Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Indústria farmacêutica ‘montou’ feudo no Ministério da Saúde

    Indústria farmacêutica ‘montou’ feudo no Ministério da Saúde

    A indústria farmacêutica reforçou a sua presença no Ministério da Saúde com a nomeação de Francisco Gonçalves para a Secretaria de Estado da Gestão da Saúde. O novo governante salta directamente da Sanofi, onde ocupava desde 2021 o cargo pomposamente denominado Head of Market Access & Public Affairs. Nessas funções, Francisco Gonçalves foi responsável pela definição de estratégias para a obtenção de preços e reembolsos junto das autoridades de saúde, bem como pela articulação com decisores políticos e instituições públicas, assegurando o enquadramento regulatório e institucional favorável à empresa.

    Foi ele que, por exemplo, negociou com o Ministério da Saúde, então liderado por Ana Paula Martins, a introdução do fármaco Beyfortus – marca comercial do nirsevimab, um anticorpo monoclonal para a prevenção do vírus sincicial respiratório –, que é hoje uma das coqueluches da farmacêutica francesa (confirma). Nas contas de 2024, a Sanofi reportou receitas com este fármaco de quase 1,7 mil milhões de dólares, com um crescimento de 208% face ao ano anterior, ocupando já a segunda posição entre as suas marcas, apenas atrás do Dupixent, também um anticorpo monoclonal destinado ao tratamento da asma e da dermatite atópica, e que é um autêntico campeão de vendas devido ao seu elevado preço.

    Apesar de se tratar de uma doença genericamente benigna e de não haver registo em Portugal de mortes em bebés, a Sanofi – apoiada numa intensiva campanha mediática que incluiu parcerias promíscuas com a imprensa mainstream – conseguiu que, em 2024, o Ministério da Saúde adquirisse doses suficientes para inocular cerca de 62 mil bebés nascidos entre 1 de Agosto do ano passado e 31 de Março de 2025.

    De acordo com o Portal Base, a Sanofi conseguiu vender até hoje cerca de 14,6 milhões de euros (IVA incluído) de Beyfortus, mas a factura deverá ainda aumentar substancialmente. Grande parte deste valor deveu-se á administração de doses em cerca de 62 mil crianças”, justificada por um alegado estudo do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), com base em dados de 2023, que apontavam para o internamento hospitalar de 145 crianças até aos dois anos de idade, entre 2 de Outubro e 10 de Dezembro.

    No passado mês de Abril, o Ministério da Saúde, através da Direcção-Geral da Saúde (DGS), decidiu expandir a estratégia de imunização na próxima campanha de vacinação, alargando a sua abrangência a todos os bebés nascidos entre 1 de Junho de 2025 e 31 de Março de 2026. A data ainda não está definida, mas a campanha de administração do anticorpo monoclonal – que não é tecnicamente uma vacina – deverá arrancar a 1 de Outubro e prolongar-se até 31 de Março de 2026.

    O marketing para promover mediaticamente o tema do vírus sincicial respiratório começou no final de 2021 com um evento pago pela AstraZeneca ao Público. A partir do ano passado, os eventos, também em outros media (como o Expresso) começaram a ser promovidos pela Sanofi, que tem a área comercial de um novo fármaco (com a AstraZeneca e a Sobi) aprovado na Europa. As notícias sobre o VSR e o novo fármaco aumentaram substancialmente a partir do ano passado na generalidade da imprensa.

    Apesar de diversos estudos indicarem que o Beyfortus reduz significativamente a hospitalização de bebés com infecções respiratórias por VSR, não são conhecidos estudos públicos sobre o verdadeiro impacto nos hospitais portugueses, sendo certo que, em termos de óbitos, não havia nada a melhorar, por não haver registos de desfechos fatais. Até porque, antes do Beyfortus, já existia um outro anticorpo monoclonal administrado apenas a prematuros e recém-nascidos com comorbilidades graves.

    Apesar disso, os dados da Agência Europeia do Medicamento – actualmente presidida por Rui Santos Ivo, presidente do INFARMED, e que ficará agora sob tutela do ex-Sanofi Francisco Gonçalves – começam a indicar suspeitas de efeitos adversos graves associados à toma de nirsevimab. Ainda que estes dados careçam de confirmação, a sua inclusão no sistema EudraVigilance constitui já um alerta regulatório.

    Desde 2023 até à data, foram reportadas 628 reacções adversas graves, incluindo 21 mortes. Destas, 13 foram reportadas em 2024 e sete já este ano. O mais recente registo de morte associada à nirsevimab é de 29 de Março e ocorreu por morte súbita de um recém-nascido com menos de um mês no próprio dia da toma, de acordo com o registo da EudraVigilance.

    Os efeitos adversos do Beyfortus têm sido detectados sobretudo em França, onde a administração do fármaco é mais intensiva. Actualmente, para além de Portugal e França, o Beyfortus tem sido administrado em Espanha, Alemanha, Itália, Finlândia e Bélgica – embora nem todos os países tenham optado por abranger todas as crianças. O custo por dose ascende a mais de 200 euros, valor considerado exorbitante, o que tem contribuído para o expressivo crescimento das receitas da Sanofi.

    Com a nomeação de Francisco Gonçalves, são agora dois os governantes do Ministério da Saúde com fortes ligações à indústria farmacêutica. Ana Paula Martins esteve durante vários anos ligada à Gilead, uma das farmacêuticas que conseguiu importantes negócios durante a pandemia, sobretudo com o remdesivir, um fármaco que fora um investimento ruinoso contra o vírus do Ébola, mas que miraculosamente foi considerado eficaz contra o SARS-CoV-2.

    Apesar de a covid-19 ser actualmente uma doença praticamente inofensiva, a Gilead conseguiu já vender este ano em Portugal mais 744 mil euros de remdesivir a diversos hospitais, tendo no ano anterior obtido ainda 3,7 milhões de euros. Desde finais de 2020, cerca de 40 milhões de euros deste antiviral foram adquiridos pelo Estado português à antiga empregadora da actual ministra da Saúde.

    Exemplo paradigmático do uso de jornalistas como ‘delegados de propaganda médica”. Clara de Sousa numa acção da indústria farmacêutica, uma empresa de genéricos.

    A indústria farmacêutica vive, na Europa, um período de expansão acentuada dos seus negócios, com cada vez menor vigilância regulatória, fruto das chamadas “portas giratórias” entre o sector e a política. Além disso, ao nível dos media, tem-se vindo a registar aquilo que se poderá denominar – com rigor a definir – “abraços de urso” publicitários, em que parcerias comerciais envolvendo jornalistas alimentam uma cobertura enviesada: os órgãos de comunicação social funcionam agora como novos delegados de propaganda médica.

    Em Portugal, por exemplo, o Expresso, o Público, a CNN, o Observador, o Diário de Notícias, entre outros, têm mantido generosas parcerias com farmacêuticas, o que se traduz numa visível redução de notícias desfavoráveis e num aumento de conteúdos entusiásticos, mesmo relativamente a medicamentos ainda sem provas consolidadas de eficácia ou de segurança.

  • O Humor nos tempos do puritanismo: até o Diabo será censurado e encarcerado

    O Humor nos tempos do puritanismo: até o Diabo será censurado e encarcerado


    Vivemos em tempos perigosos para o pensamento. Tempos de lápis azul digital, de fogueiras morais disfarçadas de virtude cívica, de censores de toga que não se chamam Torquemada mas se julgam apóstolos da redenção social. Tempos em que, dos jornais aos tribunais, passando por grupos de puritanos ideologicamente diversificados — com o zelo puritano dos convertidos —, se decide quem pode ou não fazer humor, quem pode ou não rir e, sobretudo, de quem se pode ou não fazer troça.

    A condenação do humorista brasileiro Léo Lins a mais de oito anos de prisão, por fazer piadas, marca um momento histórico sinistro — não apenas no Brasil, mas no mundo civilizado que supostamente defende a liberdade. Léo Lins foi acusado de “racismo recreativo”, um neologismo ideológico que traduz uma ideia perigosa: a de que o riso é admissível apenas quando sancionado pelos dogmas do politicamente correcto. Um riso domesticado, asséptico, higienizado — como se a função do humor fosse reforçar consensos em vez de os questionar.

    Léo Lins

    O caso de Léo Lins não deve ser olhado de forma isolada. Representa o sintoma máximo de uma metástase que alastra: a ideia de que as palavras ferem como punhais, que piadas são crimes, que perpetuam preconceitos e estereótipos, que a ironia é perigosa se não vier acompanhada de uma cartilha de inclusão. O humor sempre foi uma forma de transgressão simbólica. A sua função, desde Aristófanes aos Monty Python, passando até pelo nosso Gil Vicente, não é confortar nem elogiar, mas desestabilizar. Rir do poder, das convenções, dos dogmas — e também das fragilidades humanas. O humor é o último reduto da liberdade de pensamento porque recusa ser domesticado. A democracia não pode querer domesticar o humor, qualquer que ele seja, mesmo que se trate de uma má piada.

    Mas essa liberdade está agora em risco porque se está a impor uma nova moral que recusa a transgressão. Cada grupo social, cada identidade, cada tribo autoproclamada ofendida exige imunidade à crítica e santidade de tratamento. E quando todos exigem ser tratados como santos, o mundo torna-se um imenso altar de porcelana — onde ninguém ousa mexer sob pena de blasfémia. A consequência é terrível: o humor deixa de ser arte e torna-se liturgia. Não se pode rir de um judeu, de um indígena, de um obeso, de um deficiente, de uma mulher, de um transexual — e não tarda, não se poderá rir sequer de um banqueiro, de um político, de um padre ou de um juiz. Porque todo o riso, mesmo o mais leve, será interpretado como violência simbólica.

    Este moralismo não nasce da bondade — nasce de um desejo de controlo. Da vontade de impor o silêncio àquilo que perturba, àquilo que ironiza ou rasga o véu da perfeição socialmente encenada. E o problema não é a necessidade de defesa das minorias. O problema é a sua canonização — e a transformação da crítica, do sarcasmo e da caricatura num acto sacrílego.

    Pergunto-me: que escreveria hoje Gil Vicente? Ou melhor: que fariam hoje a Gil Vicente, se escrevesse agora aquilo que escreveu no século XVI?

    O dramaturgo português, pai do teatro em língua portuguesa, escreveu há mais de 500 anos peças onde ridicularizava padres libidinosos, almocreves aldrabões, prostitutas sem escrúpulos, velhas devassas, judeus gananciosos, frades desonestos, corregedores corruptos, sapateiros trapaceiros e, sobretudo, a falsa santidade dos que se julgavam virtuosos. A sua obra-prima — Auto da Barca do Inferno — é um desfile de estereótipos: o frade leva consigo a amante Florença; o judeu tenta comprar indulgência; o sapateiro gaba-se da sua religiosidade enquanto vende calçado falsificado; o cavaleiro quer entrar no Céu porque morreu em combate, esquecendo-se dos seus pecados de soberba e opressão. É o julgamento universal, sim, mas feito com escárnio e maldizer.

    Praticamente todas as personagens vicentinas seriam hoje canceladas à primeira leitura. Representar o Frade seria tido como ofensa à fé católica. A Florença, exemplo flagrante de objectificação misógina. O Judeu, manifesto de antissemitismo. O Almocreve, caricatura abjecta de classe. A Velha do Auto da Cananéia, puro idadismo intolerável. A moça de A Sibila Cassandra, mais um caso de misoginia estrutural. Os pastores e vaqueiros, alvo de acusação por ridicularização grotesca das populações rurais. E, inevitavelmente, algum zelador académico denunciaria Gil Vicente por exercer “violência simbólica interseccional”.

    Aquilo que hoje passa por sensibilidade é, na verdade, censura travestida de virtude. A arte, incluindo a ficção, está a perder o direito de ofender. E até o humor está a perder o direito de errar. Porque todo o erro é lido como malícia, toda a sátira como agressão, toda a caricatura como opressão.

    É certo que há limites — sempre houve. Mas esses limites eram antes atribuídos pelo bom senso, pelo gosto, pela reacção do público — pela sociedade no seu todo, não por um tribunal inquisitorial. Quando um juiz define o que é aceitável no humor, o riso morre. E quando o riso morre, nasce o medo. O medo de escrever, o medo de representar, o medo de rir.

    Chegamos à conclusão de que Gil Vicente viveu, afinal, com mais liberdade do que os artistas de hoje. Escreveu as suas peças na transição entre a Idade Média e o Renascimento, quando Portugal ainda não conhecia a Inquisição formal — e mesmo depois desta surgir, o seu génio sobreviveu porque o ridículo era aceite como forma de crítica social. Hoje, porém, não vivemos um Renascimento, mas aparentemente uma nova Idade das Trevas, onde os censores não queimam livros — cancelam ou prendem pessoas.

    Eis a hipocrisia do nosso tempo: grita-se liberdade enquanto se ergue um muro de vigilância moral à volta de cada palavra. Dissimula-se a censura com o pretexto da inclusão. E, enquanto isso, o humor, que é um acto de coragem, torna-se um acto de risco judicial.

    Os novos inquisidores têm medo do riso porque sabem que ele desmonta as verdades absolutas. Rir de alguém não é odiá-lo — é reconhecê-lo como humano. A sátira aproxima mais do que afasta. Vivemos um tempo de pseudohipocriasia: essa mistura tóxica de hipocrisia e exigência histérica de perfeição, que quer proteger os indivíduos do mundo em vez de os preparar para ele.

    Se Léo Lins fosse condenado por incitar à violência, à perseguição, ao ódio concreto, não haveria polémica. Mas foi condenado por palavras ditas num espectáculo de comédia — por piadas. E isso deve aterrorizar-nos, porque o que hoje se aplica ao humorista, amanhã aplicar-se-á ao cronista, ao romancista, ao jornalista, ao historiador.

    O problema do nosso tempo não é a ofensa — é a intolerância a qualquer dissonância. Não é a violência das palavras — é a fragilidade de quem se recusa a ouvi-las. E, quando a fragilidade se transforma em arma de poder — então sim, já não rimos. Trememos.

  • Carlos Moedas volta a ser ‘cabeça de cartaz’ em evento pago pela Câmara de Lisboa à Medialivre

    Carlos Moedas volta a ser ‘cabeça de cartaz’ em evento pago pela Câmara de Lisboa à Medialivre

    Vira o disco e toca o mesmo. Para cumprir a segunda parte de um contrato de prestação de serviços de 147 mil euros pagos pela Câmara Municipal de Lisboa à Medialivre — a empresa de media detentora do Correio da Manhã e da CMTV, e que tem Cristiano Ronaldo como principal accionista individual —, mais uma vez Carlos Moedas, o edil social-democrata que se recandidatará a novo mandato, foi o cabeça-de-cartaz. Mas com uma ‘nuance’: ao contrário da primeira sessão, em que o presidente da autarquia discursou longos 25 minutos no início, desta vez foram 15 minutos na sessão de encerramento. Para aparecer a discursar nos canais em directo da Medialivre, sem sequer dar assento à oposição, Carlos Moedas ‘passou um cheque’ de quase 75 mil euros por sessão.

    O tema da conferência desta terça-feira foi a imigração. Sob o título “De todos os lugares, uma só cidade”, o evento decorreu no Centro de Informação Urbana de Lisboa (CIUL) e inseriu-se no ciclo “Uma Cidade para Todos”, apresentado como iniciativa do Correio da Manhã e da CMTV, em parceria e com o apoio da Câmara de Lisboa. No entanto, como o PÁGINA UM revelou na semana passada, essa “parceria” foi, na verdade, um contrato de prestação de serviços no valor de 147.600 euros, IVA incluído, celebrado com a Medialivre para dois eventos — o de hoje e o anterior, realizado a 27 de Maio, sobre segurança.

    Daniela Polónia, jornalista da CMTV (à esquerda), chamando ao palco esta manhã o ministro da Presidência, Leitão Amaro, para discursar: eis um nova ‘atribuição’ dos jornalistas em contratos de prestação de serviços para autarquias.

    Com o espaço e a logística assegurados também pela própria Câmara Municipal, o evento foi assim uma mera prestação de serviços que envolveu três jornalistas da Medialivre: Carlos Rodrigues (CP 1575), director-geral editorial, que deu as boas-vindas; Daniela Polónia (CP 6296), pivot da CMTV, que actuou como mestre-de-cerimónias; e João Ferreira (CP 802), jornalista sénior, que moderou, mais uma vez, os dois painéis da conferência.

    O contrato assinado pelo vereador Filipe Anacoreta Correia estipula que a Medialivre se obrigava a realizar os eventos, fornecendo meios técnicos e humanos, incluindo jornalistas, a troco de 73.800 euros por sessão. Não houve qualquer referência explícita, durante a conferência, à existência de contrato ou ao pagamento envolvido.

    Aliás, ainda no mês passado, a ERC considerou numa deliberação que se estava perante publicidade a realização de dois eventos do género pagos ao Público pela autarquia de Penafiel e pela Ordem dos Médicos Dentistas, que tinham sido moderados pelo actual director do Público, David Pontes.

    Para discursar em dois eventos, sobre segurança e imigração, em instalações da própria Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas pagou, com dinheiros públicos e em vésperas de eleições autárquicas, quase 150 mil euros à Medialivre.

    No caso dos eventos pagos pela autarquia  de Lisboa à Medialivre, as declarações das duas partes envolvidas são sempre no sentido de  se ter tratado de uma parceria, dando a entender que houve distribuição de custos. Ora, não houve: os custos do evento foram da Câmara, que forneceu mesmo o local, e ainda pagou à Medialivre. Em rigor jurídico e técnico, não se deve falar de “parceria” quando há uma relação contratual em que uma das entidades paga à outra uma contraprestação em dinheiro por um serviço prestado. Nesses casos, trata-se de uma relação comercial ou contratual de prestação de serviços, e não de uma parceria no sentido próprio.

    Esta omissão, recorrente nos media, esbate a fronteira entre jornalismo e promoção institucional, colocando em causa o Estatuto do Jornalista, que proíbe actos publicitários ou de natureza comercial por parte de profissionais com carteira. A instrumentalização de jornalistas da Medialivre nestes eventos representa, além de uma violação legal, um caso flagrante de promiscuidade entre o poder político e certos grupos de media.

    Destaque-se que o Estatuto do Jornalista considera mesmo “actividade publicitária incompatível com o exercício do jornalismo a participação em iniciativas que visem divulgar produtos, serviços ou entidades através da notoriedade pessoal ou institucional do jornalista, quando aquelas não sejam determinadas por critérios exclusivamente editoriais”. Ou seja, havendo uma obrigação contratual – em que a troco de dinheiro tem de haver presença de jornalistas –, deixam de existir critérios exclusivamente editoriais, caindo-se na publicidade.

    João Ferreira, pela segunda vez no espaço de sete dias, o jornalista fez o papel de moderação em debates. O problema não é a moderação, que é permitida por lei, mas sim a moderação para efeitos de cumprimento de cláusulas comerciais pela sua entidade empregadora (Medialivre).

    O convidado principal da sessão desta terça-feira foi, desta vez, António Leitão Amaro, ministro da Presidência, que aproveitou o palco para fazer o balanço do primeiro ano de governação na área das migrações. “A capacidade de liderança é ser capaz de ver à frente e agir”, afirmou, destacando o Plano Nacional de Acção para as Migrações apresentado há precisamente um ano. Na sua intervenção, afirmou que o Governo anterior “não compreendeu nem respondeu” à nova realidade demográfica, criando espaço para respostas radicais e desumanizantes. Em contraste, assegurou que a actual governação combina “mudança firme” com “humanismo moderado”.

    Carlos Rodrigues, director editorial do Correio da Manhã e da CMTV, que abriu a sessão desta terça-feira com uma breve intervenção, enviou esta tarde ao PÁGINA UM um pedido de direito de resposta relativo à notícia publicada na semana passada. O texto será publicado na íntegra amanhã, em cumprimento dos prazos da Lei de Imprensa, que determina que, se a publicação for diária, terá de o divulgar “dentro de dois dias a contar da recepção”.

  • Pela boca morre o peixe: Gouveia e Melo soube de ‘cunha’ de político na vacinação da covid-19… e nada fez

    Pela boca morre o peixe: Gouveia e Melo soube de ‘cunha’ de político na vacinação da covid-19… e nada fez

    Ontem, na entrevista à TVI e CNN Portugal, Gouveia e Melo garantiu ser “muito imune” a cunhas, quando questionado pela jornalista Sandra Felgueiras sobre a eventualidade de se repetir um ‘caso das gémeas’ durante uma sua Presidência da República. “O que eu fiz na pandemia, quando tomei conta da pandemia, dos casos e casinhos, responde por mim” — disse o ex-coordenador da task force da vacinação contra a covid-19 entre Fevereiro e Novembro de 2021. E acrescentou: “Eu sou o que sempre fui. E podem contar comigo com essa segurança. […] Eu sou muito imune. As pessoas que me conhecem e que andam comigo há muito tempo sabem disso” — concluindo que “[n]a minha forma de agir e de estar, eu não dou abrigo a esse tipo de procedimento; procedimentos de excepção e de favoritismo. Algum procedimento de excepção é por motivos humanitários ou outro qualquer; agora, não porque conheço o A ou conheço o B, ou porque [sou] amigo do A ou amigo do B, ou porque alguém se cruzou comigo no passado — isso nunca acontecerá.”

    Essa postura de Gouveia e Melo entra em contradição com factos já revelados pelo PÁGINA UM, e que constam mesmo de documentação de um procedimento da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) que, apesar da gravidade da situação, menorizou os procedimentos do então coordenador da task force e também do então bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, actual deputado do PSD.

    Com efeito, durante o processo de vacinação de médicos não-prioritários — cerca de quatro mil que não estavam em funções operacionais, não cumprindo assim os critérios de prioridade da DGS, numa altura ainda de escassez de doses — Miguel Guimarães escreveu um e-mail, a 17 de Março de 2021, para o endereço electrónico de Gouveia e Melo, reiterando aquilo que lhe transmitira “telefonicamente”.

    O bastonário salientava o processo da primeira fase de vacinação, em que se tinham administrado as doses de desperdício, mas que uma dose tinha sido “administrada em Lisboa a uma personalidade política, por uma questão de necessidade e oportunidade”.

    A missiva com esta confissão consta na página 19 destes documentos que se encontram no processo aberto pela IGAS. Miguel Guimarães nunca quis esclarecer o PÁGINA UM sobre quem foi o político beneficiado, nem a IGAS atendeu a esta confissão, que é de enorme gravidade, porque se tratou de uma ‘cunha’, além de infracções éticas, legais e até penais.

    Extracto do e-mail de 17 de Março de 2021 enviado por Miguel Guimarães a Gouveia, admitindo a administração de uma dose “em Lisboa a uma personalidade política, por uma questão de necessidade e oportunidade”.

    De acordo com o Código Penal, quem, no exercício de funções públicas — neste caso, Gouveia e Melo enquanto coordenador da task force de vacinação — teve conhecimento de uma infracção penal (como, por exemplo, o abuso de poder ou prevaricação de titular de cargo político por parte de um político que recebeu indevidamente a vacina, em desrespeito às normas definidas para a campanha de vacinação) e não comunicou tal facto ao Ministério Público ou a uma autoridade competente, poderá estar abrangido pelo crime de prevaricação ou abuso de poder.

    Mas o próprio processo de vacinação destes médicos esteve, logo na génese, ferido de irregularidades e de favorecimentos, com Gouveia e Melo a sair beneficiado por ter feito um favor a Miguel Guimarães na sua ascensão política.

    No início de 2021, com a insatisfação da Ordem dos Médicos por não estarem incluídos na totalidade os clínicos na Fase 1 da vacinação, Miguel Guimarães negociou directamente com Gouveia e Melo uma alternativa, que passaria por desviar doses do sistema normal para serem administradas aos cerca de quatro mil médicos não-prioritários nas instalações do Hospital das Forças Armadas, a troco de uma contrapartida de 27 mil euros. Gouveia e Melo acumulava, na altura, funções de adjunto para o Planeamento e Coordenação do Estado -Maior-General das Forças Armadas.

    No processo instaurado pela IGAS, e concluído em Maio do ano passado, Miguel Guimarães referiu que, desde Janeiro de 2021, remetera à então ministra da Saúde, Marta Temido, uma reclamação por causa da existência de médicos não integrados no grupo prioritário, que, na verdade, seria um parecer do Conselho Nacional da Política do Medicamento da Ordem dos Médicos. O conteúdo deste parecer não foi sequer enviado à IGAS, nem a IGAS o solicitou posteriormente, pelo que a sua existência é duvidosa.

    Nos documentos enviados por Miguel Guimarães à IGAS constam ainda missivas do primeiro coordenador da task force, Francisco Ramos, em papel timbrado da Secretaria de Estado da Saúde, onde informa que, na “sequência de reuniões realizadas”, solicitava à Ordem dos Médicos uma lista de médicos que “exerçam a sua actividade de prestação directa de cuidados, de forma não integrada em hospitais públicos, privados ou sociais ou em outras entidades prestadoras de saúde já mobilizadas para a execução do plano de vacinação”. Mas essa lista nunca se viu, nem Miguel Guimarães a enviou à IGAS; e nem a IGAS a quis ver.

    Com a chegada de Gouveia e Melo à task force em Fevereiro de 2021, de acordo com a documentação a que o PÁGINA UM teve acesso, a informalidade espraiou-se. Já não há papel timbrado nem ofícios. Fez-se tudo por correio electrónico, embora com uma inusitada reverência. Miguel Guimarães tratava Gouveia e Melo por “Distinto Senhor Coordenador da Task-Force Mui Ilustre Vice-Almirante”.

    Gouveia e Melo foi coordenador da task force.

    Em 19 de Fevereiro de 2021, poucas semanas depois de Gouveia e Melo ter tomado posse como coordenador da task force, Miguel Guimarães envia-lhe por e-mail “uma base de dados com médicos que querem ser vacinados, e cumprem os critérios definidos pela DGS”. Essa lista não é conhecida, não foi fornecida pela task force nem pela Ordem dos Médicos à IGAS. E a IGAS não a quis sequer ver, sendo que essa era a questão óbvia num decente e idóneo processo de esclarecimento.

    Mas, de acordo com esse e-mail de Miguel Guimarães, nessa altura a lista nem estava ainda concluída, dizendo ele que “continuamos a receber mais inscrições de médicos que ainda não foram vacinados e continuam no activo”, prometendo enviar mais tarde “uma nova base de dados de forma a evitar sobreposições”. Embora estranhamente não haja qualquer resposta de Gouveia e Melo às missivas de Miguel Guimarães, tudo evoluiu rapidamente para a vacinação de cerca de quatro mil alegados médicos — e reitera-se “alegados médicos” porque nunca se conheceu a lista final de nomes, nem a IGAS a quis conhecer —, cujas vacinas foram administradas em unidades militares. Pelos e-mails de Miguel Guimarães sabe-se o número daqueles que tinham menos de 65 anos, porque receberam a vacina da AstraZeneca, e daqueles que tinham mais de 65 anos, pois receberam a da Pfizer.

    Em finais de Fevereiro de 2021, além das pessoas indicadas pela Ordem dos Médicos a viverem no Continente, Miguel Guimarães ainda indicaria 27 médicos da Madeira e 42 dos Açores para serem vacinados, mas no processo fica-se sem saber também quem eram e se houve mesmo inoculação das doses. A IGAS não teve curiosidade em saber.

    Ana Paula Martins, actual ministra da Saúde, ao lado de Miguel Guimarães. Geriram em conjunto uma conta solidária, titulada por eles juntamente com Eurico Castro Alves, de onde saiu o dinheiro para pagar cerca de 27 mil euros ao Hospital das Forças Armadas como contrapartida da vacinação de médicos não-prioritários.

    Mas essa informação até existirá, eventualmente, num “relatório final da primeira fase” desta operação de vacinação que Miguel Guimarães prometeu, em mensagem de correio electrónico de 17 de Março de 2021, enviar “brevemente” a Gouveia e Melo. Também a IGAS não quis saber deste relatório nem quis saber se houve outros relatórios.

    A forma como o procedimento da IGAS foi conduzido mostra ou negligência ou intencionalidade em isentar de culpas Gouveia e Melo e Miguel Guimarães. O relatório final do processo de esclarecimento, da autoria da inspectora Aida Sequeira, retira conclusões que nem sequer se encontram plasmadas em qualquer documento.

    Por exemplo, o relatório destaca que “a ponderação e preparação do processo de vacinação foi do conhecimento da DGS e do responsável máximo pela tutela da saúde, a então Ministra da Saúde”, mas, na verdade, não existe no processo consultado pelo PÁGINA UM qualquer documento que comprove esse conhecimento por parte da DGS, que é a Autoridade de Saúde Nacional e a única entidade responsável pela norma eventualmente violada.

    Acresce também que a IGAS omite na sua análise a impossibilidade legal da então task force dirigida por Gouveia e Melo negociar procedimentos com a Ordem dos Médicos ou outra qualquer entidade. Somente em Abril de 2021, Gouveia e Melo obteve poderes reforçados através de um despacho governamental.

    3 clear glass bottles on table

    Mas o relatório final da IGAS fez ainda pior, numa tentativa de ‘legalizar’ os médicos não-prioritários. Com efeito, a inspectora Aida Sequeira diz que a norma 002/2021 tinha tido uma “actualização a 17 de Fevereiro de 2021”, que passava a incluir na Fase 1 os “profissionais envolvidos na resiliência do sistema de saúde e de resposta à pandemia e do Estado”, bem como “outros profissionais e cidadãos, definidos pelo órgão do governo, sobre [sic] proposta da Task-Force”.

    Porém, isso é completamente falso.

    Na verdade, houve uma actualização da norma em 17 de Fevereiro, mas não em 2021 (ano dos factos), mas sim em 2022, no ano seguinte, conforme se pode constatar no texto. E, de facto, esse alargamento até se verificou inicialmente em 31 de Agosto de 2021, numa fase de maior oferta de vacinas pelas farmacêuticas. Ou seja, a introdução de uma referência completamente falsa por parte da inspectora da IGAS sobre uma alteração da norma da DGS no dia 17 de Fevereiro de 2021 não aparenta nada ser um mero lapso.

    Não existe também no processo qualquer documento que comprove a afirmação da inspectora Aida Sequeira de que “em Janeiro de 2021, o Secretário de Estado da Saúde, com conhecimento da DGS, oficiou a Ordem dos Médicos no sentido de que fosse disponibilizada ‘(…) uma base de dados de contactos de médicos com actividade de prestação de cuidados, de forma não integrada em hospitais públicos, privados ou sociais ou em outras entidades prestadoras de cuidados de saúde já mobilizadas”. A inspectora da IGAS diz que essa informação proveio de “diligências adicionais promovidas por esta Inspecção-Geral”, embora não haja qualquer nota sobre a fonte nem sequer o documento que confirme o necessário conhecimento, verificação e aprovação da lista enviada pela Ordem dos Médicos.

    Carlos Carapeto: A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde também viu a ‘cunha’, mas preferiu fechar os olhos. A alteração da data de uma norma, introduzida pela inspectora responsável pelo processo, permitiu ilibar Gouveia e Melo e Miguel Guimarães de procedimentos irregulares na vacinação dos médicos não-prioritários.

    Assim, e apesar de se ficar sem saber quem, afinal, eram as cerca de quatro milhares de pessoas vacinadas sob a batuta de Miguel Guimarães — e se eram todos médicos, e se todos cumpriam os critérios da norma da DGS, porque a IGAS nada pediu —, a inspectora concluiu “pela conformidade legal da inoculação da vacina contra a covid-19 aos profissionais de saúde, circunscrita a Fevereiro de 2021”, determinando o arquivamento. Ficou assim também ‘apagado’ o pecadilho da “personalidade política” vacinada à margem da lei por uma “questão de necessidade e oportunidade”, bem como o exorbitamento de funções por parte de Gouveia e Melo.

    Em todo o caso, sobre as suspeitas de irregularidades na contabilidade financeira da Ordem dos Médicos no processo de ‘contratação’ do Hospital das Forças Armadas, a IGAS decidiu enviar o processo para o Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) de Lisboa, mas até à data não existem quaisquer informações sobre o avanço deste processo.

  • Correio da Manhã, Público, JN, DN e Expresso em colapso: vendas em mínimos históricos

    Correio da Manhã, Público, JN, DN e Expresso em colapso: vendas em mínimos históricos

    Os resultados do primeiro trimestre deste ano, divulgados na semana passada pela Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação (APCT), voltam a comprovar aquilo que os ‘barões da imprensa’ persistem em negar com a habitual táctica da avestruz: escondem a cabeça nos slogans sobre “transformações digitais”, “modelos sustentáveis” e “novas formas de chegar ao leitor”, enquanto o corpo editorial se afunda no pântano da irrelevância.

    A verdade, nua e crua, é esta – e é tão clara quanto dramática: a imprensa escrita generalista portuguesa colapsou. Os números não mentem. São mais de duas décadas de declínio contínuo, mascarado por anúncios piedosos e relatórios internos que já ninguém leva a sério.

    Foto: PÁGINA UM

    Em 2025, nem os comunicados eufemísticos do trust da comunicação social, nem os generosos orçamentos de publicidade institucional, nem sequer o ‘balão de oxigénio’ do Governo – travestido de distribuição gratuita de assinaturas digitais para os jovens – conseguem disfarçar o desastre. A erosão é estrutural e terminal.

    A evolução das vendas em banca – com quebras brutais em todos os títulos – e das assinaturas digitais – com valores unitários largamente inferiores aos do papel e sem escala de massa crítica – espelham o fim de um modelo baseado na fuga para a frente: redacções inexperientes, pouco cultas, reféns de agendas e compromissos, divorciadas dos leitores e cada vez mais promíscuas nas relações com o poder político e económico.

    Mais do que um fim de ciclo, talvez este seja mesmo o fim de linha para alguns dos títulos – o que, convenhamos, não seria necessariamente mau. A extinção natural poderá limpar o terreno dos vícios acumulados, permitir um reequilíbrio do ecossistema mediático e abrir espaço a novas formas de jornalismo, menos dependentes da subsidiação crónica e da formatação ideológica. A imprensa escrita colapsou, mas o jornalismo ainda pode sobreviver – desde que se liberte das amarras que o arrastaram até aqui.

    Foto: PÁGINA UM

    O PÁGINA UM analisou a evolução das vendas dos últimos 30 anos de cinco jornais generalistas portugueses: quatro nascidos como diários – Correio da Manhã, Diário de Notícias, Jornal de Notícias e Público – e um de origem semanal – o Expresso. A linha temporal inicia-se em 1996, quando ainda não existia o conceito de assinaturas digitais e os portugueses, então leitores assíduos, consumiam jornais em papel como parte integrante do café da manhã.

    Foi apenas em 2009 que esse “novo e maravilhoso mundo” digital começou a dar os primeiros sinais de vida, ainda timidamente. Ao longo da década seguinte, foi ganhando terreno, até se tornar, nos últimos anos, o eixo dominante das estratégias editoriais. Hoje, as edições impressas são cada vez mais residuais, enquanto a produção de conteúdos se rege pela lógica do imediato – e pelos inúmeros erros que daí decorrem.

    A própria natureza do jornalismo transformou-se: os diários deixaram de ser apenas diários para se tornarem plataformas de informação em torrente contínua, ao passo que o Expresso, tradicionalmente semanal, passou a comportar-se como um diário digital, pressionado pelo mesmo ritmo.

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    Mais ainda: a transição é já estrutural em dois casos. O Público e o Expresso são, desde 2020 e 2023 respectivamente, jornais maioritariamente digitais, com as assinaturas electrónicas a superarem as vendas em banca. Esta inversão de paradigma, longe de ser sinónimo de sustentabilidade, levanta sérias questões sobre a viabilidade económica, a qualidade editorial e o impacto social do jornalismo tal como está a ser praticado.

    Mas vejamos, com rigor e em detalhe, os números de cada jornal, tomando como referência os dados relativos ao primeiro trimestre de cada ano, de forma a permitir comparações homogéneas ao longo do tempo.

    Comece-se pelo Público, o diário fundado pelo Grupo Sonae. No primeiro trimestre de 1996, vendia diariamente, em banca, cerca de 58 mil exemplares. Este ano, pela primeira vez, caiu abaixo dos 10 mil. Uma queda de mais de 84%, que nem o empolamento das assinaturas digitais – muitas de acesso gratuito ou incluídas em pacotes promocionais – consegue mascarar. A versão digital, é certo, regista agora cerca de 54 mil assinaturas pagas, quintuplicando os valores registados há uma década, mas à custa de uma política de produção intensiva de conteúdos e de receitas unitárias substancialmente mais baixas que o papel. E a matemática é simples: mais trabalho, menos rendimento. E menos impacto.

    O simbolismo do papel, mesmo no efémero diário, é superior – nesse aspecto, o diário da Sonae é hoje um fantasma: o ano de 2005 foi o último acima dos 50 mil exemplares vendidos por dia; 2015 foi o último com vendas diárias em banca acima dos 20 mil, e agora já está abaixo de 10 mil. Sinal de que o digital não é sustentável mostra-se nas contas. O Público, que sempre foi um jornal deficitário, apresentou em 2023 – os resultados de 2024 ainda não são conhecidos – um prejuízo recorde de quase 4,5 milhões de euros.

    Passemos ao Diário de Notícias, ou àquilo que resta do diário nascido no século XIX e que só existe por um ‘milagre’ não explicado pelas ciências económicas. No primeiro semestre do ano 2000 vendia mais de 70 mil exemplares diários, mesmo mais do que em 1996. Mas várias promiscuidades entre o jornalismo e o mundo político e empresarial foram aniquilando o jornal depois da saída de Mário Bettencourt Resendes em 2004, e da passagem de nove directores (sem contar com os interinos).

    Entre 2003 e 2013, as vendas no primeiro trimestre passaram de cerca de 52 mil exemplares por dia para menos de 24 mil. Mas isso foi apenas o princípio do descalabro.

    Em 2018, as vendas já estavam abaixo dos 10 mil, e dois anos depois mal ultrapassavam os quatro mil. No primeiro trimestre deste ano, o DN nem chega a mil exemplares por dia. Não, não leu mal: são 966 exemplares em banca, em média, no primeiro trimestre de 2025. Trata-se de um nível de circulação impraticável para qualquer modelo de imprensa de massas – e apenas sustentável graças a expedientes editoriais de sobrevivência. A edição digital, por sua vez, ronda os 700 acessos pagos, uma ninharia irrelevante do ponto de vista económico e social.

    Já o Jornal de Notícias, outrora o orgulho da imprensa nortenha. E chegou a ser um jornal centenário por duas razões: por ter mais de cem anos (foi fundado em 1888) e por ter ultrapassado os 100 mil exemplares por dia no final dos anos 90.

    No período em análise, o pico surgiu em 2004 com cerca de 127 mil exemplares diários. Embora até 2009 se tenha mantido em redor dos 100 mil exemplares, a partir desse ano iniciou uma rota descendente. Em 2014 já estava abaixo dos 60 mil exemplares, ou seja, uma queda de 40% em apenas cinco anos. Mas ainda se afundou mais.

    No primeiro trimestre de 2020 já surge abaixo dos 40 mil, e os últimos anos têm sido penosos, mesmo com a sua suposta saída do universo da Global Media. O primeiro trimestre deste ano mostra vendas de 16.613 exemplares, que representam apenas 13% das vendas do pico de 2004.

    Ainda por cima, a digitalização, longe de salvar o navio, apenas está a apressar o naufrágio: 3.300 assinaturas digitais pagas em 2025. Com uma assinatura anual a custar 24,95 euros, não é por aqui que o JN se salvará.

    O Correio da Manhã, tradicionalmente o mais resiliente entre os generalistas, e que se anuncia como o jornal diário mais lido em papel, está agora reduzido a um rei de um só olho em terra de cegos. Há dias, o jornal da Medialivre regozijava-se por vender “mais de 1 milhão de exemplares por mês” em banca, o que corresponde a “um número superior a 34 mil exemplares por dia”. No actual contexto, em que entra em competição o Diário de Notícias com menos de mil, parecem valores extraordinários – mas não.

    Desde 2011 não há ano em que o Correio da Manhã tenha conseguido inverter a tendência de queda. No auge de 2011, vendeu 125.354 exemplares diários – ou seja, mais de 3,75 milhões por mês; cinco anos depois já estava abaixo da fasquia dos 100 mil por dia, mesmo assim cerca de três vezes mais do que os valores do primeiro trimestre de 2025. Ou seja, em 14 anos, entre 2011 e 2025, o Correio da Manhã teve uma quebra de vendas de 73%, que nem sequer é mitigada pelas assinaturas digitais, que começaram em 2012 e apenas rondam agora os 2.700.

    Mesmo sem o descalabro dos outros diários, a imprensa popular também sofre, tanto mais que a transição digital não casa com o público tradicional do Correio da Manhã.

    Finalmente, o caso do Expresso, sendo diferente por ter nascido como semanário, também merece destaque pelo contraste entre o passado de prestígio e o presente de perda. Jornal que, nos anos 90, começou paulatinamente a vender em redor dos 130 mil a 140 mil exemplares por edição – também fruto do célebre saco de plástico que garantia o seu fácil manuseamento –, o Expresso deu-se mal com os ares fora de Lisboa, depois de ter saído da sua célebre redacção na Rua Duque de Palmela. Em 2002, atingiu o seu máximo de vendas por edição no primeiro trimestre, com mais de 143 mil exemplares, mas foi depois paulatinamente decaindo. Em 2012 contabilizou pela primeira vez valores de vendas abaixo de 100 mil exemplares, numa altura em que o digital ainda dava os primeiros passos.

    Nos anos seguintes, o Expresso deixou de ser um semanário com uma edição online para se tornar num diário digital com uma edição semanal em papel. Esta nova versão teve duas consequências: quebras brutais em banca, sobretudo a partir de 2021, que fazem com que por edição se tenham vendido apenas 33.603 exemplares durante o mais recente trimestre; e um aumento nas assinaturas pagas, rondando agora as 50 mil. Dir-se-ia que, somando ambas as categorias, se teria mais de 80 mil leitores, mas esse número fica aquém dos valores da edição semanal da primeira década do presente século.

    Além disso, mesmo considerando que os lucros são teoricamente maiores nas assinaturas digitais – por não implicarem os custos de produção e distribuição da edição em papel –, os custos redaccionais aumentam (porque há mais conteúdos), e o impacto real diminui. O Expresso de hoje, com 33.603 exemplares vendidos em banca, mesmo com 49.987 assinaturas digitais, não tem o mesmo estatuto do Expresso de 2002, com 143.222 exemplares vendidos em banca.

    E se isto se passa com os cinco maiores e mais relevantes jornais generalistas de Portugal, estamos perante um cenário de terra queimada. Nenhum jornal conseguiu fazer a transição para o digital com equilíbrio económico. As receitas digitais, em média, representam uma fracção das impressas – mesmo com maior volume. Os custos redaccionais mantêm-se elevados, pela sofreguidão noticiosa de repetir primeiro tudo aquilo que os outros dão, mas com salários baixos e uma enxurrada de comentadores a opinar, de sorte que há jornais que mais parecem opinativos.

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    Em suma, o papel está em agonia, o digital não sustenta. A imprensa escrita generalista portuguesa está, literalmente, em coma induzido por financiamento público e contratos opacos. Mais grave ainda: esta agonia arrasta consigo a função essencial de contrapoder e de vigilância do jornalismo. Num país onde os jornais vivem de publicidade institucional e do favor dos grandes grupos económicos, a queda das vendas significa também a queda da publicidade sem compromisso, da independência. A maioria dos jornais já não vive dos leitores, mas do poder político, da publicidade camuflada e das agendas de grupo. O resultado é uma imprensa cada vez mais alienada do interesse público, cada vez mais dependente da narrativa oficial.

    Os números do primeiro trimestre de 2025 não deixam margem para dúvidas. A crise deixou de ser conjuntural e tornou-se estrutural e terminal. Nenhuma newsletter ou podcast salvará o que já está morto. Nenhuma “estratégia digital” ressuscitará o que foi enterrado há uma década. A imprensa escrita portuguesa, tal como a conhecemos, está nos últimos estertores – até porque quem vende menos, cada vez mais recorre a esquemas que matam o jornalismo.

  • Helicópteros: cunhado do ministro Leitão Amaro conseguiu, com um único empregado, lucrar 400 mil euros em 2023

    Helicópteros: cunhado do ministro Leitão Amaro conseguiu, com um único empregado, lucrar 400 mil euros em 2023

    “Estimados, Terei todo o gosto e interesse em esclarecer o vosso site pois acompanho á [sic] alguns anos e sempre apreciei a forma isenta como escrevem e por achar (e provo) que tem muitas incorreções achei de [sic] devia enviar este comunicado e também colocar-me ao dispor.”

    Foi através de correio electrónico que Ricardo Leitão Marques reagiu à notícia do PÁGINA UM, que revelava que a Gesticopter Operation, uma subsidiária da Gestifly, apenas tinha sido adquirida pela Helifinance Asset Management, detida pelo empresário casado com a irmã do ministro Leitão Amaro, em Março deste ano, ou seja, antes do contrato de 20,1 milhões celebrado apenas no mês passado, no dia 7.

    Na sua missiva ao PÁGINA UM, Ricardo Leitão Marques envia igualmente o comunicado divulgado no passado sábado pela generalidade da imprensa, no qual refere que já detinha a maioria do capital da empresa Gestifly desde Junho de 2023, o que significa que a transmissão da Gesticopter constituiu uma mera operação formal de reestruturação societária, sem efeitos substanciais de alteração no controlo efectivo. De facto, a Gestifly é agora detida, de acordo com o Registo de Beneficiário Efectivo, por Ricardo Leitão Marques através da Demeter, uma empresa com sede no mesmo local da Helifinance Asset.

    Porém, apesar dos posteriores pedidos de esclarecimento do PÁGINA UM, Ricardo Leitão Marques acabou por não responder às questões mais essenciais nem esclarecer algumas das syas ‘garantias’.

    Com efeito, no comunicado deste sábado, Ricardo Leitão Marques diz que a sua entrada na Gestifly em 22 de Junho de 2023 ocorreu quando a empresa “enfrentava sérias dificuldades financeiras e tinha acabado de ser seleccionada para três contratos públicos de aquisição de serviços de disponibilização e locação de meios aéreos para o dispositivo aéreo do DECIR de 2023”.

    Ricardo Leitão Machado, esta semana, em entrevista ao Diário de Notícias. Foto: DR.

    Efectivamente, apesar de constar no Portal Base que a Gestifly teve divulgados quatro contratos em 2024, três destes foram assinados ainda em 2023 para o fornecimento de 10 helicópteros, alguns dos quais para dois anos. O incompreensível atraso na divulgação dos contratos no Portal Base por parte da Força Aérea foi, aliás, detectado em primeira mão pelo PÁGINA UM em finais de Janeiro de 2024. O Estado-Maior da Força Aérea(EMFA) justificou então o atraso como “falha técnica”. Mas, na verdade, tratava-se de uma intencional ocultação de contratos durante meses, pois este era um problema crónico.

    Nessa altura, o PÁGINA UM analisara os 500 contratos mais recentes publicados pelo EMFA – que apanham um período desde 27 de Fevereiro de 2023 e 30 de Janeiro de 2024 – identificaram-se quatro contratos em que se demorou mais de 1.000 dias a inserir-se a informação no Portal Base, um dos quais a aquisição de um boroscópio de medição no valor de quase 31 mil euros à Olympus, adquirido em Agosto de 2020 e que só deu entrado no Portal Base em Agosto de 2023.

    Mas isto são só os casos extremos. Se se considerar os atrasos superiores a um ano, ou seja, 365 dias, encontravam-se 64 contratos, e aí o montante subia para os 69,2 milhões de euros. Com atraso superior a meio ano eram já 212 contratos, envolvendo um montante total superior a 100 milhões de euros. Contudo, considerando que os prazos de divulgação genericamente previstos no Código dos Contratos Públicos são de 20 dias úteis, o EMFA estava num cumprimento inferior a 20% dos contratos.

    Considerando os 15 contratos acima de um milhão de euros, de entre os 500 mais recentemente divulgados pelo EMFA, apenas em seis se cumpriram os prazos, sendo que nos restantes nove encontram-se três em que a demora foi superior a dois longos anos. Neste caso, destaca-se o contrato de fornecimento de combustíveis por cerca de três anos à Petrogal no valor de 57,3 milhões de euros. A celebração foi a 30 de Setembro de 2021, mas a informação só viu a luz no Portal Base no passado dia 16 de Janeiro. Portanto, uma demora de 838 dias.

    Mas regressando aos contratos com a Gestifly, após a afirmação de Ricardo Leitão Marques ter dito que a empresa enfrentava “sérias dificuldades financeiras” em 2023, o PÁGINA UM foi analisar as contas da empresa. Apesar de ter sido criada em 2021, nos dois primeiros anos a Gestifly não teve qualquer actividade e, por isso, os pequenos prejuízos foram irrelevantes.

    Em 2021, o prejuízo foi de apenas 4.060 euros e no ano seguinte de 7.122 euros — nada de dramático para um capital social de 50 mil euros, e para uma empresa que estava à procura dos primeiros negócios. Mas no final do ano de 2022 — ou seja, antes da data que Ricardo Leitão Marques diz ter tomado o domínio da Gestifly —, a empresa até ficou com uma elevada liquidez, porque conseguira um financiamento bancário de 1,6 milhões de euros, conforme se detecta no balanço das demonstrações financeiras desse ano consultadas pelo PÁGINA UM.

    Esse financiamento de 2022 terá permitido que a Gestifly se lançasse para finalmente começar a concorrer a concursos públicos de prestação de serviços de meios aéreos de combate aos incêndios rurais. E em 2023 — o tal ano que o cunhado de Leitão Amaro diz que esta empresa estava em “sérias dificuldades financeiras” —, a Gestifly conseguiu ganhar três concursos e acabar o ano com uma facturação de 6,4 milhões de euros. Uma grande parte das receitas (mais de 5,9 milhões de euros) serviram para pagar a subcontratação de serviços. Mesmo assim, sobraram 401.255 euros de lucro nesse ano, conforme as contas de 2023 consultadas pelo PÁGINA UM, que desmentem a alegada má situação financeira nesse ano.

    Na verdade, os resultados podem mesmo considerar-se excelentes, se atendermos que a Gestifly tinha em 2023… um único empregado. E nem se diga que era um, mas um que era um génio que valia por cem, porque o accionista principal, Ricardo Leitão Marques, apenas lhe pagou um salário bruto de 13.458 euros — ou seja, cerca de 960 euros por mês, o que é compatível com o salário de um contabilista mal pago.

    Em suma, e também considerando que o activo tangível da empresa em 2023 rondava apenas 1,4 milhões de euros —a Força Aérea comprou há três anos seis helicópteros de combate aos incêndios por 8,8 milhões de euros (com IVA) por unidade —, o negócio da Gestifly aparenta ser um simples intermediário: subcontrata os 10 helicópteros a outras empresas, subcontrata pilotos e manutenção, e fica com uma ‘comissão líquida’ de 6,4%. Assim, com um único empregado, a quem pouco mais pagou que o salário mínimo nacional, Ricardo Leitão Machado conseguiu uma produtividade de 400 mil euros por trabalhador, cerca de 20 vezes o valor médio nacional.

    Força Aérea adquiriu seis helicópteros em 2022, mas Portugal está dependente de empresas privadas para o combate aéreo aos incêndios rurais.

    Em 2024, a empresa terá facturado valores sensivelmente idênticos, mas apesar das insistências do PÁGINA UM , Ricardo Leitão Marques nas quis revelar esses dados financeiros.

    Em todo o caso, para justificar a relevância da sua entrada em 2023 na Gestifly — por alegadas “serias dificuldades financeiras” da empresa —, Ricardo Leitão Machado disse ao PÁGINA UM que, quando a adquiriu, esta “não tinha meios para cumprir os contratos que tinha ganh[ad]o, visto não ter tesouraria para as
    Garantias Bancárias a prestar e para o investimento para montar uma operação deste calibre”.

    Esta justificação não deixa de ser surpreendente sob duas perspectivas. Primeiro, pelo lado da Força Aérea, que atribuiu três vitórias a uma empresa sem histórico relevante e que, aparentemente, não deu garantias, na fase de concurso, de possuir capacidades operacionais e financeiras para cumprir contratos desta natureza.

    Por outro lado, no caso das garantias bancárias — exigidas como caução obrigatória em determinados contratos públicos (equivalente a 5% do valor adjudicado) —, a Gestifly já as tinha constituído antes da entrada formal do empresário, uma vez que esta ocorreu a 22 de Junho de 2023 e os contratos com a Força Aérea foram celebrados a 1 e a 16 desse mês. Além disso, convém referir que os custos das garantias bancárias, concedidas por instituições de crédito, rondam, por norma, 0,25% do montante em causa. Mesmo que essa percentagem fosse de 1%, os encargos nunca seriam verdadeiramente insustentáveis, tratando-se de três cauções que totalizavam 648 mil euros — o que corresponderia, nessa hipótese, a um custo real de pouco apenas 6.480 euros.

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    Saliente-se também que Ricardo Leitão Machado não esclareceu quantos meios aéreos próprios a Gestifly possui ou possuía nem qual o valor da transacção de um negócio que logo no primeiro ano, em poucos meses, lhe concedeu um lucro de 400 mil euros. Numa primeira fase, o empresário disse ao PÁGINA UM que “a empresa é proprietária de parte dos helicópteros que utiliza no
    dispositivo”, acrescentando que “os pilotos são todos prestadores de serviços, quer diretamente, quer através da empresa subcontratada”. Mas confrontado com o facto de o activo tangível da Gestifly ser pouco superior a um milhão de euros — o que, no máximo, daria para um helicóptero pesado em segunda-mão —, o empresário esquivou-se a dar uma resposta.

    E diz mesmo estar a sentir-se prejudicado nos concursos públicos mais recentes. Já com outra empresa, a Gesticopter, Ricardo Leitão Machado somente ganhou em 2025 um concurso público (um contrato de três anos no valor de 20,1 milhões de euros, com IVA), perdendo todos os outros os outros, mais de uma dezena, incluindo um para fornecimento de meios aéreos ao INEM. O empresário recusa também qualquer benefício familiar, porque os contratos da Gestifly em 2023 ocorreram ainda durante o Governo Costa.

  • O valor do jornalismo, o preço da independência

    O valor do jornalismo, o preço da independência


    Numa postura de transparência que sempre me impus no início do projecto do Página Um, em finais de 2021, apresentamos e divulgamos os resultados financeiros de 2024da microempresa que gere este jornal. Quando os vejo, e tendo presente tanto os contratos despesistas do Estado como os balanços catastróficos das grandes empresas de media em Portugal, não posso deixar de sorrir — mas é um sorriso com amargura.

    O PÁGINA UM conseguiu, em 2024, mais um milagre. Sem publicidade. Sem parcerias comerciais. Com acesso livre a todos. Recebemos mais de 61 mil euros em donativos de leitores generosos e conscientes. Parece muito dinheiro — e é, tendo em conta o panorama actual da imprensa —, mas não é suficiente. O nosso orçamento mensal ronda os 5.000 euros, valor que cobre os custos operacionais do site, comunicações, despesas logísticas, renda da redacção, e o pagamento — em montantes que envergonhariam qualquer tabela sindical — de dois jornalistas fixos. Não há desperdício. Não há luxos. Não há salários dourados.

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    Todos os dias, ao consultar o extracto bancário do PÁGINA UM, agradeço em silêncio cada apoio que surge. Só a falta crónica de tempo — esse tempo que se gasta a investigar, confirmar, redigir, editar — impede que cada contributo tenha o agradecimento personalizado que merece. Mas todos os nossos apoiantes sabem que este jornal não seria possível sem eles. E sabem também que nunca fizemos dívidas, nunca apresentámos prejuízo.

    Com um capital social de apenas 10 mil euros, a empresa que detém o PÁGINA UM cumpre religiosamente todas as obrigações fiscais e sociais. O único valor registado no passivo de 2024 referia-se ao IRC — que, aliás, já está pago. Temos orgulho nesse rigor. Somos pequenos, sim, mas somos íntegros.

    Esse rigor é também o que nos permite apontar o dedo à promiscuidade e à irresponsabilidade reinantes noutros lados da imprensa. Veja-se o caso paradigmático da Trust in News. Com o mesmo capital social de 10 mil euros, conseguiu, não se sabe bem como, manter uma operação com mais de duas centenas de empregados — mas acumulou também um passivo superior a 30 milhões de euros, dos quais metade são dívidas ao Fisco e à Segurança Social. E o seu dono, Luís Delgado, continua serenamente a acumular dívida, enquanto atira a credibilidade do jornalismo português para a sarjeta.

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    No PÁGINA UM, recusamos esse caminho. Preferimos não crescer a qualquer preço. E essa decisão tem custos. Apesar de tudo aquilo que conseguimos construir nos últimos três anos — credibilidade, impacto, notoriedade — há uma frustração que persiste nos números. Temos hoje cerca de meio milhar de apoiantes regulares, que nos financiam com o que consideram justo e possível. É, na prática, a aplicação espontânea e honesta do conceito económico de willingness to pay — a disposição individual a pagar por um bem imaterial que se reconhece como valioso.

    Esse princípio, aliás, é uma viagem à raiz do mais puro e nobre jornalismo: um contrato de confiança entre quem informa e quem quer ser informado com rigor, isenção e coragem. Não temos paywalls. Não exigimos quotas obrigatórias. Confiamos no julgamento dos leitores. E por isso cada euro doado vale mais do que mil de publicidade: é uma demonstração de respeito mútuo.

    Mas os desafios são reais. O crescimento das visitas — temos tido sistematicamente mais de 300 mil acessos mensais, chegando nalguns meses a ultrapassar os 400 mil — traz consigo uma exigência acrescida. Chegam-nos denúncias sérias, sugestões fundamentadas, propostas de investigação com potencial noticioso. E nós, por falta de meios humanos, por absoluta escassez de tempo, não conseguimos sempre responder. Sabemos o quanto isso é frustrante para os leitores. É também frustrante para nós.

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    Estamos, pois, num dilema. Não queremos desarmar. Mas temos consciência de que será cada vez mais difícil sustentar um projecto que se recusa a vender a alma, mas que está a exigir-me os limites. Precisamos de encontrar formas complementares de financiamento, para conseguir aumentar uma redacção que tem limites físicos, sem ceder um milímetro nos princípios que nos trouxeram até aqui. E a todos os que nos leem, vos deixo uma garantia: no dia em que sentir que a independência jornalística do PÁGINA UM está em risco de ser trocada por sobrevivência, será também o dia em que encerrarei este projecto.

    Mas esse dia não chegou. e nem quero que chegue — se continuarmos a merecer a confiança dos nossos leitores. Por isso, este é também um apelo: continuem connosco. Ajudem-nos a resistir. Acreditem que vale a pena fazer jornalismo livre, mesmo num país pequeno e com tantos interesses instalados. E saibam que, enquanto tivermos forças, estaremos aqui. Porque há coisas que ainda precisam de ser ditas. E, mais importante ainda, há verdades que ainda precisam de ser contadas.

    Obrigado a todos.

    Pedro Almeida Vieira

  • Parlamento: deputados únicos do BE, PAN e JPP ‘sonham’ com primeira fila

    Parlamento: deputados únicos do BE, PAN e JPP ‘sonham’ com primeira fila

    Pela segunda vez em 17 legislaturas, a Assembleia da República vai sentar três deputados de partidos políticos sem grupo parlamentar, ou seja, deputados únicos. Amanhã, na primeira sessão da nova composição do Parlamento, Mariana Mortágua (Bloco de Esquerda, que viu o seu grupo parlamentar colapsar em apenas seis anos — elegeu 19 deputados em 2019), Inês de Sousa Real, do Partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN, que repete a experiência da legislatura anterior), e o estreante Filipe Sousa, do partido regional madeirense Juntos pelo Povo (JPP), não terão companheiros de bancada.

    Estes deputados vão partilhar assim a mesma solidão parlamentar vivida em 2019, quando, pela primeira vez, mais de dois partidos conseguiram eleger um único deputado: Joacine Katar Moreira (eleita pelo Livre, mais tarde independente), João Cotrim de Figueiredo (Iniciativa Liberal) e André Ventura (Chega). Curiosamente, todos os partidos então com representação unipessoal conseguiram ampliar a sua presença nas legislaturas seguintes, sendo que o Chega lidera hoje a oposição com 60 deputados.

    Porém, o PÁGINA UM sabe que Bloco de Esquerda, PAN e JPP vão, contudo, tentar quebrar uma duradoura praxe em Conferência de Líderes, ainda que a hipótese de sucesso seja escassa: um lugar na primeira fila do hemiciclo parlamentar.

    Apesar de o longo e detalhado Regimento da Assembleia da República, nos seus 265 artigos, ser totalmente omisso sobre a distribuição dos deputados no hemiciclo, essa competência cabe, por tradição, à Conferência de Líderes e, em última instância, ao Presidente da Assembleia. Por regra, nunca um deputado único conseguiu acesso aos lugares da primeira fila, pois assume-se que não possui representatividade suficiente para ocupar um dos 24 lugares dianteiros habitualmente disponíveis.

    Com efeito, se a atribuição dos lugares da primeira fila fosse feita com base estritamente proporcional — isto é, através de um critério aritmético rigoroso —, os partidos minoritários como o BE, o PAN e o JPP estariam manifestamente fora de qualquer expectativa de acesso a esse espaço. Mas o mesmo sucederia com outros partidos que, não obstante, terão presença na frente.

    Filipe Sousa, deputado do JPP: pela primeira vez, um partido regional elege para Assembleia da República.

    Num Parlamento com 230 deputados e apenas 24 lugares na primeira fila, o direito proporcional a um lugar dianteiro corresponderia a cerca de 9,58 deputados. Assim, apenas os partidos com pelo menos 10 deputados poderiam ambicionar legitimamente essa posição. Aplicando esse critério, a selecção tornar-se-ia inevitavelmente excludente — e não apenas para o BE, o JPP e o PAN. Só três partidos atingem esse limiar: o PSD, com 89 deputados; o Chega, com 60; e o PS, com 58.

    Todos os restantes ficariam automaticamente arredados da primeira fila: a Iniciativa Liberal, com 9 deputados, não atinge o mínimo necessário; o Livre, com 6, também não; e o mesmo se aplica ao PCP, com 3 deputados. Até o CDS-PP, que regressou ao Parlamento à boleia da Aliança Democrática com dois eleitos, ficaria fora desse espaço, se a lógica fosse puramente aritmética.

    Esta análise evidencia que, do ponto de vista estritamente matemático, permitir que partidos com uma expressão parlamentar reduzidíssima ocupem lugares de destaque na primeira fila constitui uma desproporção evidente. Um deputado único, que representa 0,43% do Parlamento, ao sentar-se na primeira fila — ocupando 1 em 24 lugares, ou seja, 4,17% do espaço visível — multiplicaria por quase dez vezes o seu peso real no hemiciclo.

    Contudo, a democracia parlamentar não se resume à aritmética. Colocar deputados únicos na primeira fila pode ser interpretado, mais do que como um acto injusto de concessão de privilégios desproporcionados, como a expressão de um princípio democrático de inclusão representativa. Num sistema como o português, que adopta o método de Hondt e favorece os partidos mais votados em cada círculo, a eleição de deputados únicos representa, em si mesma, uma superação notável de barreiras estruturais. Em muitos casos, essa eleição constitui um primeiro passo para afirmações políticas mais robustas — como se viu com o Chega, a Iniciativa Liberal e o Livre, que em 2019 tinham apenas um deputado e hoje ocupam posições reforçadas.

    Conceder-lhes maior visibilidade simbólica — através da sua colocação na linha da frente do hemiciclo — traduz-se, assim, num reconhecimento do pluralismo político e da legitimidade de minorias que, mesmo em desvantagem no sistema, conseguiram representação.

    De facto, a visibilidade atribuída a essas vozes solitárias não distorce a democracia; pelo contrário, reforça-a, ao garantir que nenhuma corrente legitimada pelas urnas seja remetida ao esquecimento visual ou ao silêncio institucional. Trata-se, pois, não apenas de uma questão de espaço, mas de princípio: assegurar que o Parlamento se veja a si próprio como espelho, ainda que fragmentado, da pluralidade nacional.

    Na reunião da Conferência de Líderes de 21 de Maio, três dias após as eleições e ainda com os deputados da anterior legislatura em funções, foi apresentada uma proposta provisória de distribuição de lugares no hemiciclo para a sessão inaugural. Contudo, José Pedro Aguiar-Branco — que deverá manter o cargo de Presidente da Assembleia da República — sublinhou que “a disposição definitiva de lugares na XVII Legislatura só será decidida” após a sessão desta terça-feira. Para já, ficou esclarecida a posição do JPP, que recusou ficar junto ao Chega, como se chegou a aventar inicialmente.

    Em 2019, então como deputado único, André Ventura foi relegado para a segunda fila, aproveitando sistematicamente o púlpito para ter destaque. Agora, seis anos depois, com 60 deputados, o Chega terá seis deputados em primeira fila.

    Assim, nesta terça-feira, o Chega ocupará, segundo apurou o PÁGINA UM, seis lugares na primeira fila, previsivelmente mais um do que o Partido Socialista. O PSD deverá sentar-se em oito lugares dianteiros, restando dois para a Iniciativa Liberal, um para o CDS-PP, outro para o Livre e outro para o Partido Comunista Português.

    Depois, será a política — e o bom senso — a ditar se a tradição se mantém ou se Portugal opta por inovar. Porque, nos parlamentos de diversos países europeus, dificilmente o JPP, o Bloco de Esquerda e o PAN arrecadariam uma cadeira da frente. Veremos se Portugal decide olhar mais para os princípios ou para as proporções.

  • Gouveia e Melo: um populista de farda como epitáfio da democracia

    Gouveia e Melo: um populista de farda como epitáfio da democracia


    Portugal vive hoje sob um regime político que se apresenta como democrático, mas que já não o é. Persistem as eleições, os parlamentos, os jornais, os partidos, os discursos inflamados na Avenida da Liberdade para comemorar o 25 de Abril. Não há perseguições nem presos políticos. Mas falta-lhes todo o resto. Falta já a substância.

    A democracia portuguesa – e, por extensão, a de toda a União Europeia – tornou-se um teatro de sombras, onde os actores se movimentam obedientes a um guião traçado por interesses supranacionais, alheios à vontade popular. A liberdade política esvai-se sem tiros nem quarteladas, numa erosão subtil, mas implacável, em que o cidadão comum é reduzido a figurante.

    Gouveia e Melo com Isaltino Morais.

    Tal como em Matrix, os portugueses continuam a acreditar que vivem numa democracia porque ainda votam, ainda discutem política, ainda protestam de vez em quando. Mas já não mandam. Já não decidem. Já não influenciam. O poder efectivo – aquele que determina o rumo da Economia, os modelos de governação, os critérios de financiamento, as regras sociais, os limites da acção individual e colectiva – reside noutras mãos. Mãos frias, cinzentas, instaladas em Bruxelas, Estrasburgo e Frankfurt. Mãos de burocratas não eleitos, ou eleitos por cliques governamentais sem qualquer representação directa de vontades nacionais. A Comissão Europeia, hoje desprovida de qualquer sentido de solidariedade ou humanismo, tornou-se uma instância autocrática que olha para os cidadãos como carne para canhão, peças sacrificáveis num tabuleiro de xadrez onde só importa proteger o rei e os bispos.

    Onde antes se vislumbrava um projecto de desenvolvimento económico e social, temos agora um modelo de gestão tecnocrática e autoritária, que invoca a “governança” para justificar a opressão fiscal, a vigilância digital, a neutralização da dissidência e o esvaziamento do Estado-Nação. Em nome da estabilidade, da transição ecológica, da saúde pública ou da “resiliência”, tudo é permitido – menos resistir.

    A comunicação social mainstream, falida e dependente cada vez mais do ‘oxigénio’ das corporações e do Estado – porque os seus clientes tradicionais, os leitores, já não lhe concedem a credibilidade e o valor económico de outrora –, traiu os seus princípios. Neste novo cenário, deixou de ser watchdog para ser o petdog, abanando a cauda a cada migalha do poder.

    Portugal, outrora nação soberana, é hoje um protectorado sem identidade política – mais submisso aos ditames dos comissários europeus do que o foi à Coroa espanhola entre 1580 e 1640. A diferença é que, ao menos, o domínio filipino não disfarçava a sua natureza. Hoje, os nossos dirigentes sorriem, assinam, bajulam e até agradecem por sermos tutelados. E não são apenas os burocratas estrangeiros os culpados: são, sobretudo, os nossos próprios políticos, que cedo perceberam que em Bruxelas há mais poder, mais visibilidade e melhores poisos do que em São Bento. De Durão Barroso a António Costa, temos assistido a uma sucessão de ambiciosos que trocaram a lealdade à pátria pela ascensão nas hierarquias internacionais. Portugal serve já apenas como trampolim.

    E, no entanto, os tempos difíceis não surgem apenas do exterior. A deriva antidemocrática alastra também no plano interno, disfarçada sob novas roupagens. Se muitos se escandalizam com o Chega – e bem, diga-se, pois a retórica populista não oferece soluções, apenas ressentimentos –, poucos se apercebem de que o verdadeiro risco está na emergência de uma nova direita pretensamente respeitável, que nasce das borralhas de um antigo PSD e CDS e que se tenta reabilitar à boleia de uma figura tão popular quanto perigosa: o Almirante Gouveia e Melo.

    Há quem trema com os apoiantes do Chega. Eu tremo tanto ou mais com os que se juntam, discretamente, em redor de Gouveia e Melo. Começa-se pelo novo BFF (best friend forever) do Almirante: Isaltino Morais, o velho cacique que gere Oeiras como um paxá num feudo medieval. Junte-se-lhe Rui Rio, o ex-presidente do PSD, agora mandatário da candidatura a Belém, com contas a ajustar com os seus ‘fantasmas’ que o impediram de ser primeiro-ministro. Adicione-se ‘senadores’ reformados do PSD ou derrotados do CDS, bem da vida por terem aproveitado da rede de contactos políticos uma existência inteira, mas saudosistas das luzes da ribalta, como Ângelo Correia, António Martins da Cruz e Francisco Rodrigues dos Santos. Esta frente discreta, mas não menos inquietante, de figuras em busca de redenção ou vingança compõe um coro de sombras que encontra em Gouveia e Melo uma âncora, um novo D. Sebastião vestido de almirante. É isso que tentam vender.

    Gouveia e Melo com Rui Rio.

    Aliás, de entre os sete fundadores e membros da direcção de apoio ao AlmiranteHonrar Portugal, que curiosamente repete uma denominação com laivos de Estado Novo de um grupo de pensamento do Chega no Facebook –, não é de admirar que haja quatro especialistas em marketing, porque Gouveia e Melo é um produto apenas com embalagem: Carlos Sá, Catarina Santos Cunha, Manuel Vaz e Tiago Mogadouro. De facto, bem precisam de vender um senhor que de carisma tem zero, sem um pensamento teórico, político ou social minimamente estruturado sobre assunto algum, que lê o teleponto como um boneco de cera – talvez seguindo as recomendações de Tiago Mogadouro, que é director-geral do Museu Madame Tussaud, em Nova Iorque.

    Mas mais preocupante ainda é ver neste grupo avançado de lugares-tenentes de Gouveia e Melo – que se tornou conhecido por ter sido o director logístico de um produto (vacinas contra a covid-19) durante três trimestres – uma constitucionalista, Teresa Violante, que já defendeu, sem pudor, que houve, sim, atropelos constitucionais durante a pandemia, mas que tal problema se resolve facilmente: basta mudar a Constituição. Talvez também queira mudar a Constituição para que os atropelos cometidos por Gouveia e Melo, na sua sanha justiceira a bordo do NRP Mondego, se tornem legais.

    É este o perigo de se embarcar em populistas – que é exactamente aquilo que Gouveia e Melo é. Se a lei incomoda, muda-se a lei. Se os direitos atrapalham, cortam-se os direitos. Tudo pela eficácia – e ele já defendeu ser contra a burocracia, porque, hélas, promove a corrupção. A democracia, com os seus equilíbrios, os seus freios e contrapesos, os seus incómodos, é hoje vista como um obstáculo.

    O problema da crise dos partidos tradicionais, que fizeram crescer os populismos e os extremismos, faz também ‘nascer’ este tipo de figuras que, tal como André Ventura, querem mudança – mas essa mudança vem acompanhada de veneno. Em vez de vir revestida de ideias, vem mascarada com palavras como “modernização”, “responsabilidade” ou “realismo”. Traz, na verdade, um conteúdo bem mais sinistro: menos democracia, mais controlo.

    Gouveia e Melo é o rosto ideal para esta operação – e será talvez o mais desejado aliado, mesmo que involuntário, de André Ventura. Se Gouveia e Melo for eleito para Belém, aí teremos um populista sem ideias – ou com ideias feitas por outros –, mas com farda e voz grave. Um produto de marketing, com teleponto e conselheiros. Um símbolo de autoridade artificial, que seduz quem anseia por ordem, mas não percebe que está a abrir caminho ao autoritarismo. A ascensão de Gouveia e Melo não representa apenas um risco político: representa um sinal de desespero democrático. Quando o povo deposita as esperanças num almirante vazio de pensamento, é porque já perdeu a confiança nos partidos, nas instituições, na democracia em si mesma.

    Portugal vive, pois, um tempo de simulacro: simulacro de soberania, simulacro de debate, simulacro de escolha. E como em todos os simulacros, o espectáculo continua – com Gouveia e Melo em Belém seguirá, pois, em agonia, já sem alma, sem sentido e sem verdade.

  • Expo 2025 Osaka: Contrato de 220 mil euros feito à pressa para resolver ‘invisibilidade’ mediática

    Expo 2025 Osaka: Contrato de 220 mil euros feito à pressa para resolver ‘invisibilidade’ mediática

    Poucos dias depois de o PÁGINA UM ter revelado que a participação de Portugal na Expo 2025 Osaka estava a sofrer uma invisibilidade mediática, subalternizando a própria língua portuguesa, a Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) deu uma resposta robusta — pelo menos no orçamento: vai gastar 220 mil euros pelos serviços de uma das mais relevantes agências de comunicação mundiais, a sueca Kreab.

    O contrato, assinado ontem com o escritório japonês desta empresa fundada em 1970 em Estocolmo, foi realizado com carácter de urgência e ao arrepio do Código dos Contratos Públicos, uma vez que as normas de execução do Orçamento do Estado para 2025 permitem que, na exposição no Japão, a AICEP tenha ‘carta branca’ para gastar em prestação de serviços, a seu bel-prazer, e para escolher quem quiser, até ao limite de 221 mil euros. Portanto, curiosamente, o valor acordado entre a AICEP e a agência de comunicação ficou no limiar dessa fronteira a partir da qual as normas comunitárias obrigariam à realização de um concurso público.

    Pavilhão de Portugal na Expo 2025 Osaka. Foto: AICEP.

    Sem se conhecer, até agora, qualquer plano público de promoção da presença portuguesa no certame — na semana passada tinha também sido contratada a agência de João Libano Monteiro, mas ‘apenas’ por 19.500 euros —, a AICEP apressa-se para uma desesperada operação de cosmética mediática.

    Apesar de a Expo 2025 Osaka ter sido inaugurada em 13 de Abril — ou seja, há mais de um mês e meio — e de encerrar no final da primeira quinzena de Outubro, o contrato vai durar até ao final do ano, porque a AICEP quer agora maximizar a presença portuguesa junto da comunicação social nipónica. As actividades previstas incluem a organização de conferências de imprensa, produção de vídeos promocionais, elaboração de conteúdos para redes sociais e publicação de publirreportagens pagas na revista Nikkei Business, considerada a principal publicação empresarial do Japão.

    Mas está também implícita a ‘sedução’ de jornalistas porque, segundo o contrato, a Kreab está obrigada a conseguir a publicação de entrevistas com o embaixador português Gilberto Jerónimo e com a comissária-geral Joana Cardoso ou com o próprio presidente da AICEP, Ricardo Arroja, bem como a apresentar “propostas aos media económicos”.

    À esquerda, Joana Gomes Cardoso, comissária-geral do pavilhão português: contrato com agência sueca visa também conseguir-lhe uma entrevista num jornal nipónico.

    As entrevistas devem ter como foco a sua publicação “nos principais jornais diários e no influente [sic] Nikkei Shimbun”. Este jornal, considerado um dos periódicos financeiros mais influentes do mundo, conta com duas edições diárias (matutina e vespertina) e tem uma circulação total superior a 2,8 milhões de exemplares.

    Embora a AICEP — que foi a entidade escolhida para organizar a presença portuguesa nesta exposição, que é sobretudo um encontro de culturas — mostre que a sua prioridade são os negócios, acaba por colocar como primeiro dos três eixos da narrativa, para envolver os jornalistas nipónicos, a interacção entre Portugal e o Japão. Porém, de forma patética, o contrato comete logo um erro histórico ao afirmar que “Japão e Portugal têm interagido através do Oceano há mais de 500 anos”.

    Ora, essa alegação é anacronicamente redonda e imprecisa: o primeiro contacto entre os dois países ocorreu apenas em 1543, quando três portugueses chegaram à ilha de Tanegashima a bordo de um navio chinês, ou seja, há pouco mais de 480 anos.

     Imagem mural da Catedral de Kagoshima que mostra São Francisco Xavier com Anjiro, um samurai convertido ao cristianismo.

    E mais: essa interacção foi esporádica, dependente das condições políticas internas japonesas e da presença missionária jesuíta, que se iniciou com São Francisco Xavier em 1549, tendo cessado a partir de 1614, com a proibição do cristianismo, e quase por completo com o encerramento do Japão ao exterior a partir de 1639 — o qual se prolongou até meados do século XIX. Por isso, falar de uma interacção contínua “há mais de 500 anos” é, pois, uma construção ficcional mais próxima do marketing do que da História. Ou da ignorância.

    Mas isso é apenas um pormenor — embora maior, por se tratar de ignorância histórica e cultural — numa exposição que ficará marcada pela subalternização da língua portuguesa: na parte principal da exposição, os visitantes são confrontados com uma imersão de luzes e cores, com referência a Portugal e ao mar, mas apenas com legendagem em japonês e inglês. A língua portuguesa ficou — e aparentemente vai ficar, porque eventualmente custaria mais 220 mil euros — submersa. No esquecimento.