Autor: Pedro Almeida Vieira e Maria Afonso Peixoto

  • Covid-19: Comissão Europeia ‘apanha’ com mais de 333 mil protestos contra certificado digital

    Covid-19: Comissão Europeia ‘apanha’ com mais de 333 mil protestos contra certificado digital

    Nunca antes se viu tanta participação num procedimento de consulta pública a um regulamento comunitário. Comissão von der Leyen quer manter certificado discriminatório de não-vacinados, incluindo recuperados, até Junho de 2023, A Alemanha, que ontem chumbou um projecto para tornar a vacina obrigatória para os maiores de 60 anos, lidera os países com maior número de comentário. Em Portugal, o debate sobre esta matéria tem sido inexistente.


    Está ao rubro o último dia da consulta pública do regulamento que visa prolongar o uso do certificado digital da covid-19 por mais um ano. De acordo com a consulta do PÁGINA UM pelas 17:30 horas ao site da Comissão Europeia, onde se encontra a plataforma que permite formalmente apresentar os comentários à proposta, estavam já contabilizados 333.596 comentários de cidadãos, empresas e entidades diversas, um aumento extraordinário face aos registados no início desta semana.

    Quase todos os comentários, convenientemente identificados e registados, contestam a possibilidade de se manter o sistema de controlo da pandemia da covid-19, já em fase endémica, através de restrições discriminatórias aos não-vacinados.

    No domingo passado, o PÁGINA UM destacava já a existência de mais de 136 mil comentários, o que colocava esta proposta da Comissão von der Leyen como a mais polémica de sempre.

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    Em contraciclo com as decisões de diversos países europeus em cessar a discriminação dos cidadãos em função do seu estado vacinal contra a covid-19, e tendo em conta a evidência de as vacinas não funcionarem como “barreira” segura contra a transmissão do coronavírus, a Comissão Europeia insiste estender por mais um ano a aplicação dos certificados digitais para condicionar ou proibir a circulação aérea e o acesso a certos lugares públicos por não-vacinados.

    Ursula von der Leyen, que é uma adepta da imposição da vacinação obrigatória universal, incluindo a jovens e crianças, tem já pronta uma proposta de regulamento para prolongar até 30 Junho de 2023 o controlo de entradas através deste certificado, que apenas atesta a toma de vacinas ou a ocorrência de uma infecção recente.

    Como os certificados têm agora uma validade de nove meses, a implementação desta medida garante às farmacêuticas pelo menos mais um reforço vacinal. No limite, quem tomou a chamada “dose de reforço” até finais de Novembro do ano passado terá de receber uma quinta dose para não sofrer restrições de circulação até ao meio do próximo ano.

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    Porém, anteontem, o Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças (ECDC) e a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) vieram recomendar que, por agora, fossem vacinadas com a quarta dose apenas as pessoas com mais de 80 anos.

    Curiosamente, nos últimos dias, a origem de uma parte muito significativa dos comentários à consulta pública é a Alemanha, o país de Ursula von der Leyem, cujo Parlamento rejeitou ontem uma proposta do chanceler Olaf Scholz de tornar a vacinação obrigatória para os maiores de 60 anos. No Bundestag, a medida foi rejeitado por 378 deputados, tendo 296 votado a favor.

    Pelas 17:30 horas de hoje, provenientes da Alemanha estavam contabilizados 123.888 comentários – no domingo passado eram apenas 22.592 –, enquanto a Itália, que liderou na “contestação” à medida durante a maior parte do tempo da consulta pública, contava 37.334 comentários.

    A Áustria – que chegou a implementar um sistema que visava tornar a vacinação obrigatória, sob pena de pesadas multas, mas acabou por suspender a medida por ter tido um efeito oposto – ocupa agora a terceira posição dos comentários (33.143) sobre o prolongamento da vigência do certificado digital. Com um número superior a 10 mil comentários encontram-se ainda a Holanda (28.458), França (19.704), República Checa (19.190), Eslováquia (18.235) e Bélgica (10.174).

    No caso de Portugal, contabilizam-se, por agora, somente 1.947 comentários, ocupando a 16ª posição. No passado domingo eram 1.257.

    Número de comentários por país no site da Comissão Europeia (17h30 de hoje) sobre a proposta de regulamento para prolongamento do certificado digital até Junho de 2023

    Com o fim da consulta pública, à meia-noite de hoje, hora da Europa Central, as próximas semanas serão fundamentais para saber se a Comissão von der Leyen manterá a intenção de avançar mesmo com a renovação do certificado digital, uma vez que nunca antes houve uma tão grande participação pública contra um regulamento comunitário. Por norma, antes da decisão final, as propostas recebem poucas dezenas ou centenas de comentários.

    Apesar desta contestação, em Portugal o tema dos certificados digitais, cujo uso discriminatório ainda se mantém, não tem merecido a mínima atenção da imprensa mainstream e dos partidos políticos. Na semana passada, o PÁGINA UM quis saber, por duas vezes, a opinião dos partidos políticos com assento parlamentar, mas apenas o PCP respondeu.

    Partido Socialista, Partido Social Democrata, Chega, Bloco de Esquerda, PAN e Livre alhearam-se, não revelando a respectiva opinião, se é que a têm, sobre um tema que marcou indelevelmente a sociedade nos últimos dois anos.

  • Tuberculose diminui durante pandemia mas por subnotificação e atrasos no diagnóstico

    Tuberculose diminui durante pandemia mas por subnotificação e atrasos no diagnóstico

    Relatório da Direcção-Geral da Saúde aponta para uma redução de casos em 2020, mas antevê já um recrudescimento da tuberculose nos próximos anos. A subnotificação por atrasos no diagnóstico explica a enganadora melhoria no primeiro ano da pandemia. O PÁGINA UM também revela que, durante 2020, houve 32 doentes com tuberculosos que foram considerados doente-covid. Destes, nove morreram.


    A Direcção-Geral da Saúde admite que a tuberculose terá previsivelmente, nos próximos anos, recrudescimento do número de casos, associados “à deterioração das condições económicas e sociais, ao aumento na demora nos dias até ao diagnóstico e ao risco de formas mais graves com consequente maior morbilidade e mortalidade”.

    Este é o quadro traçado pelo relatório de vigilância e monitorização da tuberculose em Portugal relativo ao ano de 2020, que mostra uma situação favorável apenas na aparência durante o primeiro ano da pandemia.

    Com efeito, embora a DGS destaque a tendência de diminuição dos casos notificados – 14,2 casos por 100.000 habitantes, a que correspondeu 1.465 casos, menos 383 do que em 2019 – é admitido que a descida em 2020 se deveu aos efeitos da pandemia causada pelo SARS-CoV-2. De facto, nos quatro anos anteriores a 2020, a taxa de incidência estava estagnada, em redor dos 18 casos por 100.00 habitantes.

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    Sem-abrigos e estrangeiros são os grupos mais vulneráveis à tuberculose.

    Esta redução é, porém, artificial, e até denotando uma subnotificação ou mesmo uma incorrecta notificação. Através da base de dados dos internamentos de doentes-covid, que o PÁGINA UM tem vindo a divulgar, durante o ano de 2020 foram hospitalizados com teste positivo à covid-19, um total de 32 pessoas também com diagnóstico de tuberculose. Destas, nove faleceram.

    No caso concreto de óbitos atribuídos à tuberculose, a DGS indica terem ocorrido 94 durante todo o ano de 2020. Mesmo considerando as nove mortes consideradas por covid-19 mas de doentes tuberculosos, a situação portuguesa tem melhorado consideravelmente neste século. Em 2002, de acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística, morreram 345 pessoas com tuberculose e em 2010 foram 205.

    Os efeitos da suspensão de muitos dos diagnósticos e exames do Serviço Nacional de Saúde (SNS) durante a pandemia, em especial no primeiro ano, também se observa no aumento do número de dias desde o início dos sintomas até ao diagnóstico.

    Evolução da taxa de notificação de tuberculose em Portugal (2000-2020). Fonte: DGS.

    Em 2020, metade dos doentes com tuberculose tiveram o seu primeiro diagnóstico ao fim de 80 ou mais dias, o valor máximo registado na última década, e uma subida de 25% relativamente ao valor registado em 2010. Em dois terços dos casos, esta demora foi atribuída aos doentes, o que também denota o medo incutido nas pessoas durante a pandemia.

    Os homens continuam a ser o grupo de maior risco, representando 65% do total de casos, sendo que metade dos doentes tinha 49 ou mais anos. Nas crianças de idade igual ou inferior a cinco anos, apenas se contabilizaram 25 novos casos. Os distritos de Lisboa e Porto foram as regiões que apresentaram maior incidência, sendo que os sem-abrigos e os estrangeiros mostraram ser os grupos mais vulneráveis.

    Neste último aspecto, mostra-se particularmente a evolução da incidência na população estrangeira. No ano de 2020 já cerca de 27% dos casos de tuberculose eram de estrangeiros, sobretudo originários de Angola, Guiné-Bissau, Brasil e Cabo Verde. Em 2008 representavam apenas 14,9%.

    Evolução da demora mediana entre o início de sintomas até ao diagnóstico de Tuberculose (2010-2020). Fonte: DGS.

    Segundo o relatório da DGS, existe uma forte relação entre vulnerabilidades sociais e a incidência de tuberculose com o consumo de álcool ou de drogas ilícitas, bem como a residência comunitária, a constituírem variáveis relevantes.

    A associação da tuberculose ao vírus da imunodeficiência humana (HIV) também se mantém. Em 2020, cerca de 77% dos casos notificados foram testados para VIH (85,6% em 2019) e 9% apresentavam co-infeção tuberculose/VIH.

    Para Portugal atingir os objetivos fixados pela Organização Mundial de Saúde – redução do número de mortes em 95% e a taxa de incidência em 90% até 2035 face a 2015 –, em nota incluída no relatório, a directora-geral da Saúde Graça Freitas destaca “o rastreio e tratamento gratuito e o livre acesso às consultas de tuberculose nos Centros de Diagnóstico Pneumológico”.

    Contudo, esta responsável admite que “a desaceleração na redução percentual anual da doença, associada a uma diminuição abrupta do número de casos em 2020 e ao aumento da mediana de dias até ao diagnóstico, reforçam a necessidade de definir novas estratégias e monitorizar resultados.”

  • A censura depois da escrita, séculos antes do Estado Novo e de Zuckerberg

    A censura depois da escrita, séculos antes do Estado Novo e de Zuckerberg

    Sempre cheia de boas intenções, como o inferno, a Censura é uma das armas do poder para controlar e dissuadir o livre pensamento, e para orientar as sociedades. Cada vez mais actual nos dias de hoje, com a censura de órgãos de comunicação social e nas redes sociais, na verdade a Censura sempre existiu. A Biblioteca Nacional mostra, em exposição, como se fazia entre os séculos XV e XIX.


    Censura, nos dias de hoje, remete de imediato para o bloqueio de informação no conflito russo-ucraniano. O Governo de Putin já censurou a actividade de órgãos de comunicação social independentes da Rússia e do estrangeiro; por sua vez, no Ocidente fez-se o mesmo sobre alguma imprensa russa.

    Censura também foi aquilo que se aplicou, nos últimos anos, a tudo aquilo que se considerou desinformação, ou fake news, tanto na imprensa como sobretudo nas redes sociais, com fact-checkers a determinarem os textos que deveriam ser suprimidos dos olhares mais “sensíveis”. No Facebook, por exemplo, algumas palavras ou imagens davam origem a “castigos” aplicados por algoritmos ou por operadores humanos inalcançáveis e sem paradeiro conhecido.

    A palavra Censura tem também sobretudo em Portugal uma conotação política, que nos transporta para o período anterior à democracia instaurada: o Estado Novo. Não é estranho que assim seja, uma vez que muitos portugueses se lembram ainda de sentirem na pele a repressão daquele período.

    Se se fizer uma análise cronológica, a Censura não foi inventada nem agora nem por Zuckerberg nem por Salazar. As suas origens remontam vários séculos atrás, obrigando a uma grande viagem no tempo. E é isso mesmo que nos quer fazer a Biblioteca Nacional na exposição “Bibliotecas Limpas”, patente até 23 de Abril próximo, e que percorre os ínvios caminhos da censura literária sobretudo entre os séculos XV e XIX.

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    Que a Censura ainda é mais antiga do que os livros impressos, isso bem se sabe. No século XIII já o poder, sobretudo associado à religião, controlava o acesso à informação, e mesmo sabendo-se que poucas pessoas sabiam ler, já existiam listas de livros proibidos.

    Em todo o caso, foi com a instituição do Tribunal do Santo Ofício (ou da Inquisição), chegado a Portugal na primeira metade do século XVI, durante o reinado de D. João III, que a Censura se “profissionalizou”. Vigorou durante quase três séculos, até ser extinto em 1821.

    A Inquisição, instaurada essencialmente para evitar a disseminação de ideologias contrárias ao catolicismo – como o judaísmo e, mais tarde, os movimentos protestantes – foi uma das estruturas eclesiásticas mais opressoras da História da Europa. Apesar de ser um órgão religioso, era dotada de poder jurídico, tendo legitimidade para condenar hereges a penas de prisão ou mesmo à morte por estrangulamento e/ou pelo fogo.

    Mas além desta tenebrosa função, a Inquisição era um dos braços da censura dos livros; na verdade, constituída por três até aos tempos do Marquês de Pombal que, em 1768, instituiu a centralizadora e mais politizada Real Mesa Censória.

    Além dos inquisidores do Santo Ofício, que passaram a exercer o exame de livros a partir de 1536, uma outra instância, o denominado Ordinário (ligado à Igreja), já o fazia desde 1517. Uma tríade de “vigilantes da pureza” foi completada em 1576 com os revisores do Desembargo do Paço, uma mão mais política.

    Qualquer obra tinha uma revisão prévia, antes de ser impressa, e depois, para ser comercializada, passava de novo pelos revisores para apurar se cumprira todas as eventuais alterações. Os textos das censuras nos livros aprovados eram quase sempre publicados, integrados nas obras, sendo que, em muitos casos, serviam também como elogios aos autores.

    Compilação das obras de Gil Vicente, editadas em 1586, tiveram partes expurgadas por indicação da Censura em 1624.

    A Censura nem sempre era total, ou seja, não se aplicava pela simples proibição integral da obra, denominada macrocensura.

    Também havia, porém, a microcensura, que eliminava e impunha correcções apenas em partes, na maioria dos casos após a impressão das obras, realizada à mão (riscando palavras, frases ou imagens) por iniciativa sobretudo de religiosos. É nesta segunda linha que a exposição Bibliotecas Limpas se debruça.

    Hervé Baudry, curador desta exposição e investigador na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa diz haver “uma ironia latente nesta denominação, pois as bibliotecas estavam sujas”, explicando que “por um lado, sujas pela tinta com que os censores tingiam as palavras, frases ou páginas consideradas heréticas, mas metaforicamente esta sujidade a ser limpa representa a repressão e a punição, perpetradas em nome da moralidade e da ortodoxia católica.”

    Este tipo de limpeza dos censores consistia, assim, em expurgar passagens ou palavras para que os livros pudessem ser lidos sem afectar o seu autor. Assim, “a correção não era das almas e dos corpos, como nos processos da Inquisição sobre pessoas, mas sim das palavras”, como se adianta no catálogo da exposição.

    Neste processo, os censores substituíam ou acrescentavam palavras, como se mostra nos exemplares expostos na exposição. Noutras situações, como numa edição de 1524 em latim de Ovídio, obviamente para leitura de religiosos, era dada a orientação expressa de “não se poder ler sem a permissão dos superiores” se a obra não estivesse expurgada de partes consideradas sensíveis.

    Os nomes de Erasmo de Roterdão e Thomas More foram suprimidos em obras.

    Existem até casos muito curiosos de censura nem sempre se discernindo a causa. Por exemplo, numa edição de Heródoto de 1592 surge o nome do impressor ilegível, descaracterizando cada letra. Noutros casos são feitas colagens com papel sobre passagens de textos ou mesmo o nome de autores, como acontece numa edição de 1535 de uma obra do filósofo grego Luciano de Samósata com comentários de Erasmo de Roterdão e Thomas More.

    No entanto, o mais comum era o expurgo através de tinta ou a simples retirada de páginas, através de rasgos, como se pode observar na meia centena de obras expostas, que incluem livros de Horácio, Santo Agostinho, Copérnico, Erasmo de Roterdão e Voltaire, bem como dos portugueses Gil Vicente, Amato Lusitano, Garcia de Orta, Garcia de Rezende, Sá de Miranda e Luís de Camões. Note-se que estes livros tinham tido a sua impressão autorizada, mas, por razões várias, e por vezes décadas mais tarde, acabavam por ser erróneos ou possuindo conteúdos inaceitáveis.

    Por exemplo, o Cancioneiro Geral, de Garcia de Rezende, publicado originalmente em 1516, teve expurgos décadas depois. É um dos exemplos onde se verifica diferenças nos critérios da Inquisição na Península Ibérica, uma vez que a vizinha Espanha não o suprimiu. A explicação? Os espanhóis estariam mais interessados na censura política do que na literária.

    Saliente-se também que a posse de livros proibidos – mesmo que tivessem tido circulação autorizada anteriormente – foi, durante a primazia da Inquisição, um crime considerado de extrema gravidade. Por exemplo, Cristóvão Francisco, um lisboeta de 25 anos, foi executado em finais do século XVI por deter um livro reprovado pelo Catálogo do Concílio Tridentino por conter superstições e blasfémias, segundo consta nos arquivos da Direcção-Geral do Livro.

    Mesmo livros médicos acabaram por ter as “partes íntimas” manchadas.

    Os livros proibidos eram listados e compilados, com indicações por vezes muito precisas sobre as partes a retirar, como sucedeu em 1624 com o Index auctorum damnatae memoriae, onde também se incluíam instruções para corrigir centenas de obras. Feitos os ajustes necessários, os títulos poderiam então voltar a circular com a seguinte inscrição: tutto lege.

    Os cidadãos comuns não eram os únicos a serem perseguidos. Alguns dos maiores nomes da História nacional viram as suas obras censuradas pela máquina burocrática inquisitória. Foram os casos de Luís de Camões e Bocage. A expressão “cagando ao vento”, de um poema de Bocage, foi reprovada pelos censores. Já Os Lusíadas, considerada a obra-prima da literatura portuguesa, terá tido algumas correcções na edição original, e uma edição espanhola de 1639 chegou a ser proibida pela Inquisição de Coimbra por “conter muitas coisas escandalosas e ofensivas para a Religião Católica”.

    Muitas vezes, a Censura pretendia um efeito dissuasor. Acontecia nos casos em que, embora os textos tivessem passagens rasuradas, a tinta não impossibilitava que se percebesse o que estava escrito. Nessas situações, Baudry explica que, ao verem que aquele conteúdo estava proscrito, as pessoas não liam. Recorde-se que ler ou ter um denominado “livro defeso” era suficiente para se ser condenado. Na Torre do Tombo encontram-se vários processos inquisitoriais desta natureza. O último caso conhecido foi o do frade Francisco de Santa Ana, em 1817, por ler Voltaire.

    Se as palavras podiam representar um perigo para a moral e os bons costumes, as imagens também. A nudez, especificamente, não tinha espaço nos conteúdos permitidos, fossem de natureza científica ou artística. Numa obra de Ambroise Paré, um cirurgião francês, que ilustra a extracção de cálculos na bexiga, a genitália do paciente aparece tapada por uma mancha branca.

    O Cancioneiro Geral, de Garcia de Rezende, chegou a ter mais de 90% do seu conteúdo rasurado.

    Embora a Inquisição tenha sido abolida no início do século XIX, a Censura nunca foi, e tem-se transmitido por várias formas, em função do regime político de cada país, ou mesmo por via da auto-censura, por vezes seguindo o politicamente correcto, mesmo quando se trata de Literatura, baseada na liberdade de pensamento e criação.

    Um dos casos mais evidentes em Portugal ocorreu em 2019 quando a Porto Editora decidiu rasurar três versos da Ode Triunfal de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, na edição de um livro escolar do 12º ano, por conter linguagem explícita e elogiosa à pedofilia.


    Bibliotecas Limpas – Censura dos livros impressos nos séculos XV a XIX

    EXPOSIÇÃO | 25 fev. – 23 abr. ’22 | Sala de Exposições da Biblioteca Nacional (Lisboa) – Piso 3 | Entrada livre

  • Comissão Europeia quer prolongar certificado que obriga à toma de até cinco doses da vacina contra a covid-19

    Comissão Europeia quer prolongar certificado que obriga à toma de até cinco doses da vacina contra a covid-19

    A Comissão Europeia quer manter a discriminação entre vacinados e não-vacinados, propondo o prolongamento do uso dos certificados digitais por mais um ano, até finais de Junho de 2023. E cita estudos que comprovam a “utilidade” das proibições de acesso como incentivo para a toma de mais doses da vacina. Caso seja aprovado o novo regulamento, além da manutenção de uma política segregacionista, com uma quarta dose serão vendidas pelo menos mais de 300 milhões de vacinas na União Europeia, um negócio superior a 6 mil milhões de euros para as farmacêuticas. E acrescem também custos operacionais de gestão dos certificados na ordem dos 10 mil milhões de euros.


    Em contraciclo com as decisões de alguns países europeus – como a Dinamarca, Finlândia, Noruega e Reino Unido – em cessar já a discriminação dos cidadãos em função do seu estado vacinal contra a covid-19, a Comissão Europeia quer estender por mais um ano a aplicação dos certificados digitais para condicionar ou proibir a circulação aérea e o acesso a certos lugares públicos por não-vacinados.

    Numa altura em que a pandemia se encontra já numa fase claramente endémica, a Comissão von der Leyen – adepta da imposição da vacinação obrigatória universal, incluindo a jovens e crianças – tem já pronta uma proposta de regulamento para prolongar até 30 Junho de 2023 o controlo de entradas através deste certificado, que apenas atesta a toma de vacinas ou a ocorrência de uma infecção recente.

    Como os certificados têm agora uma validade de nove meses, a implementação desta medida garante às farmacêuticas pelo menos mais um reforço vacinal. No limite, quem tomou a chamada “dose de reforço” até finais de Novembro do ano passado terá de receber uma quinta dose para não sofrer restrições de circulação até ao meio do próximo ano.

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    No texto que acompanha a sua proposta de regulamento, a Comissão Europeia mostra ser uma fervorosa adepta do uso do certificado digital para o condicionamento de acesso em espaços públicos no interior de cada país (por exemplo, em restaurantes, ginásios ou eventos culturais e desportivos) como instrumento de “incentivo” para a vacinação. E menciona expressamente dois estudos que provam que a implementação do certificado digital convenceu muitos a vacinarem-se.

    Num desses estudos, ainda em fase de working paper, investigadores belgas e franceses defendem que durante o Verão do ano passado os “certificados covid” contribuíram para um aumento substancial na aceitação de vacinas: mais 13,0 pontos percentuais (pp) na França, mais 6,2 na Alemanha e mais 9,7 na Itália. Ou seja, na verdade, assumem que as pessoas não se vacinaram por acreditar no poder de protecção da vacina; quiseram, sim, apenas continuar a movimentar-se livremente.

    Mas os investigadores também garantem que o certificado salvou vidas, embora através de uma mera análise contrafactual – ou seja, fazendo estimativas sobre eventuais mortes que teriam ocorrido se não houvesse aquele aumento de vacinação. Na sua opinião, sem esse reforço de vacinação teriam morrido mais 3.979 pessoas por covid-19 na França, 1.133 na Alemanha e 1.331 na Itália, além de avultadas perdas económicas.

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    Saliente-se, contudo, que nestes três países – tal como, aliás, em Portugal – morreram mais pessoas por covid-19 no Verão de 2021 (com vacina) do que no Verão de 2020 (ainda sem vacina).

    Noutro estudo (sem peer review), também mencionado pela Comissão Europeia, e que aborda igualmente a realidade do Canadá, aponta-se para uma subida semanal superior a 60% na primeira toma da vacina após a decisão das autoridades em impor o uso de certificado digital como forma de discriminação dos cidadãos não-vacinados.

    Recorde-se que, na União Europeia, onde já se emitiram mais de mil milhões de certificados, a vacina contra os efeitos do SARS-CoV-2 só passou a ser obrigatória na Áustria, e para certas profissões em outros Estados-membros, como a Grécia e Hungria (para profissionais de saúde), na França (profissionais de saúde e forças de segurança) e na Itália (para as duas anteriores classes, e também para professores e trabalhadores de lares).

    Estas decisões são polémicas, tanto mais que, por norma, nem os Estados nem as farmacêuticas assumem responsabilidades em caso de efeitos adversos. Em todo o caso, o Governo italiano já reservou 150 milhões de euros com vista a compensar eventuais reacções adversas da vacinação.

    Face à relutância de uma franja importante da população em tomar a dose de reforço, a manutenção do certificado digital constitui assim uma forma de coerção e incentivo. Caso 80% da população europeia “vacinável” adira a um reforço, serão vendidas mais de 300 milhões de doses, o que representará um negócio de 6 mil milhões de euros para as farmacêuticas. Além disto, os custos operacionais previstos pela própria Comissão Europeia para o prolongamento do certificado digital podem ascender aos 10 mil milhões de euros.

    A proposta da Comissão von der Leyen, apresentada no seu site em 23 línguas, está agora em consulta pública até ao próximo dia 8 de Abril, e a merecer já forte contestação, com uma elevada participação. Ontem, pelas 19 horas, o PÁGINA UM contabilizou 24.182 comentários, quase todos criticando o carácter desumano e discriminatório do certificado, até porque, como instrumento de controlo da doença, este papel não constitui nem garantia de não-infecção nem de não-transmissão da covid-19.

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    Hoje, pelas 16 horas, o número de comentários já ultrapassava os 28.000, sendo que 53% provinham da Itália, 9% da Alemanha e 8% da França e também da Holanda. Com 451 comentários, Portugal encontrava-se na nona posição (2% do total). Além das opiniões de cidadãos, a proposta de regulamento incluía já comentários de 106 empresas ou associações empresariais, 23 universidades, 18 entidades públicas, 22 organizações de consumidores ou não-governamentais, cinco sindicatos e outras tantas associações de defesa do ambiente.

    A Comissão Europeia promete que “todos os comentários recebidos serão resumidos e apresentados ao Parlamento Europeu e ao Conselho a fim de contribuir para o debate legislativo”.

    Nota: Para leitura integral da proposta da Comissão Europeia, e para elaborar comentários, pode aceder AQUI.

  • Ministro do Ambiente organizou conferência de imprensa apenas para jornalistas vacinados

    Ministro do Ambiente organizou conferência de imprensa apenas para jornalistas vacinados

    O gabinete de Matos Fernandes, ministro do Ambiente, exigiu aos jornalistas que apresentassem “certificado de vacinação” para aceder a uma conferência de imprensa sobre seca. Agora disse ao PÁGINA UM que foi um “equívoco”, e que deveria ter apenas sido pedido certificado digital ou teste. No entanto, nem isso pode ser exigido, segundo as normas de um Conselho de Ministros: em edifícios governamentais, só máscara; e nada mais.


    Apesar das medidas de controlo da pandemia terem sido decretadas pelo Governo através de uma Resolução do Conselho de Ministros, o Ministério do Ambiente e da Acção Climática decidiu, na semana passada, convocar uma conferência de imprensa com uma exigência inédita: a obrigatoriedade de apresentação de um certificado de vacinação para aceder a uma sala do edifício ministerial, na Rua do Século, em Lisboa.

    A nota de imprensa do gabinete do ministro Matos Fernandes – que esteve presente numa conferência de imprensa no passado dia 1, terça-feira, para abordar o problema da seca e dos baixos níveis de armazenamento das albufeiras – informou previamente os jornalistas que “dada a situação pandémica, é obrigatório o uso de máscara e será necessário a apresentação de certificado de vacinação”.

    Texto integral da convocatória do Ministério do Ambiente e da Acção Climática.

    A exigência do Ministério do Ambiente excede em muito aquilo que constituem as normas sanitárias. Na verdade, o acesso a um edifício ministerial deverá ser livre – não sendo sequer necessário exibir um teste negativo, e muito menos um certificado digital de vacinação ou de recuperação –, sendo apenas exigível, como em todos os espaços interiores, o uso de máscara facial.

    Contactado o Ministério do Ambiente pelo PÁGINA UM – que não esteve presente na conferência de imprensa por razões meramente editoriais –, o assessor de imprensa Paulo Chitas justifica que o texto da convocatória foi um “equívoco”, salientando mesmo que a “formulação não foi a mais feliz”. E adiantou ainda que aquilo que “é necessário aos jornalistas é apresentarem um certificado de vacinação, de recuperação ou um teste negativo para aceder às instalações [do Ministério do Ambiente], como é comum em espaços onde se concentra um grande número de pessoas.”

    Isso não é verdade, tal como facilmente se constata pela leitura da Resolução do Conselho de Ministros, ou, de forma mais fácil, em cafés, supermercados, lojas e em qualquer transporte público – que é, aliás, sector tutelado por Matos Fernandes.

    Com efeito, a realização de teste com resultado negativo é, actualmente, exigível no acesso “a estabelecimentos turísticos ou de alojamento local, a estabelecimentos de restauração e similares, a estabelecimentos de jogos de fortuna ou azar, casinos, bingos ou similares, a bares, a outros estabelecimentos de bebidas sem espectáculo e a estabelecimentos com espaço de dança, a determinados eventos e, ainda, a ginásios e academias”.

    Matos Fernandes, ministro do Ambiente.

    No entanto, em caso de apresentação de prova de vacinação há pelo menos 14 dias, é dispensado o teste para acesso “a bares e discotecas, a determinados eventos, a estruturas residenciais para idosos, unidades de cuidados continuados integrados da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados e a outras estruturas e respostas residenciais”.

    Ora, em nenhuma destas situações se encaixa, mesmo com interpretação muito lata, as instalações ocupadas pelo ministro Matos Fernandes. E mesmo se assim fosse – ou seja, se o Ministério do Ambiente fosse comparado, por exemplo, a um casino, a uma discoteca, a um lar de idosos ou a uma unidade de cuidados continuados –, nem a convocatória da conferência de imprensa jamais poderia exigir exclusivamente o “certificado de vacinação”, porquanto os recuperados também possuem certificado digital.

    O PÁGINA UM questionou de novo o Ministério do Ambiente sobre a sua justificação, e perguntou ainda se os assessores e demais funcionários foram obrigados a vacinarem-se para continuar em funções, ou se Matos Fernandes exige “certificado de vacinação” para receber pessoas em audiência. O gabinete de imprensa disse apenas que “nada mais temos a acrescentar”.

    Oficialmente, o Ministério do Ambiente não informou o PÁGINA UM se algum jornalista foi impedido de entrar naquela conferência de imprensa, ou se, no futuro, será vedado o acesso a um evento similar, ou mesmo conversar com o ministro Matos Fernandes, se não apresentar certificado digital (de vacinação ou de recuperação) ou um teste negativo.

    Saliente-se que o teste negativo – que constitui apenas um “retrato” no momento da sua realização – e muito menos o certificado digital – que apenas atesta a toma de vacinas ou a existência prévia de infecção, ou seja, a presença individual de imunidade vacinal e natural, respectivamente – não constituem uma garantia de ausência de infecção.

    Ou seja, na conferência de 1 de Fevereiro deste ano, Matos Fernandes ou outra qualquer pessoa no interior do palacete da Rua do Século poderia ter sido infectado por um dos jornalistas ordeiramente munidos de certificado de vacinação com dose tripla. Até porque qualquer um deles, mesmo vacinado, poderia estar infectado, e infectar um terceiro.

  • Clima de crispação social e política cresce no Canadá

    Clima de crispação social e política cresce no Canadá

    O “estado de emergência” e a proibição judicial de buzinar em Ottawa teve um impacte quase nulo nos manifestantes, que estão a recuperar rapidamente, por outras vias, o financiamento retido pela GoFundMe. Entretanto, o ambiente político no Canadá está a adensar-se.


    Apesar do “estado de emergência” decretado anteontem pelo mayor de Ottawa, Jim Wilson, e da decisão judicial de proibição de buzinadelas dos camionistas, continua inabalável o braço-de-ferro entre o Governo de Justin Trudeau e os manifestantes do Comboio da Liberdade (Freedom Convoy). Nenhuma das partes parece querer ceder.

    Ontem, o juiz Hugh McLean ordenou que cessasse o barulho das buzinas como forma de protesto, alegando que não é “uma expressão de qualquer grande pensamento”, no seguimento de queixas de moradores incomodados com a presença de entre quatro e cinco centenas de camiões.

    No entanto, essa aparenta ser uma pequena limitação para refrear o dinamismo dos manifestantes, que prometem não arredar pé do centro de Ottawa. Movimentos similares, mas de menores dimensões, surgiram entretanto, durante o fim-de-semana, em outras cidades canadianas, entre as quais Toronto, cidade de Quebec e Winnipeg.

    Justin Trudeau, ontem, na Câmara dos Comuns.

    Desde que, na sexta-feira passada, o Freedom Convoy viu a plataforma de crowdfunding GoFundMe suspender a campanha que já recolhera 10 milhões de dólares canadiano (cerca de 6,3 milhões de euros), os ânimos dos manifestantes têm sido reforçados com uma redobrada solidariedade, tanto no Canadá como em outras partes do Mundo.

    A plataforma da GiveSendGo – que substituiu a da GoFundMe, que se viu, entretanto, obrigada a prometer a devolução incondicional dos montantes retidos aos doadores – conta já com apoios de 6,6 milhões de dólares, o que representa mais de 5,7 milhões de euros. Por outro lado, a comunidade das criptomoedas, através da Tallycoin, já recolheu quase meio milhão de euros em bitcoins.

    O mayor de Ottawa, Jim Watson, tem acentuado, em tom dramático, a presença dos manifestantes, dizendo que os residentes da capital “estão aterrorizados”, e acusando as incessantes buzinadelas de serem uma forma de “guerra psicológica”. Após Watson ter, no domingo, declarado o “estado de emergência”, foi solicitado ainda ao Governo federal o envio urgente de 1.800 operacionais da Real Polícia Montada Canadiana, com o objetivo de “recuperar a cidade”.

    Organizadores do Freedom Convoy, em conferência de imprensa, têm insistido no pacifismo da manifestação e apelam à negociação para acabar com as restrições.

    Poucas horas depois, a polícia de Ottawa terá apreendido milhares de litros de combustível e propano, comprometendo o funcionamento de cerca de mil camiões. No domingo, as autoridades confirmaram a abertura de mais de 60 investigações criminais supostamente associadas aos protestos, alegando danos, roubos, crimes de ódio e danos à propriedade, e chegou mesmo a ameaçar deter quem ajudasse os manifestantes. Terão sido também passadas cerca de 450 multas por excesso de ruído, desde a manhã de sábado.

    No entanto, curiosamente, apesar das insistentes acusações de vandalismo e violência, as autoridades canadianas continuam sem disponibilizar imagens ou outras provas de comportamento ilegal dos manifestantes, para além das buzinadelas e da ocupação de ruas por veículos e pessoas. Os organizadores do Freedom Convoy têm sistematicamente negado quaisquer ilegalidades, falando mesmo em boa relação com as forças policiais, insistindo na necessidade de diálogo com as autoridades.

    Entretanto, o primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, reapareceu ontem, num debate de emergência na Câmara dos Comuns, e declarou que os protestos “têm de parar”, acusando os manifestantes de “tentarem bloquear a nossa Economia, a nossa democracia e a vida quotidiana dos nossos concidadãos”.

    Este debate mostrou, contudo, o início de uma divisão política em torno da gestão da pandemia, por via das acções do Freedom Convoy. Enquanto Jagmeet Singh, líder do Novo Partido Democrático (NDP), a quarta força política do país, mostrou apoio ao Goveno, considerando que não se está perante um “protesto pacífico”, já a líder da oposição (Partido Conservador), Candice Bergen, acusou Trudeau de alimentar a divisão e o descontamento do país pela forma de gestão da pandemia.

    Mesmo no partido de Trudeau, o mal-estar começa a eclodir, o que pode complicar ainda mais a gestão deste delicado conflito social, que dificilmente poderá ser feito através de repressão policial, pelas imprevisíveis consequências na opinião pública canadiana.
    Hoje, o deputado liberal Joel Lightbound criticou abertamente a gestão da pandemia pelo Governo federal, considerando ser “hora de pararmos de dividir a população”, acrescentando que “nem todos podem ganhar a vida com um MacBook numa casa de campo”, numa alusão às restrições da actividade económicas ao longo da pandemia.
    O mal-estar desta conferência de imprensa foi de tal dimensão que Lightbound se viu já forçado a pedir, esta noite, a sua demissão de presidente do caucus de Quebec.

    N.D. – O PÁGINA UM, conforme defendeu em editorial desta manhã, decidiu suspender a sua angariação pontual de fundos através do GoFundMe, onde tinha angariado 13.884 euros (valor bruto, sem deduções de cerca de 10% em comissões), passando a optar pela plataforma MIGHTYCAUSE.

  • A prova dos nove

    A prova dos nove

    Quem assiste aos telejornais ou percorre as ruas ou aplica as regras impostas pelo Governo, pensará que a situação pandémica estará, pelo menos igual, ou pior do que estava há um ano. A PÁGINA UM foi fazer as contas.


    O PÁGINA UM realizou uma análise comparativa da taxa de letalidade da covid-19 – ou seja, dos óbitos atribuídos a esta doença por cada 100 casos positivos – não apenas entre países, mas também entre períodos.

    Pretendia-se observar se a actual situação da pandemia justifica o clima de medo ainda instalado em Portugal – com pressões para, por exemplo, se vacinarem crianças, grupo praticamente não afectado por esta doença –, que tem implicado ainda a manutenção de restrições sociais e económicas, e um modelo discriminatório dos não-vacinados, mesmo daqueles com imunidade natural após infecção anterior.

    Cada vez mais se torna evidente que, além do programa de vacinação abranger uma cobertura quase total das comunidades mais idosas, a variante Ómicron é, claramente, menos agressiva. Por exemplo, um recente estudo de investigadores da Universidade Politécnica de Hong Kong, ainda não revisto pelos pares (peer review), adiantam que a variante Ómicron, apesar de uma transmissibilidade três vezes superior às anteriores, mostra um a redução da taxa de letalidade de 87,8%.

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    Rússia é uma excepção ao panorama favorável dos últimos meses.

    Isto significaria que, se com a variante Alfa ou Delta, a taxa de letalidade rondava, em geral, os 2% nos países mais desenvolvidos, torna-se expectável que com a Ómicron viesse então a atingir valores próximos de 0,25% ou ainda mais baixo.

    Vejamos então.

    Para esta análise, incluímos, além dos 27 países da União Europeia, mais três países europeus (Noruega, Reino Unido e Rússia), e ainda Austrália, Brasil, Canadá, Estados Unidos, Índia, Nova Zelândia. A taxa de letalidade foi calculada para dois períodos distintos: os primeiros 12 meses da pandemia – assumindo que, na generalidade destes países, os óbitos atribuídos à covid-19 começaram em Fevereiro de 2020; e os últimos seis meses, de modo a abranger o surgimento da variante Ómicron, associado também a um aumento muito significativo de casos positivos.

    Assim sendo, para ambos os períodos – o primeiro terminado em 1 de Fevereiro de 2021; o segundo compreendido entre 1 de Agosto de 2021 e 1 de Fevereiro do presente ano –, obteve-se os valores tanto dos casos positivos como dos óbitos. A informação foi recolhida no site Worldometers.

    Um dos aspectos mais relevantes é a notória descida – muito significativa em muitos países – das taxas de letalidade entre o primeiro e o segundo período analisado. A única excepção é a Rússia, que regista um incremento de 1,05 pontos percentuais (p.p.), passando de 1,92% para 2,97%. Apesar de ser um país actualmente com uma relativamente baixa taxa de vacinação (48,8% da população com duas doses), nunca se sentiu um efeito relevante desse fármaco.

    Ao invés, desde finais de Junho do ano passado, os óbitos têm estado sempre em níveis muito mais elevados do que nos períodos anteriores, antes do fabrico das vacinas. Por outro lado, o pico dos óbitos verificou-se em meados de Novembro, sensivelmente na altura do surgimento da Ómicron, e a partir daí as mortes têm tido uma tendência decrescente, apesar da acentuada subida de casos positivos. Entre 10 de Janeiro e início de Fevereiro deste ano, os novos casos diários aumentaram cerca de 10 vezes, situando-se agora nos 153 mil por dia (média móvel de sete dias).

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    Portugal está com uma das mais baixas taxas de letalidade da Europa.

    Em todo o caso, a actual taxa de letalidade na Rússia não atinge os níveis que ocorriam em qualquer destes países analisados durante a primeira fase da pandemia. A taxa de letalidade era, ao fim do primeiro ano, superior a 3% na Austrália (3,15%, apesar do número absoluto relativamente reduzido de vítimas), Hungria (3,42%), Itália (3,45%), Grécia (3,66%) e Bulgária (4,15%).

    Observavam-se ainda 12 países com taxas de letalidade entre 2% e 3%. Apenas três países (Chipre, Noruega e Estónia) tinham taxas de letalidade inferiores a 1%. Portugal (1,78%) estava então no lote de 16 países com taxas entre 1% e 2%. Saliente-se que, nesta fase, ao fim do primeiro ano da pandemia, a Suécia estava na 16ª posição no grupo destes países, com uma taxa de letalidade de 2,11%, apesar das sistemáticas críticas ao modelo de gestão escolhido que não passou por lockdowns nem pelo uso obrigatório de máscaras.

    O cenário ficou bem mais favorável a partir de Agosto do ano passado. Devido, em grande parte, por um significativo número de recuperados possuírem agora imunidade natural, pela menor agressividade da variante Ómicron e por via do plano de vacinação – não necessariamente por esta ordem, em termos de relevância –, observa-se nos últimos seis meses uma fortíssima redução da mortalidade atribuída à covid-19. Isto apesar de um colossal aumento dos casos positivos na quase generalidade dos países ao longo do último semestre, mas sobretudo no último mês.

    Aliás, o inusitado crescimento do número de casos – de longe, a incidência de casos positivos é a maior registada ao longo de dois anos de pandemia – parece confirmar, por um lado, a maior transmissibilidade da variante Ómicron. E, por outro lado, mostra também não só a sua menor agressividade, mas, de igual modo, a incapacidade dos vacinados de terem afinal uma menor susceptibilidade à infecção. Isto sem menosprezar, sobretudo para idades avançadas, uma redução relevante, embora passageira, na gravidade da doença em caso de infecção.

    Porém, até esta conclusão nos parece necessitar de uma análise cuidadosa, e independente, de modo a apurar o verdadeiro grau de eficácia das vacinas contra a variante Ómicron, sabendo-se que, na verdade, se “destinavam” a atacar as variantes diferentes.

    Taxas de letalidade (%) no primeiro ano e nos últimos seis meses. Fonte: Worldometers

    Em todo o caso, interessa destacar que, nos últimos seis meses, apenas três países – Rússia (2,97%), Bulgária (2,79%) e Roménia (2,14%) – apresentaram taxas de letalidade superiores a 2%, quando no primeiro ano da pandemia eram 17. No entanto, o maior destaque vai, certamente, para os 30 países que registaram taxas de letalidade inferiores a 1%. E destes, 14 com taxas inferiores a 0,25%.

    Neste último lote – o mais favorável – está Portugal, com uma taxa de apenas 0,15%, ou seja, uma redução de 1,63 p.p. (ou uma redução de 92%) em comparação com o primeiro ano da pandemia. Colocar o país em quarentena, manter restrições com estes níveis de agressividade do “actual” SARS-CoV-2, ou discriminar não-vacinados, aparenta ser algo, no mínimo, absurdo.

    Similar situação é a da França, outro país com uma redução brutal nas taxas de letalidade, passando de 2,55% no primeiro ano para apenas 0,14% nos últimos seis meses. Considerar que na França se está agora perante a mesma pandemia de 2020 será somente miopia. E a insistência de Emmanuel Macron, presidente francês, em impor a vacinação universal parece dever-se mesmo à sua vontade, como afirmou, de “chatear” e “irritar” os não-vacinados, porque justificações de Saúde Pública parecem não existir.

    Pandemia: hoje é um problema de Saúde Pública ou de política?

    A Áustria – que se tornou, por agora, o único país da União Europeia, a instituir a vacinação obrigatória para adultos –, apresentou uma taxa de letalidade de 0,27% nos últimos seis meses. Muito abaixo dos 1,87% que registou no primeiro ano da pandemia.

    A Alemanha, onde também se discute a obrigatoriedade da vacinação – e de onde é natural a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, uma apoiante da medida –, também apresenta uma baixa taxa de letalidade nos últimos seis meses (0,40%), que contrasta com os 2,68% do primeiro ano. Note-se que, nestes dois países, a taxa de vacinação contra a covid-19 se situa, respectivamente, nos 76% e 74%, o que significa que a população mais vulnerável, sobretudo idosos, já estará quase toda imunizada.

    Recorde-se que a taxa de letalidade para a pandemia do H1N1 em 2009 terá rondado os 0,5%, e estima-se que, por exemplo, na época de gripe sazonal nos Estados Unidos de 2018-2019 esse indicador rondou os 0,1% (28 mil mortes por gripe e pneumonias em 29 milhões de infecções), sendo que na de 2019-2020 foi de 0,06% (20 mil mortes em 35 milhões de casos).

    Estes são os factos. Esta é, portanto, a actual situação da pandemia na Europa e em outras paragens importantes do Mundo. O resto não é Saúde Pública; é política.

    NOTA: Os valores das taxas de letalidade nos países analisados nos dois períodos podem ser consultados AQUI.