Autor: Paulo Moreiras

  • Tudo se extingue, menos a estupidez

    Tudo se extingue, menos a estupidez

    Título

    Feras e homens: a fauna no Portugal Medieval

    Autores

    MIGUEL BRANDÃO PIMENTA e PAULO CAETANO

    Editora

    Bizâncio

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Cinco anos depois de Urso-pardo em Portugal Crónica de uma Extinção (2017), livro que narrava a história de como o urso-pardo viveu, sobreviveu e se extinguiu em território português, os mesmos autores, Miguel Brandão Pimenta (1950) e Paulo Caetano (1966), regressam aos seres vivos que existiram no Portugal Medieval, “desde os grandes quadrúpedes, como o zebro, aos mamíferos marinhos como o golfinho, passando pela cabra-montês, o açor, o caimão ou o sável”.

    Ao longo de 320 páginas, e através de oito capítulos, desde A Caça na Idade Média até A Falcoaria ao Serviço da Nobreza, de A Fauna na Alimentação Medieval a uma Viagem pelas Fontes Históricas, os autores traçam um retrato notável da fauna existente no Portugal da Baixa Idade Média, num período compreendido entre o ano 1000 e 1500. Destaque também para os Anexos, com curiosidades como A fauna na heráldica autárquica, o Índice de animais e plantas ou um Glossário que muito elucidam o leitor.

    Para consubstanciarem melhor esta descrição, os autores percorreram “alguns dos arquivos e bibliotecas públicas de Portugal”, folhearam “milhares de páginas de velhos livros e de documentos manuscritos”, consultaram “forais, cartas de couto, inquirições, livros de viagens e crónicas medievais”, assim como documentos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, entre muitas outras fontes, além de visitas a diferentes museus e mosteiros de Portugal.

    Contudo, não se pense que esta é uma obra científica, assente numa linguagem académica, antes se apresenta como um livro de divulgação, acessível a todas as pessoas e que se lê com muito prazer, numa escrita fluida, com diversas histórias e apontamentos curiosos, “enriquecido com diversos mapas de distribuição, fotografias e ilustrações”.

    O livro conta-nos as histórias relacionadas com a caça ao urso-pardo, ao javali ou ao veado, bem como as perseguições realizadas por todas as terras de Portugal aos lobos, incentivando-se fortemente a sua captura: “Desde tempos medievais até ao primeiro quartel do século XX, eram conhecidas as figuras dos lobeiros e bicheiros – caçadores que se dedicavam à perseguição ao lobo, colocando armadilhas e venenos ou saqueando os covis”.

    De acordo com os autores, terá sido apenas em 1978 que se realizou oficialmente a última batida ao lobo em Portugal, na serra do Soajo: ”Sob pressão da população, as autoridades do Parque Nacional da Peneda Gerês vacilaram. Depois, contrariadas, cederam sob o pretexto de corresponder aos anseios de uma população que teimava em manter viva a tradição popular: mesmo que fosse à custa da sobrevivência da espécie.”

    Outro tipo de caça era aquela realizada com a ajuda de falcões ou gaviões, a cetraria, também conhecida como volateria, altanaria ou caça de alto voo. Caçavam-se assim diversas aves silvestres, como a abetarda, a garça-real, a perdiz, o galeirão ou o maçarico.

    Devido ao crescimento demográfico exponencial verificado na Baixa Idade Média, a partir do século XII, o consumo de peixe em Portugal atingiu níveis elevados: “Até ao século XII, a sociedade medieval consumia sobretudo o peixe de água doce que migrava ao longo dos rios, como o salmão, a enguia ou o esturjão”. Do mar, entre outras espécies, consumiam-se sobretudo a sardinha, o cherne, a solha ou as azevias.

    Um dos capítulos mais pertinentes é o dedicado à “Fauna na alimentação medieval”, que nos dá uma visão bastante alargada sobre os hábitos alimentares em Portugal na Idade Média, onde pontificavam algumas excentricidades, como as mãos de urso (foi a 2 de Dezembro de 1843 que se abateu o último urso em Portugal, “durante uma batida realizada junto do ribeiro do rio Mau, em Montalegre”). Não só existem referências históricas acerca do consumo de carne de urso como a sua carne se encontrava tabelada em vários mercados, como por exemplo, “no açougue real da freguesia de Terena, no actual concelho do Alandroal”.

    Este é um livro com muitas histórias, curiosidades e pistas de leitura interessantes para o leitor explorar, numa abordagem multidisciplinar e transversal da História de Portugal, mas também da sua gastronomia, e, principalmente, das suas tradições, felizmente, em boa hora, caídas em desuso ou proibidas.

    Após a sua leitura, é assustador pensar em toda a biodiversidade que existiu neste humilde rectângulo e que, pela estupidez dos homens, várias espécies foram levadas à extinção. Possa este livro servir não só para conhecermos o passado mas também nos ajudar a reflectir acerca da construção de um futuro melhor.

  • Alegria para o jantar

    Alegria para o jantar

    Título

    Luís de Sttau Monteiro gastrónomo

    Autora

    ANA MARQUES PEREIRA

    Editora (Edição)

    Edição de Autor: Ana Marques Pereira (Setembro de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Conhecido sobretudo pela sua dramaturgia, Luís de Sttau Monteiro (1926-1993) foi também um apaixonado pelas artes culinárias e pela gastronomia, tendo sido um dos pioneiros da crítica de restaurantes em Portugal.

    Por volta dos dez anos, na Covilhã, Ana Marques Pereira (n. 1949) tomou conhecimento com a obra literária de Sttau Monteiro. Na época os seus livros eram considerados como proibidos: “Era nesse contexto que se integravam os livros de Sttau Monteiro, que fui comprando à medida que iam sendo publicados. Lia-os avidamente e com prazer”.

    Agora, com o livro Luís de Sttau Monteiro gastrónomo (320 págs.), a investigadora decidiu abordar “o seu papel como gastrónomo e crítico de restaurantes, faceta que foi tão importante na sua vida e obra, mas que tem passado ao lado daqueles que o conhecem e o apreciam como um dos maiores escritores do século XX.”

    Foi em 1959, na revista Almanaque, coordenada por José Cardoso Pires, que Luís de Sttau Monteiro começou a escrever sobre gastronomia e culinária, passando depois pelo “suplemento do Diário de Lisboa, em A Mosca; no semanário O Jornal, com artigos sob títulos diversos como Gastronomia, Gastromania ou Restaurantes, e por fim com a rubrica O Petisco publicada no jornal Se7e”. Um percurso desde o final dos anos 50 até aos anos 90, quando “na época não era ainda habitual deparar com este tipo de matéria nos jornais ou revistas portuguesas.”

    Ao longo de todo este tempo, a maioria das suas críticas gastronómicas não eram assinadas, outras vezes utilizava pseudónimos — foi possível identificar 14 —, como por exemplo: Inspector Gourmet, Manuel Pedroso, Manuel Pedrosa, Fernando C. Malveia,  António Coutinho, Carlos R. Rodrigues ou Paulo Santana, sendo provável a existência de outros. Na opinião da investigadora, “não podemos excluir que esta diversidade de identificações tenha a ver com a sua má experiência anterior com a Censura e a perseguição pela PIDE.”

    De acordo com Ana Marques Pereira, “todo o percurso de escrita em Sttau Monteiro nos faz crer tratar-se de um interessado nas artes da cozinha”. Era uma pessoa que não só gostava de cozinhar como de partilhar as refeições com os amigos e familiares. E isso encontra-se bem patente nos seus escritos, onde demonstrava um “conhecimento alargado da cozinha internacional”, mas também se reconhecia “um interesse verdadeiro pela cozinha tradicional portuguesa”.

    Destaque para a sua passagem pela RTP, onde “Sttau Monteiro foi também autor de um programa de televisão destinado a dar a conhecer a culinária e doçaria tradicionais de Portugal, intitulado Caldo de Pedra”, embora na ficha técnica seja indicado como autor o nome de Manuel Pedrosa, um dos muitos pseudónimos que Sttau Monteiro utilizava nas crónicas.

    Um dos capítulos mais curiosos, e que muito valoriza este livro, é o dedicado aos cadernos dactilografados de Sttau Monteiro, que foram adquiridos por Ana Marques Pereira num alfarrabista. Um conjunto de apontamentos constituído por oito “arquivadores, com separadores, com letras ordenadas por ordem alfabética”, que foram escritos pelo colunista e “que lhe serviram de base para algumas das afirmações que fazia nas crónicas publicadas nos vários jornais”. Além disso, todos estes apontamentos serviam para “registar as bases para um Dicionário da História da Alimentação”, projecto que nunca concretizou.

    Por fim, uma nota para o capítulo com algumas das receitas escritas por Luís de Sttau Monteiro para o semanário Se7e. Das muitas receitas que fizeram parte da educação culinária de Ana Marques Pereira, a autora selecionou 23 receitas, tendo apenas por critério o seu gosto pessoal e “as dimensões das mesmas, aspecto que não podia ser descurado.”

    No actual panorama da investigação acerca da História da Alimentação em Portugal, este novo título de Ana Marques Pereira é uma verdadeira alegria. Não só resgata o trabalho de um escritor de qualidade, infelizmente muito esquecido, como compila alguns dos textos que dedicou à culinária e gastronomia e que revelam toda a sua verve. Chapeau!

  • O mar que tanto tem para contar

    O mar que tanto tem para contar

    Título

    Fainas épicas do mar português

    Autor

    Álvaro Garrido

    Editora (Edição)

    Clube do Colecionador dos CTT (Junho, 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Depois de vários títulos dedicados às pescas em Portugal, Álvaro Garrido (n. 1968), professor catedrático e director da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, regressa agora com uma visão sobre as três fainas épicas portuguesas: a pesca do bacalhau, do atum e da baleia.

    Para o autor, o presente “livro justifica-se pelo seu argumento original, pela relevância cultural e científica do tema e pelo fascínio histórico das três grandes fainas” que seleccionou, uma vez que as três “têm em comum a dureza do trabalho e a memória mítica que delas ficou”.

    Através desta abordagem, “na inclusão de memórias do trabalho humano associado às grandes fainas do mar e na sua ligação com os seus territórios matriciais: Açores (pesca/caça da baleia); portos da costa ocidental portuguesa (pesca do bacalhau); praias do Sotavento algarvio (atum)”, Álvaro Garrido apresenta estes patrimónios cuja presença ainda permanece bastante arreigada no imaginário nacional, “precisamente porque as três fainas épicas do mar português se tornaram lendárias à escala internacional durante o período final do seu próprio apogeu”.

    Apesar de Portugal ser um país virado para o mar, “a memória social de todo esse universo humano é frágil, e pouco trabalhada, apesar da retórica tecnocrata de ‘regresso de Portugal ao mar’ e de redescoberta da vocação oceânica do país.” De acordo com o autor, “não são muitos os museus marítimos em Portugal e costumam ser escassas, quando não ausentes, as referências à cultura do mar e aos imaginários marítimos nos programas culturais e educativos que partem de iniciativas do Estado e das grandes instituições públicas e privadas.”

    Este livro vem colmatar essas lacunas e propor um novo olhar, não só científico como humano, sobre “as fainas épicas nos seus aspetos singulares: origens; organização económica e social; relações de trabalho; representações ou imagens culturais.”

    Embora a linguagem adoptada pelo autor seja, em alguns momentos, bastante académica, em outros apresenta descrições apelativas e literariamente curiosas. A recolha de alguns excertos de autores reconhecidos é bastante pertinente, e permite verificar como estas fainas foram marcando presença na literatura portuguesa ao longo do tempo.

    O livro está recheado de pequenas e grandes histórias, oferecendo um verdadeiro pitéu para todos aqueles que apreciam aquelas curiosidades que a História tende a esquecer. Uma delícia para quem gosta de descobrir e aprender.

    O capítulo dedicado à pesca do bacalhau é, sem dúvida, o mais recheado, também fruto da sua importância na história e cultura portuguesa, de onde podemos destacar, por exemplo, a história sobre os navios portugueses que, por volta de 1585, foram atacados “por uma esquadra inglesa comandada pelo lendário corsário Francis Drake”. A pesca do bacalhau, como escreveu o etnógrafo poveiro Santos Graça, “era ‘áspera, dura, tremenda, quase heroica’, uma verdadeira ‘epopeia dos humildes’.”

    Sobre a pesca ou caça à baleia, Álvaro Garrido aponta que a “prática da baleação a partir de pequenos portos e varadouros açorianos não partiu do impulso das comunidades locais. Nasceu sobretudo da escala de baleeiras americanas no porto da Horta”. Com o tempo, a fama dos caçadores de baleias açorianos tornou-se lendária, motivando Herman Melville a escrever algumas linhas sobre eles no romance Moby Dick (1851).

    Quem dedicou especial atenção ao atum foi o rei D. Carlos, “o Rei-pintor, grande amante dos mares e estudioso dos fenómenos bio-oceanográficos das pescarias portuguesas”, tendo sido dos primeiros a estudar o comportamento dos atuns na costa algarvia, publicando em 1899 um relatório intitulado A Pesca do Atum no Algarve em 1898.

    Embora a pesca do atum na costa do Algarve fosse uma actividade muito antiga, a mesma também se realizou em outras “zonas da costa portuguesa, em especial junto a Sesimbra e a Cascais», com recurso a armações fixas, as antigas almadravas, «mas foi na costa algarvia que ela ganhou maior expressão.”

    Nas palavras do autor, “este livro pode interessar a um público muito diverso: comunidades marítimas, colecionadores, cientistas do mar, professores, agentes de turismo e cultura. Creio que interessa aos Portugueses, em geral.” Um livro que pode e deve “inspirar outras formas de imaginar o património marítimo português”, pois, como finaliza Álvaro Garrido, “importa descobrir e valorizar, num registo multicultural, a cultura marítima portuguesa — os grandes empreendimentos humanos das pescas e da navegação comercial, as pescas longínquas e costeiras, a vida marítima nas comunidades litorâneas.”

  • A perfumada odisseia da laranja

    A perfumada odisseia da laranja

    Título

    Laranjas de Portugal: séculos de cultivo e consumo

    Autora

    ANABELA RAMOS

    Editora (Edição)

    Ficta Editora (Junho de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Em Portugal são escassos os livros dedicados à história de certos ingredientes que fazem parte da nossa culinária. Não me refiro obviamente aos grandes protagonistas como o vinho, o azeite, o bacalhau ou o queijo, com farta bibliografia disponível.

    Refiro-me a outros, menos destacados e discretos, aos que, talvez pela sua abundância, não suscitem tanto interesse junto dos investigadores.

    Contudo, nestes últimos anos, apenas uma mão cheia de autores se tem esforçado para trazer a lume curiosidades e informações preciosas acerca desses produtos, um tanto ou quanto menos nobres. Basta consultar, por exemplo, alguns dos títulos publicados por Ana Marques Pereira, Virgílio Nogueiro Gomes, Fortunato da Câmara ou Paulo Mendes Pinto, com o seu extraordinário De Adão a Eva – Uma História das Maçãs (Esfera do Caos, 2009) para se ter essa percepção.

    Felizmente, eis que surge Anabela Ramos com este livro, não só brilhante, mas também perfumado e cheio de sumo. Nunca mais iremos olhar para as laranjas da mesma maneira, sejam elas doces ou azedas. Graças ao seu trabalho, agora conhecemos com mais detalhe a incrível odisseia desse preciso fruto até chegar às nossas mesas, aos nossos copos, às nossas mãos.

    “A presença da laranjeira e de outros citrinos, é tema que não tem interessado muito aos historiadores”, assume a autora na Introdução. “Com este estudo, pretendemos ir um pouco mais longe. Cruzando livros de cozinha, livros médicos, farmacopeias, relatos corográficos, tratados agrícolas e outra documentação avulsa, em especial ligada ao mundo agrícola dos mosteiros, podemos aventurar-nos no estudo sobre a presença da laranjeira na Península Ibérica, e em particular em Portugal, desde a Idade Média até ao século XX.”

    O livro encontra-se dividido em quatro partes: Laranjas do mundo em Portugal, onde somos informados sobre a existência de laranjas azedas, primeiro, no território português e toda a sua influência, bem como a chegada posterior das laranjas doces, tanto da Índia como da China, em tempos mais recuados, ou as da Bahia e da Califórnia, em datas mais próximas.

    É curioso verificar como, pelas mãos dos navegadores portugueses e das rotas comerciais estabelecidas, a laranja se disseminou pelo Mundo, ficando para sempre o nome do fruto associado a Portugal.

    Segue-se depois uma parte dedicada aos Laranjais: produção para usos diversos, sejam os medicinais ou os culinários; uma outra parte que versa sobre os Laranjais: uma geografia histórica, que define os territórios onde as laranjeiras foram ganhando predominância e impacto na sociedade e economia desses lugares, ao longo da História, desde certas regiões no Minho até aos Açores.

    Por fim, uma parte muito saborosa, dedicada às Receitas culinárias, que vão desde o século XVI ao século XXI, com as mais antigas a serem apresentadas com um texto actualizado e que torna mais fácil a sua confecção. Um verdadeiro desafio para todos os amantes deste citrino.

    Remata-se o livro com as Fontes e Bibliografia, preciosa matéria para quem desejar saber mais.

    Todo o livro é um manancial de curiosidades e pequenas histórias. A flor de laranjeira, por exemplo, “servia para aromatizar e consertar o vinho, tornando-o cheiroso e macio”. Na doçaria portuguesa, a essência de flor de laranjeira era utilizada em quase todas as confecções: “não se comia arroz-doce sem o respectivo aroma da flor de laranjeira”. Da laranja “se retirava em primeiro lugar a flor, utilizada na doçaria e na medicina, e, depois, o fruto, que se comercializava e exportava para a Europa e que poderá ter dado origem a algum entusiasmo europeu relativo às laranja de Portugal.”

    Por todas as cortes europeias a laranja era rainha na mesa e o seu consumo de tal importância que, “na vizinha Espanha, também Santa Teresa d’Ávila, antes da sua morte, em 1582, sentiu-se fraca e pediu para comer laranjas doces.”

    Possa este livro deleitar os espíritos de todos aqueles que gostam de conhecer e saber um pouco mais acerca das histórias do que andamos a comer. Dessa maneira, melhor saberemos honrar e preservar o que é bom.

  • Receitas apetitosas como poemas

    Receitas apetitosas como poemas

    Título

    A cozinha inglesa de Miss Eliza

    Autora

    ANNABEL ABBS (tradução: Elsa T. S. Vieira)

    Editora (Edição)

    Edições ASA (Abril de 2022)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    A todos aqueles que costumam cozinhar com frequência já sucedeu encontrar uma ou outra receita a que, seguramente, faltava certo ingrediente ou alguma etapa na confecção, quando não uma formulação atabalhoada.

    Foi também o que constatou Eliza Acton (1799-1859) nos manuais de cozinha britânicos do início de oitocentos. Em face de tais discrepâncias decidiu escrever um manual de cozinha intitulado Modern Cookery (1845), e é essa aventura que Annabel Abbs nos narra neste romance.

    Logo no Prefácio somos alertados de que esta se trata de “uma obra de ficção baseada nos poucos factos conhecidos sobre a vida de Eliza Acton, autora de poesia e pioneira da escrita culinária, e da sua assistente, Ann Kirby”.

    Escrito ao longo de dez anos, entre 1835 e 1845, o manual que Eliza escreveu é, ainda hoje, considerado como um dos melhores livros de culinária britânicos e um bestseller no seu tempo, com inúmeras edições ao longo dos anos. O que é obra, pois a jovem Eliza Acton, então com 36 anos, antes de embarcar nesta culinária odisseia, não sabia cozinhar rigorosamente nada.

    Tudo começa depois de Eliza publicar um livro de poemas. O editor diz-lhe que “a poesia não é coisa para senhoras”, propondo-lhe antes que escrevesse novelas, pois “são muito populares junto das jovens”, ou um livro de culinária. “Se sabe escrever poemas, também sabe escrever receitas.” E lança-lhe um desafio: “Traga-me um livro de culinária tão bonito e elegante como os seus poemas.”

    Rapidamente, Eliza constata que os manuais de culinária existentes apresentavam “uma prosa desastrada e estrangulada”, com uma gramática fraca, receitas pouco apetitosas, textos flácidos, entre outros desastres. “Alguns autores mal sabem escrever. As medidas são imprecisas, o fraseado é deselegante. Falta-lhes clareza e as próprias receitas não são nada apetitosas.”

    Perante todo este cenário, Eliza decide escrever um manual de cozinha com requinte literário, comparando o processo de seguir uma receita com o de escrever um poema. “Porque não hão de as artes culinárias incluir poesia? Porque é que um livro de receitas não pode ser uma coisa bela?”, questiona-se a novel cozinheira. “Tal como um poema, uma receita deve ser clara, precisa e ordenada.”

    E é assim, com este desígnio em mente, que Eliza vai descobrindo as maravilhas da culinária, acolitada por Ann Kirby, a jovem criada, que lhe serve de fonte de inspiração por possuir “um palato capaz de distinguir os mais subtis dos sabores”.

    Ao longo do processo de composição do manual de cozinha, os leitores vão mergulhando igualmente nos mundos atribulados e trágicos das personagens, com todos os seus dramas e, principalmente, os seus segredos. Tanto Eliza como Ann escondem algo uma da outra e que aos poucos, conforme a sua amizade se vai reforçando,  vão sendo revelados.

    Todos os capítulos têm como título uma referência gastronómica e há uma grande dose de sensualidade e deleite em algumas das descrições culinárias feitas pelas personagens, principalmente Eliza, e nas sensações que certas iguarias provocam no palato e no corpo.

    No capítulo XIX, por exemplo, encontramos Arroz Doce no título. Consultando a edição original do Modern Cuisine nele encontramos uma receita de Arroz Doce à Portuguesa (p. 496): “This is quite the best sweet preparation of rice that we have ever eaten, and it is a very favourite dish in Portugal, whence the receipt was derived.

    Ao longo da narrativa, encontram-se várias outras referências a produtos de origem portuguesa, como um Bolo de Madeira, confeccionado com vinho da Madeira, ou bastas alusões ao vinho do Porto, seja como bebida seja como ingrediente para inúmeras confecções culinárias, demonstrando a importância que os vinhos licorosos portugueses possuíam em terras de Sua Majestade.

    Por fim, nota para um ponto menos positivo.

    Embora a história seja contada por duas vozes distintas, a de Eliza e a de Ann, ambas parecem ter o mesmo tom. Annabel Abbs não soube dar dimensões diferentes à voz que conta o seu ponto de vista, tanto mais que as duas personagens são provenientes de estratos sociais diferentes e com níveis de educação bem díspares. Pormenor que esturrica um pouco este romance curioso e bem disposto que, tal como uma boa iguaria, proporciona bons momentos de leitura.

  • Terá a vida mais sabor com pasta de feijão doce?

    Terá a vida mais sabor com pasta de feijão doce?

    Título

    Doce Tóquio

    Autor

    DURIAN SKEGAWA (tradução: Isabel Veríssimo)

    Editora (Edição)

    Edições ASA (Março de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    “Qual é o sentido da vida?” eis a pergunta que Durian Sukegawa (n. 1962) colocou antes de começar a escrever este romance. “Tem de haver uma razão para nascermos independentemente das circunstâncias individuais” (p. 190), explica no final do livro, numa Nota do Autor.

    Foi com base nessa premissa, a que não é indiferente o facto de Sukegawa ter sido um antigo estudante de filosofia oriental, que tomou uma decisão: “Escreveria sobre o significado da vida com uma nova perspetiva, no contexto da doença de Hansen” (p. 190).

    O romance conta a história de Sentarô Tsujii, ex-presidiário, bastante desiludido com a sua vida e longe de realizar o seu desejo: ser escritor. Nos últimos anos, passara todos os dias no interior de uma pastelaria, na Rua das Cerejeiras, numa zona desertificada de Tóquio, diante de uma chapa quente a confeccionar panquecas para fazer dorayaki. “Nunca se imaginara a fazer tal coisa” (p.14).

    Trabalha para pagar dívidas à mulher do antigo patrão, proprietária da pastelaria. Sente-se preso e um inútil, com a vida a escapar-lhe por entre os dedos. Certo dia, porém, Tokue Yoshii, uma “senhora idosa com um chapéu branco na cabeça”, que observava as cerejeiras em flor, entra na pastelaria para responder ao um anúncio de que pretendiam um empregado.

    Por causa da qualidade duvidosa da pasta de feijão doce que recheava as panquecas de Sentarô, Tokue confessa que não aprecia os seus dorayaki, pois não consegue “perceber quais eram as emoções da pessoa que a fez” (p. 11). Sentarô limitava-se a usar a mesma pasta de feijão doce pronta a usar que o falecido patrão utilizava. Então a senhora idosa dá uma caixa a Sentarô com pasta de feijão doce confeccionada por si, especialidade que ela praticava há cinquenta anos.

    Ao princípio, Sentarô não queria provar aquilo, mas depois decidiu provar um pouco: “aquela colherada fê-lo soltar uma exclamação de espanto” (p. 13). “Nunca provara nada como a pasta de feijão de Tokue” (p. 13). Para Tokue, a pasta de feijão era a alma dos dorayaki, pois “em pastelaria, o que importa são os pormenores” (p. 31).

    Quando Sentarô prova um dorayaki confeccionado por Tokue compreende as diferenças e subtilezas que existem entre o dela e o seu: “O aroma pareceu saltar, como se estivesse vivo, e correu pelo nariz até à parte de trás da cabeça. Ao contrário da pasta pronta a usar, cheirava a feijões frescos e vivos. Tinha intensidade. Tinha vida. Um sabor doce, rico e aveludado encheu-lhe a boca” (p. 33).

    O pasteleiro pede que a idosa o ensine a confeccionar a sua pasta de feijão doce e entre os dois desenvolve-se uma relação de profunda amizade, tendo as cerejeiras em pano de fundo, permanentemente, nos seus vários estágios, como testemunhas do desenrolar de toda a trama. Por ter padecido da doença de Hansen, também conhecida como lepra, Tokue fora encerrada num sanatório aos catorze anos, vendo-se assim privada de liberdade e de realizar o seu sonho de ser professora.

    Uma escrita subtil, plena de emoções, que nos guia pela narrativa com a leveza de uma flor de cerejeira na Primavera. Uma apologia da vida, da alegria de viver, da esperança, da culinária e, acima de tudo, da maneira como devemos escutar o mundo e tudo aquilo que nos rodeia. “Todos nascemos para ver e escutar o mundo”, escreveu Tokue Yoshii a Sentarô, e isso “é uma poderosa noção, com potencial para dar uma nova forma à nossa visão de tudo”, acrescenta Durian Sukegawa.

  • Um divertimento literário cheio de fantasia culinária

    Um divertimento literário cheio de fantasia culinária

    Título

    Livro de receitas dos lugares imaginários

    Autor

    ALBERTO MANGUEL (tradução: Rita Almeida Simões)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Novembro de 2021)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    “Só na má literatura é que as personagens não comem”, afirmou Alberto Manguel (n. 1948) em Dezembro do ano passado, numa entrevista ao Ípsilon (Público).

    Pegando nesta ideia, poderemos afirmar igualmente que só os maus leitores não pensam no que as personagens comem. Numa ou outra leitura, seguramente que alguns leitores já deram por si a imaginar como seriam as iguarias que as suas personagens estariam a degustar em determinando momento da narrativa e o que fariam se elas à sua frente se materializassem.

    Quem nunca desejou partilhar a mesa e as pitanças com Sancho Pança, mais dado à comezaina do que o seu escanzelado cavaleiro andante? Quem nunca imaginou os petiscos que Phileas Fogg e Passepartout comeram na sua volta ao mundo? Que dizer dos repastos com os Três Mosqueteiros? Ou mesmo nas farsas de Gil Vicente?

    Neste Livro de receitas dos lugares imaginários, o prazer da leitura prolonga-se num verdadeiro êxtase pelo prazer de cozinhar e, sobretudo, o prazer de comer e partilhar, tanto a mesa como os livros. Além de ler e escrever, o ensaísta argentino e autor de vários best-sellers internacionais também gosta de imaginar quais as iguarias que as personagens que vai lendo mais apreciam trincar.

    É na cozinha, entre tachos e panelas, que o escritor se entretém a inventar receitas, segundo ele, desde a adolescência, e agora as apresenta pela primeira vez em livro. «Sempre me senti atraído por histórias sobre comida, ou melhor, histórias em que as personagens se detêm a comer, passam tempo a cozinhar ou se reúnem à volta de uma mesa», confessa o autor na sua Introdução. “A comida realça a realidade da ficção […] porque, para mim, a simples menção de comida humaniza uma história», acrescentando que «toda a comida (diz-nos a literatura) é, na sua essência, uma prova da nossa humanidade comum”.

    Para compor estas receitas, Alberto Manguel dedicou-se à “comida de lugares que não existem senão na imaginação”, seleccionando lugares imaginados por Homero, Júlio Verne, Cervantes, Platão, Boccaccio, Melville, Gabriel García Márquez, Italo Calvino, Thomas Bernhard, Rabelais ou Tolkien, entre tantos outros. Um verdadeiro festim literário e pantagruélico.

    O livro congrega 74 receitas e encontra-se dividido em Entradas e sopas (11), Pratos principais e molhos (37), Sobremesas (21) e Bebidas (5). A maior parte das receitas são de fácil execução, com os passos necessários bem explicados. Na lista de ingredientes, salienta-se o uso da malagueta, que aparece em onze receitas, ou os coentros em nove receitas, uma delas para sobremesa. Destaque também para o uso de variadas especiarias e ervas aromáticas, que conferem grande personalidade aos pratos.

    Aqueles ingredientes imaginários, quando difíceis de encontrar, podem ser facilmente substituídos por outros mais comuns, como por exemplo, ovo de aepyornis (p. 37) que pode ser substituído por ovos de galinha, assim como o ovo de dragão (p. 74); a carne de roc (p. 100) substituída por carne de cordeiro; a salsicha de elefante (p. 102) por salsicha merguez ou o albatroz negro de Tsalal (p. 115) facilmente substituído por frango. Só a falta de imaginação impossibilita qualquer confecção gastro-literária. A receita mais dispendiosa talvez seja o Risotto de Trufa à Moda de Marina (p. 83), pois requer uma trufa negra fresca.

    Numa ou noutra receita, os leitores facilmente reconhecem alguns pratos bastante familiares, como o caso da nossa tradicional canja, aqui proposta como Sopa de Letras de Babel (p. 22), com as massinhas de letras, as mesmas com que na nossa infância nos divertíamos a formar palavras no prato, ou os crepes na receita dos Achatados (p. 138).

    Há algo de lúdico, prazeroso e nostálgico nestas receitas propostas pelo autor pois, como escreve Manguel, “a literatura não é apenas alimento da alma”, é também uma maneira de nos identificarmos «com os livros que amamos; de certa maneira, tornamo-nos a personagem cuja vida seguimos na página.”

  • Uma deliciosa busca às cozinhas com pitada portuguesa

    Uma deliciosa busca às cozinhas com pitada portuguesa

    Título

    À portuguesa: receitas em livros estrangeiros até 1900

    Autor

    VIRGÍLIO NOGUEIRO GOMES

    Editora

    Marcador

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Diz o povo que a curiosidade matou o gato, mas para Virgílio Nogueiro Gomes (n. 1949) esse desejo revelou-se o rastilho primordial que o conduziu numa investigação gastronómica durante seis anos, e o levou a mergulhar nos arquivos de bibliotecas e alfarrabistas em busca de dezenas de manuais de cozinha de antanho.

    Profundo conhecedor e defensor da gastronomia portuguesa, Virgílio Nogueiro Gomes pretendia descobrir as razões que justificassem o facto de algumas receitas publicadas em livros estrangeiros ostentarem a denominação «à portuguesa» ou de «Portugal».

    Assim, na sua aventura, o investigador em História da Alimentação coligiu cento e dezoito receitas, encontradas em trinta e um livros impressos entre 1604 e 1900, desde Espanha a Itália, do Brasil a França. Constatou que, na maioria das receitas, a denominação «à portuguesa» ou de «Portugal» estava subjacente ao uso de um ingrediente particular: a laranja doce, de que Portugal foi, principalmente a partir do século XVI, o maior distribuidor para os mercados da Europa.

    Considerada por muitos como a de melhor qualidade, a laranja portuguesa influenciou bastante a doçaria europeia até finais do século XIX.  Ainda hoje, em muitos países europeus e da bacia do Mediterrâneo a palavra usada para designar a laranja tem origem no topónimo Portugal: portakal, portocaliu, portokall, portokhali, portokal, portokali, portugallo, portugai.

    Muitas outras receitas encontradas por Virgílio Nogueiro Gomes surgem com estas designações simplesmente pelo uso de ingredientes então identificados com Portugal, como o caso do açúcar ou do vinho da Madeira, bastante procurados pelos mestres cozinheiros das principais cortes europeias.

    De acordo com o autor, «o encontro de cozinheiros das cortes ou de casas abastadas permitiria possivelmente a partilha de conhecimentos culinários e o nome “à portuguesa” poderia ser decorrente da nacionalidade do artista que ensinou.» Aponta depois o caso de Francisco Martinez Montiño, cozinheiro da corte espanhola, que acompanhou o rei Felipe III durante a sua estadia em Lisboa. «É possível», sugere o autor, «que por esse facto tenha aprendido algumas receitas nossas e, por isso, as terá batizado “à portuguesa”.»

    Na ausência de mais dados, aqui e ali, o autor vai apontando caminhos, sugerindo hipóteses, mas a falta de informação não permite uma explicação cabal, tal como sugere a advertência que Inês de Ornellas e Castro faz ao leitor no Prefácio: «neste livro encontramos, sobretudo, receitas que reproduzem aquilo que o(s) Outro(s) percepcionam ser, de algum modo, identificável com Portugal ao longo de trezentos anos», uma vez que, acrescenta, «a maior parte das obras foi escrita muito antes de existir o conceito de pratos tradicionais e nacionais».

    Segundo a investigação realizada por Virgílio Nogueiro Gomes, algumas das receitas, embora nos honrem com o título, «não fazem parte da nossa tradição alimentar ou não chegaram aos tempos atuais.» Outras são fruto de confusões e equívocos, como por exemplo a indicação do vinho da Madeira como sendo um vinho africano, ou receitas «à portuguesa» mas com a adição de vinho de Málaga ou de Alicante. Até o célebre Auguste Escoffier, quando publica o seu Le Guide Culinaire (1902), «vem assumir que apelida de “à portuguesa” todos os pratos que têm tomate.»

    Das receitas encontradas, Virgílio Nogueiro Gomes confeccionou e fotografou oito, resultado que pode ser vislumbrado numa das badanas do livro. Não obstante, devido ao interesse que estas receitas suscitam, as ditas mereciam um lugar mais destacado.

    As receitas, apresentadas na sua versão original, em fac-símile, foram traduzidas pelo autor e são acompanhadas por algumas notas ou comentários explicativos sobre um ou outro ingrediente mais esquivo, sendo quase todas elas passíveis de serem confeccionadas hoje em dia. Uma dessas receitas é a de um «arroz à portuguesa», que reproduzimos em baixo, pela grande semelhança com o nosso tradicional arroz-doce. Referência também para as preciosas informações biográficas sobre os autores destes livros de cozinha, algumas delas bem pitorescas e quase anedóticas.

    Eis um livro curioso, bastante pertinente, que abre caminho a futuras investigações sobre esta temática e que, acima de tudo, se revela muito útil e de referência para todos aqueles que se interessam pela história cultural da nossa alimentação.

    Deixamos aqui, para aguçar o apetite, a receita “Para fazer arroz à portuguesa”, incluída no livro Il Pan Unto Toscano (1705), de Francesco Gaudenzio (1648-1733):

    “Para vinte pessoas, tomar uma escudela de arroz e um bom púcaro de leite, pôr o dito arroz bem lavado e limpo no leite a ferver e deixá-lo cozer em fogo lento, misturando-o até engrossar. Próximo do fim da cozedura, adicionar uma libra de açúcar. Quando estiver cozido, misturar dez gemas de ovo batidas bastante bem com água de cheiros (possivelmente água de flor de laranjeira) e incorporar no arroz deixando ficar um pouco ao lume. Mandar para a mesa com canela por cima.”

    Bom apetite.