Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Já nem o imobiliário corre bem: Impresa falha negócio e afunda-se nas contas

    Já nem o imobiliário corre bem: Impresa falha negócio e afunda-se nas contas

    Parecia que se estava perante uma galinha dos ovos de ouro, mas afinal saiu um garnisé depenado. Depois de ter sido anunciada como praticamente certa, a venda do edifício-sede da Impresa, em Paço de Arcos, ao fundo BPI Imofomento foi cancelada, de acordo com um comunicado transmitido à Comissão doMercado de Valores Mobiliários. O grupo de media, dono da SIC e do Expresso, informou o mercado de que não chegou a acordo com o comprador, pondo termo a uma operação envolta em contornos peculiares — e, para muitos investidores, potencialmente lesivos.

    A transacção, com um valor total de 37 milhões de euros, permitiria à Impresa obter um novo balão de oxigénio financeiro, aliviando temporariamente o peso da dívida, mas à custa de encargos futuros crescentes. Mais do que um simples negócio imobiliário, o caso tornou-se um compêndio de “engenharia financeira” num grupo de comunicação social em acelerado declínio.

    Interior do edifício-sede da Impresa. Em 2018, o imóvel foi vendido ao Novo Banco, mas no final de 2022 a Impresa recomprou o edifício numa operação discreta que não foi comunicada ao mercado. / D.R.

    Embora o comunicado na CMVM não identifique os motivos do recuo, o PÁGINA UM sabe que o valor que estava a ser acordado acabou por ser considerado excessivo e que as ligações entre o BPI e a Impresa estariam a afectar a credibilidade do fundo imobiliário, que vive sobretudo da confiança dos investidores. Recorde-se que Pedro Barreto, que foi administrador do Banco BPI até 2024, é o actual vice-presidente da Impresa. 

    Mas esta não foi a única má notícia transmitida hoje pelo grupo que detém a SIC e o Expresso. Também as contas do primeiro trimestre de 2025 foram divulgadas, apresentando um prejuízo de 5,1 milhões de euros. Apesar de pequenas oscilações nas receitas e custos, as receitas operacionais diminuíram face ao ano passado, embora tenham permanecido em terreno positivo. O ‘problema’, que começa a ser crónico e insustentável para o grupo fundado por Pinto Balsemão, reside na elevada dívida: só em custos de financiamento, a Impresa gastou seis milhões de euros nos primeiros meses deste ano, o que explica o prejuízo do trimestre. A situação ainda piorará mais no próximo semestre, porque só o nível de endividamento remunerado subiu 3,8%, face a Junho do ano passado, para os 148,2 milhões de euros.

    Com um prejuízo recorde de 66,2 milhões de euros em 2024 e um passivo global de 250 milhões — dos quais 150 milhões são empréstimos bancários —, a Impresa vive sob o peso de juros que ultrapassam um milhão de euros por mês. O seu negócio principal — a comunicação social — não tem sustentado a estrutura financeira do grupo. Mas foi no imobiliário que tentou encontrar um inesperado maná: o edifício-sede, construído de raiz para alojar os canais da SIC e a redacção do Expresso, converteu-se numa fonte de lucros improváveis, através de três transacções consecutivas, num vaivém de vendas e recompras.

    O primeiro capítulo desta história começou em 2018, quando a Impresa vendeu o edifício ao Novo Banco por 24,2 milhões de euros, ficando com o direito de arrendamento por dez anos e opção de recompra. A operação, feita quando António Ramalho presidia ao banco e este recebia injecções do Fundo de Resolução, contrariava o suposto esforço de desinvestimento em activos imobiliários da banca. O edifício, concebido à medida das operações da Impresa, pouco valor teria fora do grupo. Ainda assim, o Novo Banco avançou com a compra.

    Cinco anos depois, em Dezembro de 2022, a Impresa recompra o edifício por apenas 19,6 milhões de euros, ou seja, menos 4,6 milhões do que o preço da venda inicial. A operação foi discreta e nunca comunicada ao mercado. Beneficiando das rendas entretanto pagas e de possíveis vantagens fiscais — como a contabilização das rendas como despesas e a manutenção do imóvel como activo sujeito a depreciação —, o grupo de Balsemão saiu largamente beneficiado. Mais: a recompra foi financiada pelo próprio Novo Banco, que assim sustentou financeiramente uma operação contra os seus próprios interesses. E a CMVM, notificada de anteriores transacções, manteve-se silenciosa.

    O último episódio, agora gorado, previa a venda do mesmo edifício ao fundo BPI Imofomento – Fundo de Investimento Imobiliário Aberto, por 37 milhões de euros. O fundo pertence à BPI Gestão de Activos, liderada por Jorge Teixeira, e é gerido pelo grupo BPI, controlado desde 2016 pelo catalão Caixabank. A ligação adquiria contornos delicados quando se sabe que o actual vice-presidente da Impresa, Pedro Barreto, foi administrador do BPI até 2024.

    Pedro Barreto, foi administrador do Banco BPI até 2024 e é o actual vice-presidente da Impresa. O grupo BPI detém a BPI-Gestão de Activos, que gere o fundo que vai ser o novo dono do edifício-sede da Impresa. / Foto: Captura de ecrã de vídeo do BPI | D.R.

    Com um património avaliado em mais de 800 milhões de euros, o fundo BPI Imofomento detém activos como o Centro Comercial Vasco da Gama e investe sobretudo em imóveis comerciais em Lisboa e no Porto. O edifício da Impresa, representando menos de 5% da carteira do fundo, não é dos mais atractivos em termos de liquidez. Sendo construído à medida da Impresa, dificilmente servirá outro inquilino — o que, para os subscritores do fundo, pode configurar um risco relevante. O próprio fundo assume que “não garante rendimentos” e destina-se a investidores dispostos a “assumir perdas de capital” e a “imobilizar poupanças por um período mínimo recomendado de cinco anos”.

    Se o negócio tivesse avançado, o grupo Impresa amortizaria os 14,9 milhões de euros em dívida ao Novo Banco e ficaria com 22,1 milhões líquidos, dos quais 10,1 milhões entrariam de imediato e 12 milhões seriam pagos num prazo de até dois anos. A transacção permitiria à Impresa repetir, em menos de três anos, uma operação de valorização relâmpago: comprar por 19,6 milhões e revender por 37 milhões, gerando um ganho de 17,4 milhões de euros. Somando aos cerca de cinco milhões obtidos com a primeira venda ao Novo Banco, o negócio do edifício-sede já teria rendido ao grupo Balsemão 22 milhões de euros.

    Em contrapartida, a Impresa tornar-se-ia arrendatária de um imóvel que já foi seu — e que desenhou para si — pagando rendas que, para garantir uma rentabilidade entre 3% e 4% ao fundo do BPI, teriam de variar entre 1,11 milhões e 1,48 milhões de euros anuais. Ou seja, entre 92.500 e 123.300 euros por mês. Um encargo fixo que, numa estrutura já deficitária, representa um fardo adicional.

    Jorge Sousa Teixeira, presidente-executivo da BPI-Gestão de Activos. / Foto: Captura de ecrã de vídeo do grupo BPI.

    A origem desta terceira venda falhada remonta às contas de 2024 da Impresa, em que o grupo admitiu recorrer à operação de “venda e subsequente arrendamento” como forma de libertar liquidez. Esta antecipação parecia confirmar-se no comunicado enviado à CMVM a 20 de Junho último. Mas algo correu mal nas semanas seguintes. E, esta quarta-feira, a galinha dos ovos de ouro saiu pela porta dos fundos.

    Para os investidores do fundo do BPI, a notícia pode ser recebida como um alívio. O imóvel, embora oferecesse rendas regulares, carregava riscos evidentes de liquidez e adequação ao mercado. Para a Impresa, trata-se de uma oportunidade perdida de encaixe imediato e redução de dívida — mas também da manutenção de um activo simbólico. Com um passivo de 250 milhões, uma actividade em declínio e uma marca cada vez menos relevante, o grupo de Balsemão volta ao ponto de partida, que é financeiramente desastroso.

  • Mário Cláudio

    Mário Cláudio

    Na vigésima oitava sessão da BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com a escritor Mário Cláudio.



    Um verdadeiro homem do Porto, Mário Cláudio — pseudónimo literário de Rui Manuel Pinto Barbot Costa — é uma das vozes mais singulares da literatura portuguesa contemporânea, com uma carreira que já atravessa mais de meio século. A sua obra revela uma versatilidade rara, não apenas pela extensão dos géneros que explora — do romance à poesia, do conto ao ensaio, e até ao teatro —, mas sobretudo pela sofisticação com que entrelaça arte, biografia e ficção, numa escrita de apuro estético e profunda inquietação intelectual.

    Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, começou a exercer advocacia ainda anos 60, mas a sua ligação à literatura foi ganhando espaço, com formação em arquivos e bibliotecas, e ainda um mestrado em Londres sobre literacia e hábitos de leitura, no final da década de 70. Foi ainda professor de Cultura Geral na Escola Superior de Jornalismo do Porto.

    Mário Cláudio em sua casa, no Porto, entrevistado para a Biblioteca do Página Um.

    O seu mundo literário começou a abrir-se logo em 1969, com ‘Ciclo de Cypris’, obra poética que já anunciava a sua inclinação para o rigor formal e a reinvenção dos cânones. Contudo, foi no romance que consolidou o seu nome, sobretudo a partir da década de 1980, com títulos como Amadeo (1984), Guilhermina (1986) e Rosa (1988) – a chamada Triologia da Mão –, três retratos literários de figuras centrais da cultura portuguesa — Amadeo de Souza-Cardoso, Guilhermina Suggia e Rosa Ramalho.

    Escritor de vastíssima erudição, num estilo que remonta a Camilo Castelo Branco, a sua escrita é marcada por um labor meticuloso da linguagem, por um gosto barroco pelas estruturas complexas e por uma constante interpelação dos mecanismos da memória e da representação.

    Com um vasto conjunto de romances do género histórico, onde mais do que relatar eventos, procura enquadrar a natureza humanas nesses contextos, Mário Cláudio também conseguiu construiu uma obra onde os limites entre o biográfico e o ficcional são sistematicamente interrogados. Em ‘Tiago Veiga. Uma biografia’ (2011), por exemplo, oferece-nos a vida inventada de um poeta inexistente com tal densidade que a linha entre a realidade e o artifício parece dissolver-se.

    Ao longo da sua carreira, recebeu os mais prestigiados galardões literários em Portugal, entre os quais o Prémio Pessoa (2004), o Grande Prémio de Romance e Novela da APE (por três vezes), o Prémio Pen Club (por duas vezes), entre muitos outros.

    Figura reservada, mas profundamente comprometida com a literatura como forma de conhecimento e de resistência ao esquecimento, Mário Cláudio é um autor que desafia o leitor a habitar outras vidas, outras épocas, outras formas de ver. E foi, por isso, numa conversa desafiante que recebeu, em sua casa no Porto, Pedro Almeida Vieira para falar sobre o seu percurso literário, mas também sobre literacia, memória, liberdade e o futuro (in)certo da cultura portuguesa.

    Pormenor da biblioteca ‘caseira’ de Mário Cláudio.
  • Órgãos arrancados a doentes ainda vivos: o escândalo que está a abalar os Estados Unidos

    Órgãos arrancados a doentes ainda vivos: o escândalo que está a abalar os Estados Unidos

    Nos Estados Unidos, um escândalo começou a abalar esta semana o sistema nacional de transplantes de órgãos: vários relatórios e testemunhos de profissionais e famílias denunciam que a recuperação de órgãos para transplante terá ocorrido — ou tentado ocorrer — em pacientes ainda vivos, contrariando os mais elementares princípios éticos da medicina.

    Um dos casos mais perturbadores, escrutinado esta terça-feira num painel na Câmara dos Representantes durante a inquirição de uma entidade que supervisionava transplantes, ocorreu em 2021 no Estado do Kentucky com um homem que estava a ser preparado para a retirada de órgãos, mesmo balançando a cabeça em “não” e levando os joelhos ao peito.

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    Foto: D.R.

    O volume e gravidade dos casos levou Robert F. Kennedy Jr., Secretário da Saúde e Serviços Humanos (HHS) do Governo norte-americano, a anunciar uma profunda reforma do sistema de obtenção e transplante de órgãos. A gravidade das revelações está a provocar reacções em todo o país, com implicações legais, médicas e morais de largo alcance.

    A polémica estalou após uma investigação conduzida pela Administração de Recursos e Serviços de Saúde (HRSA) ter revelado que, em apenas um dos estados analisados — o Kentucky — mais de 70 procedimentos de doação de órgãos foram interrompidos porque os pacientes começaram a mostrar sinais de recuperação.

    No total, a HRSA analisou 351 casos de tentativas não concluídas de colheita de órgãos e concluiu que 103 apresentavam “características preocupantes”, entre as quais 28 em que os pacientes possivelmente ainda estariam vivos no momento da tentativa de extracção.

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    Foto: D.R.

    Em termos clínicos, a morte cerebral — considerada equivalente à morte legal na maioria dos países ocidentais, incluindo os Estados Unidos — é o estado em que todas as funções do encéfalo, incluindo do tronco cerebral, cessaram de forma irreversível. Quando esse diagnóstico é validado por critérios rigorosos e testes confirmatórios, o paciente é declarado legalmente morto, mesmo que o coração ainda possa bater com auxílio de suporte artificial.

    A legislação norte-americana, como a Uniform Determination of Death Act (UDDA), reconhece a morte cerebral como critério suficiente e definitivo para declarar a morte de um indivíduo. No entanto, um diagnóstico inadequado ou apressado desse estado — ou a sua substituição por critérios circulatórios menos rigorosos — levanta sérias dúvidas jurídicas e bioéticas, que agora estão a ser colocadas em evidência neste escândalo.

    “A investigação revelou que o processo de obtenção de órgãos foi iniciado quando os pacientes ainda apresentavam sinais de vida”, afirmou anteontem Robert F. Kennedy Jr., que classificou o sistema como “horrível” e exigiu reformas estruturais. “Cada potencial dador deve ser tratado com a santidade que merece”, declarou, prometendo responsabilizar as organizações envolvidas.

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    Foto: D.R.

    O relatório, que serviu de base à denúncia pública do HHS, sublinha que a procura crescente por órgãos está a gerar situações de “tomada de decisão precipitada” e a inverter prioridades éticas fundamentais: em vez de garantir primeiro a protecção do dador, o sistema estaria a favorecer a obtenção célere de órgãos.

    Esta tendência está sobretudo associada a um método crescente nos EUA — a doação após morte circulatória — que permite a colheita de órgãos em pacientes que não tenham sido declarados em morte cerebral, mas que se encontrem em estado terminal ou em suporte vital com decisão clínica de suspensão.

    E é precisamente neste tipo de casos que surgem os episódios mais chocantes. Segundo uma investigação publicada esta semana pelo New York Times, 55 profissionais de saúde de 19 estados reportaram pelo menos um caso perturbador de tentativa de colheita de órgãos em dadores ainda com actividade neurológica. Alguns denunciaram, inclusive, que medicamentos teriam sido administrados para “acelerar a morte” do potencial dador.

    Robert F. Kennedy Jr., secretário de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos. / Foto: D.R.

    Actualmente, mais de 103 mil pessoas aguardam um órgão nos EUA. Diariamente, morrem 13 doentes por falta de um dador compatível. Esta tensão constante entre necessidade e disponibilidade alimenta uma corrida desenfreada por órgãos, gerando um terreno fértil para abusos e negligência, sobretudo quando se aplica o critério circulatório.

    Ao contrário da doação tradicional — feita após diagnóstico de morte cerebral irreversível —, a “doação após morte circulatória” (DCD, na sigla em inglês) ocorre em pacientes que não estão em morte cerebral, mas cujo prognóstico clínico é terminal. Após decisão médica (e consentimento familiar ou directiva antecipada) de suspender o suporte vital, aguarda-se a paragem cardíaca e, passados dois a cinco minutos, inicia-se a colheita de órgãos.

    Este tipo de doação é controverso porque o intervalo entre a cessação dos sinais vitais e o início da extracção é curto, deixando margem para erros de avaliação. O risco é agravado quando há pressa ou pressão institucional, como documentado em vários casos. Na ausência de critérios neurológicos estritos, a fronteira entre vida e morte torna-se mais ambígua — e é aqui que se têm concentrado os abusos agora denunciados.

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    Foto: D.R.

    Além disso, têm surgido críticas sobre práticas de sedação agressiva ou administração de fármacos com o intuito de facilitar a extracção, sem clara indicação clínica para benefício do paciente, o que levanta sérias questões éticas e legais.

    Agora, nos Estados Unidos, a HRSA impôs medidas correctivas às organizações de captação de órgãos, obrigando à revisão de protocolos clínicos, reforço do consentimento informado e melhoria das avaliações neurológicas. O HHS comprometeu-se também a transferir parte da supervisão para um sistema mais centralizado, reduzindo o actual mosaico institucional que inclui também os Centros de Serviços Medicare e Medicaid e ainda dezenas de organizações locais com autonomia operacional.

    Em Portugal, o regime da doação de órgãos é regulado sobretudo por legislação dos anos 90, com alterações posteriores. Basicamente, adoptou-se o modelo de consentimento presumido, o que significa, à partida, que todos os cidadãos são potenciais dadores, salvo declaração em contrário registada no RENDA – Registo Nacional de Não Dadores.

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    Foto: D.R.

    A colheita de órgãos só pode ocorrer após a verificação de morte cerebral, definida segundo critérios clínicos rigorosos e padronizados. O diagnóstico de morte encefálica é feito com base em três exames neurológicos, realizados por dois médicos independentes da equipa de transplantação, com intervalo mínimo entre observações, conforme normas da Direcção-Geral da Saúde.

    A doação após paragem cardíaca — do tipo DCD — não é prática corrente em Portugal. Embora legalmente possível em certos contextos, a sua implementação carece de regulamentação própria e protocolos clínicos específicos, além de aceitação ética consolidada. Assim, na prática portuguesa, os transplantes baseiam-se exclusivamente em doação pós-morte cerebral, ou, em alternativa, na doação em vida (casos de rins ou segmentos hepáticos entre familiares).

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    Foto: D.R.

    Adicionalmente, todo o processo é centralizado pelo Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST), que coordena a alocação dos órgãos, valida os critérios clínicos e assegura que os princípios da equidade, transparência e segurança do dador e do receptor são respeitados.

    Embora Portugal se destaque no panorama europeu pela elevada taxa de doações per capita, não existem quaisquer sinais de situação anómala do ponto de vista legal e mesmo ético.

  • Trust in News: o fim de um (mau) cadáver adiado

    Trust in News: o fim de um (mau) cadáver adiado


    Na próxima quinta-feira, 24 de Julho de 2025, cumprem-se exactamente dois anos sobre a publicação no PÁGINA UM de uma investigação que — por muito que alguns quisessem ridicularizar, desprezar ou silenciar — expunha, com base nas demonstrações financeiras da própria empresa, a ruína anunciada da Trust in News. O título era inequívoco: “Dona da revista Visão com dívida astronómica ao Estado. E Governo esconde.” Não se tratava de conjecturas nem de insinuações, mas de números, factos e documentos oficiais. Era jornalismo, e dos mais incómodos.

    Na altura, escrevi: “Na aparência, ninguém se apercebeu no Governo, mas a Trust in News – a empresa proprietária da revista Visão e de outras publicações como a Exame, a Caras e o Jornal de Letras – apresenta já, alegremente, uma dívida de 11,4 milhões ao Estado. A sua cobrança, a atender à situação financeira da empresa, mostra-se cada vez mais complexa.”

    Luís Delgado e Francisco Pedro Balsemão: um negócio ainda por explicar que termina sete anos depois numa ‘bancarrota’ absoluta e dívidas de mais de 30 milhões de euros.

    Era o retrato de um calote fiscal que crescia a mais de 12 mil euros por dia, com a complacência do poder político, a aparente indiferença da autoridade tributária e o silêncio cúmplice da Segurança Social. E o regulador – a Entidade Reguladora para a Comunicação Social – aos costumes disse nada.

    Apesar da clareza dos factos, a então directora da revista Visão, Mafalda Anjos — que acumulou durante anos o cargo de publisher do grupo — preferiu insultar a inteligência alheia, classificando as notícias do PÁGINA UM como “fantasiosas”. Talvez lhe parecesse fantasia que uma empresa de capital social de 10 mil euros, criada por Luís Delgado, tivesse adquirido à Impresa de Pinto Balsemão um portefólio de 16 títulos de imprensa escrita. Talvez lhe parecesse fantasia que a ERC, mesmo após a criação do Portal da Transparência, nunca tivesse analisado seriamente nem o negócio de 2018 nem a contabilidade anual da Trust in News, onde ano após ano as dívidas ao Estado cresciam, mas eram escondidas, enquanto se acumulavam “outras contas a receber” de natureza inexplicada.

    Durante mais de um ano, o PÁGINA UM foi o único órgão de comunicação social a acompanhar, com independência e persistência, este caso que só poderia ser descrito como um escândalo de gestão e de regulação. E mesmo quando a restante imprensa começou a abordar o tema, houve desresponsabilização de Luís Delgado – ainda hoje, as notícias omitem a condenação de Luís Delgado por abuso de confiança fiscal agravado.

    Mafalda Anjos, em Novembro do ano passado no Porto, a apresentar o seu livro (ironicamente) intitulado ‘Carta a um jovem decente‘.

    Entretanto, desde o ano passado, tudo aquilo que suceder em redor da Trust in News foi um circo para atirar areia para os olhos e salvar o ‘coiro’ de Luís Delgado, que, com a compra dos títulos à Impresa em 2018, ‘salvou’ a família Balsemão de mais agruras. O Processo Especial de Revitalização(PER), que Luís Delgado usou para congelar os seus compromissos fiscais e sociais, era na verdade um expediente para evitar novos processos judiciais por abuso de confiança fiscal.

    O mesmo sucedeu com o plano de insolvência que tinha um único propósito pessoal recusado – e bem – pela juíza: proteger o proprietário, e não os credores, e muito menos o interesse público.

    Em 2023, o silêncio do então ministro das Finanças, Fernando Medina, foi ensurdecedor – e foi para mim evidente que as revistas da Trust in News estavam agradecidas ao Governo socialista. Com efeito, causa estranheza que a Trust in News, apesar de ter processos executivos instaurados, e ter começado as dívidas ao Estado logo a partir de 2018, nunca ter figurado na lista de devedores fiscais nem da Segurança Social.

    Primeira notícia do PÁGINA UM de 24 de Julho de 2023 sobre a crise financeira insustentável (e escondida) da Trust in News.

    A pergunta impõe-se: por que razão foi esta empresa poupada à humilhação pública a que tantos outros contribuintes são sujeitos? E por que motivo os seus trabalhadores — especialmente os directores, que segundo a Lei de Imprensa têm o direito de aceder à situação financeira detalhada das suas empresas — permaneceram ignorantes ou resignados perante tamanha evidência de naufrágio?

    O encerramento hoje decretado judicialmente é, por muito que custe a assumir, “um choque saudável”, uma moralização tardia mas necessária no sector da comunicação social em Portugal. Mas não nos iludamos: não foi a Entidade Reguladora para a Comunicação Social que agiu; não foi o Estado a exigir transparência e justiça fiscal. Aquilo a que assistimos foi a um colapso silencioso de uma empresa insustentável, protegida até ao fim por uma rede de indiferença, conveniência e corporativismo mediático.

    O fecho da Trust in News deve, portanto, servir de ponto de partida — e não de chegada — para a dissecação do negócio ruinoso de 2018, entre a Impresa e Luís Delgado. Há demasiadas sombras neste contrato de cessão de títulos que libertou o grupo Balsemão de um portefólio deficitário à custa do erário público. Há rubricas nas contas da Trust in News, nomeadamente a obscura “Outras contas a receber”, que indiciam engenharia financeira deliberada para mascarar prejuízos acumulados em milhões durante mais de cinco anos. E há responsabilidades que não podem continuar encobertas, seja do lado de quem vendeu, de quem comprou ou de quem devia fiscalizar e reguladoramente intervir.

    Em Julho de 2023, a então directora da Visão considerou o conteúdo dos artigos do PÁGINA UM como “fantasiosos”. Nota: a declaração de não permissão de a citar não tem qualquer validade, porque pressupõe haver uma aceitação da parte do PÁGINA UM (o que não se verificou). Mafalda Anjos escreveu voluntariamente.

    Este caso é mais do que a falência de uma empresa: é a falência de um modelo mediático que mercantiliza o jornalismo, que despreza a sustentabilidade económica e que vive de aparências e de favores institucionais. Um modelo que produz títulos vistosos mas assentes em areia, que enaltece o combate às fake news mas vive da opacidade das suas próprias contas, e que exige subsídios públicos enquanto foge ao fisco.

    O PÁGINA UM, ao denunciar em 2023 o descalabro financeiro da Trust in News, não apenas antecipou o desfecho — antecipou a verdade. E escrevo isto sem qualquer júbilo: o encerramento de 16 títulos de imprensa, por mais irrelevantes que se tenham tornado, é sempre uma perda simbólica para o pluralismo informativo. Mas essa perda só é superada pela complacência que permitiu que estes títulos sobrevivessem durante anos à custa do dinheiro que não pagavam ao Estado, nem aos trabalhadores nem aos credores.

    O jornalismo só se defende com verdade, independência e rigor. E isso começa pela denúncia dos que, em nome do jornalismo, dele abusam. A Trust in News morreu. Viva o jornalismo! Que a verdade continue viva.

  • Cristiano Ronaldo entra a ganhar na sua estreia como empresário dos media

    Cristiano Ronaldo entra a ganhar na sua estreia como empresário dos media

    Foi uma estreia ao seu estilo: no primeiro ano de Cristiano Ronaldo como empresário dos media saiu uma vitória. Num ano marcado pelo acentuar da crise dos media – que culminou com o colapso da Trust in News e um prejuízo recorde na Impresa – determinada e com um desempenho financeiro que contrasta com o naufrágio da maioria dos grupos de comunicação social portugueses.

    No primeiro ano completo de actividade da Medialivre – o novo império mediático detentor do Correio da Manhã, Sábado, da CMTV, da Now, e agora também de duas rádios –, a empresa apresentou um lucro de 4,2 milhões de euros, segundo as demonstrações financeiras de 2024 a que o PÁGINA UM teve acesso.

    Este resultado, embora inferior aos 7,2 milhões de euros registados em 2023 – ano de transição, após a e reestruturação –, evidencia a solidez da Medialivre, mesmo num contexto de forte investimento, financiado em parte substancial pelo próprio Cristiano Ronaldo, através da sua sociedade CR7 S.A.

    A Medialivre, recorde-se, comprou no final de 2023, a Cofina Media através de um consórcio constituído pela Sorolla, LivreFluxo, CR7, Actium Capital e Caderno Azul. Embora nenhum accionista tenha a maioria, Cristiano Ronaldo é, individualmente, a pessoa com maior participação na holding, a Expressão Livre, detendo directamente 30%.

    Além disso, o jogador é potencialmente, o seu decisor estratégico dominante. Com efeito, através de um acordo parassocial, a empresa de Ronaldo comprometeu-se a um investimento de 13,095 milhões de euros – a título de ágio, ou seja, sem retorno directo ou direito de reembolso – num capital social total que implicou entradas de 34,9 milhões de euros. Assim, a CR7 suportou 37,52% do investimento, superando proporcionalmente a sua participação no capital. Já a Sorolla, com 32% do capital, investiu apenas 14,95%.

    Nove anos depois de ter lançado um microfone da CMTV a um lago, Cristiano Ronaldo detém 30% da Medialivre – e já lucra.

    Este desfasamento entre percentagem accionista e esforço financeiro indicia que Cristiano Ronaldo procura afirmar-se como fiador institucional do projecto, adquirindo influência e relevância num sector de comunicação social marcado pela fragilidade.

    Os investimentos realizados no ano passado reflectem-se já na valorização dos activos não correntes da Medialivre, que incluem, entre outros, os direitos associados às marcas Correio da Manhã, CMTV e Now. Estes activos aumentaram de 70,8 milhões de euros em 2023 para 82,8 milhões em 2024 – um acréscimo de cerca de 12 milhões. Por seu turno, o passivo total cresceu de 60,5 para perto de 68 milhões de euros, mas o balanço contabilístico revela uma situação económica e financeira saudável, sobretudo considerando o contexto adverso para os media em Portugal.

    A título de comparação, a Impresa – dona da SIC e do Expresso – registou um prejuízo de cerca de 60 milhões de euros em 2024, com elevados níveis de endividamento, que ultrapassam os 130 milhões de euros. Já a Medialivre reduziu os seus empréstimos bancários para cerca de 26 milhões de euros, menos 20% do que no ano anterior.

    Cristiano Ronaldo e Carlos Rodrigues, durante uma visita em Março passado às instalações do grupo de media. Foto: DR.

    A presença de Cristiano Ronaldo na Medialivre será, em principio para ser de longo prazo, porque o acordo parassocial entre os accionistas da Expressão Livre estipula que estes deverão permanecer na estrutura durante três anos, mesmo que ocorram alterações na distribuição do capital. Contudo, no horizonte de nove anos de vigência do acordo, prevê-se a possibilidade de venda integral caso um grupo de accionistas com mais de 75% deseje alienar a totalidade da empresa a terceiros – situação que poderá reforçar o controlo de Ronaldo, caso este mantenha a sua posição estratégica e capacidade de investimento.

    A entrada de Cristiano Ronaldo na Medialivre marcou o fim definitivo de uma relação atribulada entre o futebolista e o universo Correio da Manhã. As picardias do passado – como o célebre episódio de 2016 em que Cristiano lançou ao lago o microfone de um jornalista da CMTV, posteriormente resgatado e leiloado com fins solidários – estão não apenas ultrapassadas, mas enterradas. O jogador mais famoso da história portuguesa está agora na cúpula de um dos mais influentes grupos de comunicação social do país.

  • A pandemia da intolerância: da covid à imigração, não há adversários – apenas inimigos

    A pandemia da intolerância: da covid à imigração, não há adversários – apenas inimigos


    De repente, uma estranha simetria une dois dos fenómenos sociais mais fracturantes do nosso tempo recente: a pandemia de covid-19 e a actual crise em torno da imigração. À primeira vista, parecem realidades inconciliáveis: uma, sanitária e de impacte global; outra, demográfica e de impacte nacional.

    Mas, ao observarmos os mecanismos sociais, políticos e comunicacionais, que ambas desencadearam, partilham algo de essencial: a intolerância como padrão de resposta colectiva. E daí parte-se para uma hostilidade crescente não apenas em relação às posições extremas opostas, mas — talvez ainda mais inquietante — contra quem tenta compreender, dialogar ou propor soluções de equilíbrio.

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    Durante a pandemia, bastava levantar uma dúvida sobre a proporcionalidade das medidas, questionar os confinamentos, interrogar a eficácia das vacinas ou simplesmente defender direitos constitucionais elementares para ser etiquetado de “negacionista”, “antivacinas”, “irresponsável” ou mesmo “assassino”. A emotividade pública, catalisada por uma comunicação social subserviente e por peritos promovidos ao estatuto de sacerdotes da verdade, interditava qualquer subtileza. O dogma instalou-se com uma eficácia capaz de ombrear com a Inquisição: quem não se ajoelhava perante o altar do medo era excomungado da vida cívica.

    Hoje, algo semelhante sucede com o debate sobre imigração. Quem aponta os efeitos reais — e documentados — da imigração desordenada sobre o sistema de saúde, habitação, educação ou segurança, corre o risco de ser acusado de xenofobia ou racismo. Mas o contrário também se verifica: quem rejeita o alarmismo identitário e sublinha os direitos humanos, as histórias de vida dos migrantes ou a necessidade de políticas de integração bem desenhadas é de imediato classificado como “globalista”, “vendido ao sistema” ou “traidor da pátria”.

    Pior ainda está quem ousa interrogar ambas as visões com prudência, tentando distinguir entre migração legal e tráfico humano, entre integração e guetização, entre impacto económico e vulnerabilidade social. Este é aquele que acaba por ser atacado de todos os lados — por traidor, por frouxo, por centrista táctico.

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    Na verdade, nos debates sobre a pandemia e agora sobre a imigração — e talvez noutros tantos campos — aquilo que se perdeu foi precisamente o que garante a sanidade de uma democracia: a capacidade de pensar o meio-termo, de analisar com rigor, de propor soluções ponderadas que evitem tanto a repressão cega como a permissividade ingénua.

    A pulsão de radicalização em ambos os lados — alimentada por redes sociais, algoritmos de indignação e agendas políticas maniqueístas — transforma tudo em trincheira. Já não há adversários: há inimigos. E a posição intermédia, que sempre foi mais difícil de construir do que os extremos, parece hoje terreno minado.

    Na pandemia, quem procurava uma via equilibrada — por exemplo, defendendo a protecção dos mais vulneráveis sem destruir as liberdades fundamentais — foi marginalizado, insultado, silenciado. Ou processado — como eu, que ainda este ano terei de responder judicialmente em três processos.

    Na questão migratória, quem procura agora aplicar políticas sérias de controlo de fronteiras, mas ao mesmo tempo defender a dignidade humana — tanto dos imigrantes como dos autóctones —, sofre a mesma sorte: é demasiado duro para os progressistas e demasiado mole para os populistas.

    O consenso tornou-se heresia.

    Há nisto um paradoxo revelador. Se, teoricamente, os extremos se combatem melhor a partir do centro (não me refiro ao espectro ideológico) — com racionalidade, dados e proporcionalidade —, o que vemos hoje é o contrário: os extremos prosperam precisamente porque conseguiram minar o prestígio do centro, esvaziar-lhe a credibilidade, converter a prudência em tibieza e o pensamento crítico em traição. É a vitória do ressentimento contra o equilíbrio. Do ruído contra o discernimento. Do algoritmo contra o argumento.

    As redes sociais, que durante a pandemia foram usadas como instrumentos de controlo emocional e repressão simbólica, agora funcionam como aceleradores de pânico moral e de fúria identitária. A lógica binária de “salva vidas” versus “negacionistas” foi apenas substituída por outra: “defensores da pátria” versus “traidores pró-imigração”. O molde é o mesmo; apenas se trocam os actores. E, mais curioso e preocupante, muitos daqueles que na pandemia sofreram penalidades por serem minorias, estão agora na linha da frente para serem algozes dos que pensam diferente na imigração.

    a person holding a sign that says if vaccines work who needs segre

    E, como antes, quem tentar desmontar o jogo, desmontar o medo, desmontar a encenação, é eliminado do palco.

    Talvez estejamos a assistir a um processo mais profundo: o esgotamento da razão pública como espaço de construção comum. O velho ideal iluminista de que podemos, pela razão e pela evidência, fundar consensos mínimos para enfrentar problemas complexos, está em erosão. Em seu lugar, estão a erguer-se afectos inflamados, tribalismos digitais e dogmas emocionais. E com eles vem a recusa do diálogo, a humilhação do outro, a purga dos moderados.

    Na pandemia, fomos empurrados para o medo absoluto como forma de controlo. No debate migratório, estamos a ser empurrados para o medo difuso como forma de fragmentação. Em ambos os casos, o efeito é idêntico: o desaparecimento da política como espaço de ponderação e a sua substituição por actos reflexos emocionais e moralistas. No limite, deixa de haver verdade: apenas versões armadas da verdade.

    É por isso que, mais do que escolher entre extremos, importa reconstruir o valor do meio. Não o meio-termo cómodo e inócuo, nem sequer ideológico, mas o meio ponderado, exigente — aquele que resiste à emotividade e se ancora na realidade.

    A pandemia ensinou-nos, ou devia ter ensinado, que a histeria colectiva não é boa conselheira. A questão migratória exige agora essa mesma lição: sem tabus, mas também sem ódio. A liberdade — e a civilização — moram nesse equilíbrio precário que os radicais de ambos os lados querem demolir. Mas é lá que vale a pena continuar a construir. Mesmo que seja mais difícil — ou sobretudo por isso.

  • Do café a 40 cêntimos até Montenegro a citar Saramago (sem saber)

    Do café a 40 cêntimos até Montenegro a citar Saramago (sem saber)


    Em 2001, salvo erro — e com a humildade própria de quem aceita errar um ou outro ano —, escrevi uma análise sobre o estado do país em diversos sectores para a já saudosa Grande Reportagem. Intitulei-a, com toda a justeza e sentido premonitório, ‘O Estrago da Nação’, prescindindo deliberadamente da enfadonha e rotineira expressão “O Estado da Nação”. Mais tarde, reciclei o título para um livro, em 2003 — e hoje sobrevive como denominação de um podcast do PÁGINA UM. Afinal, há designações que perduram porque se colam à realidade como resina.

    Duas décadas depois, predispus-me, mais por curiosidade antropológica do que por dever de ofício, a assistir ao verdadeiro “Estado da Nação”, essa encenação parlamentar revestida de solenidade, em que os deputados fingem debater o país como se não tivessem nada a ver com o seu estado.

    Não era, pois, com expectativa noticiosa que me sentava, mas numa função de observação sociológica: nunca acreditei — nem por um segundo — que, num par de horas, os nossos representantes fossem capazes de dissecar, com seriedade e substância, o verdadeiro estado da pátria. Mas há ritual. Há solenidade. Há espetáculo. Mesmo sem novidade, há espetáculo. E, mesmo sem a esperança de encontrar lucidez, ali estava eu, qual entomólogo do hemiciclo.

    Nutro há muito uma convicção (partilhada por muitos, receio): os políticos, em regra, são incapazes de produzir diagnósticos acertados sobre o país porque vivem dele apartados. Desconhecem os ritmos e agruras da vida quotidiana. Habitam, por assim dizer, numa outra galáxia. Isso talvez explique, por exemplo, que se sirvam de uma bica a 40 cêntimos — metade do que custa fora do Olimpo parlamentar, no mundo onde vivem os comuns mortais.

    Talvez seja esta a forma expedita de complementarem vencimentos que consideram modestos: vivendo abaixo do custo real da vida. A austeridade, pelos vistos, começa no bar da Assembleia.

    Feito este introito, bastaram-me poucos minutos — ou melhor, bastou-me o discurso inicial do primeiro-ministro — para encontrar o mote desta crónica. Luís Montenegro brindou-nos, num discurso inaugural, com um idílio político digno de arcádia: elogiou a sua governação, clamou por estabilidade, prometeu reduções fiscais em catadupa e, já num tom náutico de retórica camoniana, resolveu terminar com uma tirada de impacto. “Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos”, anunciou altitonante.

    E, com convicção de quem crê citar Homero, atribuiu-a a Sophia de Mello Breyner Andresen. Fica sempre bem citar uma poeta. Mesmo tendo sido (brevemente) deputada (na Constituinte) do Partido Socialista.

    Acontece, porém, que a frase não é de Sophia, mas de outro português, mas assumidamente comunista: José Saramago, que a escreveu em 1994 nos Cadernos de Lanzarote. O episódio é revelador do estado real da nossa governação: o primeiro-ministro — que, presumo, terá assessores cultos e diligentes — não só ignora a autoria da frase como, pior ainda, nem sequer compreendeu o seu significado completo. Porque a frase, que Montenegro repetiu com ar de estadista grave, prossegue com algo ainda mais inquietante: “Sem memória não existimos. Sem responsabilidade talvez não mereçamos existir.”

    Ora, se é verdade que Montenegro demonstrou não ter memória — ao atribuir mal a citação —, e se também falhou na responsabilidade — ao não corrigir o erro nem reconhecer a ignorância —, resta a inquietante conclusão de que a sua existência política é, no mínimo, um equívoco ontológico.

    Mas o mais patético — sim, que não encontro palavra mais branda — foi ver a plateia parlamentar a reverberar a asneira. Falou André Ventura, falou Hugo Soares, falou Carneiro pelo PS, e o nome de Sophia continuou a bailar entre discursos. As bancadas do PS e do Chega andaram entretanto às turras com a coreografia habitual. Desta vez, Aguiar-Branco teve de arbitrar sobre se ‘frouxo’ e ‘fanfarrão’ são termos ofensivos. Só depois de o PÁGINA UM ter assinalado a gafe (ou ignorância) às 15h49 nas redes sociais (se calhar houve quem identificou antes) é que o deputado do Livre, Rui Tavares, tentou, já fora do plenário, repor a verdade, esclarecendo que a frase era de Saramago.

    Mas já era tarde. Ninguém percebeu — ou pelo menos, o Público não entendeu patavina: a jornalista Ana Bacelar Begonha escreveu que Rui Tavares “lembr[ou] uma frase de José Saramago (a que Montenegro citara e atribuíra erradamente a Sophia) e, num rasgo digno de crónica de costumes, indicou que foi o deputado do Livre a dizer que “sem memória não existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir”, como se fosse ele o autor do aforismo saramaguiano. Este jornalismo – a quem falta também memória e sobra ligeireza – também é um sinal do Estado da Nação.

    Aguentei estoicamente até às 19h20, escrevendo esta crónica ao som intermitente dos discursos de dois minutos (por vezes de cinco), enquanto o Governo escutava em silêncio, pois Montenegro esgotou rapidamente o seu tempo. E no final, aquilo que mais me chamou a atenção não foram os argumentos, mas o cenário: a bancada socialista a meio-gás — como quem acha que tem lugares a mais — e o Chega a ocupar com disciplina o espaço da Oposição, com Ventura a saber gerir o cronómetro e a acabar o debate com mais tempo do que qualquer outro partido para ‘brilhar’ no fim. Os outros partidos, esses quase não contaram, sobretudo os pequenos partidos (BE, PAN e JPP) que tiveram apenas cinco minutos.

    Conclusão: se isto a que eu assisti foi o Estado da Nação, continuarei a preferir o Estrago da Nação. Sempre me parece termo mais exacto. E mais honesto.

    Adenda às 20h03: O ministro dos Assuntos Parlamentares, Carlos Abreu Amorim, no discurso final, voltou à carga da asnice, relembrando a frase apócrifa de Sophia dita por Montenegro, e ainda conseguiu ser pior. Armado em literato, relembrou o célebre “Minha pátria é a língua portugueses” (acertando, vá lá, no autor), e proclamou ufano: “Eu sou Pessoa; eu sou Sophia; eu sou Camões; eu sou Natália Correia; eu sou António Nobre; eu sou Florbela Espanca”. Só lhe faltou dizer “eu sou Saramago”, o autor do aforismo usado por Montenegro. E talvez também confessar: “Eu sou burro”. A estultícia, com efeito, tomou conta da Nação!

  • Número único de identificação: Governo copia proposta do Chega que atropela a Constituição

    Número único de identificação: Governo copia proposta do Chega que atropela a Constituição

    Passou despercebido nas primeiras leituras apressadas, mas uma das normas constantes do Programa do XXIV Governo Constitucional, liderado por Luís Montenegro, poderá vir a ser julgada inconstitucional se for concretizada em letra de lei — ou pelo menos suscitar fortes reservas jurídicas quanto à sua compatibilidade com a Lei Fundamental da República Portuguesa.

    Trata-se da proposta de criação de um “modelo de número único de identificação para as pessoas e empresas”, justificada no documento governamental como forma de evitar “que a mesma pessoa tenha de ter número de utente, de cartão de cidadão, de contribuinte, de Segurança Social, de eleitor, etc.” Mas a desburocratização significa também maior devassa da vida privada dos cidadãos por parte do Estado.

    sta formulação — que consta na página 109 no capítulo “Reforma da Governação, Organização e da Prestação do Sector Público Administrativo” — não é absolutamente nada original: trata-se de uma cópia literal da proposta n.º 333 do programa eleitoral do Chega. O partido de André Ventura colocou a promessa na ‘secção’ intitulada “Desburocratizar para avançar”.

    Em concreto, tanto o Chega como o Governo de Luís Montenegro pretendem que os vários números de identificação atribuídos aos cidadãos — desde o número de utente do Serviço Nacional de Saúde, ao número de contribuinte, à Segurança Social, ao cartão de eleitor, entre outros — sejam concentrados num único número nacional de identificação, a usar transversalmente por todos os serviços e plataformas do Estado. Do berço ao caixão.

    O objectivo aparenta ser benévolo: simplificar a relação dos cidadãos com a Administração Pública, evitando múltiplos registos e agilizando os processos digitais. Mas este desiderato, aparentemente inocente — ou mesmo tecnocrático —, esbarra frontalmente com a Constituição da República Portuguesa.

    Com efeito, o n.º 5 do artigo 35.º da CRP estabelece com clareza: “É proibida a atribuição de um número nacional único aos cidadãos.” Esta norma constitucional, que remonta à revisão de 1989, foi adoptada num contexto em que começavam a emergir as primeiras bases de dados digitais centralizadas, e visava proteger os cidadãos contra práticas de controlo e vigilância abusivos por parte do Estado.

    A intenção era inequívoca: impedir a criação de um sistema unificado de identificação que permitisse cruzar, com facilidade e sem consentimento expresso, informação sobre saúde, dados fiscais, mas também outros aspectos sensíveis que estivessem associados a cada pessoa.

    É certo que, nas últimas décadas, o avanço tecnológico e a digitalização da Administração Pública levaram, na prática, a uma crescente interoperabilidade entre sistemas estatais. Por exemplo, o número de contribuinte tem sido usado como identificador transversal em várias plataformas.

    Proposta do programa eleitoral do Chega foi copiada ipsis verbis pelo Governo de Luís Montenegro.

    No entanto, como sublinha o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, em declarações ao PÁGINA UM, a consagração formal de um número único nacional seria inconstitucional, tal como está actualmente prevista na Constituição. Para o jurista, embora já exista uma “centralização de facto” em muitos aspectos, a criação formal de um número único, com base legal, seria “um salto qualitativamente diferente”, colocando “riscos de devassa da privacidade”.

    De resto, o mesmo artigo 35.º da actual Constituição reforça a sua preocupação com a protecção de dados pessoais ao estabelecer que “a informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular (…)”.

    A ligação entre essa norma e a proibição do número único é evidente: o legislador constituinte quis, na altura, prevenir a possibilidade de concentração num só registo digital da identidade integral do cidadão.

    people walking on street during daytime
    Atribuição de um número único de identificação permite, mesmo acenando-se com a desburocratização e a segurança, a transição para um modelo de controlo social à moda chinesa

    Em termos práticos, a adopção de um número único teria como consequência imediata que todos os serviços do Estado — e eventualmente entidades privadas com acesso autorizado — pudessem aceder, de forma mais expedita, ao histórico completo de interacções e dados do cidadão: processos de saúde, registos fiscais, segurança social, histórico eleitoral, licenças de condução, propriedade automóvel e imobiliária, registo criminal, percurso académico, entre outros. O risco não é meramente teórico: a centralização de dados aumenta a vulnerabilidade a abusos, violações de privacidade e mesmo ciberataques com efeitos devastadores.

    Mas há também um risco simbólico e filosófico: o de uma progressiva despersonalização e desumanização da identidade do cidadão. Reduzido a um número único — que substituiria o nome próprio na relação com os serviços públicos —, o cidadão deixará de ser reconhecido na sua individualidade para passar a ser um código funcional.

    Do nascimento à morte, um recém-nascido deixaria de ser, simbolicamente, João, Maria ou Miguel para passar a ser 1023984501, numa lógica de etiquetagem estatal que rompe com qualquer ideia de dignidade pessoal. Ou seja, o número deixa de ser apenas um instrumento administrativo para se tornar, na prática, uma identidade totalitária, pronta a ser vigiada, cruzada e interpretada por algoritmos.

    André Ventura conseguiu introduzir proposta inconstitucional no Programa do Governo.

    A proposta agora inscrita no Programa do Governo surge, assim, num cenário político sensível, em que tanto o PSD como o Chega demonstraram disponibilidade para uma revisão constitucional — eventualmente para acomodar medidas que hoje são inconstitucionais.

    Aliás, no caso concreto do número único, o próprio “etc.” da formulação governamental levanta mais dúvidas do que esclarecimentos. O que mais se incluirá neste identificador? Dados bancários? Localização em tempo real através de aplicações públicas? Um registo de vacinação ou de deslocações? Uma possibilidade de bloquear o acesso a qualquer outro acto administrativo se, por exemplo, houver uma multa de trânsito ou se um cidadão for socialmente incómodo?

    Embora ainda se esteja perante uma promessa governamental sem legislação concreta, a simples transcrição ipsis verbis da proposta do Chega — sem qualquer discussão pública ou alerta mediático — revela um padrão preocupante de alinhamento programático, sobretudo quando se trata de matérias sensíveis à liberdade individual.

    No futuro, o cidadão número 35678876 será o líder de um Governo da República Portuguesa…

    E se é certo que a proposta poderá, no futuro, ser enquadrada numa revisão constitucional — algo que requer maioria qualificada —, o facto de ser integrada no actual Programa de Governo levanta legítimas interrogações sobre o rumo do Executivo de Luís Montenegro em matéria de garantias fundamentais.

    Seja por afinidade política, seja por mera distração legislativa, esta proposta do Governo configura uma flagrante inconstitucionalidade num documento programático fundamental, com implicações não apenas jurídicas mas sobretudo democráticas e humanas.

  • Ridículo: Estado só concluiu 12 fogos habitacionais no ano passado

    Ridículo: Estado só concluiu 12 fogos habitacionais no ano passado

    Apesar do coro político sobre a prioridade nacional para a habitação, o Estado português – nas suas diversas vertentes, desde a Administração Central até às autarquias, passando pelos Governos Regionais – conseguiu um ‘feito inaudito’: concluir apenas 12 fogos habitacionais em todo o país durante o ano passado. Nem uma centena. Nem meia centena. Doze. É esse o número de casas novas em todo o ano de 2024, de acordo com os dados provisórios do Instituto Nacional de Estatística (INE), agora analisados pelo PÁGINA UM.

    No total de todas as habitações familiares concluídas no ano passado, o sector público foi responsável por menos de 0,05% – ou seja, apenas uma em cada 2.000 casas familiares terá sido construída por entidades públicas.

    low angle photography of cranes on top of building

    Num país onde vigora um Plano de Recuperação e Resiliência com centenas de milhões atribuídos à chamada “Habitação Acessível”, a acção directa do Estado revela-se, na prática, estatisticamente irrelevante.

    Apesar de se assistir a um novo dinamismo na construção de habitações familiares – o ano passado, com 25.311 fogos, foi o melhor da última década, superando mesmo o conjunto do triénio 2015-2017 –, tem sido a iniciativa privada que se tem destacado, tanto ao nível de pessoas singulares (famílias) como de empresas.

    Ao longo de 2024 foram concluídos 15.030 fogos construídos por empresas e mais 10.168 por pessoas singulares. Estes valores são também os máximos da última década, sendo que os crescimentos relativos face a 2023 foram de 15% e 2,7%, respectivamente. Uma parte também reduzida (101 fogos em 2024) foi concluída por iniciativa de empresas de serviço público, cooperativas de habitação e instituições sem fins lucrativos.

    Total de fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por entidade promotora entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    O mapa dos fogos públicos concluídos é quase caricatural: três em Mafra, três em Miranda do Douro, e um em cada um dos seguintes concelhos: Braga, Paredes, Caldas da Rainha, Vila do Conde, Lagoa (Açores) e Valença.

    Esta é a cartografia da acção do Estado português enquanto construtor de habitação. Sempre se poderá dizer que, conforme alerta o INE, não existem ainda dados nos últimos dois anos para os concelhos de Lisboa, Faro e Póvoa de Varzim, por ausência ou insuficiência de informação, mas esse quadro não se modificará muito quando houver dados desses municípios. Por exemplo, a capital de Portugal só tem referidos 100 fogos de iniciativa pública concluídos entre 2015 e 2022.

    A análise da última década mostra uma tendência contínua de afastamento do Estado enquanto promotor directo de habitação. Em 2015, os organismos públicos ainda concluíram 88 fogos. Não era quase nada, mas era sete vezes mais do que em 2024. O número manteve-se baixo ao longo dos anos seguintes, com um breve pico em 2021, quando foram contabilizados 262 fogos públicos – o valor mais elevado da década.

    Mas desde então, o colapso é evidente: 21 em 2022, 63 em 2023 e apenas 12 em 2024. Mesmo com eventuais acertos quando os dados forem definitivos, por agora o INE aponta para apenas 727 fogos familiares por iniciativa pública na última década, que contrastam com os 72.653 fogos por iniciativa de pessoas singulares, os 78.884 por empresas privadas e 556 por outras entidades.

    Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por todas as entidade promotora entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Este desinvestimento é tanto mais escandaloso quanto mais se recorre ao discurso público como cortina de fumo. Nunca se falou tanto de habitação pública, nunca se prometeram tantos apoios, tantos programas, tantas metas. Mas o resultado, medido em tijolos e telhados, é medíocre. Os números não mentem: o Estado não constrói.

    Os dados do INE, que não são matéria de opinião, demonstram que o que se vende como política pública de habitação não passa, em grande medida, de engenharia retórica. Em suma, dos 151.820 fogos habitacionais novos construídos entre 2015 e 2024, praticamente 52% foram de empresas privadas, cerca de 47,2% foram de iniciativa particular, 0,5% por iniciativa pública e um pouco mais de 0,3% por outras entidades.

    Em todo o caso, de forma global, observa-se uma tendência de crescimento do número total de fogos – que passou de pouco mais de 7 mil em 2015 para mais de 25 mil em 2024 –, mas o Estado, além de não contribuir para o volume, está muito longe de ter poder de regulação dos preços de mercado. Aliás, o Estado e as autarquias até beneficiam directamente da especulação, por via dos montantes tributados de IMT (Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis) e de IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis).

    Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por iniciativa de empresas privadas entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.
    Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por iniciativa de pessoa singular (família) entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Os números do INE – que acabam por mostrar que os projectos, os planos, as primeiras pedras e os anúncios de entrega de chaves (que em muitos casos são de casas reabilitadas ou já existentes) – revelam que os sucessivos Governos prometem combater a especulação e a crise habitacional, mas é o mercado, com a iniciativa particular e de empresas privadas, que mostra dinamismo. Estamos perante a radiografia de um modelo de governação que trocou o cimento pelo soundbite. A política da habitação em Portugal continua a ser feita em conferências de imprensa, não em estaleiros de obra. E os cidadãos pagam, todos os dias, o preço dessa encenação.

    O dinamismo da construção de fogos habitacionais novos na última década tem estado concentrado sobretudo nos concelhos urbanos do eixo Porto-Braga e Lisboa-Setúbal, onde se intrometem Leiria, Aveiro e Viseu. O município que mais construiu entre 2015 e 2023 foi o Porto, com 6.590 fogos habitacionais, seguindo-se Vila Nova de Gaia, com 5.543 fogos. Braga é o outro concelho acima da fasquia dos cinco mil (5.045).

    Na Área Metropolitana de Lisboa, o Seixal foi o município que mais construiu (4.291 novos fogos). Segue-se depois, novamente a Norte, Guimarães (3.272), Leiria (3.062) – o primeiro concelho fora das duas áreas metropolitanas – e Vila Nova de Famalicão (3.041). Acima de dois mil fogos estão ainda Barcelos e Odivelas (ambos com 2.658), Matosinhos (2.398), Sintra (2.394), Lisboa (2.328), Mafra (2.311), Loures (2.285), Aveiro (2.234), Viseu (2.146) e Cascais (2.060). Fecham o top 20 os concelhos de Almada (1.991), Maia (1.862) e Setúbal (1.816). Quase quatro em cada 10 novos fogos habitacionais (39,3% do total) foram construídos nestes 20 municípios.

    Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por iniciativa de entidades públicas (Administração Central, Local e Regional) entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.
    Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por iniciativa de outras entidades (empresas de serviço público, cooperativas de habitação e instituições sem fins lucrativos) entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Porém, as dinâmicas mais recentes mostram algumas diferenças. Apesar de o Porto e Vila Nova de Gaia terem sido os que mais fogos concluíram em 2024 – 1.542 e 1.431, respectivamente –, o terceiro lugar é ocupado por Braga (mais 669 fogos), seguido do Seixal (649), Maia (567), Leiria (564), Cascais (540), Funchal (481), Sintra (472) e Oeiras (465). Estes 10 municípios foram responsáveis por 29,4% dos fogos concluídos no ano passado em todo o país.

    Recorde-se que no mês passado, o Programa do Governo estabeleceu como meta a construção de “59 mil casas públicas” e  a disponibilização de financiamento para mais projectos, incluindo parcerias público-privadas em imóveis do Estado devolutos com aptidão habitacional. Mas as promessas nem quatro paredes possuem, quanto mais tecto e acabamentos, pelo que, o mais provável, pelo histórico, é a montanha parir um rato.

    Aliás, também a promessa do Governo socialista de transformar a empresa pública Parque Escolar em Construção Pública – para assim passar a deter competências na área da habitação social – não passou do papel. E acabou por ser mais uma promessa não concretizada no sector da habitação.

  • Bastaram 27 opiniões para colocar Amadora como uma das cidades mais inseguras da Europa

    Bastaram 27 opiniões para colocar Amadora como uma das cidades mais inseguras da Europa

    “Vamos limpar a Amadora” – este é o mote do deputado Rui Paulo Sousa, que se candidata à autarquia local pelo Chega e tem colocado a alegada criminalidade deste subúrbio de Lisboa na agenda política. Ainda na semana passada, um dos braços direitos de André Ventura perguntava em tom retórico: “Até quando queres viver no Gueto de Lisboa?… Vamos limpar a Amadora da Bandidagem, vamos devolver a Cidade aos Amadorenses de bem.”

    Para sustentar esta tese, Rui Paulo Sousa apresentou um ranking surpreendente, da plataforma Numbeo, que colocava a cidade da Amadora no “17.º lugar no ranking das cidades mais perigosas da Europa… à frente de Odessa na Ucrânia!!!”, escreveu o candidato. Aliás, descontando o facto de a Amadora surgir ex-aequo com a cidade ucraniana, confirma-se o lugar no ranking do primeiro semestre de 2025 desta plataforma colaborativa.

    Contudo, aquilo que mais surpreende é que a Amadora, cidade com cerca de 180 mil habitantes, nem sequer aparece na lista de 132 cidades europeias analisadas em 2024, onde apenas surgiam Lisboa (na posição 95) e Porto (na posição 87), ambas classificadas como cidades com baixo índice de criminalidade. No ranking de 2025, Lisboa ocupa a posição 76 e o Porto o lugar 110, embora ambas com percepção de risco baixo. A entrada de rompante no ranking causa estranheza, desde logo.

    Porém, mais surpreendente ainda é constatar que a Amadora, mesmo figurando no 17.º lugar deste ranking europeu, ocupa apenas a posição 104 a nível mundial, numa lista liderada por duas cidades da África do Sul (Pietermaritzburg e Pretória), país que conta com cinco cidades no top 10.

    Entre as 25 cidades consideradas menos seguras do mundo, segundo o ranking do Numbeo, seis são brasileiras (Salvador, Fortaleza, Recife, Rio de Janeiro, Porto Alegre e São Paulo) e quatro são norte-americanas (Memphis, Detroit, Baltimore e Albuquerque). A cidade europeia considerada menos segura, Bradford (Reino Unido), surge na 33.ª posição.

    Embora a Amadora surja com frequência na narrativa mediática como cidade com problemas de segurança, os dados estatísticos não confirmam essa percepção. Pelo contrário.

    De acordo com os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE), o concelho da Amadora ocupa apenas a 131.ª posição entre os 308 municípios portugueses em termos de criminalidade total em 2024, com 28,9 crimes por mil habitantes — ligeiramente abaixo da média nacional, fixada em 30,0. O topo da lista é ocupado por Albufeira (78,2), Avis (74,5), Mourão (64,6), Loulé (61,4) e Porto (60,6). Já Lisboa regista 53,6 crimes por mil habitantes — quase o dobro da Amadora em termos relativos.

    No caso dos roubos por esticão e na via pública — tipologias particularmente traumáticas —, a taxa de criminalidade em Lisboa é quase cinco vezes superior à da Amadora (3,2 contra 0,7 por mil habitantes). E nos crimes contra o património, os mais numerosos, a Amadora também está longe do topo nacional — quanto mais do europeu. Com 13,9 crimes por mil habitantes em 2024 nesta categoria, está abaixo da média nacional (17,3), enquanto Lisboa e Porto apresentam rácios quase três vezes superiores: 34,6 e 39,9, respectivamente.

    Intrigado com os dados, o PÁGINA UM questionou o CEO do Numbeo, Mladen Adamovic, sobre a posição concreta da Amadora, que confirmou a que, em 2025, esta cidade portuguesa registou um número anormalmente elevado de avaliações por usuários em comparação com anos anteriores. Mas mesmo assim, o total é absurdamente pequeno: apenas 27 entradas válidas relativas à Amadora em 2025, contra apenas 9 em 2024 e 11 em 2023. O aumento das submissões começou, segundo Adamovic, “em Julho”, admitindo que “se deveu a uma maior atenção mediática”.

    Embora o Numbeo admita ser frequentemente alvo de spam, Adamovic assegura que existem algoritmos de detecção de padrões suspeitos, incluindo cruzamento de endereços IP e outros dados de utilizador, que permitem eliminar participações manipuladas. No caso da Amadora, garante que “não foi detectado um número elevado de actividades suspeitas que pudessem ser manualmente classificadas como spam”, embora fique agora patente que bastam 27 contribuidores para colocar qualquer cidade europeia numa posição relativamente negativa.

    Apesar destas garantias, saliente-se que o modelo do Numbeo assenta exclusivamente em percepções subjectivas — como medo de ser assaltado, presença de vandalismo ou consumo de drogas — recolhidas por meio de questionários voluntários, não havendo validação por dados criminais oficiais. Isso torna o índice vulnerável a flutuações motivadas por fenómenos mediáticos ou campanhas organizadas. A própria ascensão abrupta da Amadora, sem justificação demográfica ou criminal, poderá ter sido amplificada pelo uso político em vésperas de eleições autárquicas.

    Mladen Adamovic, CEO da Numbeo revelou ao PÁGINA UM que em 2025 houve apenas 27 avaliações sobre a cidade da Amadora.

    O Numbeo não divulga os perfis dos utilizadores, nem os critérios detalhados do seu sistema de ponderação, o que dificulta a verificação externa da robustez estatística dos seus rankings. Ainda assim, os dados são amplamente divulgados e frequentemente tomados como factualidade. Percepções, ainda que subjectivas, tornam-se instrumentos de disputa eleitoral.

    O Numbeo é uma base de dados colaborativa, disponível online desde 2009, que recolhe e divulga indicadores sobre qualidade de vida em cidades e países de todo o mundo. A plataforma tornou-se particularmente conhecida pelos seus rankings de custo de vida, segurança, poluição, sistema de saúde e criminalidade.

    Ao contrário de organismos oficiais — como o Eurostat ou os institutos nacionais de estatística —, o Numbeo não trabalha com dados administrativos ou criminais oficiais, baseando-se unicamente em inquéritos voluntários anónimos, preenchidos por utilizadores registados de forma contínua. A recolha dos dados depende, portanto, das percepções subjectivas dos respondentes, sem qualquer validação externa ou auditoria metodológica independente.

    O índice mais citado — e também o mais polémico — é o chamado Crime Index, que pretende expressar a percepção do nível de criminalidade numa cidade, numa escala de 0 a 100. Um valor mais elevado traduz maior sensação de insegurança. O índice resulta de perguntas como: “Tem medo de ser assaltado?”, “Acha que há muitos casos de vandalismo?”, “É seguro andar sozinho à noite?”, “Há consumo e tráfico de drogas?” ou “Considera a sua cidade corrupta?”.

    As respostas, todas subjectivas, são agregadas com maior peso para as mais recentes, embora não se saiba quantos inquéritos são considerados por cidade nem qual a sua representatividade. Complementarmente, o Safety Index representa o inverso: é calculado como 100 menos o Crime Index.