarmo-nos até ao tutano, aguardando pela salvação do Estado.

    P.S. Num comentário na rede social X, Mafalda Anjos continua a viver na sua bolha e acusa-me de “teorias da conspiração” e que escrevo aquilo que escrevo porque “tenho de fazer pela vida”. Mafalda Anjos pensa que ainda vive nos seus gloriosos tempos da pandemia, onde tiradas e rótulo serviam como argumento. Ao contrário de Mafalda Anjos, eu não fui director da Visão e não fugi do ‘barco’ quando estava a afundar e ainda tentei sacar 54 mil euros de indemnização (que acabou por não ser pago, porque o karma é tramado e Luís Delgado deu-lhe também um calote).

    Mafalda Anjos; quando uma jornalista tenta reescrever a História (neste caso, o contexto do termo fantasiosos; e da situação grave da TIN em 2023 que “já estavam documentadas”, usando ainda argumentos primários dos tempos da pandemia (teorias das conspiração e ‘tens de fazer pela vida’, que ela bem sou usar), só tem futuro no Jornalismo por empenhos e conhecimentos pessoais. Mas a sua manutenção na classe agrava a seriedade e credibilidade do jornalismo.

    E mais: ao contrário da Mafalda Anjos, eu não tenho uma agenda recheada de contactos públicos e privados para, depois do descalabro na Visão, encontrar uma boia de salvação profissional na CNN Portugal (cuja informação é maioritariamente opinião de bitates) e na sempre generosa RTP/RDP. No dia em que a qualidade e a seriedade fossem critérios no jornalismo lusitano, Mafalda Anjos teria de encontrar refúgio apenas numa empresa de marketing e comunicação empresarial a vender marcas e narrativas – nisso, admito, ela tem um imenso jeito e uma esbelta cara de pau.

  • O Nobel da Paz, a família política de María Corina e o anti-trumpismo primário

    O Nobel da Paz, a família política de María Corina e o anti-trumpismo primário


    Há fenómenos mediáticos que revelam menos sobre o assunto em si e mais sobre quem os comenta. A atribuição do Prémio Nobel da Paz a María Corina Machado foi, em Portugal, um desses casos: em vez de se analisar o que significa distinguir uma opositora que, independentemente do contexto político, desafia um regime autoritário e clientelar, preferiu-se brincar aos espelhos ideológicos. Como se viu no Expresso, com David Dinis a traçar um enviesamento narrativo de contornos propagandísticos, o reflexo de Trump na Sala Oval parece ter sido mais importante do que o espelho partido da Venezuela.

    As manchetes e colunas que por cá se escreveram, entre a satisfação e a ironia, pareciam celebrar menos o reconhecimento de uma mulher corajosa e mais a “derrota simbólica” do presidente norte-americano — esse homem de ego oceânico, que até já anunciou sonhar com o Nobel da Paz tanto como uma miss qualquer ambiciona a faixa de Miss Universo.

    María Corina Machado

    Ainda mais porque, ou me engano muito, ele acabará por recebê-lo num dos próximos anos, excepto se houver um qualquer percalço ou fatalidade. Não por mérito moral, mas por inevitabilidade histórica: Trump é o sintoma de uma América que ainda se crê o centro do mundo – e é-o do ponto de vista militar e estratégico –, e é provável que, um dia, para saciar essa mesma crença, o Comité de Oslo ceda e lhe estenda a medalha — talvez não pela guerra, mas por algum acordo improvável, seja no Médio Oriente, seja num tratado de desanuviamento algures entre Jerusalém e o Cáucaso, ainda que ele confunda a Arménia com a Albânia, como sucedeu recentemente.

    O mundo não acabará por isso. Já o Nobel sobreviveu a Kissinger — arquitecto da duplicidade vietnamita — e a Obama — laureado antes mesmo de decidir quais as guerras que iria iniciar. Por que não Trump? Se a paz já serviu para premiar generais e estrategas, não há escândalo que um vendedor de ilusões o conquiste por conveniência e vaidade. Antes isso do que guerras…

    Mas o que, nesse momento, mais me espanta não é o destino provável de Trump; é a leitura enviesada que a imprensa portuguesa faz do presente. O prémio a María Corina Machado foi descrito como a personificação da “esperança de um futuro diferente, onde os direitos fundamentais dos cidadãos são protegidos e as suas vozes são ouvidas”, em contraponto ao que, por exemplo, David Dinis tem a ousadia de comparar: as supostas autocracias de Maduro e Trump — o que, convenhamos, se mostra ridículo mesmo para um opositor arreigado do trumpismo.

    Donald Trump

    No meio disto é curioso notar o malabarismo (ou cegueira) dos comentadores sobre a postura de María Corina Machado, até do ponto de vista ideológico. Com efeito, ao invés de ser uma adversária de Trump, a nova laureada da Paz é uma indefectível apoiante do presidente norte-americano. Chamou-o de “visionário” e “corajoso” pela sua política face a Maduro — e não haja dúvidas de que vê numa Administração republicana um aliado mais natural do que teria numa Administração democrata.

    A ignorância e o enviesamento na leitura da premiação acabam por ser caricatos, porque idolatraram quem simboliza o pragmatismo trumpista: uma mulher que defende privatizações “massivas” — incluindo a da PDVSA, a petrolífera estatal venezuelana — e que chegou a admitir a presença de forças militares estrangeiras para derrubar o regime. Na verdade, na Venezuela, María Corina é vista como uma liberal radical — e em certa medida, mostra essa postura. Na esquerda latino-americana é tida como de “extrema-direita”; no Brasil, uma “amiga da extrema-direita bolsonarista”.

    Em concreto — e aí não há como negar —, a nova Prémio Nobel da Paz tem uma família ideológica: é uma das subscritoras da Carta de Madrid, manifesto lançado em 2020 pela fundação Disenso, ligada ao partido espanhol VOX, e que congregou uma constelação de figuras da direita liberal e conservadora mundial — e que muita imprensa cataloga de extrema-direita: de Giorgia Meloni a Eduardo Bolsonaro, de Santiago Abascal a José Antonio Kast, de Javier Milei e a dezenas de dirigentes de direita da oposição venezuelana. O documento, redigido em tom de cruzada, denuncia o “avanço do comunismo” e o “sequestro da região por regimes totalitários” patrocinados por Cuba, pelo Foro de São Paulo e pelo Grupo de Puebla, defendendo a propriedade privada, o Estado de direito e a liberdade de expressão como baluartes civilizacionais.

    person driving car during daytime

    Contextualmente, a adesão de Machado a essa plataforma — que não foi isolada, pois conta com mais de trinta opositores venezuelanos — insere-se num movimento transnacional de resistência conservadora ao populismo de esquerda latino-americano, mas também serve, ironicamente, de espelho ao próprio discurso do Nobel, que, sob o pretexto da defesa da democracia, reedita uma batalha ideológica simétrica, em que cada campo acusa o outro de autoritarismo enquanto instrumentaliza a linguagem da liberdade. Não surpreende, assim, que, em Portugal, o Chega tenha saudado María Corina Machado, sublinhando tratar-se de “um triunfo da liberdade contra o socialismo”.

    De qualquer modo, a cartografia de rótulos — incluindo o anti-trumpismo primário, que consegue fazer esquecer tudo o resto — revela um problema maior: o debate político global transformou-se numa disputa de caricaturas. Já não se discutem ideias, apenas se escolhem lados. A imprensa — e a portuguesa em particular — tornou-se um eco de trincheira: o que interessa é saber se o vencedor do Nobel “ajuda” ou “derrota” Trump, não se a Venezuela poderá um dia voltar a respirar democracia.

    Pessoalmente, não tenho idolatrias nem certezas morais sobre María Corina Machado. Não a vejo como uma Madre Teresa de Calcutá — até porque a política, ao contrário da santidade, exige manobras e compromissos —, mas reconheço nela uma mulher que, com todos os defeitos e excessos, enfrenta um regime corrupto e violento que destruiu o seu país. A sua ideologia é discutível; a sua coragem actual, inegável — e, por agora, pragmaticamente, isso é o mais relevante.

    María Corina Machado foi uma das signatárias da Carta de Madrid, promovida pelo Vox (Espanha).

    Em todo o caso, mostra-se perturbante ver como se cola ou descola rótulos em função das circunstâncias ou conveniências, endeusando ou diabolizando não em função de acções, mas de utilidades momentâneas. Num mundo polarizado, a lucidez é cada vez mais rara. E hoje há um fascínio mórbido por reduzir pessoas a emblemas e causas a slogans. O verdadeiro debate político — o que deveria discutir a liberdade, a justiça e o equilíbrio entre soberania e direitos — foi substituído por um jogo de espelhos morais: o inimigo do meu inimigo é meu herói, até segunda ordem.

    Para mim, María Corina Machado é uma mulher de direita sem disfarces – e isso pode não me agradar –, mas também é o rosto da resistência a um regime que persegue, censura e mata. E se há um mérito no Nobel que recebeu, é o de lembrar que a coragem política ainda existe — mesmo quando vem embrulhada em ideias que não partilhamos. Qualquer outra extrapolação, nesta fase, é mero exibicionismo ideológico. Por isso, o Prémio Nobel da Paz parece-me mais relevante pelo que pode representar para o futuro da Venezuela, mas nada tem de punição contra Trump – pelo contrário.