Viajei, por razões profissionais e académicas, até Roma – a Cidade Eterna; e a propósito de uma conversa casual, dei por mim a pensar na conservação das antigas estradas do Império Romano. Os milhares de quilómetros de construção, que se estenderam da capital ao “resto do mundo”, são de uma qualidade excecional. Tanto assim que a robustez dos materiais e a técnica dos mestres garantiu que essas infraestruturas chegassem muitas vezes quase intactas aos nossos dias.
O tempo e o dinheiro investidos na construção destas vias ofereceram uma importante vantagem à circulação de pessoas e de bens. Infelizmente, com o passar do tempo, esquecemo-nos do significado das ideias de qualidade, de robustez, de mestres. Por isso, já não construímos como antigamente.
É ainda curioso saber que nem todas as pedras destas estradas se mantiveram no lugar. Na verdade, algumas acabaram por ser arrancadas do solo para depois servir na edificação de castelos durante o período medieval. Imagine-se estes pedaços de rocha com características humanas, e facilmente conseguimos vislumbrar o orgulho que poderiam sentir ao deixar de viver no chão – a servir de sustento a pés, patas e rodas – para passar a viver ao alto, integrando muros imponentes.
Quem visita Roma, encontra vestígios de construções milenares espalhadas por toda a cidade. Ano após ano, construção em cima de construção, a cidade evoluiu, mas, ainda assim, as colunas, os capitéis, as paredes ou as abóbodas permaneceram nos mesmos lugares – e resistiram ao tempo, aos terramotos, às guerras, ao vandalismo.
Ainda que a cristianização do Império tenha levado a uma transfiguração da obra imperial – por exemplo, a conversão dos antigos templos em igrejas –, a ideia romana manteve-se na expressão do eterno, do grandioso, do imponente. Cristianizou-se os romanos e romanizou-se os cristãos…
Enquanto pensava em ideias para escrever esta crónica, tive o privilégio de ser embalado pelo som das águas refrescantes das fontes, dos chafarizes, do rio e, se não fosse o descuido na limpeza urbana, tinha-me sentido num pequeno paraíso. Em cada esquina, um monumento, uma relíquia – cada uma mais antiga e mais bonita do que a anterior. Nas ruas ouvimos o tom alto e exagerado com que se fala localmente. Gesticulam muito. Buzinam por tudo e por nada. A condução é caótica. Talvez, por isso, seja difícil imaginar esta cidade fechada ao turismo durante o recolher obrigatório.
Nesta cidade ainda se sente o medo e a exigência trazidos pela pandemia. Ainda se pede certificados e para se andar mascarados…
Na rua, a arte urbana ganhou um novo tema. Numa velha parede de esquina, alguém desenhou um quadro perfeitamente integrado. Nele a alusão à “Vacina Santa”, mesmo ao lado do Vaticano: são os sinais dos tempos.
Mas, voltemos às pedras. Não há dúvida de que o ser humano é capaz de criar obras geniais com elas. Não me refiro exclusivamente às basílicas ou aos edifícios em geral. Refiro-me também à criação de pequenos pormenores artísticos que eternizam ideias e ideais – a vida, a morte, a eternidade, a esperança, a justiça, a fé, a caridade.
Dentro das igrejas existem túmulos lindíssimos, que tentam perpetuar na morte aquilo que não foi alcançado na vida. Parece-me oportuno, hoje, mais do que nunca, entender uma simples ideia: não passamos de pequenas pedras brutas a precisar de um bom desbaste…
Dos castelos medievais, hoje, o que nos mostram são apenas réplicas – Guimarães, São Jorge, Almourol… –, ao contrário das estradas, dos aquedutos, das pontes romanas.
O declínio do Império Romano coincidiu com o desinvestimento na circulação de bens e de pessoas. A estagnação matou. Não aprendemos.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
É um dos três portugueses de destaque no Vaticano. Formalmente, é bispo titular de Belalos, mas essa é “mercê” simbólica, porque a sua função tem uma dimensão mundial: desde finais de 2011 ocupa as funções de delegado do Conselho Pontifício para a Cultura. Numa conversa reflexiva com o PÁGINA UM, na casa no Vaticano – daí a informalidade não ter “permitido” fotografias oficiais –, Dom Carlos Azevedo fala dos desafios mais marcantes da Igreja Católica, incluindo a perda de fiéis, das questões de moral e da ética nos tempos modernos, e também dos interesses pessoais (e críticos) que o mobilizam.
Habitualmente, como são os seus dias aqui no Vaticano?
Primeiro, há a normalidade daquilo que é a vida de um padre: levantar-me, rezar… Entro às 8 horas no trabalho e às 13 e 30 tenho o intervalo do almoço. Três vezes por semana regresso ao trabalho às 15 horas e saio às 18 horas. Às quartas e sextas não há regresso. Esse é o ritmo. Durante as horas de trabalho, o que faço é responder às solicitações dos bens culturais da Igreja, que é o campo que me tenho destinado. Por exemplo, hoje um director de um coro queria vir marcar uma audiência para falar sobre uma determinada situação e respondi a esse e-mail indicando-lhe a pessoa com quem ele devia falar. Portanto, é preciso responder aos e-mails, preparar temas, estudar e ler aquilo que neste momento está em debate na questão dos bens culturais.
Entre os quais, a música…
Sim. Daí eu ter feito quatro congressos. A música é um sector muito importante, sobretudo depois da mudança de paradigma da liturgia, no vernáculo de cada língua; é preciso que haja compositores, pessoas preparadas para corresponder a uma qualidade musical que está um pouco decadente. Sobretudo no sul da Europa e na América Latina, é algo que exige reflexão. Fiz vários congressos porque tinham bastante sucesso, havia uma necessidade. Outra área de trabalho tem a ver com as igrejas vazias, e sobre o que faz em relação a isso, de modo a dar-lhes um outro uso, como tem acontecido no Canadá, Estados Unidos e Austrália. É um fenómeno que vai continuar a intensificar-se nos próximos anos. Muitas igrejas, em particular nas cidades, não têm fiéis. Não tendo fiéis, como é que irão sobreviver? É preciso encontrar soluções.
Dom Carlos Azevedo
Em certos países, há igrejas que já foram transformadas em hotéis, bares, restaurantes, discotecas…
Nós fizemos um documento de 16 páginas, que foi aprovado a nível das conferências episcopais europeias, e que deu bastante trabalho; está na internet e as pessoas podem ler. São linhas orientadoras para esta questão. Fala sobre o que se deve fazer, quais são as prioridades, como se deve conduzir o processo. Além da leitura do fenómeno, dá recomendações concretas.
Caso a Igreja Católica não consiga manter alguns dos seus templos, estes devem ser demolidos, vendidos?
Em primeiro lugar, a comunidade deve ser ouvida. A decisão compete ao bispo, mas depois existem as questões das confrarias e das ordens religiosas. Por isso, promovemos outro congresso apenas sobre as ordens religiosas, porque os seus bens culturais são isentos da intervenção do bispo. Naqueles que dependem do bispo, deve ouvir-se a comunidade, e isso não é só ouvir os católicos. Uma igreja num determinado local é um elemento de coesão, mesmo para os que não vão à missa. É um símbolo. Esquece-se muitas vezes essa dimensão, que deve ser respeitada. Depois, se a comunidade pode dar-lhe outra finalidade cultural ou social – é o ideal. Podem, por exemplo, transformá-las num centro de acolhimento ou, se o espaço for grande, em habitação social. Em Manhattan, estavam decididos a fazer um condomínio de luxo de uma igreja e graças à mobilização dos fiéis, foi transformada numa habitação social. Uma igreja pode ser transformada numa biblioteca ou num arquivo, numa sala de conferências ou de exposições, num atelier de artistas… Mas isso não dá dinheiro; portanto, a questão é se a comunidade consegue angariar fundos para manter essa nova instituição.
Estamos a falar de eliminar por completo o templo – mandar tudo abaixo.
Exacto, é “desconsagrado”. Usa-se esse termo, embora eu não concorde com ele. Deixa de ser um espaço litúrgico, pura e simplesmente. No Cristianismo não há sagrado e profano – tudo é chamado à santidade. A matéria, o cosmos, tudo! Há casos em que dá para manter uma parte da igreja como espaço litúrgico, como o presbitério, e a outra parte da igreja passa a ser de uso social e assim mantém-se as duas dimensões. Há igrejas na Alemanha e na França que têm essa polivalência, mas o bispo tem que determinar isso. Em último caso, há a hipótese de vender. Aconteceu isso com confrarias em que o bispo não tinha interferência. Nesses casos, é preciso “despir” a igreja de todos os elementos decorativos, para ficar apenas a arquitectura. Cada país terá as suas regras. É possível dar os elementos retirados de uma igreja para outra que não os tenha, ou para uma comunidade pobre… No caso do altar, não tendo uso, deve ser destruído, não deve transformar-se em mesa de bar, como se vê em fotografias que nos mandaram de uma igreja em Florença.
Por tudo aquilo que já publicou, pelas suas conferências e aulas, percebe-se ser um verdadeiro amigo da Cultura. Foi esta a razão – aliada à capacidade de comunicação – que o conduziu até ao Conselho Pontifício para a Cultura?
Certamente que o lugar que me foi dado aqui em Roma tem a ver com as minhas competências. Fazia parte da Comissão Episcopal da Cultura e Bens Culturais, tinha organizado exposições… Na maior exposição de arte religiosa em Portugal, no ano 2000, fui o comissário-geral. Também publiquei livros sobre iconografia. E depois a reflexão propriamente dita sobre a Cultura e a Arte Contemporânea, que é algo a que tentamos estar atentos. Não se trata só do património que já foi feito, mas também de continuarmos a produzir, seja no campo da Música, da Escultura, da Pintura, da Arquitectura, espaços e expressões artísticas de qualidade. Por exemplo, fui recentemente a um colóquio sobre a arte contemporânea numa Universidade de Belas Artes em Espanha, e ficaram muito admirados com o Vaticano, por termos uma visão sobre a Arte Contemporânea. Quando a Paula Rego fez uns quadros para o Museu da Presidência, eu fiz a sua leitura a pedido do Presidente Jorge Sampaio – isso até calou um bocadinho algumas críticas que havia, e que um ou outro jornal veiculou, sobre as pinturas da chamada “capela”, que é um pedaço de corredor que tem um altar. Ela foi convidada a fazer oito quadrinhos pequeninos sobre a vida de Maria, e eu depois fiz uma leitura. Claro que para fazer uma leitura de obras de grandes artistas, como a Paula Rego, é preciso, e eu dei-me ao trabalho, de ler livros, entrar no seu mundo. Temos de entender a gramática de cada artista para captar a sua mensagem.
Dom Carlos Azevedo com o Papa Francisco
Como adquiriu o gosto pela Cultura?
Penso que foi o seminário que me abriu horizontes. Alguns professores mais cativantes… Já no fim da sua vida, tive o Bernardo Xavier Coutinho, que foi uma figura que conheceu a História da Arte e tem uma obra clássica sobre o Camões. Depois, o Castro Meireles, que era outro professor, diretor do museu do seminário. A partir daí aproximei-me, perguntei, quis saber mais. Havia outro professor, também muito sensível à dimensão da Arte, que era o educador Arlindo Cunha. Esse gosto foi sendo alimentado por onde fui passando.
Há uma figura que, certamente, fica para a História de Portugal e da Igreja, ainda que por vezes haja quem tente pô-lo numa gaveta do esquecimento: Dom António Ferreira Gomes, bispo de Portalegre e do Porto durante o Estado Novo. Que importância teve este homem na sua vida?
Isso tem a ver com outra dimensão, que é a do papel da Igreja na sociedade. Através do contacto com as suas homilias, a sua doutrinação, percebia-se que a dimensão profética da vida na Igreja deve continuar sempre em vida. Por exemplo, nestes últimos tempos, notámos a falta – na Igreja Ortodoxa Russa – da dimensão profética e crítica do poder. Ser livre do poder, de forma a chamar a atenção para os valores do Evangelho. Nós não estamos ao serviço do poder, estamos ao serviço de Jesus e do Evangelho. Aprendi com o Dom António Ferreira Gomes – que era não só um pensador profundo, mas também alguém que foi capaz de ser livre tanto antes como depois do 25 de Abril, criticando algumas medidas. Isso era algo que quase só ele tinha autoridade na Igreja: uma voz crítica em relação à maneira como foram tratados alguns membros da PIDE e à forma como estava a ser conduzida a democracia para uma falta de democracia. Eu publiquei, aliás, há tempos, um trabalho sobre as posições que António Ferreira Gomes teve nesses dois períodos: uma coerência evangélica mantida sempre com sentido crítico em relação à realidade que o circundava. Esse é o papel da Igreja. E isso é algo que me ficou na massa do sangue, devido ao contacto muito profundo. Depois de ele morrer, também tive a graça de ter arrumado os seus papéis e a correspondência, e acabei publicando uma série de escritos dele. Isso foi prolongado como presidente da Fundação SPES, quando Dom Manuel Martins fez 80 anos e me disse “agora ficas tu”; e fiquei como presidente da fundação até vir para cá [Roma].
Ser-se irreverente e ousar pensar a realidade com sentido crítico é arriscado. É mais fácil seguir as regras e não criar agitação. Dom António Ferreira Gomes, sendo um exemplo de virtude, não seria expectável uma tentativa de abertura de processo para beatificação, por exemplo? Ou será que ao agitar o Estado e a Igreja, perdeu em ambos os lados?
Por admirarmos pessoas em certas vertentes, não devemos perder a capacidade de reconhecer outras vertentes em que elas não eram tão boas. Não devemos “adorar” cegamente certas figuras, também aqui devemos ter sentido crítico. Ele teve valor, entre outros aspectos, como pessoa que foi capaz de pagar com dez anos de exílio a sua posição eclesial e não posição política, como alguns fizeram crer. Claro que os comunistas ao verem um bispo a criticar o Estado Novo, se aproveitaram disso, mas isso não quer dizer que ele partisse dos ideais comunistas.
Alguns até o acusam de ter sido maçon. Há fundamento?
Evidentemente que não. O facto de ele desejar, como escreveu no seu testamento, ter esculpidos no seu túmulo a rosa e a cruz, fez alguns pensarem “cá está!”, mas não tem nada a ver. A rosa é o símbolo da civilização, e o grande símbolo do cristianismo é a cruz. Como ele próprio explicou, são símbolos da civilização do amor – é uma expressão que ele usou muitas vezes, de forma recorrente no final do seu episcopado.
Mudemo-nos para o Vaticano, onde aliás estamos a ter esta conversa. Diz-se que é o país do Mundo que tem mais fé porque quem por cá passa deixa ficar alguma. Ao fim de dez anos aqui, quanto já cá deixou?
Um cristão deve ter essa consciência crítica, porque a crença talvez se possa ir perdendo. A fé solidifica-se. Porque ao vermos testemunhos em que há uma ausência de evangelho, dá-nos vontade de sermos construtores desse evangelho, portanto solidifica-nos. Contudo, Roma tem também a vantagem de vermos o sentido católico da Igreja, de vermos aqui expressões diversas da mesma fé, não só na liturgia, mas nas expressões culturais, nas linguagens… e todos se sentem irmanados no mesmo Jesus, no mesmo Cristo. E essa experiência de universalidade da Igreja é uma experiência fundamental que Roma nos oferece.
Dom Carlos Azevedo durante uma homilia.
Estamos no Palácio do Santo Ofício. Por aqui passaram vários processos persecutórios, uns porventura mais justificados, outros menos. Nesse tempo, a Igreja parecia não permitir que as pessoas fossem muito além. Qual é hoje a posição do Vaticano sobre o “andamento” da Igreja? O Vaticano continua a impedir que se avance demasiado?
Vivemos um momento raro. Antigamente eram, geralmente, experiências inovadoras em alguns países ou em algumas dioceses que faziam abanar um pouco as estruturas centralizadas da Cúria Romana. Nos últimos anos, sobretudo a partir de João Paulo II, vemos o contrário. Basta olharmos para a Caminhada Sinodal. Hoje, é a Cúria, o Papa e os seus organismos, que estão a puxar pela Igreja para que seja capaz de ver que os tempos mudaram, que a Igreja também tem de mudar. Porque senão, não é capaz de ser credível para este tempo.
E que alterações são necessárias?
Muitas. Mas gostava de concluir a questão anterior. A nível pastoral devem ser, e sempre foram, os bispos que criam, inventam e renovam as formas de serviço à Igreja, que depois, Roma pode querer adoptar. A ousadia apostólica tem de estar nos pastores, não podem ficar à espera a ver se a Santa Sé aprova. Não é esse o modo de funcionar desde as comunidades iniciais. A Cúria e a diocese, por exemplo, são termos que vêm do Império Romano. Infelizmente, muita coisa do Império Romano passou para a Igreja, inclusive as vestes. Todas essas coisas, é preciso fazer uma certa limpeza. Alguns acham que já se limpou demais, mas eu acho que ainda se deve limpar mais… Não se trata da Igreja se limitar a adaptar à cultura contemporânea, pode, contudo, ser capaz de dialogar com a cultura contemporânea. Não significa perder a identidade, porque senão não há diálogo. Uma sinfonia funciona melhor quando cada instrumento toca o que deve tocar. Ter uma identidade forte, que não seja baseada em ideologia, mas no Evangelho.
Depreendo que tem preocupações pessoais como bispo. Pode apresentar-nos um exemplo?
Preocupa-me muito a posição de alguns, que apesar de serem minoria, fazem barulho e seduzem parte do clero mais jovem na ideia que voltar ao passado é o caminho do futuro. Pessoas psicologicamente inseguras aderem com facilidade a um conservadorismo doutrinal, a uma dedicação espiritualista e devocional, em vez de arriscar ir ao encontro da realidade actual e dialogar, servir os mais pobres e confusos, apresentando humildemente, mas firmemente a proposta cristã da felicidade.
Uma das 10 obras da autoria de Dom Carlos Azevedo, que costuma assinar como Carlos A. Moreira Azevedo
Falou na necessidade da Igreja se despir das vestes… Tivemos em Portugal um rei, D. João V, que achava que tudo se podia comprar, até o Céu. Sobre esse tempo chegou a publicar um artigo no qual referiu – o macaco do Papa!
Sim. Foi um núncio em Portugal que utilizou essa expressão numa carta a um secretário de Estado queixando-se ao ver como o patriarca copiava tudo o que acontecia em Roma. Parecia um macaco do Papa – daí a expressão schimia del papa. Queria comparar-se com a corte romana. As benesses, os privilégios, o facto de ter um patriarca… Uma vontade de afirmar-se na Europa graças a “pompas”. O que eu critico é: D. João V teria sido um grande monarca se tivesse investido na Cultura, na Educação, na formação científica, em vez de gastar rios de dinheiro em “Mafras” e em objectos de ouro que distribuía aos cardeais para conquistar as benesses que desejava para a sua Corte – mesmo sacrificando as dioceses. Portugal vivia para a Corte de Lisboa.
Pagou o suficiente para que ainda nos dias de hoje algumas dessas vantagens se mantenham – como o título de Cardeal para Lisboa.
O patriarca de Veneza já não é cardeal. Com Bento XVI, e com este Papa, já não foi nomeado cardeal. São títulos que são fruto de um império. De certa forma, havia um império comercial em Veneza, e um império ultramarino de Portugal, embora a origem do título de patriarca já tivesse nascido em 1640, quando a Espanha não deixava nomear bispos para Portugal. Nasceu na junta de teólogos, que o rei D. João IV reuniu, a ideia de transformar Portugal num patriarcado, e escolherem eles os bispos sem dizerem nada ao Papa. Isto porque não tínhamos bispos. Chegámos a não ter nenhum, porque os espanhóis ameaçavam se o Papa nomeasse bispos para Portugal. Foram ideias, que de facto nunca avançaram, mas estão escritas e conhecem-se.
Podemos concluir que o próximo bispo de Lisboa não será automaticamente escolhido para ser cardeal?
Esse é um compromisso a que se apela desde o tempo de D. João V, mas não podemos esquecer que houve um Concílio que alterou as regras. Por exemplo, a questão da resignação dos bispos aos 75 anos. Quando as pessoas permaneciam no lugar até ao fim da vida, o que vinha a seguir assumia o título. Já aconteceu, recentemente, com Paris, por exemplo. Enquanto o velho cardeal não tiver 80 anos, o novo bispo de Paris não é nomeado cardeal. É arcebispo de Paris, mas não cardeal. Porquê? Porque tem lugar na eleição do Papa, e era um pouco estranho que uma cidade tivesse dois votos na eleição do Papa. Por isso, só quando um atinge 80 anos e já não vota, é que o sucessor é nomeado cardeal destas cidades mais importantes. Ao escolher uma cidade por país, seria Lisboa. Mas este Papa tem rompido muito com isso: se uma pessoa dá um testemunho de vida evangélica, mesmo estando numa diocese “perdida” no mapa, merece o título.
A Igreja sempre teve e continua a ter, um peso substancial na forma como as pessoas pensam, na forma como vivem e como julgam a sua própria vida. Parece-lhe que poderá haver espaço para mudar a forma de pensar sobre assuntos que causam polémica e divisão, como, por exemplo, os temas da sexualidade? Há pessoas que sofrem permanentemente porque parece que o que é bom, ou engorda ou é pecado [risos].
A expressão da perda da juventude, penso que é um problema gravíssimo e que a Igreja é chamada a enfrentar com grande verdade, porque nós vamos às celebrações e não vemos jovens. Desertaram. Sabe-se que há muitos que fazem o Crisma para poderem casar pela Igreja. Aqueles que ainda querem, porque esse número também vai diminuir. A inserção na vida da Igreja é algo que se está a perder continuamente, e não é só em Portugal e Espanha; acontece na Alemanha, na Polónia, em Itália…
Nestes últimos anos tem havido uma queda bastante acentuada…
Sim. Tudo isso é fruto de as novas gerações não reconhecem no Cristianismo uma proposta de felicidade – e isso passa, certamente, por uma liberdade em relação à sua sexualidade, ao poder, pela relação da Igreja com a Economia e com a Política. Nos grandes canais de comunicação social, a imagem que ainda passa é de uma grande repressão a nível da sexualidade. Felizmente, este Papa tem uma linguagem muito acessível e as intervenções dele têm eco nos media porque têm a ver com a vida das pessoas. Dizer que o prazer é bom e que os casais devem exprimir o seu amor, são dimensões conhecidas por quem está por dentro da Igreja e da actual moralidade. Mas a grande maioria tem uma imagem negativa, do que é proibido e do que não se pode. Bento XVI chegou a dizer que o Cristianismo é um código de felicidade – é essa mensagem que tem de passar, mas, para ser passada, temos de alterar alguns arquétipos mentais que estão a perturbar e que dão azo a todas as maleitas que a Igreja está a sofrer, de perversões e tudo isso. Porque não se educou uma energia que é própria do ser humano, e que deve ser vivida harmonica e equilibradamente, como é a sexualidade. E não negada.
Conhecemos a expressão “santificarmo-nos no trabalho”. Será que algum dia haverá uma expressão “santificarmo-nos durante o acto sexual”? Através do sexo, podemos chegar a Deus?
Eu dizia há bocado que tudo é santo. Um pai e uma mãe falam de Deus a um filho(a) tanto quando falam do Evangelho da catequese como quando o beijam. A ternura, como o Papa tantas vezes fala, é um sinal da presença de Deus. É um sinal da profunda Humanidade. E isso abre caminho a que as pessoas sejam mais descontraídas a expressarem a sua afectividade. Isso certamente implica uma Educação, porque é uma dimensão que tem uma energia fantástica, que por isso deve ser canalizada. Ou seja, ter balizas. Mas não reprimir nem oprimir, senão depois é como uma panela de pressão, e torna-se perigoso. Penso que aí é que há um caminho a fazer, de relativizar a maldade. A um certo momento, quando se dizia pecado, parecia que era apenas em referência à sexualidade, mas há pecados muito mais graves. As novas gerações ainda não apanharam esses novos ventos. Não estão habituadas ao sacrifício, porque foram sempre muito facilitadas pelos pais, e quando têm a primeira adversidade parece que o mundo vai acabar. E isso é uma fragilidade afectiva enorme das novas gerações. Não só porque vivem muito dependentes do computador, do telemóvel; e o seu mundo de relações é muito circunscrito. Transmitir aos mais novos a importância do bem-comum é garantia de futuro, porque o futuro exige diálogo intercultural e inter-religioso se quisermos uma Humanidade nova. Não podemos ficar fechados num catolicismo de muros.
Uma sexualidade reprimida pode levar a desvios, nomeadamente à pedofilia que, aliás, sabemos que existe entre os membros do clero. Pode haver pedófilos que são professores, actores, jornalistas, jogadores de futebol… De que forma a Igreja pode aproveitar este momento para mostrar de forma exemplar como se pode conduzir um processo de averiguação de um mal, que afinal, está presente em tantos sectores?
Sim, essa fragilidade afectiva e perversão tem sido facilitada nos últimos tempos por uma falta de valores. Passa a “valer tudo”. Alguns chegaram a dizer, quando se começou a falar muito disto, que até os padres [fazem isto], e a defenderem que se “liberalizasse” para todos, como a droga. Há épocas onde esses dramas e atitudes são mais provocadas pelas circunstâncias do ambiente, e outras em que são provocadas pela falta de uma orientação e de uma educação sexual. Há que, para além de cuidar das vítimas, precaver para que uma nova geração de padres possa ser educada de uma forma mais sadia, de modo a não dar azo a perversões.
Parece-lhe que em Portugal os processos relacionados com a pedofilia têm sido bem conduzidos pela Igreja portuguesa?
Eu acho que esta abertura que a Europa começou a ter, de criar uma comissão para clarificar o assunto, fomenta a transparência, o que é fundamental. É preciso, primeiro, fazer-se uma “radiografia” da situação para termos o tratamento adequado. Está a ser feito.
Dom Carlos Azevedo com o actual Papa emérito Bento XVI
Realizou muitos congressos, conferências e escreveu vários livros e está bem de saúde. Como é que olha para o seu futuro?
Quis sempre servir na Igreja no espaço que me é dado, que nuns momentos é mais a nível social, noutros mais cultural. Aqui [no Vaticano] tinha tempo, por isso dediquei-me a servir a Igreja e o meu país, publicando algo que possa ser necessário para o conhecimento da nossa História eclesial. É essa atitude que mantenho, enquanto Deus me der saúde – servir da forma que posso o que me pedem. Ainda que eu considere que tenho capacidades que são melhores para um determinado campo do que para outro. Tomar essas opções é algo que cabe a quem está nos lugares de decisão.
Poder-se-á afirmar que é um bispo e um pensador irreverente?
Eu não me considero um pensador. Considero-me um padre que é livre, isso sim. E que, por vezes, pode ousar, seja com uma terminologia ou uma intervenção… Creio que a Igreja deve intervir! Defendia isso como presidente da Comissão do Constitucional Social, naqueles anos economicamente críticos de 2008. Ao criar um fundo social que distribuiu mais de um milhão de euros… Aliás, fui gerindo esse fundo pelas várias dioceses com projectos que apareciam. Dávamos dinheiro para projectos que criassem emprego, que ajudassem as pessoas. Também poderia servir para ajudar directamente pessoas em grande aflição, mas tentava-se sobretudo que fosse para projectos que criassem emprego.
Quando reza e comunica com Deus, que homem está ali de joelhos a rezar?
É o homem frágil, pecador, que diz “eis-me aqui”, com atitude de serviço. Como quem diz “eis-me aqui, o que queres de mim?”. É isso que também acaba por espelhar-se no dia-a-dia, nas minhas actividades. Parte de uma atitude que nasce na oração. Isso é muito interessante e fundamental. Nós podemos ter uns planos e tal, mas nunca somos só nós a fazer as coisas, é o Espírito Santo em nós e devemos seguir sempre a sua voz. O espírito de Jesus e de amor universal do Pai continua a estar presente na vida, e a apelar-nos a que estejamos disponíveis para aquilo que é necessário, e que a Igreja e a sociedade nos pedem. A lutar pelos ideais – ainda que estes sejam maiores do que as nossas pernas, e condicionados pelos que nos permitem. Portanto, é como me posiciono: “eis-me aqui, ao serviço”.
A necessidade de apresentar o longo percurso académico, profissional e pessoal de alguém, seguindo fórmulas exaustivas (muitas vezes maçadoras) sugere o desconhecimento completo da pessoa apresentada. Por isso comecemos com o essencial.
Carlos Moreira Azevedo tem 69 anos, nasceu em Milheirós de Poiares. Foi ordenado padre pelas mãos de Dom António Ferreira Gomes. Tem por hábito levantar-se cedo. Antes de sair de casa, gosta de deixar o almoço temperado – à carne (ou ao peixe) adiciona vinho branco, alho, sal, especiarias. É pontual. Rigoroso. Ao longo da manhã lê, estuda, escreve. Também reza.
Fala com muita gente; telefone, e-mail, redes sociais. Orgulha-se da vida de campo que viveu, das suas raízes. Herdou o jeito e o gosto de cozinhar e de servir os seus convidados. Não guarda para si o segredo escondido em cada receita. É bem-humorado e discreto. Exigente e austero. Durante a última década tem atravessado quase todos os dias a Praça de São Pedro, no Vaticano, para chegar ao gabinete onde trabalha.
Trabalha e dá trabalho aos outros. Organiza, dirige, exige, comanda. É acarinhado por todos. Quando lhe surge uma dúvida, esclarece-a ao procurar nos livros da sua biblioteca particular. Tem orgulho nela. Sabe e gosta de história, de arte, de cultura. É afectuoso.
Parte dos livros que adquire serve para investigar sobre temas que mais tarde apresenta. Aparentemente não gosta de estar parado e, por isso, as ideias obrigam-no a passar para o concreto da vida sob forma de texto, conferência, cultura.
Por culpa das restrições impostas durante os últimos dois anos, ficou limitado à sua casa. Mesmo assim, reuniu, ao longo desse tempo, as obras de Irene Vilar numa publicação que conseguiu concluir com a ajuda de muitos amigos. Ligou-lhes, um a um, pedindo fotografias das obras, de catálogos, de tudo… Manifestou gratidão referindo, no final do livro, cada um dos nomes em causa.
Esta rede, da qual se orgulha, é o reflexo da força mobilizadora que o caracteriza.
Enquanto passeia por Roma, dispensa a cruz peitoral, a batina e o solidéu. Troca-os por um chapéu de palha e por uma camisa de manga curta (na Primavera/Verão). Usa o cabeção.
Entusiasma-se quando leva os amigos a passear pela cidade. Noutros tempos, mostrava-lhes todas as igrejas, ruas e museus. Falava-lhes e ensinava-lhes História, Arte, Religião. Passou a fazê-lo num ritmo diferente.
Guarda saudades de Portugal, da família e dos amigos. Mas, em Roma, sente-se em casa. A sua presença é assídua nos arquivos Pontifício e do Santo Ofício. Gosta de olhar o passado para depois o tornar presente.
O sentido crítico – que também o define – faz com que considere que se tenha perdido uma grande oportunidade de mudar alguma linguagem litúrgica, por exemplo, a propósito do novo Missal. Lamenta que as palavras continuem a ser exclusivas. Por ele, em vez de se dizer durante a missa “…fruto da videira e do trabalho do homem…” – expressão litúrgica que se mantém – deveria dizer-se “…fruto da videira e do trabalho da Humanidade…” – já que as “mulheres também trabalham”, conclui.
Perante a turbulência e a adversidade mostra-se sereno, confiante, directo. Diante dos homens permanece de pé. Diante de Deus, ajoelha.
Perdoem-me, enfim, se me alonguei em demasia.
Devia ter dito apenas que Dom Carlos Azevedo é um Bispo Católico, nomeado pelo Papa para assumir o cargo de Delegado do Conselho Pontifício para a Cultura, que foi diretor de revistas científicas, autor dezenas de livros e artigos, diretor de fundações e comissário de exposições, que apresentou inúmeras comunicações internacionais, e que, por tudo isso, além de ser conhecido por muitos homens e muitas mulheres, viu-se reconhecido pelo país, que lhe concedeu a Grã-Cruz da Ordem do Infante Dom Henrique…
Distinguida com vários prémios literários internacionais – Prémio de Literatura Heimito von Doderer, Prémio 3sat e Prémio de Literatura Kranichstein –, a alemã Anne Weber (n. 1964) retrata, em tom épico, a vida de Anne Beaumanoir (1923-2022), uma heroína francesa da II Guerra Mundial, uma dos Justos entre as Nações, que se tornou médica e se envolveu no movimento de luta pela independência da Argélia. O PÁGINA UM esteve à conversa com esta autora bilingue, em Lisboa, a pretexto da edição em Portugal de Annette, epopeia de uma heroína, romance publicado pela Dom Quixote, e que venceu o Prémio de Livro Alemão 2020, o maior galardão das letras da Alemanha.
A Anne escreve fluentemente em duas línguas – francês e alemão –, mas quando pensa, as palavras surgem em que idioma?
Os sonhos são essencialmente imagens, mas o pensamento e as ideias, nem sempre. Quando penso estou consciente e, por isso, acabo por pensar através das palavras… É uma pergunta curiosa que me acaba de fazer, nunca tinha pensado nisso. Quando estou em França, penso em francês; mas se estiver na Alemanha durante algum tempo, começo a pensar em alemão.
Qual é o critério para decidir em que língua vai escrever um livro?
A razão pela qual escrevo numa língua ou noutra não está relacionada com o tema, com a história ou com o assunto em questão. Aliás, quando comecei a escrever era adolescente, e como vivia na Alemanha, escrevia em alemão. Entretanto, quando fui para França continuei a escrever em alemão. Somente depois de alguns anos é que comecei a escrever em francês. As palavras surgiam na mente em francês. Publiquei um primeiro livro em França, escrito em francês e alguns familiares e amigos perguntavam-me: “mas sobre o que é este livro?” – eles não percebiam francês! Então eu própria preparei uma tradução, e editei em alemão – para que eles pudessem ler o livro.
Anne Weber
Mas regressou também ao seu alemão como escrita original?
Sim. Entretanto, uma editora alemã começou a querer publicar os meus textos, e acabei por retomar o alemão como primeira língua. Aliás, já escrevi sobre a história de uma francesa, e escrevi primeiro em alemão. Contudo, fez-me muito bem a distância que houve entre mim e a minha língua materna no princípio, depois de ter ido para França. A literatura exige manter uma certa distância. Essa distância foi mesmo muito útil.
O livro que veio apresentar em Lisboa, aborda a desobediência de Annette [Anne Beaumanoir] como uma virtude. Devemos, por isso, educar as nossas crianças a serem desobedientes?
No caso dela foi, de facto, uma virtude. Não quer dizer que essa atitude seja em todos os casos. Nas escolas em França, e em todo o Mundo, é importante ensinar a pensar e a educar de forma que todos aprendam a pensar pela sua cabeça, e a seguir a desobediência quando e sempre que for necessário. Quando um Estado ou algum grupo te pede algo, percebes se estás ou não diante de uma decisão injusta com a qual não podes colaborar. A Annette foi desobediente, porque não acreditava no regime que a rodeava. Ela queria um mundo diferente. Lutou e desobedeceu, porque acreditava numa alternativa mais justa, mais humana.
Annette, epopeia de uma heroína, publicado originalmente em 2020, foi editado em Abril deste ano em Portugal pela Dom Quixote.
Foi a literatura, entre outras coisas, que aproximou Annette à Resistência francesa. Acredita que a literatura guarda um poder curativo para a Humanidade?
De facto, o romance de André Malraux levou-a a iniciar a sua atividade de resistência. Aquilo que mais a atraiu foi o retrato romântico de um herói que sacrificou a sua vida por uma causa maior. A literatura pode ter tantos propósitos! Acredito que não se reduz a um propósito único. O romance, por exemplo, abre um mundo inteiro ao leitor; mergulhamos nele e ficamos completamente absorvidos…
Escreveu uma epopeia, daí o próprio título. Que razão a levou a escrever a narrativa, em prosa, mas num ritmo poético, tão diferente do que é comum?
Quando comecei a pensar em escrever este livro, perguntei-me várias vezes até que ponto eu seria capaz de contar a história de alguém que realmente existe, que não é uma personagem fictícia, mas uma pessoa que me confidenciou a sua história. Foi uma ideia que inicialmente até me repeliu por breves instantes. Talvez tivesse passado pela minha cabeça algo mais próximo de um romance histórico, tradicional. Nesse ambiente nós inventamos cenários, detalhes, criamos uma atmosfera de suspense e até criamos diálogos.
Seria mais fácil…
Se assim fosse, teria posto na boca da Annette palavras que ela nem sequer diria na época. Então, teria mudado muita coisa, talvez até o nome. Seria outra história. Porém a batalha continuou dentro de mim. Eu não estava na condição de biógrafa, não pretendia isso. Foi então que me lembrei dessa forma literária muito antiga que é a epopeia. Finalmente podia contar ou cantar os feitos corajosos de uma mulher num ritmo muito próprio – as epopeias narram os feitos corajosos de heróis homens… até agora! Esta epopeia conta os feitos heroicos de uma mulher!
As epopeias exageram – faz parte da sua natureza. Exagerou muito ao escrever o livro?
Eu pensei muito sobre o ritmo que devia dar à história para que o leitor se envolvesse nela. Na verdade, não há exagero, como se dá por vezes quando se cria uma lenda. Pode haver, sim, uma simpatia da minha parte que me tenha levado a compor a história de um certo ponto de vista. Mas não há, neste livro, exagero para transformar a Annette numa lenda, ou para glorificar a sua vida. Li alguns textos épicos ao longo da minha vida: A Ilíada, a Odisseia… Não os reli, mas dei uma passagem rápida enquanto estava a escrever o texto.
Com que cenas da vida de Annette mais se identifica?
Não ouso identificar-me com a vida de Annette. Aliás, nem sei como seria a minha reacção se vivesse o que ela viveu. Mas há uma passagem que me toca muito: o resgate das duas crianças – na verdade, são adolescentes judeus – durante a ocupação de Paris, contrariando as regras do movimento de resistência de não se agir por iniciativa própria. Parece-me um episódio extraordinário e cheio de coragem, sobretudo para uma jovem, sozinha. Ainda por cima, tratava-se de gente desconhecida, de pessoas com quem nunca tinha falado. Quando penso em mim, aos 19, 20 anos… preocupada comigo mesmo, com as minhas questões pessoais, com as minhas pequenas histórias.
Vida da francesa Anne Beaumanoir, nascida em 1923 e falecida em 4 de Março deste ano,, é retratada no romance de Anne Weber.
Annette é fruto de um contexto de guerra. Também nós deveríamos mudar diante da actual guerra entre a Rússia e a Ucrânia?
Da noite para o dia tudo mudou, a nossa vida também mudou. Aliás, já estive na Ucrânia e falei com uma amiga que conheci lá imediatamente antes da invasão ter começado. Ela não queria acreditar. Tudo mudou completamente. Para nós, que não estamos lá, é difícil imaginar o que é estar no meio de uma guerra. Espero que não tenhamos que passar pelo mesmo, espero que não chegue até nós. O cenário de guerra faz-nos tomar decisões que só quando passamos pela experiência é que sabemos e descobrimos um lado nosso, escondido até então. Numa guerra, tudo é decidido no momento. Foi isso que aconteceu com Annette. Aconteceria com cada um de nós ao viver na primeira pessoa esse acontecimento. Ao ler este livro, não há como não perguntar a ti mesmo: “o que faria eu no lugar dela?”.
Quem é que fala com o leitor ao longo destas páginas: a Anne Weber ou Annette?
R: A Annette escreveu as suas próprias memórias. Foram publicadas em francês, e agora também já foram publicadas em alemão. Aí é ela que fala com o leitor. Neste livro, é claramente o meu ponto de vista, sou eu quem interpela o leitor; a história é dela, os pensamentos são dela. Infelizmente sou eu quem fala… não é ela directamente.
Como se conheceram?
Conheci Annette Beaumanoir por acaso, há alguns anos atrás, quando fui convidada para um festival de documentários no sul de França. Ela estava na plateia e acabámos a conversar. Até então, eu nunca tinha conhecido ninguém que tivesse feito parte da Resistência. Queria saber mais – sobre ela, sobre sua vida. Algum tempo depois, creio que passaram poucas semanas, fui visitá-la e criámos amizade. Li a sua autobiografia e, entretanto, tive a ideia de lhe dedicar um livro, e contar a sua vida de uma maneira diferente.
O que lhe disse Annette quando leu o seu livro?
Assim que terminei o manuscrito, em francês, mostrei-lhe e ela disse-me que estava óptimo. Mas houve algo que me incomodou. Depois de me ter dito que estava muito bom, disse-me que não era ela que estava ali retratada no livro. Entendi, entretanto, o que ela queria dizer – ela não se via como uma heroína. Sentiu que eu tinha exagerado! É claro que quando escrevemos sobre alguém há sempre a influência do nosso próprio ponto de vista, e depois há ainda a nossa forma de contar. Imaginemos que alguém te pedia para escrever a história do teu pai ou da tua mãe… Seria sempre um ponto de vista diferente dos próprios. No entanto, sinto que ela disse aquilo porque estava a ser humilde. Porque viveu aqueles episódios com simplicidade e autenticidade.
Enquanto a Guerra na Ucrânia aparenta estar ainda longe de terminar, muitos refugiados decidem regressar, sobretudo para regiões onde o conflito nunca chegou ou já ocorreu um retrocesso russo. Mas se para sair houve muito apoio, para retornar cada um faz-se à vida, quase sozinho.
Em contraponto à intensificação da guerra na região sul e oeste da Ucrânia, engrossa o retorno de refugiados espalhados pela Europa. O fenómeno de “retorno”, que já tinha sido admitido pelas próprias Nações Unidas em meados de Abril – que relatou então que cerca de 30 mil ucranianos por dia estavam a regressar ao seu país –, tem sido pouco falado pela imprensa nas últimas semanas, mas mostra-se uma evidência.
A partir da Polónia, o “êxodo” é mais intenso, como ontem revelou a plataforma de media NPR, devido à proximidade e também ao desejo de mulheres e crianças se juntarem às famílias que se mantiveram nas regiões ucranianas poupadas à guerra ou que beneficiam agora do retrocesso das tropas russas.
A instabilidade familiar, a falta de dinheiro, com a agravante da dificuldade em encontrar emprego quando a língua é um obstáculo, e a esperança de as ambições da Rússia se mostrarem agora mais limitadas – concentrando-se sobretudo nos oblasts de Luhansk, Donetsk, Zaporizhia e Kherson –, estarão assim a “repuxar” cada vez mais ucranianos para os lares que abandonaram quando a invasão russa irrompeu.
Mesmo a partir de outros países da Europa Ocidental, incluindo os latinos mais distantes da Ucrânia, o regresso está a ser equacionado por muitos. Alguns já regressaram. Ontem o PÁGINA UM falou com Lila, uma estudante universitária de Kiev, que se refugiu na região de Roma, com as suas duas amigas, Aila e Hannah. “Resolvemos voltar, porque os militares russos já não estão na nossa cidade e as nossas famílias precisam de nós”, diz Lila, com ar sereno, em conversa por WhatsApp, uma das plataformas mais usadas pelos refugiados ucranianos para manter contacto com parentes.
“Falávamos todos os dias com os nossos pais. Durante duas semanas, os meus pais estiveram em casa de uns amigos, em Lviv, mas regressaram a Kiev porque os meus avós não quiseram abandonar a casa”, esclarece esta jovem universitária de 24 anos.
Embora as três amigas estejam gratas à Itália e à família que as acolheram nos arredores da capital italiana, reconhecem que não conseguiram integrar-se socialmente. “Era impossível conseguir emprego. Por isso sentimo-nos um peso para a família que nos acolheu”, diz Lila. Sem dinheiro, estão agora com dificuldades redobradas em regressar a casa, porque se houve muitas instituições que colaboraram na logística da saída, não há apoio para o regresso. Hannah mostra-se mesmo apreensiva sobre como chegar até Kharkiv, cidade onde o namorado e o irmão a esperam.
Ainda mais problemático é o regresso de famílias numerosas, como a de Igor Sadkova, de 45 anos, que se refugiu em Saragoça. Por ser chefe de uma família com cinco filhos, o mais novo com apenas sete meses, Igor foi autorizado a sair da Ucrânia com a prole e a sua mulher Irina, de 36 anos.
E sair até foi fácil. Seguiram para Espanha num autocarro pago por “gente generosa” – assim lhes chamam. Não gastaram um cêntimo. Ofereceram-lhes o transporte, alimentação e alojamento. Tudo lhes foi garantido, agradecem a Deus por isso. “Eu e a minha mulher acreditámos que a Rússia ia ocupar o nosso país em pouco tempo. Mesmo com pouco dinheiro aceitámos passar a fronteira e rezámos para que Deus nos protegesse.”
O regresso está agora a ser uma grande dor de cabeça. Estão agora ainda na Polónia. “Estivemos três dias sem conseguir comprar bilhetes para o comboio, na estação de Varsóvia. Disseram-nos que não havia lugares”, diz Igor ONDE ESTÁ ELE AGORA?, mostrando surpresa: “não esperávamos ver tantos ucranianos a regressar já”.
De entre os refugiados ucranianos que pediram protecção especial a Portugal – cerca de 33 mil –, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) indicou que 792 acabaram por sair do nosso país em Março e mais 1.495 durante o mês de Abril. Mesmo assim uma percentagem bastante diminuta (cerca de 7%). A distância à terra natal – que contribuiu também para Portugal ser um dos países europeus com menos refugiados – é a principal causa, tanto mais que muitos ucranianos, quando fugiram das suas casas, tinham esperança de regresso. Por esse motivo, grande parte preferiu ficar em países mais próximos da Ucrânia, ou então mais ricos do que Portugal, pelas possibilidades de emprego mais bem pago.
Mas nem sempre foi fácil tomar uma decisão quando a Rússia iniciou a invasão. Ana Alexandre, uma das voluntárias portuguesas que auxiliou ucranianos na fronteira polaca durante o mês passado, fala ao PÁGINA UM desses tempos de escolhas difíceis. “Ajudámos a encaminhar centenas e centenas de pessoas para os comboios e autocarros. O nosso papel estava focado na passagem de informação. As pessoas chegavam aos centros de refugiados e não sabiam o que fazer nem para onde ir. Nas duas últimas semanas estava a ser muito difícil encaminhá-las. Já não apareciam autocarros todos os dias, como em Março e também muito pouca gente se disponibilizava já para transportar as famílias nos seus carros.”
Ana Alexandre também confirmou ao PÁGINA UM que viu “gente, muita gente” a regressar à Ucrânia. “Muitas pessoas começaram a pedir para ficar a dormir nos centros de refugiados, mas com destino inverso. Queriam ficar a dormir nos centros de refugiados até arranjarem alguém para os levar para a Ucrânia, mas não podíamos aceitá-los”, diz. Por razões humanitárias, eram aconselhadas a mentir. “Tinham de dizer que estavam a sair da Ucrânia para lá ficarem”, confessa.
Comboios lotados, centros de acolhimento agora sem capacidade de resposta para auxiliar regressos, e ausência de voluntários para levar as famílias ucranianas de volta para o seu país são alguns dos novos problemas, não previstos. Novas fragilidades e novos desafios, dependentes dos sempre ansiados voluntários. As respostas políticas e governamentais, essas, são bem mais lentas. Neste momento, para os ucranianos há um novo paradoxo: ter ajuda para regressar é mais difícil e onerosa do que foi para sair.
O jornalista Nuno André esteve três semanas num centro de refugiados ucranianos na fronteira polaca, e fez várias incursões pela Ucrânia em ajuda humanitária. Regressado a Portugal, nos próximos dias mostrará aquilo que viu e sentiu. Eis o segundo episódio de Crónicas da Ucrânia.
Na constante tensão entre aquilo que consideramos ser bom, porque nos dá prazer, e aquilo que tem de ser feito, porque é nosso dever, está o eixo em torno do qual se desenvolve o nosso carácter. Assim, se as dificuldades nos proporcionam oportunidades – vimos, ouvimos e lemos –, então não podemos ignorar.
Portugueses, espanhóis, franceses, italianos, alemães, polacos, e tantos outros cidadãos do Mundo, partiram em carros particulares, enviaram carrinhas, alugaram autocarros, com a nobre intenção de levar mantimentos e resgatar famílias ucranianas.
Para nós, portugueses, tratou-se de uma viagem, entre ida e volta, de cerca de sete mil quilómetros, a gastar entre mil e três mil e quinhentos euros, dependendo do veículo ser ligeiro ou pesado, e a despender no mínimo seis dias, caso não tenha havido paragens para pernoitar ou descansar durante uma viagem de mais de oitenta horas.
Estes números são meramente indicativos, e dependeram da carga, do número de condutores ou das obrigações legais. Aqui, não se contabilizaram as despesas com o alojamento e alimentação. Gastaram-se milhares e milhares de euros em deslocações. Fomos generosos, não há dúvida.
Esta ajuda humanitária não esperou por instruções governamentais. Diria mesmo que não dependeu em nada das associações ou organizações oficiais teoricamente organizadas e estruturadas.
Na generalidade, a acção humanitária eclodiu no seio das famílias comuns, em reuniões de jantar ou em encontros informais entre amigos, que não se conformaram com o cenário desastroso que diariamente passou a invadir os nossos lares.
Por tudo isto, este texto podia terminar por aqui. Eventualmente, concluindo que se o egoísmo produz um efeito deletério sobre o desenvolvimento da sociedade, o altruísmo evoca o que de melhor existe no ser humano, para viver, e persistir em viver, em comunidade.
Contudo, na verdade, a ajuda humanitária aos refugiados ucranianos teve tanto de belo como de perverso. Somos, por isso, obrigados a denunciar, a entender e a refletir sobre aquilo que aconteceu, e continua a acontecer, nas fronteiras, nos campos de refugiados. De forma perversa, mas também discreta. E, por isso, mesmo, por discreta, persistente.
Os centros humanitários de apoio aos refugiados e sobreviventes ucranianos surgiram logo nos primeiros dias após a invasão pela Rússia. E de um modo voluntário e improvisado. E não estando preparados para receber tanta gente, funcionaram; ainda que sem liderança, estrutura ou organização formal.
Além dos problemas inerentes ao grande fluxo de pessoas – como a higiene (ou falta dela) –, estiveram em causa problemas de segurança.
Nunca faltaram alimentos nem transportes nem cuidados de saúde. Os refugiados eram, na sua maioria, mulheres, crianças e idosos que caminhavam com ar cansado, desolado, entristecido. Traziam consigo toda uma vida arrumada numa pequena e singela bagagem. Sem casa, sem conforto, sem destino.
Esta fragilidade abriu as portas aos criminosos – pervertidos, carniceiros – que, apercebendo-se dos pontos fracos, facilmente aproveitaram para raptar e traficar pessoas. Levaram-nas consigo. Fizeram-nas desaparecer. Nunca mais saberemos do seu paradeiro, e nem sequer daremos pela sua ausência. Serão vítimas da guerra. Os anónimos desaparecidos que caem nas estatísticas das estimativas. Sem rosto. O seu desaparecimento individual jamais será notícia.
Durante as primeiras duas semanas do conflito, os campos de acolhimento não gozavam de vigilância nem de um registo capaz de cruzar informação sobre as pessoas que entravam e saíam. Qualquer motorista, que ali chegasse, parava o carro e oferecia boleia. Tudo simples. Não havendo controlo, os raptores circularam pelos corredores junto aos quartos onde dormiam centenas de refugiados, no meio de tantos outros que ofereciam autêntica ajuda humanitária.
Fotografavam e filmavam crianças e mulheres, enquanto estas dormiam ou conversavam. Escolhiam. Apresentavam-se mais tarde com a promessa de lhes oferecerem um transporte, uma casa, um emprego, uma vida renovada, nova.
Mostravam, de forma encenada, fotografias dos seus lares, apresentavam contratos de trabalho como garantia de emprego, e exibiam filmes da sua própria família, talvez fictícia, que se mostrava contente e preparada para os receber. Actuavam com rapidez e astúcia.
O comportamento destes homens e mulheres chamou à atenção dos verdadeiros voluntários e, quando confrontados, estes limitavam-se a fingir não perceber a língua, saindo de cena sem dar nas vistas. Enquanto não houve uma forte presença policial nestes centros, pouco foi possível fazer para impedir esses crimes.
Chegou a haver denúncias, e pessoas identificadas pelas autoridades. Contudo, sem provas concretas – ou porque não tinham sido apanhados em flagrante delito –, pouco ou nada se conseguiu fazer.
Ser-se jovem, mulher, bonita ou elegante eram critérios essenciais no momento de escolher quem resgatar. Ali, a generosidade era aplicada segundo o peso e a medida. Fez doer a alma. Ainda me faz doer.
Depois de terem sido aplicadas regras de segurança apertadas, o ritmo abrandou. Passou a ser obrigatório o registo de cada motorista e a viatura à chegada e à saída. Cada refugiado era registado à entrada e só podia sair depois de declarar todos dados, de forma a saber-se com quem e para onde seguia. Proibiu-se a circulação no interior dos espaços reservados aos refugiados, e criaram-se postos de controlo à saída do estacionamento.
Enquanto estive, durante três semanas em Przemyśl, consegui perceber melhor a diferença entre solidariedade e bondade. Em nome da solidariedade, as mulheres bonitas também devem ser resgatadas – e mesmo sendo a beleza um aspecto relativo e discutível, constatei ser esse um critério determinante para esta mobilização. A solidariedade também atrai abutres.
Já a bondade, não repara no número de dentes, no busto ou nas cicatrizes provocadas pelo tempo. Não olha para a cor da pele. Não olha a origem dos refugiados. Nem olha para o conflito.
O jornalista Nuno André esteve três semanas num centro de refugiados ucranianos na fronteira polaca, e fez várias incursões pela Ucrânia em ajuda humanitária. Regressado a Portugal, nos próximos dias mostrará aquilo que viu e sentiu. Eis o primeiro episódio de Crónicas da Ucrânia.
De forma objectiva e fria, primeiro os factos. Durante as primeiras horas do dia 24 de Fevereiro, ouviram-se as sirenes em Kyiv, e mísseis russos caíram sobre solo ucraniano. Foi o despertar de mais uma guerra – uma nova ferida no coração da Humanidade.
Ninguém pareceu surpreender-se. As movimentações militares e políticas, nas semanas antecedentes, prognosticavam uma invasão iminente, e, por esse motivo, as forças armadas ucranianas estavam preparadas para uma resposta defensiva minimamente eficaz. O avanço das tropas russas fez-se por três frentes: norte, leste e sul. A Ucrânia aplicou a Lei Marcial.
Entretanto, quase todos nos sentámos no sofá para assistir, ao vivo, pela televisão, jornal e redes sociais, ao desenrolar de uma história que tem sempre pouco de original.
Como sabemos, os responsáveis políticos dos países ditos ocidentais optaram por não intervir directamente. Enviaram apenas armamento, dinheiro e, a custo, sancionaram a Rússia.
Mais lesta se mostrou a sociedade civil. Poucos dias após a eclosão do conflito, gentes de várias nações orquestraram, à margem dos governos e das instituições internacionais, planos individuais e humanitários.
Por exemplo, no dia 1 de março, já tinham saído de Portugal mais de uma dezena de camiões carregados com mantimentos, recolhidos em escolas, sedes de associações, juntas de freguesia.
E tudo serviu para o transporte: carros, carrinhas e camiões para levarem alimentos, roupas, medicamentos e o mais que se imaginasse poder ser útil para os refugiados da guerra.
Mas foram também braços e pernas para ajudar. Muitos voluntários seguiram para a fronteiras da Polónia, Eslováquia, Hungria e Roménia junto à Ucrânia. E juntaram-se a muitos outros.
Impossível saber agora – nem nunca saberemos – quantas toneladas de mantimentos foram enviadas pelos portugueses, sobretudo por causa de uma evidente falta de gestão organizada, que dificultou, em grande escala, que o generoso apoio de tantas famílias pudesse ser mais útil.
E isso deve levar-nos a reflectir sobre a necessidade de uma educação e uma preparação social para que, no futuro, a solidariedade seja eficaz.
Logo nas primeiras horas da minha chegada ao centro de apoio aos refugiados em Przemyśl, na fronteira polaca, foi evidente que, a montante, nos países que doaram os mais diversos mantimentos não havia a mínima ideia daquilo que mais falta fazia. Não havia uma plataforma ou uma central de informação e, portanto, nunca foi possível saber o que já tinha sido enviado, nem para onde, nem aquilo que seria útil.
Como resultado, logo no final da primeira semana de Março, os responsáveis pelos armazéns do centro de refugiados em Przemyśl impediram mesmo a entrega de peças de vestuário. A quantidade de roupa enviada foi de tal modo exagerada que não havia forma nem meios para a guardar, escolher ou separar. Chegou-se a assistir a descargas descontroladas feitas pelos camionistas que, desesperados, tiveram de encontrar soluções de recurso para evitarem regressar ao ponto de partida com a carga. Houve mesmo quem tivesse sido multado ou visse o seu camião apreendido na Polónia por essa prática ser considerada crime.
Perguntavam algumas mulheres ucranianas: “porque é que nos enviaram vestidos, calções ou fatos de banho?”; ou então: “para quem são estes sapatos de salto alto?”… E havia roupa suja, rasgada, de odor duvidoso. Felizmente, e saliente-se, também chegaram muitos casacos para o frio, sacos-cama, botas quentes.
Mas os problemas não se limitaram à roupa. Também se estenderam à alimentação, que deu dores de cabeça (e de barriga) a muitos.
Falemos do centro que conheci, em Przemyśl, com vários pontos de entrega de refeições confecionadas. Para quem chegava da Ucrânia, havia pizzas, hambúrgueres, sopas e muitas outras receitas mais ou menos condimentadas. Tudo gratuito. Toda esta alimentação e refeições quentes provinham de uma empresa financiada com dinheiro dos fundos humanitários da Polónia.
Ou seja, a maior parte dos alimentos que enviámos para a fronteira nunca chegou a fazer falta. Muito menos enlatados cuja validade terminava em 2017. Tudo isto, contrariando a realidade que se vive no interior da Ucrânia, onde aí sim fazem falta enlatados, chouriços, leite, bolachas, fruta, pois as massas ou o arroz, por exemplo, dificilmente podem ser cozinhados por faltar gás, eletricidade e água.
Ainda assim vai chegando alguma alimentação necessária para os civis e para os militares. A enviar alimentos, que sejam em lata, mas com a garantia de que chegam mesmo às cidades e outras terras ucranianas, onde fazem falta.
Situação similar aconteceu com os medicamentos e material médico. Quem estava em Portugal e noutros países europeus, talvez tenha idealizado um cenário de guerra junto às fronteiras, onde apareceriam feridos com braços esfacelados e pernas amputadas, balas nos corpos, feridas, fraturas expostas. A realidade era outra.
No limite, os refugiados chegavam com dores de cabeça, febre ou diarreia – excepção para diabéticos, grávidas ou para quem sofria de outras doenças crónicas. Nestes casos, o apoio especializado estava garantido nos hospitais locais e de campanha na Polónia.
Os medicamentos faziam falta sim, mas no interior da Ucrânia, sobretudo nas cidades cercadas ou bombardeadas. E aí tem chegado pouco do que tem sido enviado. É, por isso, legítimo perguntar onde param as toneladas de paracetamol, de amoxicilina e betadine que se enviaram ao longo do mês de Março.
E tanto mais havia a dizer sobre os quilos e quilos de fraldas, as centenas de sacos de rações para animais, os milhares de escovas de dentes e as paletes de água engarrafada…
Entretanto, somente agora, mais de um mês após o início das hostilidades, chegam à Ucrânia os políticos. Sem coletes. Sem capacetes. Sorridentes. Para se ser herói não é preciso ter uma capa. Só é preciso “ter lata”. E dentro do prazo.
O relato de Nuno André, jornalista do PÁGINA UM, que se encontra na Ucrânia e na Polónia, sobretudo a fazer trabalho humanitário no centro de acolhimento de refugiados em Przemyśl, com incursões até Lviv. Apresentamos uma série de 10 depoimentos sobre a sua vivência.
Neste episódio, Nuno André conta como se tenta “escoar” os refugiados que vão chegando à fronteira polaca para lhes conceder um destino seguro mas para evitar também uma acumulação de pessoas a caminho do caos.
Finalizamos, com este episódio, a primeira série de depoimentos intitulada “A terra da guerra”.
O relato de Nuno André, jornalista do PÁGINA UM, que se encontra na Ucrânia e na Polónia, sobretudo a fazer trabalho humanitário no centro de acolhimento de refugiados em Przemyśl, com incursões até Lviv. Apresentamos uma série de 10 depoimentos sobre a sua vivência.
Neste episódio, Nuno André conta a sua viagem para além de Lviv, e fala dos perigos que espreitam à medida que se aproximava do epicentro dos conflitos armados.
Continuamos a publicar os episódios desta série de depoimentos intitulada “A terra da guerra”.
O relato de Nuno André, jornalista do PÁGINA UM, que se encontra na Ucrânia e na Polónia, sobretudo a fazer trabalho humanitário no centro de acolhimento de refugiados em Przemyśl, com incursões até Lviv. Apresentamos uma série de 10 depoimentos sobre a sua vivência.
Neste oitavo depoimento, Nuno André relata a sua experiência de ajuda humanitária por terras da Ucrânia, em Lviv e ainda mais para o interior daquele país, distribuindo mantimentos e medicamentos, auxiliando refugiados a chegarem até à fronteira da Polónia.
E também conta as suas dificuldades iniciais para encontrar refúgio para si próprio nas gélidas noites da Ucrânia.
Continuamos a publicar os episódios desta série de depoimentos intitulada “A terra da guerra”.