A palavra “pasquim” vem do italiano pasquino, a estátua romana do século XVI onde se pregavam libelos satíricos — as famosas pasquinatas — que troçavam do poder e da Igreja. Com o tempo, passou a significar escrito maldoso, anónimo, e em português ficou sinónimo de jornal de má qualidade, daqueles que se enchem de opinião mas esvaziam-se de ética.
Assumamos, pois, que, por derivação de sentido, um pasquim possa, em pleno século XXI, também ser chamado sem pejo a um jornal que se contorce para ignorar as notícias dos outros, não por falha, mas por birra, por despeito, por ódio de estimação. Um pasquim é assim um jornal que prefere enganar os seus leitores fingindo que descobriu sozinho aquilo que alguém noticiou dias antes. Um pasquim é, em suma, um jornal que tem a mania da exclusividade, mas vive à boleia do trabalho alheio.
Ora, no sábado, o PÁGINA UM publicou em exclusivo — e depois do acesso ao relatório integral de 59 páginas da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) — a notícia de que o cirurgião Pedro Cavaco Henriques foi sancionado com 40 dias de suspensão aplicada ao cirurgião Pedro Cavaco Henriques por cinco infracções graves cometidas em apenas três meses.
Publicámos a notícia no sábado, com toda a prudência exigida: não inventámos, não especulámos, só escrevemos depois de ter acesso ao texto integral, lemos, analisámos e noticiámos. relatando os factos, mas sem expor nomes de doentes ou detalhes clínicos.
Não foi por uma hora de diferença nem por duas… O PÁGINA UM publicou uma notícia com impacte público há três dias.
E a imprensa mainstream? Silêncio. Três dias de silêncio, como quem finge que o assunto não existe. Até que hoje, oh eureka!, houve um pasquim, outrora jornal de referência, que insiste em se chamar Público, que ‘descobre’ o caso nas redes sociais da médica denunciante e escreve como se tivesse descoberto a pólvora. Como se tivesse trabalhado, investigado, apurado. Como se fosse jornalismo de referência. Como se não houvesse um outro jornal a fazer a ‘cacha’, cumprindo regras éticas.
E depois, como tem sido hábito, a restante imprensa — a SIC e TVI, neste caso — correu atrás da “notícia” do pasquim, ignorando quem realmente a trouxe a público e aliviada por assim não ter de citar o PÁGINA UM.
Este é o modus operandi dos pasquins: apagar o trabalho dos outros para parecer indispensável. Mas há um problema para os pasquins de serviço: os leitores começam a perceber o truque. E quando perceberem de vez, vão tratar esses pasquins como aquilo que são: panfletos de agenda, mais preocupados com o seu prestígio do que com a verdade.
Capa do relatório do processo disciplinar da IGAS que aplicou uma sanção de 40 dias de suspensão que terá de ser confirmada pela ULS do Algarve, que o PÁGINA UM usou no sábado e domingo passado.
Se o Público e os seus directores têm engulho em citar o PÁGINA UM, se lhes causa urticária reconhecer que um jornal pequeno lhes está a dar lições de jornalismo, têm uma alternativa simples: deixem de ser pasquim. Façam jornalismo, com rigor e sem promiscuidades.
Independentemente disso, como sempre fizemos, o PÁGINA UM citará o Público quando o Público merecer ser citado. Mas enquanto for um pasquim, chamá-lo-emos pasquim. Porque pasquim se mostra, pasquim será.
N.D. Esta tarde, escrevi à jornalista do Público, Inês Schreck, lamentando que tenha ignorado a ‘cacha’ do PÁGINA UM. A jornalista, com 23 anos de experiência, ignorou o e-mail.
Os serviços de manutenção e segurança do Elevador da Glória — o funicular mais icónico de Lisboa, classificado como Monumento Nacional — não previam a realização de quaisquer ensaios mecânicos ou ensaios não destrutivos ao cabo de tracção que cedeu na passada terça-feira, provocando o descarrilamento da cabina que descia a Calçada da Glória, causando a morte de 16 pessoas e ferimentos em mais de duas dezenas. Era tudo feito visualmente – ou se se quiser ser jocoso, mesmo se a hora é dramática, com recurso à tecnologia do ‘olhómetro’.
De acordo com a consulta efectuada pelo PÁGINA UM ao caderno de encargos da manutenção dos ascensores da Glória, Lavra, Bica e Santa Justa, que vigorou até 31 de Agosto – e que continuaria a manter-se com o ajuste directo que a Carris garante ter sido assinado no mês passado por um período de cinco meses –, apenas para os dois últimos, com tecnologia diferente, existiam referências à contagem de arames partidos como critério para substituição de cabos.
No caso da Glória (e também do Lavra), o caderno de encargos limita-se a exigir uma “verificação” dos cabos, sem qualquer norma técnica específica, periodicidade diferenciada ou referência a métodos de ensaio. Ou seja, se já se sabe que a inspecção diária era apenas visual, como demonstram os registos entregues pela Carris, nenhuma exigência existia para que as outras inspecções com periodicidade semanal, mensal e semestral fossem diferentes. Fica, porém, por esclarecer se a empresa responsável pela manutenção — a MNTC — complementava essas verificações com algum tipo de ensaio mais aprofundado, uma vez que o contrato não o exigia expressamente.
O PÁGINA UM apurou junto de especialistas que existem diversos ensaios que poderiam ser aplicados para detecção precoce de falhas em cabos de tracção, para além da simples observação visual. Entre eles contam-se os ensaios de magneto-indução (que permitem detectar fios partidos no interior do cabo), correntes de Foucault e ultrassons localizados, particularmente úteis para verificar a integridade da zona de ancoragem no trambolho.
Também é possível realizar medições de extensão sob carga para avaliar a elasticidade residual e identificar alongamentos anómalos. Estes procedimentos são considerados boas práticas internacionais em sistemas de transporte por cabo e estão descritos em normas como a EN 12927-6, usada em países como a Suíça ou a Áustria.
Foto: Frederico Carvalho
O contrato de manutenção da Carris, contudo, não exigia nenhum destes ensaios, remetendo para a prestadora de serviços a decisão de realizar ou não ensaios complementares. A ausência de uma norma técnica clara poderá vir a ser um elemento central na atribuição de responsabilidades civis e criminais, uma vez que o Estado, através da Carris, optou por um modelo contratual minimalista num sistema que transporta milhares de passageiros por dia em forte declive urbano.
Em conversa com o PÁGINA UM esta noite, Pedro Bogas, presidente da Carris, afirmou que “serão em breve disponibilizadas mais inspecções do que as diárias, para que se saiba que tipo de ensaios eram executados”, sem, contudo, confirmar se existiram alguma vez medições de carga ou ensaios de magneto-indução ao cabo que colapsou no trambolho superior da cabina número um, tanto mais relevante porque o relatório preliminar apresentado pelo Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF) mostra que a ruptura do cabo ocorreu no ponto de fixação dentro do trambolho superior, isto é, numa zona que não é passível de inspecção visual sem desmontagem.
Assim, mesmo que a inspecção diária tivesse sido cumprida escrupulosamente — como os registos parecem comprovar —, não havia forma de detectar a degradação incipiente do cabo. A questão, portanto, é saber se alguma vez, em inspecções semanais, mensais e semestrais, a MNTC fez a desmontagem dessa peça ou se usou algum instrumento de medição para verificar as condições de segurança do cabo.
Especificações do caderno de encargos são omissas sobre as normas técnicas das verificações em função da periodicidade. Podiam ser todas visuais, como a manutenção diária estava a ser feita?
Quer a empresa tenha feito ou não, o caderno de encargos era (e será) omisso, uma vez que apenas exigia uma “verificação”, termo técnica e juridicamente vago. Ou seja, responsabilizar a empresa de manutenção com base num caderno de encargos omissos pode ser complicado.
Certo é que esta noite, já depois da conversa do PÁGINA UM com Pedro Bogas, a Carris disponibilizou o mais recente relatório mensal, com data de 1 de Setembro, dois dias antes do acidente. E aparente confirma-se: as “verificações” eram elementares, sem recurso a equipamentos, embora mais demoradas(a última durou duas horas e quatro minutos). Na prática, consistiu apenas em verificar visualmente se existiam ruídos anómalos, empenos ou parafusos desapertados, bem como testar o funcionamento da bomba submersível do sistema do cabo de equilíbrio.
A ficha de manutenção é preenchida com um simples “OK” e uma nota genérica de que a inspecção foi realizada, sem qualquer valor medido ou referência a ensaios técnicos. Este nível de controlo é manifestamente insuficiente para detectar a degradação interna de um cabo de tracção, já que não inclui desmontagens, medições de carga, ensaios de magneto-indução ou outros testes não destrutivos considerados boas práticas internacionais para sistemas de transporte por cabo.
Em todo o caso, o relatório do GPIAAF sublinha um aspecto ainda mais aterrador: embora o sistema de corte de energia e de accionamento automático dos travões pneumáticos tenha funcionado como previsto, estes não tinham capacidade suficiente para imobilizar o veículo sem o equilíbrio de massas garantido pelo cabo.
Ou seja, os freios não constituem um sistema redundante à falha da ligação por cabo, o que, na prática, significa que milhões de passageiros andaram ao longo dos anos literalmente presos por um fio – que rompeu no dia 3 de Setembro. Significa isto que, no actual desenho do sistema, uma ruptura como a que ocorreu dificilmente poderia ter outra consequência que não um acidente grave.
Sobre as dúvidas da validade contratual dos serviços de manutenção – que o PÁGINA UM tem noticiado –, Pedro Bogas assegura que existe mesmo um contrato válido, por si assinado no dia 25 de Agosto mas com data do dia 20. E diz que a distribuição de uma minuta na conferência de imprensa de quinta-feira – que continha a assinatura tapada do gerente da MNTC – mas colocava uma pequena tarja negra numa zona onde ainda não estavam sequer as assinaturas – foi um lamentável lapso dos seus serviços. “Não fazia sentido terem disponibilizado esse documento preliminar; ainda mais porque existia já o contrato assinado e nunca as suas assinaturas deveriam ter sido tapadas”.
Pedro Bogas, presidente da Carris.
Pedro Bogas diz que uma garantia de que existe um contrato mesmo em vigor está no facto de que, se não houvesse, a empresa de manutenção teria já descartado responsabilidades, mas não deu uma explicação cabal sobre a razão de não ter optado pela assinatura digital (com timestamp), que anularia quaisquer dúvidas na legalidade do processo.
A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) concluiu que o médico cirurgião do Hospital de Faro, Pedro Cavaco Henriques, cometeu infracções disciplinares graves, por violação dos deveres deontológicos e das boas práticas clínicas (leges artis), propondo que seja punido com uma sanção de 40 dias de suspensão, com perda de retribuição e antiguidade.
A decisão no âmbito do processo disciplinar a que o PÁGINA UM teve acesso, com despacho do inscpector-geral Carlos Carapeto em 22 de Agosto passado, resulta de um longo processo disciplinar instaurado pela Unidade Local de Saúde do Algarve (ULSA) na sequência das denúncias da médica interna Diana Pereira, que em 2023 teve a coragem pouco comum de expor directamente à Polícia Judiciária aquilo que considerava ser casos evidentes de negligência na Cirurgia da unidade de saúde algarvia.
Diana Pereira, actualmente a exercer no Hospital de São João, era então orientada no seu internato (fase de estágio após a formação em Medicina) por Pedro Cavaco Henriques, embora a sua queixa na Polícia Judiciaria tivesse incluído também o director de serviços de cirurgia, Martins dos Santos. A médica alegou que não confiava na hierarquia do Hospital de Faro, receando que os casos fossem silenciados.
No final do ano passado, a IGAS tinha arquivado um processo disciplinar similar contra Gildásio Martins dos Santos, então director de serviços de cirurgia do Hospital de Faro, por existirem dúvidas sobre a sua culapbilidade, embora a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, tenha depois decidido suspender a decisão final após o processo penal ainda em curso.
Outro desfecho teve o processo de Pedro Cavaco Henriques. A nota de culpa apurada pela IGAS imputava a Pedro Cavaco Henriques a prática de múltiplas infracções, envolvendo cinco doentes concretos, identificados no processo, em episódios clínicos que, segundo a investigação, configuraram má prática médica. Em cada um dos casos, a IGAS sustenta que houve incumprimento das regras técnicas adequadas, sendo especialmente grave a situação de um dos doentes, que sofreu complicações graves atribuídas a má decisão cirúrgica.
Página das conclusões do processo disciplinar contra o médico Pedro Cavaco Henriques. O PÁGINA UM expurgou os nomes dos cinco doentes referenciados por razões de legítima privacidade e por não ter relevância pública.
No relatório com 59 páginas conduzido pelo inspector Pedro Cordeiro, a IGAS é taxativa: considera provadas as infracções, realça que foram cometidas a título negligente e lembra que o médico Pedro Cavaco Henriques até já tinha sido alvo de uma sanção disciplinar anterior, de repreensão escrita, no mesmo hospital. Essa reincidência pesou na avaliação, tal como a proximidade temporal das infracções, que ocorreram no espaço de apenas três meses. A ocorrência em espaço de tempo reduzido de quatro infracções por violação da leges artis, censuradas pericialmente e de má prática num outro caso foram consideradas “pericialmente gravosas”.
Apesar da gravidade das faltas, a IGAS também reconhece factores atenuantes: refere o bom comportamento geral do médico e destaca a sua postura colaborante durante o inquérito. Particularmente relevante foi a admissão expressa do arguido de que deveria ter adoptado uma conduta diferente no caso de um dos doentes, uma mulher de origem estrangeira, tendo Pedro Cavaco Henrique assumido erros e arrependimento sobre a opção cirúrgica que resultou em complicações/lacerações intestinais
A IGAS sustentou que, atendendo a que a factualidade em causa aconselhava uma adequada proporcionalidade na sanção, se considerava ajustada a aplicação de uma sanção única de 40 dias de suspensão, superior ao que estava previsto na nota de culpa para cada infracção isolada (20 dias). A decisão final cabe agora ao Conselho de Administração da ULSA, que terá três meses para a executar sob pena de caducidade.Mas o processo não acabará aqui porque a decisão formal seguiu agora também para a Ordem dos Médicos, a Polícia Judiciária, o Ministério Público e o Tribunal de Faro.
Esta conclusão da IGAS é mais um capítulo de um caso que abalou o Hospital de Faro e expôs as fragilidades de uma cultura hospitalar marcada pelo corporativismo. Em Abrilde 2023, Diana Pereira, então médica interna de cirurgia geral, decidiu quebrar o silêncio e reportar directamente à Polícia Judiciária onze casos de alegada negligência ocorridos entre Janeiro e Março desse ano. Três dos doentes acabariam por morrer, dois encontravam-se em estado crítico nos cuidados intermédios e os restantes ficaram com sequelas graves.
O gesto de Diana Pereira foi inédito num meio profissional onde, historicamente, a regra tem sido a protecção mútua entre pares e a ausência de denúncias públicas. O próprio Código Deontológico da Ordem dos Médicos desaconselha críticas entre colegas em actos clínicos, o que contribui para que situações de erro raramente sejam escrutinadas fora dos mecanismos internos. O caso de Faro tornou-se, assim, paradigmático: pela gravidade dos eventos, pela coragem da denunciante e pela forma como as instituições reagiram.
As denúncias de Diana Pereira levaram, face à gravidade, à suspensão preventiva de Pedro Cavaco Henriques e Gildásio Martins dos Santos, uma medida tornada pública através de edital do Conselho Disciplinar da Região Sul da Ordem dos Médicos.
Em paralelo, a IGAS abriu um processo de inspecção que analisou 12 casos, concluindo, em Setembro de 2024, que seis tinham fundamento. O Ministério Público instaurou inquérito criminal e a Ordem dos Médicos manteve em curso os seus próprios processos disciplinares. Estes dois processos poderem agora aproveitar as provas recolhidas pelo processo disciplinar que não podia ir mais longe do que aplicar, se não houvesse atenuantes, um máximo de 100 dias de suspensão.
Contudo, a médica interna viria a enfrentar um clima hostil no hospital e fora dele: colegas puseram em causa a sua estabilidade emocional, havendo mesmo violação dos seus dados pessoais. E em Julho de 2023, dois jornalistas do Expresso (Vera Lúcia Arreigoso e João Mira Godinho) publicaram uma notícia intitulada “Médica que acusou cirurgiões envolvida em morte”, em que associavam Diana Pereira a um alegado caso de negligência – por supostamente ter dado alta a uma doente que morreu horas depois – citando fontes anónimas de “cirurgiões”.
A notícia do Expresso revelava-se falsa porque os médicos internos não possuem capacidade para conceder alta a doentes sem a supervisão e anuência de um médico de especialidade.
Diana Pereira: a jovem médica teve a coragem em 2023 de denunciar erros graves que estariam a ser silenciados pelas chefias, e sofreu depois represálias, incluindo tentativas de ‘assassinato de carácter’, incluindo uma notícia do Expresso em que se tentava associar a um acto de negligência médica.
Num contexto em que a confiança dos cidadãos nos serviços de saúde é crucial, este caso mostra que a denúncia fundamentada e a investigação independente são instrumentos indispensáveis para a correcção de falhas e para a defesa da dignidade dos doentes. Mas também expõe o preço pago por quem decide romper o silêncio: perseguição pessoal, campanhas de descredibilização e isolamento profissional.
O PÁGINA UM tentou contactar a médica Diana Pereira, actualmente a prestar serviço no Hospital de São João, no Porto, mas ainda não obteve qualquer resposta.
O caso do ajuste directo de manutenção dos elevadores de Lisboa ganha novos contornos e aumenta as dúvidas sobre a veracidade das declarações prestadas ontem por Pedro Bogas, presidente da Carris, na conferência de imprensa realizada um dia após a tragédia no Elevador da Glória.
O documento entregue aos jornalistas não passava, afinal, de uma minuta, sem assinaturas e com informação rasurada, e aparentemente só hoje, após insistência deste jornal, foi enviada uma versão com assinaturas manuscritas dos dois administradores da empresa municipal: o presidente e a vice-presidente Maria Lopes Duarte. Mas pior ainda: a tarja colocada na minuta entregue ontem aos jornalistas não era mais do que uma simulação mal feita, sugerindo estar a proteger as identidades dos subscritores.
Pedro Bogas, presidente da Carris, disse que disponibilizaria cópia do contratos aos jornalistas. Afinal, forjou uma minuta, colocando tarjas negras, para tapar inexistente assinaturas.
O polémico contrato, que a Carris alega ter sido assinado em 20 de Agosto para não deixar sem cobertura contratual os serviços de manutenção dos elevadores – uma vez que o anterior contrato de três anos expirou no dia 31 de Agosto – foi exibido aos jornalistas como prova de que a manutenção e inspecção dos ascensores estava assegurada.
Porém, apesar de o PÁGINA UM não ter sido convocado, acabámos por ter tido acesso a esse documento da Carris, através de dois jornalistas de órgãos de comunicação social, um dos quais director de um jornal de grande dimensão.
Ora, o documento de ontem continha tarjas negras nas linhas de identificação das partes e sobre as áreas onde deveriam constar as assinaturas de dois membros do Conselho de Administração da Carris e do gerente da MNTC. Mas hoje, por insistência do PÁGINA UM, a Carris acabou por enviar o documento, salientando ser “cópia do contrato distribuído, ontem, na conferência de imprensa, onde é possível identificar os representantes da CARRIS e respectivas assinaturas”.
Última página do ‘contrato’ entregue ontem aos jornalistas (à esquerda) e última página do contrato enviado hoje ao PÁGINA UM (à direita). A tarja negra da imagem da esquerda jamais conseguiria tapar as duas assinaturas da imagem da direita, o que revela que foi entregue uma minuta forjada aos jornalistas para aparentar uma cópia com nomes anonimizados.
Porém, uma singela análise confirma diferenças evidentes entre aquilo que ontem foi mostrado aos jornalistas na conferência de imprensa e o documento enviado hoje ao PÁGINA UM: além de surgirem já os nomes dos representantes da Carris, as folhas são rubricadas no canto superior direito (como habitualmente em contratos já celebrados) e surgem visíveis as assinaturas dos administradores da Carris na última página, manuscritas – ou seja, houve a clara opção de não usar assinatura digital com timestamp, que deixaria uma ‘impressão digital’ do dia e da hora da assinatura.
Em todo o caso, a versão enviada hoje pela Carris ao PÁGINA UM mantém uma tarja sobre a assinatura do gerente da MNTC, que teria de existir de forma visível para o contrato ser válido. Aliás, em contratos públicos não se aplica qualquer protecção de identidade no âmbito do Regulamento Geral de Protecção de Dados.
Ora, a prova de que, na conferência de imprensa desta quinta-feira, a Carris entregou uma minuta forjada para parecer um contrato está no facto de o documento entregue aos jornalistas conter uma tarja negra no espaço que supostamente taparia as assinaturas dos administradores da Carris que é demasiado pequena. Com efeito, confrontando com o documento enviado hoje ao PÁGINA UM, a superfície dessa tarja negra mal taparia a assinatura de Pedro Bogas e jamais conseguiria tapar a assinatura da administradora Maria Lopes Duarte. Ou seja, ontem o contrato ainda não estaria assinado.
Primeira página do ‘contrato’ entregue ontem aos jornalistas (à esquerda) e primeira página do contrato enviado hoje ao PÁGINA UM (à direita). A ausência de rubricas no canto superior direito já evidenciava que o documento entregue ontem aos jornalistas se tratava de uma minuta sem validade contratual.
Esta discrepância aumenta as suspeitas sobre a real cronologia da celebração do ajuste directo, se é que foi mesmo assinado. O PÁGINA UM remeteu um pedido à MNTC, mas recebeu como resposta que está a ser representada agora pelo advogado Ricardo Serrano Vieira, que não foi ainda possível contactar.
Saliente-se que, em muitos casos de contratação pública, apesar de ser uma prática contrária à transparência e às boas regras de gestão pública, muitos ajustes directos apenas acabam formalizados após um acordo verbal ou informal para início da prestação de serviços – sobretudo quando é o mesmo prestador de um contrato que terminou –, sendo depois datados com efeitos retroactivos para regularizar a situação.
Porém, no presente caso, a gravidade da tragédia do descarrilamento do Elevador da Glória – com 16 mortes e duas dezenas de feridos – torna esta questão muito mais sensível: se não existia contrato válido à data do acidente, as consequências jurídicas e indemnizatórias poderão ser colossais, uma vez que a Carris poderá ter operado os ascensores sem cobertura contratual de manutenção e inspecção.
Calçada da Glória: existir ou não um ajuste directo juridicamente válido não será um pormenor para o apuramento de responsabilidades indemnizatórias de um desastre que causou 16 mortes e mais de duas dezenas de feridos.
O PÁGINA UM solicitou ainda à Carris o envio da acta da reunião do Conselho de Administração de 14 de Agosto, indicada no alegado contrato por ajuste directo como tendo deliberado a adjudicação. Até ao fecho desta edição, o gabinete de relações públicas da Carris não forneceu qualquer resposta a este pedido, mantendo a incerteza sobre se a deliberação foi efectivamente tomada nessa data e se foi respeitado o procedimento de contratação exigido pelo Código dos Contratos Públicos.
Este caso poderá, assim, evoluir para uma questão não apenas de gestão, mas de responsabilidade civil e criminal: a confirmação de que o contrato não estava assinado no dia do acidente pode implicar um vazio legal sobre quem tinha a obrigação de assegurar a manutenção dos equipamentos naquele momento, abrindo espaço para um cenário litigioso de proporções imprevisíveis.
À medida que se intensificam as críticas às opções de gestão da Carris sobre a externalização da manutenção e do controlo de segurança dos ascensores de Lisboa – após o trágico descarrilamento na Calçada da Glória, que causou 16 mortos e mais de duas dezenas de feridos –, o PÁGINA UM apurou que a administração liderada por Pedro Bogas se prepara para gastar 600 mil euros, apenas num ano, na manutenção de espaços verdes, sobretudo no complexo de Miraflores, sede da empresa municipal de Lisboa.
Este novo encargo resulta de um concurso público lançado em Julho e que encerrou a recepção de propostas a 21 de Agosto. O contrato, segundo o caderno de encargos, poderá ser prorrogado por mais dois anos, o que elevará a factura total para 1,8 milhões de euros em três anos.
Canteiro de 45 metros quadrados do funicular da Graça está integrado num contrato de 600 mil euros. Créditos: LPP – Lisboa Para Pessoas.
Recorde-se que, no mês passado, a Carris decidiu anular um concurso público para a manutenção dos quatro ascensores da cidade – Glória, Bica, Santa Justa e Lavra – por considerar excessivo o preço das propostas apresentadas, que ultrapassavam os 1,2 milhões de euros para um contrato de três anos. O anterior contrato para a manutenção dos elevadores – que terminou a 31 de Agosto – tinha custado 995 mil euros no mesmo período, mas não evitou o acidente mortal da passada quarta-feira.
Desde 1 de Setembro, a Carris mantém o serviço através da mesma empresa, a MNTC, mas recorrendo a um ajuste directo assinado a 20 de Agosto, cujo documento suscita dúvidas quanto à autenticidade, no valor de cerca de 221 mil euros por cinco meses – uma média de pouco mais de 44 mil euros mensais. Com o novo contrato para os espaços verdes, a factura mensal da Carris para jardinagem e relvados rondará os 50 mil euros.
Apesar do valor elevado do contrato de manutenção de espaços verdes, a dimensão das áreas é surpreendentemente modesta. No total, a Carris tem apenas 1,45 hectares para manter — o equivalente a menos de dois campos de futebol —, distribuídos por várias localizações, muitas delas de dimensão quase simbólica.
Vista aérea do Complexo de Miraflores da Carris. Foto: Google Maps.
A maior parcela encontra-se em Miraflores, complexo da Carris com oficinas gerais, estação de serviço e núcleo administrativo. Aí se concentram 12.929 metros quadrados (cerca de 1,3 hectares) de áreas ajardinadas e relvadas, dos quais 5.480 metros quadrados têm sistema de rega automática. Destacam-se a zona ajardinada do edifício B, junto ao muro sul, com 1.383 metros quadrados, e o jardim central de 664 metros quadrados, junto ao Parque dos Visitantes do Conselho de Administração.
As restantes áreas são muito mais pequenas e dispersas. Em Santo Amaro, os espaços verdes somam apenas 270 metros quadrados; na Pontinha, a área não ultrapassa 150 metros quadrados, dos quais apenas 53 têm rega automática; e na Alta de Lisboa o total é de 1.110 metros quadrados, quase todos sem rega automática, incluindo um pequeno jardim interior de 76 metros quadrados no edifício A e uma área junto à portaria do edifício C.
Por fim, no Funicular da Graça, a responsabilidade da Carris resume-se a um canteiro de 45 metros quadrados — literalmente um rectângulo de nove metros de comprimento por cinco de largura.
Este retrato revela que a quase totalidade do esforço de manutenção recai sobre Miraflores, mas evidencia também o carácter fragmentado e a dimensão reduzida das restantes áreas. A dispersão geográfica e o custo global do contrato levantam questões sobre a racionalidade e o custo-benefício da despesa, sobretudo num momento em que a empresa é criticada pela insuficiente manutenção dos ascensores de Lisboa.
Desde tempos imemoriais que o erro acompanha o ser humano. Está na base das tragédias gregas e na argamassa da História, lembrando-nos que somos criaturas falíveis. Há erros de cálculo, de percepção, de oportunidade; há erros ingénuos, cometidos na ânsia do improviso e da boa-vontade, e erros devastadores, cujas consequências perduram para lá da vida de quem os cometeu.
Errar, sabemos, é humano; mas é precisamente por sabermos que erramos que criámos normas, códigos e sistemas de prevenção para evitar que erros similares, sobretudo cometidos pela mesma pessoa, se repitam. Mas existe também uma tragédia associada a muitos erros: a soberba e a recusa em aprender. Os erros, sobretudo os que se repetem, não são acidentes do destino: são sinais de falhas no carácter ou no sistema que os tolera.
Não obstante, nem todos os erros são iguais. Há erros que resultam de circunstâncias imponderáveis, onde a incerteza domina e nenhuma decisão é plenamente correcta. Há outros que são filhos da incúria, da desatenção ou do desrespeito pelas regras estabelecidas. E há, finalmente, os erros persistentes, aqueles que se repetem com uma frequência tal que deixam de ser meros acidentes para mostrarem incompetência insanável ou se tornarem padrões de conduta e desrespeito pelo outros. Estes últimos merecem mais do que censura moral: exigem acção.
Em Medicina, tal acção deve ser ainda mais redobrada, pois o erro não se mede em prejuízos financeiros ou em falhas de produtividade, mas em corpos e vidas humanas. E mais grave se torna quando a própria classe médica, em vez de agir, prefere o silêncio cúmplice, o arquivamento célere e a protecção dos seus mais próximos, blindados num sistema de castas.
Sucede que a negligência médica – afastemos o dolo, que é de outra ordem e de outra justiça – permanece um dos maiores tabus da sociedade portuguesa e da própria Ordem dos Médicos. Quando falo em negligência não me refiro às incertezas da ciência médica – que opera sobre organismos complexos –, nem dos diversos níveis de conhecimento dos médicos – daí se concederem responsabilidades e intervenções mais complexas a quem detém maiores valências –, nem às limitações de meios técnicos ou farmacológicos – que variam de hospital para hospital.
Refiro-me a erros grosseiros, repetidos, que violam de forma inequívoca as leges artis, isto é, as boas práticas e os padrões técnicos que protegem os doentes. E não uma vez, mas várias.
Ora, há três anos, uma jovem médica interna, Diana Pereira, em serviço no Hospital de Faro, teve a ousadia rara de romper o silêncio e denunciar, não aos seus superiores hierárquicos, porque desacreditou-se deles, mas directamente à Polícia Judiciária, um número inusitado de casos de negligência cirúrgica cometidos em poucos meses pelo seu orientador de internato, o cirurgião Pedro Cavaco Henriques, e pelo então director de serviços de cirurgia, Martins dos Santos.
Aquilo que se seguiu, nos meses seguintes, foi uma campanha suja, indigna de uma sociedade que se quer civilizada. Diana Pereira, em vez de apoiada e aplaudida – ou pelo menos ser considerada uma whistleblower credível –, foi alvo de tentativas de assassinato de carácter, sugerindo-se até que seria instável mentalmente. Houve violação dos seus dados pessoais e uma imprensa cúmplice dos pequenos e grandes poderes publicou peças que deveriam envergonhar qualquer profissional de jornalismo.
Trecho do processo disciplinar da IGAS contra Pedro Henriques.
Destaco uma noticia publicada em Julho de 2023 no Expresso, da autoria dos jornalistas Vera Lúcia Arreigoso e João Mira Godinho, que insinuava que Diana Pereira, então sem autonomia para tal decisão, estaria envolvida na morte de uma doente por alegadamente ter autorizado uma alta hospitalar. Além disso, a jovem médica foi ainda processada por difamação pelo seu ex-orientador e pelo director de serviços de cirurgia do Hospital de Faro – e ficou por sua conta, tendo que pagar as custas através de um crowfunding.
O tempo, porém, é um juíz teimoso, embora muitas vezes injusto. Ontem, o PÁGINA UM revelou em primeira mão que a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) concluiu, após um processo disciplinar de 59 páginas, que Pedro Cavaco Henriques cometeu em 2023 cinco infracções graves em apenas três meses, todas elas por violação da leges artis, algumas com consequências graves para os doentes. A reincidência foi um factor agravante, já que o médico tinha antes sofrido uma repreensão escrita. Mesmo assim, a sanção proposta foi de apenas 40 dias de suspensão, com perda de retribuição e antiguidade.
Para além do PÁGINA UM, nenhum outro órgão de comunicação social que acompanharam o caso em 2023 abordou a sanção de Pedro Cavaco Henriques e o bom serviço à causa pública de Diana Pereira, porque um médico não salva vida apenas intervindo nos doentes e feridos, mas denunciando aqueles que cometem erros reiterados.
Sim, reiterados: em três meses, cinco doentes. Façamos o exercício de imaginar quantas mais infrações terão ficado por escrutinar em mais de 20 anos de prática clínica por este médico, quantos erros terão sido silenciados por colegas, quantas vítimas terão ficado fora das estatísticas disciplinares. Nunca o saberemos.
Sabemos, isso sim, que a jovem médica Diana Pereira, que denunciou estas situações, sofreu um calvário pessoal e profissional, que servirá de aviso a quem se atrever a romper o pacto de silêncio hospitalar. E sabemos também que, findo o período da suspensão, o doutor Pedro Cavaco Fernandes, que já foi professor convidado da Escola Superior de Saúde do Algarve, poderá regressar ao bloco operatório como se nada fosse.
A confiança dos cidadãos nos serviços de saúde assenta não apenas na competência técnica dos seus profissionais, mas também na certeza de que os erros serão identificados, corrigidos e, quando necessário, punidos de forma proporcional mas exemplar. Quando tal não sucede, instala-se a desconfiança e o medo. Não há cirurgião infalível – nem se pretende que haja –, mas há padrões mínimos de exigência que não podem ser relativizados. Cinco erros graves em três meses não são uma estatística banal: são um alarme.
Capa do relatório do processo disciplinar da IGAS que aplicou uma sanção de 40 dias de suspensão que terá de ser confirmada pela ULS do Algarve.
Por isso, a pergunta do título deste editorial não é meramente retórica: quem quer estar sob o bisturi do doutor Pedro Miguel de Mendonça Felício Cavaco Henriques? E mais: que confiança podemos ter num sistema que permite que médicos reincidentes regressem ao serviço após meras suspensões simbólicas?
A sociedade portuguesa deve decidir se continua a aceitar que o corporativismo e o medo da denúncia valham mais do que a vida dos doentes. Porque o erro é humano, sim, mas a omissão e o obscurantismo são escolhas. E as escolhas, ao contrário dos erros, são sempre julgadas pela História.
Há relatórios técnicos que são, eles próprios, documentos de acusação. A ‘Ordem de Trabalho’ da MNTC/Main para a Carris sobre o Elevador da Glória – convenientemente divulgada ontem para a crédula imprensa (com poucas e meritosas excepções) criar a ideia de estar tudo bem – tem afinal o condão de mostrar em duas singelas páginas a filosofia de manutenção de um equipamento centenário que transportava pessoas ao longo de 275 metros com uma inclinação de 18%, e que descambou poucas horas depois de uma inspecção supostamente diária.
Atente-se: duração estimada 00:30:00, tempo de execução 00:33:00 e, um detalhe que diz tudo, tempo real de paragem do activo 00:00:00, sendo que era 9:13 horas quando se iniciou. Ou seja, a “inspecção” fez-se sem parar o funicular com passageiros dentro da carruagem. A prioridade? Média. O rótulo da tarefa? “MP Glória Diária (4.ª-Feira – Dia)”, com trigger “Data cada 1 Quarta-feira”.
Primeira página da inspecção do elevador da Glória no dia do acidente.
Esta parte merece letras garrafais: “TEMPO REAL DE PARAGEM DO ACTIVO: 00:00:00.” Verificar “na fossa” uma “viagem completa” e, simultaneamente, não registar qualquer paragem operacional levanta dúvidas práticas (e de segurança do próprio técnico). Mais: sem imobilização não há testes de emergência, não há estabilização para medições, não há desmontagens mínimas.
Pior ainda, apesar de o caderno de encargos referir que estas operações de manutenção deveriam ser executadas no período nocturno, para se fazerem sem pressão, fora do período de funcionamento comercial, a Carris autorizou a MNTC a fazer a manutenção durante o dia, a despachar. Deve ter sido para não pagar horas extraordinárias aos funcionários da Carris que teriam de acompanhar as inspecções.
Enfim, mas o “procedimento” reduziu-se, em abono da verdade, a uma sucessão de inspecções visuais assinaladas “01 – OK”. Item 1: “O Ascensor tem todas as condições para a operação?” – OK. Item 2: “Analítica – registo da contagem decrescente para mudança do cabo (600 dias)” – 263 dias. Chama-se analítica, mas é uma mera contagem burocrática. Seguem-se os itens 3 a 8, todos com a mesma matriz: “Inspecção visual” aos bogies, correntes, ferragens, carril, rede aérea, cabo de equilíbrio (“na fossa, verificar por inspecção visual uma viagem completa”) e iluminação da fossa. Tudo OK. No fim, duas linhas lapidares: “Observações: Inspecção realizada.” e “Quais os recursos utilizados: Não utilização de recursos.”
Primeira página da inspecção do elevador da Glória no dia do acidente.
Repito, também em letras garrafais: “NÃO UTILIZAÇÃO DE RECURSOS.” Não sendo a Mecânica a minha engenharia de formação, presumo que talvez ali se esperasse o uso de tensiómetro, uma medição de diâmetro do cabo, uma verificação de afrouxamentos com dinamómetro, uma análise de vibração, uns ensaios não destrutivos aos cabos (fluxo magnético, ultra-sons, sei lá…), um teste funcional de travões sob carga, uma simulação de falha.
Não. Não foi considerado necessário. Bastou um formulário, um par de olhos e trinta minutos. Isto não é um capricho semântico: é a diferença entre rotina administrativa e garantia de segurança.
Num sistema como um funicular do século XIX, as falhas críticas raramente se anunciam à vista desarmada. A fadiga metálica não escreve bilhetes; o fio partido interior não se exibe em pose; a perda de tensão no cabo não se adivinha pelo brilho do aço; a degradação do sistema de travagem não se certifica com um olhar para a cabine. A engenharia de segurança existe precisamente porque o “parece estar tudo bem” é, demasiadas vezes, uma ilusão.
Há ainda outra incongruência: a própria grelha menciona, entre parêntesis, o que fazer se for NOK (“reparar ou substituir”, “informar Carris”, “parar de imediato”), mas nada define como se chega, tecnicamente, a um NOK através de um simples olhar. A fronteira entre “OK” e “NOK” ficou entregue ao “olhómetro” do operador. Num activo ferroviário com transporte de passageiros, esta ambiguidade pode transformar o OK em KO.
E por fim, os nomes dos técnicos da MNTC foram rasurados – não se fosse descobrir um dia que tinham o poder da ubiquidade – e não há qualquer registo, fotográfico ou outro, que confirme a inspecção in loco. Pode dizer-se que estou a desconfiar — e estou —, até porque foi por se confiar em demasia que estava tudo bem que tudo acabou mal.
Depois desta amostra de inspecção, a pergunta óbvia é: quando foi a última medição instrumentada da integridade dos sistemas de segurança? O papel não responde. Nem o caderno de encargos do contrato que expirou no dia 31 de Agosto, porque a Carris omitiu a divulgação pública das normas técnicas de verificação.
Conselho de Administração da Carris.
A esta inspecção se pode chamar manutenção de “passagem”, feita “à vista”, com o veículo em serviço. Low-cost, low-tech e, inevitavelmente, low-effort: um convite para que o OK se transformasse em KO.
Não há aqui nenhum preciosismo. As boas práticas em transportes por cabo e funiculares exigem, em diferentes cadências, três camadas: (i) verificações diárias com testes funcionais simples e registos auditáveis; (ii) inspecções periódicas com paragem programada, desmontagem, calibração e medições; (iii) exames aprofundados com ensaios não destrutivos e validação por entidade independente. Aquilo que o ‘relatório’ feito na manhã do dia do desastre mostra é que a primeira camada foi reduzida a um checklist minimalista; as restantes, não as vemos – e o público não tem como saber se existiram, quando e com que resultados.
A pergunta política, portanto, impõe-se: quem aprovou que a segurança diária do Elevador da Glória se fizesse assim? Quem definiu que trinta minutos bastam, a despachar durante o dia, e que não era preciso parar o equipamento? Quem aceitou a ficção de que um “OK” genérico sobre “todas as condições de operação” substitui medições objectivas? E quem fiscalizou o fiscalizador?
Portugal é especialista em rituais pós-tragédia: decretos de luto, coroas de flores, homilias e promessas de “nunca mais”. Precisamos do oposto: ritos pré-tragédia. Publicação integral dos planos de manutenção, checklists com métricas e tolerâncias, registos electrónicos de testes, sensorização permanente de cabos e travões, paragens técnicas obrigatórias com comunicação pública, assinaturas digitais com timestamp de quem verifica e de quem assume a responsabilidade técnica. E, sobretudo, independência entre quem explora, quem mantém e quem certifica.
Um elevador como o da Glória não é, apesar da sua classificação como Monumento Nacional, uma peça de museu a reboque de turistas. É um sistema de transporte com riscos específicos. E trinta minutos de “olhómetro” não chegam para o declarar apto. O papel aceita tudo; os cabos não. E quando um cabo cede, não há “OK” que valha. Só KO.
O contrato de ajuste directo que o presidente da Carris, Pedro Bogas, apresentou esta tarde como alegada prova de que a manutenção e inspecção dos ascensores de Lisboa estava assegurada levanta sérias dúvidas de legalidade e, em qualquer caso, é juridicamente ineficaz por não ter sido publicado na plataforma pública de contratação.
Apesar de ter disponibilizado cópia do alegado contrato na conferência de imprensa — para a qual o PÁGINA UM não foi convocado —, o documento do ajuste directo com a empresa MNTC ostenta a data de 20 de Agosto, mas apresenta diversas anonimizações (isto é, ocultação de informação em documentos, normalmente através de tarjas pretas ou outros meios, com o objectivo de proteger dados pessoais ou sensíveis), incluindo nas assinaturas do próprio presidente da Carris e de uma das suas vice-presidentes.
Pedro Bogas, presidente da Carris.
Ora, numa parte considerável dos contratos da Carris desde 2024 disponíveis no Portal Base, os administradores utilizam assinatura digital com timestamp, de modo a confirmar, sem possibilidade de adulteração, o dia e a hora da assinatura. Em outros casos, em menor número, quando os contratos são assinados a caneta, nunca são colocadas tarjas pretas.
Além disso, a anonimização do documento disponibilizado aos jornalistas, abrangendo inclusive as assinaturas dos responsáveis da Carris, é incompreensível: o Tribunal Administrativo já tem decidido, em várias sentenças, que os nomes e assinaturas dos funcionários não estão abrangidos pela protecção do Regulamento Geral de Protecção de Dados.
Acresce um outro pormenor relevante, que deveria merecer até análise forense: a área anonimizada no documento mostrado pela Carris é significativamente mais pequena do que o espaço ocupado pelas assinaturas de Pedro Bogas e da outra administradora em contratos similares consultados pelo PÁGINA UM no Portal Base, quer quando usarem assinatura digital quer assinatura com caneta. Ou seja, a tarja preta aposta na cópia disponibilizada pelo presidente da Carris pode estar a tapar absolutamente nada.
Alegado contrato de manutenção entre a Carris e a MNTC celebrado por ajuste directo em 20 de Agosto foi expurgado das assinaturas, mas espaço tapado é anormalmente pequeno comparado com outros contratos com assinaturas visíveis, o que coloca em dúvida a sua autenticidade.
Ao longo de todo o dia, o PÁGINA UM tentou obter a cópia integral do alegado contrato e outros esclarecimentos junto da Carris, mas a responsável pela comunicação da empresa municipal, Margarete Oliveira, nunca respondeu. Também foi feito um pedido para a MNTC enviar cópia do original deste contrato, mas não se obteve resposta.
Saliente-se que a MNTC tem, nesta hora complicada, vantagens em agradar à administração da Carris, uma vez que a empresa municipal é um dos seus principais clientes. De acordo com as contas de 2024, consultadas pelo PÁGINA UM, a MTC, que conta 28 empregados, teve uma facturação de 1.288.840 euros no ano passado, sendo que a Carris representou cerca de 26% das suas receitas.
Na conferência de imprensa, Pedro Bogas afirmou ainda que a Carris não estaria obrigada a publicitar o contrato no Portal Base, alegando que a empresa municipal, por integrar o sector dos transportes, estaria isenta dessa obrigação. Contudo, tal alegação não corresponde à verdade.
Contratos da Carris com aposição de assinatura digital. Contratos da Carris com aposição de assinatura manuscrita.
O artigo 127.º do Código dos Contratos Públicos (CCP) é claro ao estabelecer que a publicação dos contratos no Portal Base é condição de eficácia jurídica em quaisquer circunstâncias. Sem publicação, o contrato não produz efeitos externos nem vincula a entidade adjudicante. A obrigação de publicitação aplica-se a todas as entidades públicas, incluindo as abrangidas pelos chamados sectores especiais, independentemente da flexibilidade procedimental ou dos limiares de valor que dispensam a publicidade prévia no Jornal Oficial da União Europeia.
A questão da eficácia contratual — e até da própria existência formal de contrato válido à data do acidente de ontem com o elevador da Glória — poderá ter implicações relevantes no processo de apuramento de responsabilidades pela tragédia que já provocou 16 mortos e mais de duas dezenas de feridos. A seguradora Fidelidade, que cobre a Carris, poderá invocar a inexistência de contrato válido de manutenção como incumprimento dos deveres contratuais, com impacto no valor da indemnização a pagar às vítimas e suas famílias.
Importa sublinhar que o regime dos sectores especiais, resultante das directivas europeias, apenas confere às entidades adjudicantes uma maior liberdade na escolha do procedimento (concursos públicos, concursos limitados ou negociação directa) e afasta a aplicação da Parte II do CCP para contratos de valor inferior a 5 milhões de euros, no caso de empreitadas, e a 400 mil euros, no caso de fornecimentos e serviços.
Porém, sempre que exista contrato celebrado, a obrigação de publicitação no Portal Base mantém-se, constituindo um requisito essencial de transparência e de controlo público da contratação.
A ausência de publicação do contrato — que deveria estar acessível na plataforma para permitir escrutínio — poderá ser uma peça central nas investigações em curso, não apenas para apurar se houve negligência contratual, mas também para determinar se o elevador da Glória circulou sem cobertura válida de manutenção, circunstância que poderá ter impacto decisivo no apuramento de responsabilidades civis e criminais.
O império de media da família Balsemão, através da empresa Balseger, está em verdadeiro colapso financeiro. E a sua manutenção no controlo da Impresa – onde só detém 35,9%, uma vez que tem 71,41% dos direitos de votos via Impreger – está a transformar-se numa vitória de Pirro, porque se arrisca, em breve, a controlar um grupo de media sem um pataco que seja. Algo que será fatal para um negócio num sector que, ainda por cima, se tem mostrado deficitário nos últimos anos e com crónicos problemas de liquidez.
Com efeito, de acordo com uma análise do PÁGINA UM, a erosão financeira da Balseger – a holding criada em 2010 por Francisco Pinto Balsemão para concentrar os seus interesses na Impresa – é assustadora: em apenas década e meia, os capitais próprios caíram de cerca de 75 milhões de euros para apenas 9,4 milhões, uma perda de 87%, quase nove décimos do “património mediático” de Pinto Balsemão.
Francisco Pinto Balsemão em 2015. Foto: Imagem de entrevista à PSD-TV
Esta hemorragia patrimonial não é apenas um número contabilístico: traduz-se numa capacidade cada vez menor para responder a crises de liquidez, a renegociações com a banca e a investimentos estratégicos para manter a competitividade do grupo. E confirma uma evidência: o accionista de referência, a família Balsemão, apesar de controlar toda a administração – e pôr e dispor das estratégias de gestão – já não tem sequer dinheiro próprio, ou não quer disponibilizar, para suprir crises de tesouraria. Ainda recentemente foram relatados atrasos no pagamento dos subsídios de férias aos trabalhadores da SIC.
Apesar do cenário anterior já não ser muito favorável, o ano de 2024 agravou dramaticamente a situação. A Impresa registou prejuízos de 66,2 milhões de euros, esmagada por imparidades de 60,7 milhões que desvalorizaram contabilisticamente os activos da SIC e da InfoPortugal – e em cascata da Impreger e da Balseger. A holding familiar de Pinto Balsemão – com acções distribuídas pelos filhos, mas com o patriarca a deter 99,9% dos votos – teve de reconhecer imparidades (e prejuízos) de mais de 31,1 milhões de euros. Uma verdadeira hecatombe financeira e de imagem.
Ao mesmo tempo, a dívida líquida da Impresa subiu para 130,9 milhões de euros, mais 13% que no ano anterior, elevando a pressão financeira e tornando urgente a geração de liquidez. Para piorar o cenário, falhou em Julho uma operação crucial para reforçar a tesouraria do grupo de media: a venda do edifício de Laveiras, em Paço de Arcos, chegou a estar praticamente alinhavada com um fundo de investimento ligado ao BPI, mas o negócio caiu no último minuto, privando a Impresa de uma injecção de capital que seria vital para aliviar a pressão de curto prazo.
Segunda geração Balsemão não está a sobreviver ao império criado a partir da década de 70.
Embora ainda de forma discreta, os primeiros sinais do colapso surgiram ainda na primeira metade da segunda década deste século. Em 2014, os capitais próprios da Balseger tinham já descido para 52,5 milhões de euros, fruto de cerca de 23 milhões de prejuízos acumulados. Foi nesse contexto que, em 2016, se avançou para uma reestruturação do capital social: de 75 milhões de euros de capital social passou-se para apenas 4,6 milhões de euros, através da extinção de acções próprias e da redução do seu valor nominal, passando uma parte do valor anterior para reservas.
Esta operação meramente contabilística teve, porém, outra particularidade: cerca de 20 milhões de euros, anteriormente classificados como capital social, foram reclassificados como um “empréstimo” dos accionistas à própria empresa, sem juros e sem prazo de devolução. A Balseger passou a ser uma mera holding de estrutura flexível, mas deixando de ser um peso-pesado financeiro, e com uma dívida simbólica para com os accionistas.
Numa altura em que Pinto Balsemão jogava ainda a sua influência política e económica, esta estratégia poderia ter corrido bem, pois libertava tecnicamente o capital social, permitindo no futuro distribuir reservas ou reforçar capital sem novo processo formal de redução.
Extracto do capital próprio inscrito no balanço da Balseger em 2024.
Mas esta operação só faria sentido se fosse acompanhada de um segundo passo estratégico: comprar os 28,6% minoritários da Impreger, distribuídos por personalidades e famílias que co-fundaram o Expresso em 1973, sobretudo as famílias Ruella Ramos (dona do Diário de Lisboa), Boullosa e Botelho Moniz, sem poder de gestão. De entre os minoritários, com uma quota simbólica na Impreger, está ainda António Guterres, actual secretário-geral das Nações Unidas.
Mas os accionistas minoritários da Impreger nunca quiseram abrir mão das suas acções – com valor de mercado cada vez menor – e Pinto Balsemão nunca conseguiu reforçar o controlo indirecto sobre a Impresa que lhe permitisse abrir a porta a novos investidores, dispostos a injectar capital, sem pôr em causa o controlo da gestão.
O ano de 2024 foi, por isso, ainda mais devastador. Hoje, a Balseger está com capitais próprios esqueléticos e sem almofada para novos choques. Se a Impresa voltar a registar prejuízos relevantes ou novas imparidades, os capitais próprios da holding da família Balsemão podem cair para níveis residuais ou mesmo negativos, obrigando a uma recapitalização urgente. E aqui surge o dilema: ou a família injecta dinheiro novo para manter o controlo, ou aceita a entrada de investidores externos, correndo o risco de perder o controlo do grupo de media, onde pontifica a SIC a e Impresa Publishing (Expresso), em dificuldades maiores porque ainda tem de suportar os juros das dívidas do ‘pai’ Impresa.
Recusar capital externo significa assistir à asfixia do grupo, incapaz de investir em programação e de travar a perda de receitas. Aceitá-lo implica abrir mão do comando absoluto, algo que Pinto Balsemão, agora com 88 anos, nunca aceitou.
Com uma posição financeira tão frágil, a Impresa está assim vulnerável aos caprichos de uma família que criou uma estrutura societária blindada para evitar perder o poder, mas que hoje mais parece uma gaiola de ouro sem escapatória financeira.
A estratégia do Ministério da Saúde, apresentada como forma de “racionalizar o recurso às urgências”, está a produzir efeitos visíveis — e polémicos. Entre 1 de Janeiro e 31 de Agosto de 2025, menos 351.246 pessoas recorreram às urgências hospitalares face à média do período homólogo do triénio 2022-2024, de acordo com uma análise detalhada realizada pelo PÁGINA UM aos registos hospitalares. São, em média, 1.445 pessoas por dia que deixaram de ser atendidas nos serviços de urgência dos hospitais públicos portugueses.
O total de episódios caiu 8,3%, de uma média de 4.236.109 em 2022-2024 para 3.884.863 este ano. Comparando apenas com 2024, a diferença é ainda maior: menos 358.185 episódios. Contudo, os episódios que resultaram em internamento mantiveram-se praticamente estáveis, com uma redução residual de 0,6%, confirmando que a diminuição se concentrou sobretudo nos casos menos graves.
A redução mais drástica verificou-se nos casos não urgentes — pulseiras verdes, azuis e brancas do protocolo de Manchester — que globalmente caíram 24,6%, passando de 1.679.160 para 1.266.189 episódios. Foram menos 412.971 utentes, o que significa menos 1.700 pessoas por dia nas urgências.
Esta quebra massiva é explicada pela maior intervenção do SNS24, incluindo a introdução da triagem digital, mas também é consequência de fechos selectivos de urgências em vários hospitais e até do desvio de doentes para urgências privadas — como sucede no Hospital da Prelada, gerido pela Misericórdia do Porto, que passou a integrar o circuito de resposta a situações menos urgentes.
Apesar desta redução, os indicadores de desempenho tiveram melhorias apenas subtis: o tempo médio entre admissão e triagem manteve-se em 14 minutos, o intervalo entre triagem e primeira observação caiu de 55 para 49 minutos e a permanência média nos serviços passou de 271 para 268 minutos. Os episódios com permanência superior a seis horas diminuíram ligeiramente, passando de 1,027 milhões para 970 mil, uma quebra de 5,6%.
Indicadores de urgências hospitalares no período de Janeiro a Agosto nos anos de 2022 a 2025. Fonte: SNS. Análise: PÁGINA UM.
No detalhe das triagens, os casos de maior gravidade até aumentaram um pouco, embora sejam factores não controláveis numa perspectiva de curto prazo: as pulseiras vermelhas (doentes emergentes que exigem intervenção imediata) subiram 1,9% e as amarelas (doentes urgentes) 3,4%, enquanto as laranjas (doentes muito urgentes) caíram 3,9%.
Mas a maior quebra foi, efectivamente, nas verdes (doentes pouco urgentes, que podem esperar até 120 minutos pelo seu atendimento ou, eventualmente, serem encaminhados para outros serviços de saúde), que caíram de uma média de 1.515.692 para 1.115.889 casos, ou seja, 26,4%. As azuis (doentes não urgentes) caíram 16,2% e as brancas (doentes não urgentes associados a questões administrativas) 2,9%, em valores absolutos menos expressivos.
A análise feita pelo PÁGINA UM às principais Unidades Locais de Saúde (ULS) – aquelas que registaram mais de 100 mil episódios nas urgências entre Janeiro e Agosto do ano passado – mostra que a queda este ano foi generalizada, embora com diferenças regionais: descidas de 18% no Oeste, 17% em Coimbra, 14% no Entre Douro e Vouga, 12% no São João, 11% em Viseu-Dão-Lafões e 10% na Lisboa Central (São José) e no Baixo Vouga, enquanto no Algarve, Gaia-Espinho e Médio Tejo as reduções foram pouco significativas (1% ou 2%).
Em termos absolutos, a ULS de Coimbra foi a que conseguiu uma maior redução, com menos 140 pessoas por dia a deslocarem-se às urgências. Seguem-se Oeste e Amadora-Sintra (menos 86/dia cada), Lisboa Central (menos 72), Entre Douro e Vouga (menos 76) e o São João (menos 61). Deste lote de 17 ULS, Gaia-Espinho só reduziu 11 atendimentos nas urgências por dia e o Médio Tejo somente quatro.
Quando se consideram apenas os casos não urgentes, a queda diária é, porém, ainda mais expressiva: a ULS de Lisboa Central teve menos 144 pessoas por dia, Oeste menos 97, Amadora-Sintra menos 86, Entre Douro e Vouga menos 94, Alto Minho menos 73, Baixo Vouga menos 68, Coimbra menos 38 e São João menos 32.
Outro aspecto que se destaca nesta análise do PÁGINA UM é o distinto peso da fatia dos não urgentes nas diferentes ULS. Se os episódios não urgentes (pulseiras verdes, azuis e brancas) ainda representaram este ano cerca de um terço (32,6%) do total das idas às urgências – quando no triénio de 2022-2024 se situava nos 39,6% –, ainda se detectam grandes ULS com um rácio acima de 40%: Amadora-Sintra (57,3%), Alto Minho (47,4%), Oeste (46,7%), Lisboa Norte (45,4%), Braga (43,8%) e Médio Tejo (42,1%).
Mesmo assim, houve ULS que, face ao ano passado, reduziram de forma muito significativa o peso dos episódios não urgentes, como foram os casos da ULS de São João (passou de 38,6% para 19,8%), Entre Douro e Vouga (32,3% vs. 17,8%), Oeste (46,7% vs. 32,6%) e Alto Minho (47,4% vs. 33,6%). Ao invés, a proporção praticamente não se alterou na ULS do Algarve (diferença inferior a 0,1 pontos percentuais), de Gaia-Espinho (menos 0,7 pontos percentuais), do Médio Tejo (menos 0,9 pontos percentuais) e de Coimbra (menos 1,5 pontos percentuais).
Apesar de o Ministério da Saúde destacar que as medidas para uma melhor triagem visam libertar os hospitais para os casos mais graves, uma redução tão brusca do afluxo levanta questões sobre se se trata de uma racionalização ou de uma exclusão tácita de doentes, com risco de agravamento clínico para quem, por barreiras administrativas ou geográficas, não chega a ser atendido condignamente.