Autor: Paulo Moreiras

  • Uma alma antiga feita de histórias

    Uma alma antiga feita de histórias

    Título

    Terra: Uma história do Esporão

    Autor

    JOÃO PEDRO VALA

    Editora (Edição)

    Quetzal (Junho de 2023)

    Cotação

    12/20

    Recensão

    No ano de 1973, um encontro entre José Alfredo Parreira Holtreman Roquette (n. 1936) e Joaquim Alberto Rodrigues Bandeira (1934-2003) esteve na origem de uma marca que se constituiu como uma referência nos Vinhos em Portugal. Agora, para celebrar o seu quinquagésimo aniversário, a Herdade do Esporão revela a sua História através de cinquenta pequenas narrativas pela mão do escritor João Pedro Vala (n. 1990), autor do romance Grande turismo, publicado pela Quetzal em 2022, numa abordagem irreverente mas que continua o legado inovador da Herdade do Esporão.

    No Prefácio, João Roquette esclarece que pretendiam “um livro que assinalasse o que de mais relevante se passou nestes anos.” No entanto, em vez de uma abordagem histórica e factual, optaram por uma abordagem “romanceada e livre: cinquenta estórias inspiradas em acontecimentos, mitos e abstracções que envolvem, de alguma maneira, o Esporão.” O mais importante “seria que neste livro habitasse a alma do Esporão, uma alma antiga e colorida pela extraordinária riqueza e diversidade dos que por aqui passámos.”

    Começa João Pedro Vala, em Nota Introdutória, por alertar o despreocupado leitor de que o que está prestes a ler são tudo histórias ficcionais: “Todas as histórias que contamos uns aos outros são ficcionais a partir do momento em que decidimos a ordem dos acontecimentos, o contexto que lhe damos, o encadeamento dos elementos.”

    Embora ficcionadas, o autor baseou-se em histórias que lhe foram contadas por várias pessoas associadas à Herdade do Esporão, sendo em momento posterior pelo seu estro “deliberadamente adulteradas, truncadas e misturadas para efeitos narrativos.”

    Depois, numa outra passagem, esclarece que “alguns nomes mantiveram-se, outros não, algumas pessoas vivem neste livro coisas que aconteceram a outras e há até uma história aí para o meio que não tem ponta de verdade (ou talvez também isto seja um artifício do escritor para se proteger de eventuais acusações).”

    Infelizmente, neste jogo literário, as narrativas não fornecem chaves suficientes para se distinguir a verdade da ficção e essa mistura não se afigura de receita fácil para quem lê. Alguns capítulos contêm narrativas de tal maneira herméticas, que pouco ou nada esclarecem o leitor acerca da sua inclusão ou em que sentido dizem respeito à história do Esporão. Exemplo disso verifica-se no capítulo I – Haifa, 11 000 a.C., ou no capítulo XII – Costa da Caparica, 1979, só para citar dois casos.

    Certas narrativas são mais lineares, num registo jornalístico, factual, onde se segue a linha do tempo para determinado assunto, por vezes com episódios curiosos, até mesmo mirabolantes, acerca da maneira como a Herdade do Esporão se foi construindo e afirmando no panorama nacional ao longo dos anos, demonstrando a sua visão para o sector, em contraste com um país saído do 25 de Abril, ainda a pensar pequenino, preso aos seus atavismos e burocracias, tiques e manias que se mantém até hoje.

    Para o leitor que aqui vem à procura da história tintim por tintim da Herdade do Esporão, desengane-se, pois não a irá encontrar. Mas é sobre vinho, e isso é sempre um bom propósito para ler um livro.

  • Do que comemos ao que somos: um prato nos une

    Do que comemos ao que somos: um prato nos une

    Título

    História global da alimentação portuguesa

    Autores

    JOSÉ EDUARDO FRANCO (dir.) e ISABEL DRUMOND BRAGA (coord.)

    Editora (Edição)

    Temas e Debates (Abril, 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    O livro que José Eduardo Franco (n. 1969), na direcção, e Isabel Drumond Braga (n. 1965), na coordenação, agora deram à estampa, com este desígnio e esta amplitude, há muito que era desejado em Portugal, tendo semelhante pretensão de traçar uma História da Gastronomia Portuguesa sido já manifestada em anteriores ocasiões por parte de alguns escritores gastronómicos da nossa praça mas, infelizmente, nunca concretizada.

    Até agora, a esta extraordinária edição pela Temas e Debates, que vem colmatar uma grande lacuna no conhecimento das influências culinárias em Portugal e no mundo. No texto de “Apresentação”, Isabel Drumond Braga revela a dimensão do projecto: “Apresentam-se aos leitores cento e um textos de 69 autores, 59 nacionais e 10 estrangeiros de formação especializada, em momentos distintos das suas carreiras, que redigiram sínteses atualizadas, procurando mostrar os encontros, as trocas, as adaptações e as transformações, numa rede complexa em que se articulam análises micro e macro, que permitem compreender o impacto dos fenómenos gerais nos espaços mais circunscritos”.

    Para a História e compreensão da alimentação portuguesa, foi adoptada uma análise de âmbito global, consentânea com o fenómeno que a alimentação representa no mundo, e não através de simples leituras lineares, centradas numa óptica nacional. De facto, só através de uma história global da alimentação portuguesa, focada numa perspectiva cultural, se conseguiria alcançar a verdadeira realidade dos cruzamentos que ao longo dos séculos ocorreram e que tanto impacto provocaram nos nosso hábitos alimentares.

    “Inúmeros estudiosos apontam que dois elementos fundamentais compõem a bagagem das pessoas que se deslocam: a língua e a cozinha maternas” (p.141). Temas que vão desde a formação de Portugal, século XII (pão, mel, queijo), até ao século XXI (batata, produtos DOP, produtos IGP, dieta mediterrânica, entre tantos outros), explorados através de questões relacionadas com a alimentação portuguesa, com os alimentos, mas também onde são abordados os utensílios, os métodos de conservação ou as técnicas culinárias, as influências portuguesas no mundo mas também as influências estrangeiras ocorridas em Portugal.

    A influência de produtos como o café, o cacau ou o chocolate, o que se comia nas mesas reais mas também na alimentação dos pobres e dos famintos mas também um olhar sobre a implementação de matadouros municipais ou as questões relacionadas com a segurança sanitárias, a importância da diplomacia e o conhecimento dos hábitos alimentares de várias cortes, uma vez que a comida assumia um papel relevante nas relações internacionais, numa visão abrangente e bastante acutilante.

    A globalização iniciada no século XVI irá trazer para a nossa mesa e campos agrícolas muitos produtos que hoje fazem parte da nossa identidade culinária, como o milho, o feijão, o tomate, a batata, entre muitos outros. “O reino de Portugal, tal como o de Castela, através das viagens marítimas dos séculos XV e XVI, foi pioneiro da globalização”, contribuindo para novas combinações culinárias e novos sabores, metamorfoseando as velhas práticas das suas cozinhas ancestrais. “Portugueses e castelhanos encontraram novos produtos em África, na Ásia e na América – alguns dos quais vieram posteriormente a ser explorados por outros europeus – conduziram-nos para a Europa e levaram-nos igualmente para outros espaços, por exemplo, transportando os de África e da Ásia para a América e os da Europa para esses continentes”.

    Embora este excerto seja sobre a presença dos portugueses no Brasil, o mesmo se aplica por onde quer que os portugueses tenham andado: “Além dos alimentos, o português trouxe o seu conhecimento e técnicas culinárias, seja nos procedimentos de cocção – assar, cozer, guisar, refogar, grelhar e pilar – nos métodos de temperar e de conservar os alimentos – com adição de sal ou de açúcar e de fumeiro – nos artefactos de preparo e consumo – caldeirões, tachos de cobre, formas de bolo, de diversos formatos – e nas receitas culinárias” (pp.111-112).

    O livro apresenta-se com um design sóbrio e elegante, algo a que o designer António Rochinha Diogo já nos habituou no seu trabalho, e que muito contribui para uma leitura prazenteira. Capítulos curtos, com o essencial sobre as temáticas em apreço, oferecendo uma panorâmica assaz abrangente, sem deixar de lado alguns dos formalismos da academia mas ideal para alcançar o público em geral, permitindo a qualquer leigo ou curioso na matéria compreender com facilidade o que fomos comendo ao longo dos séculos para aqui chegarmos e sermos como somos neste gosto tão nosso de nos sentarmos à mesa e brindarmos à vida.

    Especialmente indicado para as bibliotecas de todos aqueles que se interessam pela História da Alimentação, seja ela nacional ou internacional, ou que simplesmente sintam curiosidade sobre estas coisas do comer e do beber.

    Eis um livro para se ir degustando devagarinho, apreendendo todos os sabores que estas aventuras globais culinariamente nos proporcionaram. Por isso mesmo, e muito mais, este livro merece não só ser objecto de grandes honrarias como também de singelos brindes: Hip, hip, hurra!

  • Criatividade em estado líquido e muito “terroir”

    Criatividade em estado líquido e muito “terroir”

    Título

    As castas do vinho

    Autor

    JOÃO AFONSO

    Editora (Edição)

    Oficina do Livro (Março de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Nos dias que correm, a questão das castas costuma ser um elemento diferenciador para a tomada de decisão sobre a compra deste ou daquele vinho. Pensamos que essa coisa das castas é matéria antiga, que nos acompanha deste os tempos de Noé.

    Nada poderia andar mais longe da verdade. A moda das castas, da sua referência nos rótulos ou das estratégias de promoção a determinados vinhos, é um fenómeno recente, surgido em meados do século passado, nos Estados Unidos da América, “através da influência de Frank Schoonmaker, um dos primeiros ‘wine writers’ dos tempos modernos.”

    Das milhares de castas existentes no planeta, “mais de 80% da produção mundial de vinho usa menos de 1% da diversidade de uvas disponível.” E, de todas essas, “apenas 12 variedades constituem a maior parte do vinho produzido em todo o mundo (Cabernet Sauvignon, Chardonnay, Merlot, Pinot Noir, Syrah, Sauvignon Blanc, Riesling, Moscatel de Alexandria, Gewurztraminer, Viognier, Pinot Blanc e Pinot Gris)”.

    De acordo com a Portaria 380/2012 de 22 de Novembro, em Portugal existem 342 castas registadas para a produção de vinho: “267 castas de nascimento português (ou ibérico) que, somadas às 75 castas alóctones autorizadas, perfazem o bonito número de 342 castas de Vitis vinifera para fazer vinho em Portugal.” Destas, as castas mais utilizadas são: Aragonez T (11%), Touriga Franca T (8%), Touriga Nacional T (7%), Fernão Pires B (6%) e Castelão T (5%). A área total existente em território continental e ilhas dedicada à vinha é de 192 029 hectares, sendo que 16 castas tintas ocupam 60% da área total e 17 castas brancas ocupam 30% dessa mesma área.

    Na sua maioria, as castas usadas para a produção de vinho são obra do engenho humano, da relação que o Homem estabeleceu ao longo de séculos com a Vitis vinifera e soube, com arte e paciência, ir desbravando novas variedades, moldando as vinhas e as castas, inovando e explorando novos sabores e aromas. Se a produção de vinho não é uma expressão da criatividade humana, não sei o que será a criatividade.

    O que João Afonso (n. 1957) nos oferece nesta monumental obra (664 páginas), As Castas do Vinho – Misturadas com histórias, é um retrato exaustivo e minucioso de todo esse universo das castas existentes em Portugal, seja de origem nacional, ibérica ou estrangeira, das suas idiossincrasias técnicas, dinâmicas vitícolas e enológicas, origens, ao que cheiram e ao que sabem, num manancial riquíssimo de histórias e curiosidades sumarentas. Para o autor, as castas representam “um certo lado mágico do vinho, a surpresa por detrás de um nome, quase sempre sem significado concreto. Um pequeno mistério.”

    Há mais de quatro décadas que João Afonso acompanha a “evolução do vinho português e das castas usadas para moldar o nosso imaginário enófilo”, enriquecendo por isso “este livro com outras prosas, de escrita e leitura mais fluída, fácil e porventura mais agradável” e, mesmo quando escreve sobre castas, tenta “sempre fazê-lo de uma forma mais romanceada que técnica”.

    Além de um livro acerca das castas é também um livro sobre pessoas, sobre o encontro de João Afonso com as pessoas que criaram castas e que deram origem a vinhos que ainda hoje nos encantam o palato. Histórias de maravilhamento, afectivas e sensoriais, plenas de respeito e gratas memórias por todas essas pessoas que o autor foi encontrando ao longo da vida no seu périplo de descoberta e achamento do vinho português.

    Este livro é, em si mesmo, um mapa do tesouro vitivinícola nacional, descrevendo as pepitas e as preciosas gemas que se escondem nos imensos terroirs que compõem o território de Portugal e as Ilhas. Toda a leitura deste livro é uma espécie de amuse-bouche, constantemente a apelar aos nossos sentidos para que partamos à descoberta destas maravilhas naturais que o homem tão sabiamente soube criar. Não o fazer é desperdiçar esta alegria de estar vivo e brindar a isso mesmo com os nossos amigos e familiares.

  • As cozinhas do Mundo sem papas na língua

    As cozinhas do Mundo sem papas na língua

    Título

    A cook’s tour: em busca da refeição perfeita

    Autor

    ANTHONY BOURDAIN

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Março de 2023)

    Cotação

    C17/20

    Recensão

    Como espectador useiro e vezeiro que fui dos programas televisivos de Anthony Bourdain (1956-2018), confesso a estranheza que sobre mim se abateu durante a leitura deste livro, tão só porque conhecia de antemão a trágica maneira como o autor havia desaparecido.

    E essa estranheza foi-se formando paulatinamente a cada linha, a cada parágrafo, a cada virar de página, em que o ex-chefe de cozinha, agora transformado em estrela televisiva, perseguia a “receita perfeita” por todo o mundo e enaltecia o prazer de estar vivo e das coisas boas que nos conferem essa alegria, em particular as associadas ao comer e ao beber.

    Publicado em 2001, dezassete anos antes da sua morte prematura, A cook’s tour: Em busca da refeição perfeita foi escrito no rescaldo do sucesso planetário que o anterior livro Cozinha confidencial: aventuras no submundo da restauração (2000) lhe granjeara, e depois de Anthony Bourdain ter iniciado um programa de televisão acerca das gastronomias e culinárias do mundo.

    Por volta dos seus 45-46 anos, Bourdain teve uma crise existencial e decidiu não mais continuar “a atabalhoar brunches num café qualquer de West Village”, antes que o seu cérebro se transformasse em papa. Em conversa com o seu editor, disse-lhe: “Vou viajar por todo o Mundo, a fazer o que quero. Fico em bons hotéis e em barracas. Como comida assustadora, exótica e maravilhosa, faço coisas porreiras como vi nalguns filmes, e vou procurar a refeição perfeita.”

    Além da refeição perfeita, Bourdain também queria aventuras, entusiasmar-se com emoções e arrepios melodramáticos, ver o Mundo. “Tudo dito, no entanto, a escrita deste livro tem sido a maior aventura da minha vida. Cozinhar profissionalmente é difícil. Viajar pelo mundo, escrever, comer, e fazer um programa de televisão é relativamente fácil. É melhor do que preparar o brunch.”

    O enfant terrible da cozinha vai discorrendo sobre as suas aventuras num tom muito pessoal, irreverente, por vezes bastante confessional, polémico ou a chamar os bois pelos nomes, com pormenores históricos de contexto sócio-económico, mas também cultural, com múltiplas referências à Literatura, à Música ou ao Cinema. Os chefs de cozinha também são muitas vezes citados, uns mais conhecidos (Gordon Ramsay) do que outros, bem como figuras públicas ligadas à culinária (Nigella Lawson), salpicando as narrativas com inúmeras descrições pantagruélicas, umas de fazer crescer água na boca, outras de torcer o nariz.

    Eis dois exemplos: num mercado em Saigão, Anthony Bourdain encontrou uma mulher a fritar uns passarinhos minúsculos, com “cabeça, patas, asas intactas, com as entranhas a rebentarem amareladas, saltando de barrigas fritas douradas”, nada que o assustasse. Tinham bom aspecto e cheiravam bem: “Compro um, pego-lhe pelas patas, e a mulher sorridente a encorajar-me, a dizer-me que estou a fazer bem. Coloco-o inteiro na boca, roendo até às patas, bico, cérebro, pequenos ossos crocantes e tudo. Delicioso.” Não há limites para o seu apetite: “Na manhã seguinte, estou de volta ao mercado, onde tenho um pequeno-almoço saudável de hot vin lon, essencialmente um embrião de pato cozido, ainda na casca, com bico meio formado e pedaços de matéria crocante escura enterrados na gema parcialmente cozida e clara de ovo translúcida.”

    Atento e respeituoso dos cerimoniais da mesa em cada país, como por exemplo o pão em Marrocos: “Aqui não se pega simplesmente no pão; espera-se para ser servido”. Pormenores importantes mas que ajudam e fazem parte da integração de Bourdain à mesa de qualquer pessoa. E essa era outra das suas extraordinárias características. Tanto se podia sentar à mesa a comer com um simples pescador como estar rodeado dos mais ilustres chefs no mais conceituado restaurante do Mundo, com o mesmo prazer, irreverência e sentido crítico. Sem papas na língua.

    Para terminar, transcrevo um excerto magnífico e revelador do tom apologético que Anthony Bourdain aplicou na caraterização de certos ingredientes e de como estes foram importantes na sua vida:

    “O que é uma ostra, senão a comida perfeita? Não requer preparação ou cozedura. Cozinhá-la seria uma afronta. Ela fornece o seu próprio molho. É um ser vivo até segundos antes de desaparecer pela garganta abaixo, por isso sabemos – ou deveríamos saber – que é fresca. Aparece no seu prato como Deus a criou: crua, sem adornos. Um pouco de sumo de limão, ou talvez um pouco de molho mignonette (vinagre de vinho tinto, pimenta preta moída, um pouco de chalota finamente picada), é o máximo de insulto que pode ter contra esta magnífica criatura. É comida no seu estado mais primitivo e glorioso, intocada pelo tempo ou pelo homem. Um ser vivo, comido para sustento e prazer da mesma forma que os nossos antepassados o comiam. E elas têm, pelo menos para mim, a atração mística acrescida de toda essa memória sensorial – o significado de ter sido o primeiro alimento a mudar a minha vida. Culpo a minha primeira ostra por tudo o que fiz depois: a minha decisão de me tornar cozinheiro, a minha procura de emoção, todos os meus horrendos erros na busca do prazer. Culpo aquela ostra por tudo. De uma forma simpática, claro.”

    Depois de ler isto só nos apetece comer ostras.

  • Vinde a nós, belo pitéu

    Vinde a nós, belo pitéu

    Título

    Sardinha: o sem fim da pesca do cerco

    Autor

    HÉLDER LUÍS

    Editora (Edição)

    Câmara Municipal da Póvoa de Varzim (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Se há produto português que merece todas as atenções, honrarias e homenagens, esse produto é a sardinha, de seu nome científico Sardina pilchardus. E este livro de fotografia documental da autoria de Hélder Luís está à altura de tão elevada demonstração de veneração e respeito, dedicando-lhe esta soberba edição. 

    Se mais livros existissem assim, acerca dos nossos produtos, certamente teríamos mais consideração pelos homens e mulheres que todos os dias trabalham para que esses mesmos produtos nos cheguem à mesa. Só conhecendo a sua História, as suas curiosidades e tudo o que esses produtos fizeram para se tornarem nos ex libris da nossa gastronomia, conseguiremos ser consumidores esclarecidos e melhor honraremos as nossas tradições culinárias, as nossas memórias e a nossa identidade.

    Esta é uma belíssima edição promovida pela Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, profusamente ilustrada com o trabalho fotográfico de Hélder Luís, fotógrafo, designer, artista de multimédia e músico, enriquecida também pelas numerosas páginas que se abrem num tríptíco onde encontramos inúmeras curiosidades, como a descrição pormenorizada da “Anatomia de um barco do cerco”, apresentando juntamento os “Diferentes tipos de barcos de pesca do cerco”, ou ainda as páginas dedicadas ao método de pesca  conhecido como “cerco”, revelando um cuidado na concepção deste livro e uma atenção aos pormenores, permitindo assim um conhecimento mais profundo sobre as matérias em apreço.

    Esse cuidado na comunicação de informação pertinente, curiosa ou simplesmente factual, encontra-se igualmente na maneira atenciosa como nas legendas das fotografias o autor prolonga toda a sua experiência e vida a bordo de inúmeras embarcações para documentar esta prodigiosa faina humana. As legendas de cada fotografia não só cumprem a sua função como acrescentam mais informação e contexto ao que cada imagem retrata, oferecendo ao leitor mais profundidade acerca do documentado.

    Este livro é o resultado de um trabalho levado a cabo por Hélder Luís ao longo de quatro anos (2018-2022), “sobre a pesca do cerco, a partir do norte do país”, enquadrado numa residência artística “dedicada à cultura marítima, e apoiada pela Câmara Municipal da Póvoa de Varzim”. “Passei uma boa parte desses quatro anos a bordo de barcos de pesca da Póvoa de Varzim, das Caxinas e de Vila do Conde, acompanhando as tripulações em dezenas de viagens, observando, fotografando e filmando.”

    Tendo a Póvoa de Varzim como ponto de partida para a sua empresa fotográfica, cedo o autor compreendeu que teria de alargar horizontes e navegar até outras paragens, mais a sul do país, “desde Matosinhos até ao Algarve”, passando por Aveiro, Figueira da Foz ou Peniche. Contudo, este alargar de horizontes permitiu que Hélder Luís tivesse “uma visão global sobre a pesca do cerco e sobre as diferenças entre a forma de trabalhar dos pescadores do norte e os do resto do país”.

    Eis um livro que seguramente fará as delícias de todos aqueles que se interessam pela História da Alimentação em Portugal, pelos ingredientes da nossa culinária e sobretudo pelas histórias de vida associadas ao trabalho de tantas pessoas invisíveis que possibilitam que esses produtos nos cheguem à mesa e possamos desfrutar desses sápidos tesouros. Não basta apregoar que temos o melhor peixe do mundo. É preciso conhecer a sua História, saber de onde vêm e de como nos engrandece o prato.

    Além do autor, também a autarquia da Póvoa de Varzim está de parabéns por ter proporcionado a Hélder Luís as condições necessárias para a criação deste belíssimo e histórico trabalho. Bravo!

  • Hoje há segredos revelados, amanhã não sabemos

    Hoje há segredos revelados, amanhã não sabemos

    Título

    A História secreta dos alimentos

    Autor

    MATT SIEGEL

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Com o subtítulo, Histórias estranhas, mas verdadeiras, sobre as origens de tudo o que comemos, o escritor gastronómico norte-americano Matt Siegel conduz-nos numa viagem pelo tempo, desde que o Homem começou a usar o fogo para confeccionar os alimentos, revelando-nos curiosidades e factos pouco conhecidos sobre muito daquilo que comemos.

    Cada capítulo é dedicado a um alimento, mas a informação disponibilizada não se esgota nele ou se resume apenas a esse alimento. O autor, com mestria e um conhecimento enciclopédico, entrecruza inúmeras histórias e dados científicos, que dão corpo ao tema principal, guiando-nos através de vários campos do conhecimento e saciando o nosso apetite por estas curiosidades gastronómicas, numa visão por vezes bastante radical ou irreverente. Um olhar fresco e salutar sobre aquilo que pensávamos saber sobre os alimentos que nos chegam à mesa, num rosário de pequenas histórias que fizeram a História.

    O mel, por exemplo, serviu como arma de guerra ao longo dos séculos, tendo sido utilizado para infligir danos aos inimigos em vez de flechas, numa prática que remonta à Idade da Pedra: “Os homens das cavernas cobriam-nas com lama e atiravam-nas para cavernas inimigas; os exércitos romanos carregavam as catapultas com elas; os ingleses medievais atiravam-nas sobre as muralhas do castelo”. Curiosamente, a palavra bombardear vem do grego bombos, que significa “abelha”.

    Antes dos primeiros colonos chegarem ao continente norte-americano, a bordo do Mayflower, apenas setenta variedades de maçãs eram conhecidas e encontravam-se catalogadas em Inglaterra. Dessas, trinta e seis já haviam sido descritas e mencionadas no século I, na Roma antiga, por Plínio, o Velho. Contudo, no Novo Mundo, as maçãs não existiam, com excepção de algumas maçãs de jardim não comestíveis, pelo que os colonos plantaram as suas sementes trazidas de Inglaterra por volta de 1620. Numa geração, aquelas primeiras macieiras provocaram uma revolução  na história da maçã e prestes “deram origem a cerca de dezassete mil novas variedades, não incluindo as inúmeras experiências que não eram particularmente atrativas ou que não valia a pena catalogar.”

    As malaguetas “são agora as especiarias mais utilizadas no mundo, sendo cultivadas em todos os continentes”, inclusivamente na Antártida, onde foram plantadas numa estufa, “concebida para testar tecnologias de cultivo de plantas desenvolvidas para exploração espacial”. Diariamente, cerca um terço da população mundial consome malaguetas, um dos ingredientes essenciais na cozinha mexicana, norte-africana, coreana, tailandesa, indonésia, entre tantas outras.

    Por entre as grandes histórias surgem também as pequenas histórias ou curiosidades, que o autor vai desvelando com esmero e graça, como aquela das mulheres atenienses que coziam o pão “em forma de pénis e utilizavam azeite como lubrificante para fazerem brinquedos sexuais económicos, chamados olisbokollix (“dildo de pão”)”. Séculos mais tarde, na Inglaterra de Setecentos, as mulheres preferiram cozer “pães com a forma dos seus próprios órgãos sexuais (literalmente pressionando a massa contra a sua pele como um molde), devido a uma crença mágica de que os homens que os comessem se apaixonariam por elas.”

    Todo o livro transborda de gula e curiosidade, mas o único pecado que se poderá apontar talvez seja o facto dele ser um tanto ou quanto etnocêntrico, alicerçado numa influência norte-americana, bem como nos seus hábitos consumistas. É certo que as invenções culinárias dos “americanos” conquistaram e transformaram o mundo, mas ainda há mais mundo gastronómico com os seus segredos por desvendar. Não nos falte o engenho e o apetite.

  • A prodigiosa aliança da Natureza e do engenho humano

    A prodigiosa aliança da Natureza e do engenho humano

    Título

    Pão, azeite e vinho

    Autor

    PEDRO RODRIGUES; MOUETTE BARBOFF; FRANCISCO LINO; e SASHA LIMAUI

    Editora (Edição)

    Objecto Anónimo (Janeiro de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Ao chegarmos ao fim da leitura deste livro, uma pergunta nos assalta o espírito: como pode este pequeno rectângulo a que chamamos Portugal, tão entalado junto ao extenso mar, ser detentor de tamanhas riquezas

    Vejamos.

    Para o Pão, confesso que é difícil aferir a variedade existente. Em todas as regiões do país abundam diversos e primorosos exemplares das artes da panificação, portentosos no sabor e nas suas idiossincrasias locais e regionais.

    Mas para o Azeite “existem seis Denominações de Origem Protegidas para Azeites, a saber: Azeite de Moura, Azeite do Norte Alentejano, Azeite de Trás-os-Montes, Azeite do Ribatejo, Azeite da Beira Interior e Azeite do Alentejo Interior.” Além disso, para a produção deste “ouro verde” podemos contabilizar em Portugal mais de 40 variedades de azeitona. Um prodígio da Natureza e do engenho humano.

    No que diz respeito ao Vinho, “Portugal tem a maior diversidade de castas por metro quadrado quando comparado com qualquer outro país. Acrescente-se o facto de só 70 dessas castas registadas serem consideradas de origem exterior à península Ibérica.”

    Na listagem das castas viníferas normalmente utilizadas na produção de vinho, Portugal regista, hoje em dia, cerca de 343. “Um número muito superior à maioria de outros países produtores” Acrescente-se a isto, o facto de existirem “em Portugal 24 zonas de produção de vinhos com denominação de origem (DOC).” Mais uma demonstração prodigiosa da Natureza e do engenho humano.

    Sobre esta prodigiosa tríade, diz-nos Pedro Rodrigues, coordenador do livro: “Eis que vos apresento o pão, aconchegante, que alimenta o corpo; o azeite, sedutor, que amacia o coração; e o vinho, mágico, que alegra o espírito.”

    Além da coordenação editorial, Pedro Rodrigues assume também a autoria das fotografias, das receitas e da confecção dos pratos propostos, assinalando-se ainda a colaboração da saudosa Mouette Barboff (1941-2021) como autora dos textos sobre o Pão, de Francisco Lino para os textos dedicados ao Azeite e ainda de Sasha Lima, que escreveu acerca do Vinho em Portugal.

    Através de textos simples, escorreitos, numa linguagem clara e objectiva, claramente destinada a informar, mergulhamos num mundo cheio de particularidades que não só importa conhecer, como também preservar, compreender e não deixar esquecer. Receitas antigas, novos conhecimentos, abordagens irreverentes, criativas e por vezes disruptivas. Assim se dá forma a uma nova culinária, a um estar à mesa com os familiares e amigos que, ao fim ao cabo, são a génese de um estilo de vida proporcionado pela Dieta Mediterrânica.

    Apresenta-se este livro como uma espécie de curso abreviado de introdução ao universo destes três ingredientes fundamentais da nossa culinária e, principalmente, da nossa identidade. Tudo envolvido numa edição graficamente muito bem cuidada, com variadas fotografias, em particular nas receitas, num passo-a-passo, interessante. Três produtos nobres da nossa cozinha que seguramente são merecedores de uma edição assim tão cuidada. Parabéns.

  • Riso para entreter a academia

    Riso para entreter a academia

    Título

    História do riso

    Autor

    Abílio Almeida

    Editora (Edição)

    Guerra & Paz (Outubro de 2022)

    Cotação

    10/20

    Recensão

    Há livros que, antes de serem lidos, são muito desejados, tal a expectativa que determinado título ou temática suscita junto dos leitores. Foi o caso desta História do Riso, título demasiado abrangente para o resumo que dela se aproveita, escrito por Abílio Almeida (n. 1991), doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade do Minho e investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade.

    Composto por duas partes, em que na primeira, intitulada “O Riso no Pensamento: O conflito dos rostos do poder”, o autor pretendeu “entender a origem do conflito de perspectivas acerca do riso”, bem como a sua evolução até aos dias de hoje. Na Parte II, com o título “O Riso na Sociedade: Uma análise de fora para dentro”, o autor incidiu o foco “essencialmente nas muitas causas externas capazes de afectar as diferentes significações do riso”.

    Para Margaret Mead (1901-1978), o riso era a expressão emocional mais distintiva do homem, aquilo que caracteriza e distingue o ser humano. Contudo, para Platão (428-348 a. C.), o riso pertencia “ao mundo dos ignorantes, dos que se alimentam apenas dos sentidos e que, de forma ignorante, riem da realidade.” No seu entender, “o sábio, o filósofo, aquele que jamais encontra motivo para rir, não olha com bons olhos para aqueles que riem, pois esses são não só ignorantes, mas também perigosos”. De acordo com Platão, o riso “pertence, por isso, àqueles que, por não serem capazes de entender a realidade, riem dela, e que, por não a entenderem, estão dispostos a acabar com ela.”

    Através de vários exemplos, o autor tenta demonstrar como a interpretação do riso, “algo tão amplo e complexo quanto distinto e contraditório”, foi variando, “não só de época para época como de autor para autor.”

    De entre os pais da Igreja, o mais ferrenho adversário do riso foi João Crisóstomo (347-407), arcebispo de Constantinopla, argumentando que, de acordo com as escrituras, Jesus Cristo nunca riu. Esta ideia criada por João Crisóstomo levou a que as pessoas acreditassem que Cristo nunca manifestara o seu riso, como também nenhum dos apóstolos ou santos alguma vez o fizera.

    Não obstante, na Bíblia, o primeiro a rir é Abraão, com 99 anos, ao saber que sua mulher, Sara, com 90 anos, iria dar à luz um filho seu. Perante a novidade, Abraão pôs-se a rir. Curiosamente, esse inesperado filho chamar-se-á Isaac, nome que em hebraico significa “riso”.

    Este livro é o resultado da tese doutoral de Abílio Almeida e assim chega aos escaparates. Infelizmente, é disso mesmo que o livro padece, quedando-se a presente edição espartilhada por coloquialismos académicos, a desfiar conceitos e argumentos, com citações extensas, umas em inglês, outras em alemão — como se os leitores comuns fossem poliglotas —, preocupando-se em demasia com a forma e as normas de referenciação, mas olvidando o ritmo do texto e, principalmente, da leitura, que deveria ser fluída como um sorriso. Algo que a temática em apreço, seguramente, mereceria.

    Em bom rigor, esta História do Riso, em termos de conteúdo científico, certamente cumpre com honra a sua função de entreter a academia; todavia, devido à forma académica como se apresenta, pouco entusiasma o humilde leitor.

  • Património culinário para ler, saborear e aprender

    Património culinário para ler, saborear e aprender

    Título

    História dos paladares: redenção

    Autora

    DEANA BARROQUEIRO

    Editora (Edição)

    Prime Books (Novembro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Livros há que, pela sua riqueza interior, conquistam de imediato o coração dos leitores. É o caso desta História dos paladares, de Deana Barroqueiro (n. 1945), obra amplamente premiada e elogiada pela crítica.

    Reconhecida sobretudo pelos seus romances históricos, cinco títulos até ao momento, de onde destacamos D. Sebastião e o Vidente: Um romance de conspiração, mistério e revelação (2006) e O Corsário dos Sete Mares: Fernão Mendes Pinto (2012), Deana Barroqueiro escreveu também, ao longo de mais de duas décadas, romances de viagens e aventuras para jovens e livros de contos.

    Entretanto, Deana Barroqueiro colocou de lado as ficções e assumiu em mãos a hercúlea tarefa de gizar uma História da Alimentação, não só de Portugal, mas também do Mundo, através desta sua História dos paladares, composta por três volumes: Sedução (2020), Perdição (2021) e Redenção (2022).

    Os dois primeiros volumes foram galardoados com vários prémios: o primeiro volume com o Prix International de la Littérature Gastronomique 2021, pela Académie Internationale de la Gastronomie, e ambos com o Gourmand World Cook Book Awards 2022 e o Gourmand Best in the World Award 2022. Ainda há poucos dias, a autora anunciava numa rede social que o terceiro volume acabava de ser igualmente premiado no Gourmand World Cookbook Award, na primeira fase do concurso entre países, como a melhor colecção de livros de Gastronomia de Portugal.

    Neste terceiro volume da História dos paladares, dedicado à Redenção, somos confrontados com saber enciclopédico e culinário da autora, espraiados ao longo de 480 páginas, plenas de histórias, curiosidades, apontamentos, numa linguagem acessível, por vezes de recorte intimista, com a autora, de quando em vez, a pincelar os textos com as suas opiniões sobre variados assuntos, detalhe raro nos livros que correm hoje em dia, ou defendendo algumas instituições pelo trabalho que promovem na defesa da culinária portuguesa. Destaque, uma vez mais, para o número de receitas de época que o livro disponibiliza, trezentas, algumas delas assinadas por Deana Barroqueiro.

    Para melhor se compreender a profundidade da investigação levada a cabo por Deana Baarroqueiro atente-se no índice deste terceiro volume, dedicado aos Paladares de Redenção, distribuídos ao longo de nove capítulos de abrir a boca de apetite: I Patrimoniais / Identitários / Turísticos; II Afrodisíacos / Eróticos / Voluptuosos; III Capitosos / Efervescentes / Inebriantes; IV Alucinogénios / Irreverentes / Viciantes; V Restauradores / Boémios / Conspirativos; VI Icónicos / Sinestésicos / Pigmentados; VII Cinéfilos / Iconoclastas / Fetichistas; VIII Críticos / Mediáticos / Premiados; IX Pandémicos / Inovadores / Futuristas.

    De futuro, todos os investigadores que queiram escrever sobre a História da Alimentação em Portugal terão de passar os olhos pelas mais de mil e trezentas páginas de conhecimento que estes três volumes nos oferecem, bem como analisar as mais de setecentas e cinquenta receitas que a autora diligentemente coligiu.

  • As formas que tecem os nossos mares

    As formas que tecem os nossos mares

    Título

    Arquitectura do bacalhau e outras espécies

    Autores

    ANDRÉ TAVARES e DIEGO INGLEZ DE SOUZA

    Editora (Edição)

    Dafne Editora (Novembro de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    De quando em vez, eis que surge um livro com uma abordagem diferente e inovadora a determinado tópico, numa ligação não só curiosa como disruptiva.

    Foi o que fizeram dois arquitectos, André Tavares (n. 1976) e Diego Inglez de Souza (n. 1978) – em colaboração com Marta Labastida, Daniel Duarte Pereira, Aitor Ochoa Argany e José Pedro Fernandes –, ao estabelecerem um paralelo entre a arquitectura e a biologia marinha, no impacto que a pesca de certas espécies provocou sobre a paisagem e o território nacional: “A fisiologia e as dinâmicas da ecologia marinha subjacentes a cada espécie geram processos predatórios que, a partir de certa escala, constroem arquitectura e paisagem.”

    Espécies essas que vão desde o bacalhau, a sardinha, o atum até à pescada, ao trio polvo ou o peixe-galo e o tamboril, fundamentais para a alimentação dos portugueses,  e também muito presentes na nossa cultura e antropologia marítima.

    Esta análise desenvolve-se em dois eixos. Primeiro, “ao olharmos para os peixes, para o seu comportamento no quadro da biologia marinha, e, em contraponto, ao compreendermos as transformações em terra que ocorrem em função dessas dinâmicas”. Depois, tendo como ponto de partida uma interpretação dos ecossistemas marinhos em função dos processos construtivos terrestres, constatando-se “que a arquitectura tem uma história cruzada com o mundo dos animais, as dinâmicas dos oceanos e a biologia.”

    No âmbito do bacalhau, entende-se, como arquitectura, “as secas construídas em vários pontos da costa portuguesa, mas também os armazéns frigoríficos que lhes serviram de apoio, os cais de acostagem que acolhiam os navios da pesca e comércio, as lojas e entrepostos que garantiam a sua distribuição.”

    Para a arquitectura da sardinha, destaque naturalmente para as “fábricas de conserva, as construções precárias que acompanham a sazonalidade da circulação das espécies ao longo da costa e os palheiros de apoio à arte xávega”.

    De acordo com os autores, também as armações de pesca “são obras de arquitectura do mar”, assim como as redes, as bóias de marcação, “que territorializam a paisagem marinha, dão nome a lugares que, de outro modo, seriam imperceptíveis na linha do horizonte”.

    Mas para tudo isto, para este novo olhar, concorre também uma interpretação das políticas pesqueiras promovidas e desenvolvidas pelos vários governos, com destaque naturalmente para o Estado Novo, quando implementou uma mitologia associada ao bacalhau, construindo um paralelo com a epopeia dos Descobrimentos. Por isso mesmo, é importante ler e compreender este livro, pois “ler a história do bacalhau pela arquitectura das suas construções oferece uma imagem alternativa à história oficial do «bacalhau nacional», tornando evidentes as contradições do Estado Novo”.

    Outra tónica que percorre todo o livro e um dos seus principais trunfos, é a constante preocupação com os ecossistemas marinhos devido à pressão exercida pelas empresas na forma predatória como exploram os recursos: “o que a história da arquitectura mostra é a necessidade de estudar e considerar os ecossistemas com que as políticas terrestres se relacionam para evitar destruir os ecossistemas que asseguram a sobrevivência das populações”.

    Esta recensão será sempre parca para as muitas informações que os autores disponibilizam. São múltiplas as chaves de leitura que o livro oferece para análise e interpretação dos dados apresentados, que vão desde a biologia dos animais às tecnologias da pesca e processamento do pescado, da política às práticas de consumo, entre muitos outros.

    O livro, enquanto objecto estético, apresenta um design gráfico cuidado, elegante e moderno, com ilustrações minimalistas de excelente recorte. Destaque também para as muitas fotografias, mapas e desenhos arquitectónicos que ilustram as páginas do livro, engrandecendo vividamente esta edição.

    Nas últimas páginas, André Tavares deixa no ar a necessidade de continuação deste género de estudos para o futuro: “este livro é uma primeira aproximação a um problema complexo, e esperamos que possa contribuir para uma história ecológica da arquitectura que está a ser construída”. O primeiro passo está (bem) dado.