Autor: Nuno André

  • ‘Estamos na época da não-verdade’

    ‘Estamos na época da não-verdade’

    Professor de Filosofia na Universidade Católica Portuguesa, Mendo Castro Henriques é autor de várias obras sobre filosofia, cidadania, história militar e ficção histórica. Foi Diretor do Departamento de Defesa Nacional do IDN e Prémio de Defesa Nacional em 2018.

    Nesta Conversa com Nuno André, são abordados sobretudo os conflitos armados no Mundo, mas com especial destaque para a Guerra da Ucrânia.

    Castro Henriques defende que estamos a assistir à “Terceira Guerra Mundial, com as características da era digital”. Avisa que “o que está a acontecer na Rússia é a desagregação” e critica o facto de hoje existir gente que “sabe de tudo” e que proliferam os especialistas em “Rússia” e em “guerra”.

    Esta é a transcrição da entrevista, a que pode assistir aqui.


    Professor Mendo Henriques, ainda que em Portugal a filosofia seja uma das disciplinas transversais a todos os cursos, nem todos chegam a filósofos. Afinal, nós estudamos filosofia ou aprendemos a filosofar?   

    Aprendemos com os outros, sobretudo, porque sem diálogo não há partilha, sem partilha não há autocrítica e sem autocrítica, o nosso pensamento pouco vale. E dentro do que devemos fazer quando somos instados por nós próprios a prestar um testemunho, naturalmente que são os acontecimentos do dia-a-dia, não a espuma dos dias mas as tendências profundas que mais nos impactam. E era inevitável que um acontecimento como a invasão trágica e injusta da Ucrânia pela Federação Russa me tivesse chamado a atenção dado os meus interesses anteriores.    

    Entrevista integral de Mendo Castro Henriques pode ser vista no cana P1 TV

    Ainda que nos tivéssemos cruzado nos corredores da Universidade Católica, a verdade é que foi na sequência desta aproximação, que acaba por ressurgir uma obra que estava focada precisamente na nova sociedade ou no pensar-se o novo mundo num período de pós-pandemia. Mas a verdade é que ainda não estávamos no pós-pandemia, ainda não tínhamos ganho uma batalha que ainda não sabemos bem contra quem, e começa logo esta guerra entre a Rússia e a Ucrânia.   

    É mais do que uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia. O mundo mudou em 24 de Fevereiro, pode-se dizer que foi um dia que mudou o mundo. Muitas vezes aplicava-se à União Soviética ou à Rússia: 7 dias que mudaram o mundo, por causa da Revolução de 1917. Neste dia, foi um dia que mudou o mundo. Porquê? Porque vieram ao de cima tendências que já existiam, e que é a tendência da escalada para os extremos.

    Há um autor que nestes assuntos históricos e militares é um nome incontornável, o alemão Carl Von Clausewitz, enfim, que escreveu talvez o mais clássico tratado pela guerra. E o que ele diz é que antes da guerra, a humanidade, as sociedades, têm uma tendência de subir até aos extremos. E o que nós vimos na madrugada de 24 de Fevereiro, na televisão… Quando dizemos nós é porque estamos numa sociedade de informação, em que podemos estar a 4 ou a 5 mil quilómetros de distância ou mais, mas a televisão e o mundo digital, põem diante de nós a tragédia dos bombardeamentos, dos mortos, da violência, a subir até aos extremos. Portanto, com maior ou menor capacidade de antecipação, havia correntes minoritárias que diziam que ia acontecer uma invasão.

    A maior parte das pessoas dizia: não, ainda mal saímos da guerra do covid e vamos entrar noutra desgraça? Mas foi exactamente isso que aconteceu. E, mais do que uma guerra entre duas nações, como se está a ver… Porque Putin não aplica sequer a força toda que tem contra a Ucrânia, tem uma espécie de trunfo na manga, que são as armas nucleares, o que obriga à chamada guerra híbrida: sanções económicas, operações militares, pressões psicossociais sobre as populações, campanhas. Mas não é apenas duas nações que se enfrentam, é mais uma nação que está a ser vítima de uma guerra entre dois princípios, o da autocracia e da ditadura – podemos dizer, totalitária que, neste momento, é representada por Putin – e os princípios daqueles que defendem a liberdade, que também têm as suas fragilidades, mas que não se pode aceitar esta violência.    

    Entretanto, mais do que ser um mero espectador, sentiu a necessidade de ter um papel mais interventivo, mais activo em termos sociais porque na realidade, passa a partir de uma certa altura a escrever umas crónicas. Foi um sentido de dever, para contribuir de alguma forma para o esclarecimento, para motivar, o que é que deu origem a essas crónicas?   

    Eu diria mais que foi um sentido de angústia, de tentar – uma vez que eu fui director do departamento de Defesa Nacional e tenho vários livros de história militar, portanto para mim era relativamente normal seguir os acontecimentos militares… Mas a angústia, a preocupação que tudo isso me causava, levou a que eu tentasse investigar para além do que se sabia de imediato. E, no dia 10 de Março, eu já tinha feito um escrito anterior de apreciação conjunta que tinha feito circular e, não sei já em que circunstância, a partir de 10 de Março passei a fazer uma crónica diária num jornal digital e em papel, Do Portugal Profundo. Portanto, isto é também uma homenagem ao Portugal Profundo, que ainda funciona, o jornal de Oleiros, e ao seu director, o Paulino Fernandes. E portanto, todos os dias, durante dois meses, havia uma crónica diária sobre assuntos transversais à guerra.   

    Esta obra Crónicas da Invasão na Ucrânia, assumidamente à distância e agora aqui uma provocação que é: porque é que ousou falar de uma guerra pela qual diretamente não passou? Ou seja, não esteve na Ucrânia, não esteve na Rússia, não viveu aqueles momentos, apenas os conhece através dos meios de comunicação social, com tudo o que há de bom e de mau, de redutor ou de amplificador. Terá sido demasiado ousado ou não?   

    Bem, não é bem assim. Eu estive já na Rússia em conferências há anos atrás. Na Ucrânia, estive só na fronteira do Siret (fronteira da Roménia com a Ucránia na zona de Siret). Esta é uma guerra de princípios, não é uma guerra apenas de territórios. Não é preciso, digamos assim… Quando eu estive no campo de refugiados da Ucrânia-Siret já não havia refugiados, portanto, não senti o peso dessa desgraça, mas sabemos, convivemos, temos outros contatos e temos, sobretudo, a partilha do sofrimento humano que é… Temos aqui um povo que está a ser agredido. Se há vítimas, nós temos que nos identificar com a vítima. E, nesse sentido, uma vez que nas áreas da cidadania e da filosofia política a guerra é um fenómeno que eu já tinha tratado mais do que uma vez, era uma base a partir da qual depois eu fiz esse conjunto de crónicas, que aliás continuo a fazer, agora não com a mesma intensidade porque o contexto é outro.   

    Uma das crónicas toca num dos pontos-chave que é o Papa Francisco. O Papa, que numa das vezes que se dirige ao patriarca Cirilo diz, e passo a citar: não percebo nada irmão, não somos clérigos do Estado, não podemos usar a linguagem da política, mas sim a linguagem de Jesus. Ou seja, este assumir de um Papa que, de facto, não percebe nada de questões políticas… O Papa não “percebe de nada”, mas pelos vistos muita gente “percebe de tudo”. Quer dizer, possivelmente, há aqui uma parte de humildade ou de estratégia de comunicação.   

    Isso é irónico: o Papa é capaz de perceber mais do que nós os dois juntos.   

    [risos] Mas a questão é, porque é que nós de repente temos tantos especialistas em “guerra”, tantos especialistas em “Rússia”, mas, na verdade, só acertam depois das coisas acontecerem, porque muitos também diziam que não iam haver invasão… Ou seja: como é que nós podemos acreditar naquilo que as pessoas dizem nas televisões, na rádio, a internet? Não estou a pôr em causa o que aqui é dito, porque é um ponto de vista partindo de uma experiência muito particular e pessoal.   

    E além disso, com um cenário que eu penso que é assumido, que é a prazo, o que nós podemos chamar a derrota do regime tirânico de Putin, e, portanto, a manutenção da Ucrânia independente. O Papa Francisco tem uma importância, como figura mundial que é, e como figura de referência moral para além de autoridade religiosa.

    Mas no caso da Ucrânia, naturalmente que as figuras centrais são, do ponto de vista religioso, os patriarcas das várias Igrejas envolvidas, e aí está a haver evoluções, o assunto não está fixo. Já se sabia antes, que a figura do patriarca Cirilo, da Igreja Ortodoxa Russa, é uma figura muito controversa, acusado, nomeadamente, de corrupção. Teve já sanções, na sexta vaga das sanções europeias, depois foram-lhe retiradas. E, de facto, não é fácil – os seus defensores não são de boa rés moral.

    Um caso que ainda não foi falado, por exemplo, na televisão portuguesa – mas eu recebo essas informações directamente -, era o número dois da Igreja Ortodoxa Russa, o patriarca Hilarion, que há cerca de um mês atrás foi removido de todos os seus cargos. Eu cruzei-me com ele em Lisboa e, mais tarde, em Moscovo. Nunca se pronunciou directamente a favor da invasão e foi substituído pelo agora chamado bispo António, e foi removido para Budapeste.

    Estes movimentos de fundo dentro da Igreja Ortodoxa Russa mostram que Cirilo não está tão triunfante como parece, e isto é uma boa imagem de tudo o que se está a passar na Rússia. Portanto, há uma fachada que se pretende afirmar como triunfante, a partir de Moscovo e de São Petersburgo, dos grandes centros de poder. Mas, depois, a maior parte do que se chama Federação Russa é um conjunto de povos e de sociedades, que alguns nem falam directamente russo, têm as línguas e as culturas próprias. Fazem da Rússia um Império que se está a desagregar, e, por isso, uma das minhas últimas crónicas aqui no livro é “Porque é que a Rússia é o último Império colonial europeu”. Nós não estamos habituados a ver assim porque julgamos que um Império tem de ser ultramarino, tem de ter o mar como foi Portugal, Espanha e a Inglaterra. Na Rússia, o que há pelo meio não é o mar, são estepes a dividir Moscovo e São Petersburgo de territórios muito diferentes.

    E o que está a acontecer na Rússia é a desagregação, por via das sanções e da insatisfação das populações, dessa unidade Imperial que o Kremlin. O grupo de poder de Moscovo tenta segurar por todos os meios, através de uma guerra híbrida com uma grande fachada, misturando verdades e mentiras, mas que todos os dias cede mais um pouco.   

    Aliás, cada vez mais nos apercebemos de que a mentira tem sido, talvez, uma das permanentes estratégias russas. Vladimir Putin dizia publicamente que não havia guerra nem invasão, negando permanentemente. Mas quando a pessoa é descoberta na mentira e permanece na mentira, podemos perguntar se será que para ela é uma verdade relativa que criou na sua cabeça?   

    Pois, não é bem isso, é mais complexo que isso. A mentira caracterizava mais, sobretudo, o período final soviético, em que se mantinham aqueles que alvos da aurora do comunismo, de que iríamos a caminho de uma sociedade sem classes, mas infelizmente as prateleiras dos supermercados estavam vazias. Era preciso filas para as compras, os gastos eram militares, a derrota no Afeganistão e, na época de Gorbachev, na década de 80, já se sabia que aquele sistema estava falido e falhado. Aí sim, era a mentira.

    A Rússia passou por uma fase de capitalismo selvagem que também não correu da melhor maneira: nos anos 90, foram aí que nasceram os famosos oligarcas. Hoje em dia, já não existem. Continua a haver grandes bilionários, mas totalmente dependentes do Estado. Na década de 90, havia oligarcas com poder político próprio, que é isso que é um oligarca. Hoje, há apenas super-ricos, mas que dependem do Kremlin – é diferente.

    Esse sistema que se montou – e que veio dar o reforço permanente das posições de Putin -, levou a que no 24 de Fevereiro mostrasse a sua face de agressão externa. É importante seguir (figuras de relevo na Rússia). Normalmente, os comentadores não seguem as figuras de oposição russa, como, por exemplo, Vladimir Kara-Murza, preso desde 7 de Abril. Ele tem uma frase que diz tudo: a agressão externa é o outro lado da repressão interna. Ou, como diz o próprio Navalny, quem começa por manipular eleições acaba por se apoderar do poder todo e, depois, acaba por invadir, como fez na célebre entrevista à Time. Navalny, também ele preso, condenado, enfim…

    Estas e outras figuras menos conhecidas mostram que temos que perceber que a Rússia não vive num regime de mentira, vive num regime em que não há nem mentira nem verdade. E isso é que dá ainda mais passividade à população russa, que não sabe. Aquela que só se alimenta da televisão (sobre o) que se está a passar e que é pior que a mentira, é o pôr em causa que haja verdade.   

    Entretanto, nas suas crónicas, percebemos que considera que Putin já perdeu a guerra. Para um perdedor, ou para quem perdeu a guerra, não está há demasiado tempo ainda na frente de batalha?    

    Perdeu a guerra, mas ainda não perdeu todas as batalhas. E, como eu disse desde o princípio e como dizem os especialistas, às vezes, pessoas menos conhecidas, como Gleb Pavlovsky – que foi um dos colaboradores dele… Ele tem sempre um trunfo. E um trunfo é aquela mala que o acompanha, que tem lá várias ferramentas e uma das ferramentas chama-se armas nucleares. E, portanto, tudo o que Putin faz é sob esta ameaça: “eu estou a usar algumas das minhas ferramentas, nem sequer todas”. É uma guerra que não pode ser analisada como a Segunda Guerra Mundial ou outras.

    Nós vimos, no final de Julho, o Dia da Marinha Russa e houve um desfile extraordinário, com milhares de homens, dezenas de navios, uma fachada, como se não houvesse guerra. O que é que estão ali a fazer em São Petersburgo, todos satisfeitos, a comer gelados e a ver passar os navios, em vez de estarem na guerra? Ora bem, esta esquizofrenia aparente faz parte do sistema russo para mostrar que isto é apenas uma operação militar especial. ” A Ucrânia, para nós, não é o mais importante”. Putin não está em guerra só com a Ucrânia, está em guerra com o que ele chama o Ocidente Global, nomeadamente os Estados Unidos, a NATO, mas também aqueles países que apoiam – importantíssimos – o Japão, a Coreia, Singapura, Austrália, enfim, que ficam fora do que é o Ocidente no sentido geográfico. Há mais de 50 nações que dão apoio, quer humanitário, quer militar, à Ucrânia. E, portanto, isto é uma guerra mundial, uma Terceira Guerra Mundial, com as características da era digital. Não é uma guerra entre dois nacionalismos, mas sim entre um Império que se está a desfazer a pouco e pouco, e uma nação cada vez mais convicta das suas razões e a chorar os seus sofrimentos, mas que não se deixa abater porque já tem muita força interna.   

    Muitas foram as obras que filosofavam a partir da guerra, a guerra sempre serviu de exemplo para muitas vezes se fazer filosofia. A humanidade pode repensar – olhando agora para esta guerra e para as consequências – é o momento para termos uma ferramenta útil ao ser humano, ou tudo isto é inútil?   

    Não, a guerra não é bem para se fazer filosofia. Isso seria desmerecer o sofrimento humano e a violência, que é o centro da guerra. A guerra é uma ocasião para nós percebermos, mais uma vez, como disse Clausewitz, que a humanidade está sempre a ser puxada para os extremos. Como disse também, aliás, René Girard – um autor muito importante -, que estamos sempre à procura de um bode expiatório, e a guerra é uma forma de uma nação inteira achar que a culpa é dos outros, e, portanto, lançar a violência sobre os outros. Ora, esse ciclo fatal – do bode expiatório, da violência-, não é propriamente só o pensamento que o pode travar.

    Precisamos de recursos mais fortes. O que podemos, sim, é pensar essa questão e, depois, perguntarmos uns aos outros que instrumentos é que podem parar esta violência. Curiosamente, as operações militares são um dos meios de travar a tendência para a violência absoluta. Porque a violência absoluta, ainda para mais numa era nuclear, até custa pensar – que é o uso de armamento nuclear. É um assunto do qual nem queremos falar. Mas tem de ser pensado porque ele existe e há uma possibilidade remota de ser utilizado.

    E, por isso, é que até agora, mesmo um tirano como Putin e a sua camarilha, e do lado ocidental a NATO, têm feito todos os esforços para dizer que há aqui linhas vermelhas que não se podem cruzar. Portanto, a guerra corre dentro de certas limitações. Todos os dias há trocas de impressões se podem dar mísseis de longo alcance ou de curto alcance, se são armas ofensivas ou defensivas… É até estranho ver toda esta guerra que não sobe até aos extremos. Mas não sobe até aos extremos porque os extremos são quase insuportáveis e são quase impensáveis. O que nos faz dizer que, portanto, tem que ser contrariada a tendência para a violência absoluta, por atitudes como a importância do direito internacional, a importância de ajudarmos a vítima, que é uma atitude moral. E também para os que crêem, a importância da oração e da religião como forma de que haja paz. Todas estas ferramentas são necessárias para que não haja a escalada até à violência final.   

    Esta guerra em concreto, por acaso, não pega no argumento Deus, que muitas vezes é justificação para muitas guerras. Deus ou a salvação do Homem. Onde é que está Deus no meio disto?   

    Bem, não concordo com a afirmação porque, do lado russo, precisamente – e as minhas crónicas fazem alusão a isso- há uma enorme manipulação do argumento religioso. Precisamente, o patriarca Cirilo e uma parte da Igreja Ortodoxa Russa são completamente favoráveis à guerra, abençoam a violência, é o que se pode dizer. E isso, a todos os níveis. Portanto, a guerra é feita em nome de Deus no lado russo. Do lado ucraniano, pelo contrário, há uma separação muito clara entre o político e o religioso. O presidente Zelensky, que é de origem judaica aliás, tem sido de uma grande sabedoria, porque jamais o veremos a invocar argumentos religiosos ou a fazer manipulação religiosa da defesa daquela população ucraniana. Portanto, são duas atitudes completamente distintas e, sem dúvida, que a Igreja Ortodoxa Russa vai pagar caro esse invocar do nome de Deus, digamos assim. Ao contrário da parte ucraniana, que separa perfeitamente essas duas.   

    Mas a Rússia, com a sua capacidade extraordinária, que sabemos, com os espiões e a tecnologia que tem, se quisesse verdadeiramente matar Zelensky, já não o tinha feito?   

    Isso pode-se dizer de muitas maneiras. Se se quisesse matar Putin, não seria talvez impossível. Houve tentativas, como é conhecido, logo nos primeiros três dias de guerra, mas aí tem que se perceber que os russos sofriam de um enorme complexo de superioridade face ao que eles chamavam a pequena Rússia, esse desprezo que havia. Quando se diz os russos, é os russos de Moscovo e São Petersburgo, não será o conjunto dos povos que compõem a Rússia. E eles agora aprenderam, digamos que ficaram com o nariz a sangrar e esse complexo de superioridade desapareceu. As perdas russas são realmente inimagináveis, discute-se os números exactos mas são na ordem das dezenas de milhares. Os russos aprenderam, ao longo destes quatro meses, que os povos são iguais, estão a aprender. À medida que isso chega à população russa – porque hoje em dia, com meios digitais, vai levar um bocadinho de tempo até percolar essa impressão. Mas isso vai ajudar, de facto, a desfazer o coração do Império.   

    Falou há pouco no facto de este livro e as crónicas terem sido publicados pelo jornal de Oleiros, era também um reflexo de uma intervenção neste Portugal mais profundo. Quando assistimos, em qualquer meio de comunicação, tivemos sempre o mesmo registo. Ou seja, poucas foram as vezes que ouvimos alguém a explicar de uma forma clara a visão russa. Parece que toda a gente está do lado dos ucranianos. De facto, esta é a posição correcta, ou deveríamos ter quem nos explicasse a partir da visão russa e daquele que é o outro lado? Não temos porque não chegamos lá ou porque simplesmente não temos gente para falar desse lado?   

    Bom, há um defeito que inquina a maior parte dos comentadores, que é a geopolítica. Isto é, a ideia de que um país é uma entidade fixa e que, portanto, pode-se falar “a Rússia, a Ucrânia, os Estados Unidos, Portugal”. Mas quando dizemos “a Rússia”, quem é a Rússia? São os 140 milhões de pessoas? O Kremlin? Os 10 ou 15% que são contra o regime? As populações ricas da área de Moscovo, São Petersburgo? Ou os habitantes de regiões pobres, que aliás são mandados para a guerra e que muitas vezes se alistam porque não têm outra hipótese? E depois há nomes que aparecem, por exemplo, vêm invocar Kissinger, um dos criminosos internacionais à solta, um homem que disse que a Indonésia podia ficar com Timor ou que Portugal podia ficar soviético em 1975 ou, então vamos bombardear o Camboja… E são estas figuras da geopolítica – Kissinger é o mais conhecido, ainda está vivo e que, de uma forma vergonhosa, até recebeu o Prémio Nobel da Paz. O [também laureado com o Prémio Nobel da Paz] vietnamita recusou-se (a aceitar) porque achou que não era paz nenhuma.

    Portanto, nós vivemos destas figuras ilusórias que é suposto terem muito conhecimento, muita prática e que andaram lá no terreno, mas andaram lá no terreno a fazer maldades e a servir interesses internacionais. E, portanto, quando se diz “a Rússia”, em vez de dizermos que é uma unidade, temos que decompor a sociedade nos seus elementos, e para isso é preciso conhecimento disto tudo e partilha com outros. E, quando decompomos, vemos que sim: há partes da sociedade russa que estão a apoiar esta jogada de poker de Putin. Putin deixou de ser um jogador de xadrez racional – isto é dito por Garry Kasparov, o campeão do mundo de xadrez, portanto, de xadrez ele percebe um bocadinho. E ele diz que não tem nada de xadrez, é uma jogada de poker. É criar o caos e a confusão, e isto tem muito a ver com o que se chama a guerra híbrida e com o modo de operar do Kremlin: “Vamos criar a confusão e depois logo se vê como é que vamos gerir”. E, portanto, todos os dias eles ameaçam outro país, os bálticos, a Polónia, o Cazaquistão, nunca se sabe para onde é que aquelas mentes vão virar. Porque é esse caos, essa indistinção da verdade e da mentira… já não estamos na época da mentira, de facto, estamos na época da não-verdade, que é muito mais complicado do que a mentira. Portanto, quem gera não-verdade, está disposto a fazer jogadas de poker, a criar o caos à sua volta para depois se aproveitar.   

    Um dos pontos que os ucranianos apontam é que a Europa, parece que só a partir de 24 de Fevereiro é que acordou para uma guerra que já existia. Andámos esquecidos, a ignorar e agora de repente lembrámo-nos porque depois da covid era preciso ter algum tema bombástico, literalmente? E correndo o risco de passar à história, continuando a invasão, acabaremos por pôr de lado porque a certa altura cansa e haverá outros temas mais interessantes para falar. Há esse risco de continuar tudo igual e assobiarmos para o lado sem mudar radicalmente a nossa forma de ser e de estar?   

    As sociedades funcionam através das minorias activas. Havia uma minoria muito pequena preocupada com a Ucrânia. Houve, aliás, em 2014, as sanções porque se percebeu que o povo ucraniano, já desde 2004 – primeiro com a revolução laranja, mas depois com o Euromaidan (Primavera Ucraniana) em 2013 e 2014 – tinha dado uma prova muito forte de que queria afirmar a sua autonomia.

    A sociedade ucraniana continua cheia de problemas, tinha os mesmos problemas da Rússia, de oligarcas poderosos que prejudicavam a transparência política. Têm vindo a corrigir esses problemas, aliás por pedido da União Europeia. O dossier de adesão à Europa é, sobretudo, a correcção dos problemas da transparência, da justiça independente, e, portanto, evitar a corrupção económica. Tem sido esse o maior obstáculo e o presidente Zelensky e a sua equipa… Aliás, mesmo que Zelensky desaparecesse, ele poderia ser substituído porque tem pessoas extraordinárias na sua equipa… É um povo que, de facto, se está a afirmar. E, portanto, o que no 24 de Fevereiro ficou à vista de todos é que, tendo Putin dado um passo maior que a perna, então toda a gente acordou, porque, como é que é possível, em pleno século XXI, que a violência chegue a este ponto? Aí já não foi só uma minoria activa que ficou consciente, mas a população de um modo geral aderiu e continua a aderir de uma forma muito significativa em mais de 50, 60 países – de que a Ucrânia tem de vencer esta guerra porque é uma guerra de princípios e, nos princípios, não podemos ceder.   

    “Amanhã é outro dia” é o título do livro. É uma esperança no depois do agora?   

    É, e a autora da capa, a Isa Silva, quando eu lhe pedi, disse-lhe que a capa tinha de transmitir, ao mesmo tempo, a mensagem de que a violência está em curso, mas que amanhã é outro dia. Isso aconteceu logo desde a primeira crónica que eu fiz, que é mais pequenina, e depois eu tinha de fechar e ocorreu-me essa expressão. A partir daí, todas as crónicas fecham com a expressão “amanhã é outro dia”, e, portanto, era o título natural do livro.    

    Em tom de conclusão, sendo um especialista em questões militares e de segurança, e um teórico no campo da filosofia, qual é que é o risco de este livro não poder ser entendido pelo cidadão mais comum sem conhecimentos técnicos? Ou seja, é um livro de fácil leitura, ou técnico que só um especialista é que vai poder entender?    

    Não, são crónicas de jornal, portanto, são feitas com um vocabulário jornalístico, isto é, não é preciso ir ao dicionário para saber o que se diz. Acontece, sim, que para sair das generalidades, muitas vezes eu entro em pormenores, quer do ponto de vista politológico, quer em alguns pormenores tecnológicos, até porque eles são falados na televisão todos os dias… Os famosos mísseis de Javelin que travaram a ofensiva sobre Kiev, nos finais de Março e princípios de Abril… Como agora se fala nos sistemas Himars, que estão a permitir destruir as bases da retaguarda e logísticas dos russos, e como se continuará a falar de outros armamentos, que é uma parte, enfim, inevitável da guerra.   

  • Lambadas em inocentes

    Lambadas em inocentes


    Por mais que se discuta sobre a violência doméstica, este tema não permite esgotar-se, infelizmente.

    Doutos conhecedores tecem considerações, apresentam números e duras críticas ao sistema. Brincam com dados, mais ou menos tendenciosos, que continuam a depender de quem encomenda os estudos. Assim, por mais que se discuta na praça pública a questão, continuamos sem encontrar soluções.

    A violência doméstica está presente em diferentes lares, não conhecendo idade, estrato social ou nível de literacia. Pratica-se violência contra mulheres, contra homens, contra crianças, contra idosos… Não devia ser assim. Assusta-me assistir ao esgrimir do tema pelos meios de comunicação. O assunto vende, e por isso lá vão aparecendo exemplos, contados na primeira pessoa, que nos tocam no coração. Lamento que haja um aproveitamento do tema e não uma verdadeira luta para erradicar este mal.

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    A solução encontra-se enraizada na educação. Na resposta integral para a construção de uma sociedade evoluída moralmente. Falta, por isso, ganhar consciência do sentido da vida. Assim, resolvendo o problema na raiz, não será necessário apontar os erros nas respostas às denúncias ou nos processos judiciais. As utopias ainda fazem sentido. Sabemos para onde queremos caminhar e temos a certeza de onde não queremos permanecer.

    A nossa integração social vive de uma resposta constante à lei do mais apto. Desde cedo apercebemo-nos de que necessitamos de esquemas e artimanhas para alcançar o que pretendemos. Entre choros e gracinhas, os mais pequeninos lá nos levam a ceder às suas vontades. Conforme crescemos simplesmente vamos apurando este nosso lado profundamente humano.

    O despertar para uma moral alicerçada numa consciência ética, está em entender o que é o homem. Não perceber isto é não entender o que é a vida. Podemos discutir política ou até mesmo religião, mas há uma inclinação natural para o bem comum que, mais que discutir devemos viver. Nem todos têm o mesmo grau de desenvolvimento intelectual; nem todos têm a capacidade de discernir profundamente os assuntos e, por isso, compete a quem é capaz de o fazer, ajudar a transformar o mundo em que vivemos num mundo melhor.

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    É nossa obrigação denunciar a violência doméstica do nosso vizinho, mas o mais importante é não sermos violentos no nosso lar. Pensar o mundo só faz sentido se formos capazes de acolher a educação moral. A violência faz parte da natureza humana. Basta atentar na nossa História para percebermos como boa parte dela se desenrolou à lei da pancadaria. Lutar contra esta tendência é inverter a nossa natureza. Qual pedra bruta, devemos deixar que o escultor nos possa talhar. Mas, há sempre uma pergunta que se impõe: que mãos é que nos vão moldar?

    Quando era criança ouvia a música Lambada, um ritmo brasileiro que escutava enquanto sonhava com o dia em que haveria de dançar com uma morena linda e bem agarradinho. Recorda-me a frescura do amor inocente. Na altura, tinha seis anos e não sabia que havia por aí outras “lambadas”…

  • ‘Eu não sou  vítima, e nunca serei vítima’

    ‘Eu não sou  vítima, e nunca serei vítima’

    Polémico, herói para alguns, vilão para muitos, Rui da Fonseca e Castro ficou conhecido, por antonomásia, como o “juiz negacionista” durante a pandemia – para si, uma falsa pandemia –, incentivando, ainda quando exercia como como juiz em Odemira, à desobediência das normas imposta durante a pandemia, considerando-as ilegais e anticonstitucionais. O Conselho Superior da Magistratura abriu-lhe um processo disciplinar que redundou na sua expulsão em Novembro do ano passado, confirmada há um mês pelo Supremo Tribunal de Justiça. Mas ao contrário de se ver como um derrotado, ou vítima, o agora advogado promete não baixar os braços e clama por uma revolução. Uma nova força partidária parece estar na forja.


    Temos aqui alguém que ainda não tinha aceitado falar à comunicação social…

    Eu tive um período de vários meses, um período longo, em que, pelo menos semanalmente, recebia convites para ir à televisão ou a um jornal para dar uma entrevista. E recusei sempre. Recusei porque achava que não lhes deveria dar essa vantagem, na altura. É óbvio que eles iriam retirar vantagens disso, nem que fosse em termos de audiência. E também serviu como mensagem: eu não preciso do jornalismo, não preciso dos jornalistas. E, portanto, tenho liberdade para decidir se aceito ou não. Essa é a verdadeira liberdade, quando não se precisa. E decidi aceitar o convite do PÁGINA UM. Conheço o trabalho que tem sido feito. Parece-me que tem sido feito um trabalho com independência, e isso para mim é importante. E foi por isso que eu aceitei.

    ENTREVISTA INTEGRAL A RUI DA FONSECA E CASTRO

    Se nós dissermos “Rui da Fonseca e Castro”, se calhar muita gente não vai associar o nome a si, mas se dissermos o “juiz negacionista”, facilmente conseguem identificar o personagem. É de facto um juiz negacionista?

    O negacionismo serve para silenciar, é um mecanismo de silenciamento da discussão, da opinião, da liberdade de expressão. É um obstáculo à liberdade de expressão. A expressão negacionismo foi adoptada directamente a partir do negacionismo do Holocausto, que é um termo extremamente pejorativo, com uma carga negativa muito forte. E, portanto, foi utilizado no contexto da “falsa pandemia”, a partir de 2020, para encerrar a discussão sobre o tema e permitir um pensamento único, uma ideia única que nos era imposta pelo regime, através de todos os seus tentáculos. Nessa medida, eu não sou um negacionista, mas nego que tenha havido ou que haja uma pandemia. Isso eu nego.

    Em que medida que não existiu pandemia? Isto porque o país e o Mundo estiveram parados, as pessoas estiveram infectadas e doentes. Como pode haver uma negação daquilo que foi um facto?

    Como pessoa do Direito, preciso de provas. Se estivéssemos numa sala de audiências em tribunal, precisávamos de provar, por uma amostra da população dita infectada, que cada uma dessas pessoas tinha estado infectada com um vírus novo, que tinha provocado uma doença nova. Aí é que reside a questão. Não há prova em Portugal da existência de um vírus novo. Até pode haver prova, em termos mundiais, da existência de um vírus novo, porque houve três isolamentos virais no início de 2020, com três sequências diferentes que, aparentemente, eram novas.

    Entretanto, dias antes disso, já havia um protocolo de teste RT-PCR concebido pelo Christian Drosten, que foi o protocolo comercializado a partir dessa altura. Antes de ele conhecer os isolamentos, as sequências dos tais novos vírus, em que dois eram parecidos um com o outro e o terceiro era completamente diferente, salvo erro. Eu não sou médico, mas é o que ainda me lembro deste assunto. Portanto, não nego que possa haver um vírus novo, mas estamos a falar de uma pandemia em Portugal.

    Os testes RT-PCR estavam a ser feitos com base no protocolo Christian Drosten, para criar falsos positivos, criar número, para criar uma pandemia. E o teste RT-PCR não é um meio de diagnóstico. Assim, não podem dizer que uma pessoa que tenha febre e que tenha testado positivo, esteja infectada com um vírus novo que provoca uma doença nova. Isso não é prova, nem científica nem numa audiência de julgamento independente, séria. Porque isto nunca foi levado a julgamento.

    No fundo, estamos aqui a falar de uma manobra concertada, de uma teoria da conspiração? Há uma conspiração que fez com que vivêssemos uma “falsa pandemia”? É isto que podemos concluir?

    Há, deliberadamente, uma construção de uma falsa pandemia. A criação de uma ficção de pandemia, isso existiu. Se nós formos analisar a mortalidade em 2020, vemos que, até Março, estava perfeitamente dentro dos padrões normais para todos os anos naquela altura. No dia 16 de Março de 2020, deu-se a primeira suspensão do serviço assistencial do SNS. As pessoas deixaram de poder ir ao hospital tratar-se. Ao mesmo tempo, eram “inundadas”, porque a Direcção-Geral da Saúde (DGS) tornou-se omnipresente, com uma campanha de medo.

    Enfim. Foi a partir de Março de 2020 que tivemos o primeiro pico de mortalidade em Portugal, quando as pessoas deixaram de poder ir ao hospital. E essas pessoas, muitas delas tiveram gripe, outras tiveram pneumonia… A pneumonia em Portugal, na esmagadora maioria dos casos, é bacteriana. Mudaram-se os protocolos hospitalares, as pessoas passaram a ser tratadas com remdesivir, quando muitas das vezes as pneumonias eram bacterianas. O remdesivir é um antiviral que tem reações adversas gravíssimas, em termos de insuficiência renal e hepática. Se fizermos uma radiografia do que aconteceu nos hospitais do SNS durante 2020, vamos ver que muita gente, a partir do quinto dia de remdesivir, começou a ter problemas renais e hepáticos. Enfim, interromperam-se tratamentos oncológicos, o que provocou mortes ao longo do ano com picos no final do ano.

    Esta suspensão de Março durou dois ou três meses, e em Novembro suspendeu-se novamente a prestação assistencial do SNS. E, portanto, ao mesmo tempo em que se criavam os casos com os testes RT-PCR, as pessoas eram incentivadas a ficar em casa 15 dias, isto é um dos maiores sinais de uma sociedade doente. Quando a população se deixa subornar pelo Estado, pelo regime… Eu não chamo Estado, chamo de regime…

    Já vamos a essa ideia que tem da governação do nosso país, mas permita-me uma pergunta: a sua ideia da pandemia já vem de trás, surge logo no início ou depois do famoso confronto, que aliás é a sua imagem, com a polícia?

    O conhecimento que eu tenho da matéria que acabei de expor, que nem sequer é matéria jurídica na sua maioria – mas os tribunais têm que apreciar matéria não-jurídica, é o normal… Não tenho problemas nenhuns em relação a isso, tenho que me socorrer de quem sabe, dos técnicos da área da Medicina, da Ciência, da Biologia, da Genética Molecular. Mas o que eu fui aprendendo, e o que eu sei agora, foi um processo de aprendizagem. Durante estes dois anos, havia coisas que eu tinha dúvidas, que tinha que perceber como é que estavam a acontecer. Portanto, o que eu sei agora não surgiu instantaneamente. Houve um período, no início da “falsa pandemia”, em que eu nem sequer vivia em Portugal, vivia na Alemanha, em Nuremberga. E nessa altura, eu acreditava que havia uma pandemia, e desinfectava as compras do supermercado. A partir de Maio, Junho, mais ou menos, eu comecei a observar no dia-a-dia, algumas coisas que me começaram a fazer duvidar. Eu via que as pessoas não morriam, essa foi a primeira. Para haver uma pandemia mortal, que era aquilo que se proclamava, as pessoas teriam de morrer.

    Portanto, este interesse surgiu inicialmente  numa perspectiva puramente jurídica, como uma preocupação pelo que eu estava a ver, um recuo civilizacional em relação a direitos, liberdades e garantias. Em Fevereiro de 2020, quando eu ainda acreditava que havia uma pandemia, e já se falava em quarentenas obrigatórias, eu gravei um vídeo a dizer, cuidado com esta ideia porque isto é para nos subtrair direitos. Em Portugal, não é possível ficar-se em quarentena obrigatória sem uma decisão de um tribunal. E mesmo para haver uma decisão de um tribunal nesse sentido, o artigo 27º da Constituição tem que ser alterado. Foi a primeira vez que eu falei do Habeas Corpus. Se houver algum médico ou alguma autoridade que imponha a uma pessoa ficar em prisão domiciliária por suspeita de estar doente, essa pessoa tem o direito a requerer um habeas corpus e a ser-lhe devolvida a liberdade. Portanto, esse interesse surgiu logo em Fevereiro e só muito recentemente é que eu descobri que tinha esse vídeo, porque entretanto esqueci-me completamente dele. Mas foi interessante perceber que nem eu próprio já me lembrava bem da minha timeline. Bom, e depois o interesse foi aumentando, até mais ou menos ao final de 2020, o meu discurso foi puramente jurídico. A partir daí, começou a mudar para um discurso misto, político e jurídico. Foi um interesse que foi sofrendo algumas metamorfoses, à medida que uma pessoa progride.

    Mas voltemos então a esse momento, que viralizou e deu origem ao juiz negacionista. O que é que afinal aconteceu? Normalmente temos acesso a poucos minutos daquele momento, creio que a imagem que fica é clara. Mas o que é que acontece imediatamente antes, que dá origem àquele momento de tensão?

    O que aconteceu antes daquilo foi o dia 16 de Abril de 2021, em que eu já tinha um processo disciplinar e fui ouvido pela primeira vez pelo instrutor do processo, o senhor Leitão, desembargador do Tribunal da Relação do Porto. E nessa altura, as pessoas estavam também a manifestar-se pacificamente, e sofreram uma carga policial porque não estavam a usar máscara, o pretexto foi a máscara, é um pretexto…

    Houve então uma carga policial nesse momento?

    Sim, houve uma carga policial no dia 16 de Abril de 2021, por parte daquilo que nós normalmente designamos como polícia de intervenção. Foram detidas 10 pessoas, outras foram para o hospital. Pelo menos uma foi para o hospital com uma lesão grave. Isso foi o que aconteceu antes, na verdade. No dia do meu confronto com a polícia – gravado pelo meio de comunicação social, ou propaganda –, eu sabia o que tinha acontecido antes – como é óbvio, estava lá. E vi, quando cheguei lá, o aparato policial, que era muito maior do que o do dia 16 de Abril. Apesar de estarem menos pessoas, havia muito mais polícia, e ainda mais preparados, penso que alguns até com caçadeiras e com projécteis não-letais, em princípio não-letais. E nesse momento eu fiz logo uma analogia.

    Era evidente que estavam de prontidão, preparados para actuar. E, quando eu cheguei ao local, à rua do Conselho Superior da Magistratura, recebi a informação de que eles tinham ordens para fazerem exactamente o mesmo que tinham feito antes. E eu dirigi-me primeiro a um agente, que não era da força de intervenção, tive uma primeira discussão com ele que não ficou gravada. Depois decidi dirigir-me à porta do Conselho onde se encontrava, aparentemente, um primeiro grupo de polícias do corpo de intervenção, perguntei quem é que estava no comando. Dirigi-me a ele, perguntei o que é que eles estavam ali a fazer, ele disse que estavam a cumprir ordens, depois foi a conversa que se desenrolou. Eu sabia que eles estavam preparados para fazer o mesmo e, naquele momento, fiz o que tinha a fazer para proteger aquelas pessoas e impedir que mal eu pusesse os pés dentro do CSM, aquelas pessoas sofressem violência. Eu não podia arriscar, de maneira nenhuma…

    Já me tinha arrependido anteriormente, de estar a ouvir os gritos no dia 16 de Abril e não ter interrompido e não ter descido. Foi uma coisa em que eu fiz um auto-escrutínio, e penalizei-me muito por não ter ido lá abaixo. Portanto, naquele dia eu não ia admitir que aquilo acontecesse [de novo] e fiz o que tinha a fazer. Faria o mesmo actualmente, quer fosse ou não fosse juiz. Portanto, foi isso. Fiz o que tinha a fazer. Às vezes tem que se fazer aquilo que tem que se fazer, sem pensar muito.

    Nem mudaria o tom, nem mudaria as palavras?

    Não. Não. Esse tom… aquelas pessoas que estão ali de prontidão, que têm um treino específico para aquilo que iam fazer, elas actuam sob voz de comando. Elas não actuam sob argumentos de razão, actuam sob vozes de comando. E foi isso que eles receberam naquele momento, uma voz de comando. Eu teria feito a mesma coisa. É óbvio que alguém sai sacrificado, eu saí sacrificado, o polícia que estava à minha frente saiu sacrificado. Porque ele, naquele momento, provavelmente sentiu-se humilhado. Poderia não ter-se sentido humilhado, poderia não ter aceitado aquele papel.

    Mas corre-se o risco de passar uma ideia de que se pode confrontar um polícia. Neste caso, só o fez porque sendo juiz, efetivamente, está num patamar superior e por isso pode dar ordens?

    Não, não. Isso foi uma coisa que eu tive oportunidade de explicar na minha última audiência pública no CSM. A nossa superioridade nunca pode advir de um cargo ou de uma posição, mas sim do nosso código de valores, do nosso código ético. E com base nisso é que nós podemos dizer… Quer dizer, dizer-se que se é superior ou inferior, é sempre um problema para quem o diz. Mas a nossa posição tem sempre de partir de um código ético, um código de valores. E naquele momento, o meu código de valores era superior ao do daqueles polícias. Aqueles polícias estavam a aceitar um papel que lhes foi dado por um regime profundamente corrupto, que enriquece descaradamente à custa da miséria de uma população. Era isso que eles estavam a fazer. Para bater e deter pessoas pacíficas, era esse o papel que eles estavam ali a receber e que estavam prestes a desempenhar. E, portanto, o meu papel era defender aquelas pessoas. É óbvio que se uma pessoa normal fizer aquilo, arrisca-se mais do que uma pessoa que tiver formalmente uma posição. Mas aquilo tem que ser feito, quer uma pessoa tenha ou não uma posição.

    E agora, além do seu advogado, quem é que o defende? Porque no fundo acabou por ficar isolado, o CSM tomou posição…

    Eu não preciso de ninguém que me defenda. Eu não preciso da defesa de ninguém. Se há algo que eu não sou é vítima, e nunca serei vítima. E é isso que do outro lado ainda não perceberam. Eu não sou vítima; continuarei a fazer o que tenho feito até agora.

    E que lado é esse? Qual é esse outro lado? São os outros juízes? O Governo? Os homens da conspiração

    O outro lado não é o Governo. O outro lado é o regime. E por regime incluo também os partidos com assento na Assembleia da República, e outras entidades… O regime é algo mais lato. É um regime que se instalou em Portugal, formado por uma elite que eu chamo de parasitária, que ocupa o território português, é um inimigo que ocupa o território português. É assim que eu os trato. Eu não lhes devo qualquer respeito, trato-os como aquilo que eles são: inimigos da população de Portugal. Portanto, isso é o outro lado, que se apoderou de todas as instituições do Estado e da sociedade. Na sua área [o jornalismo] sabe que quem distribui a maioria das notícias é a Lusa, que é detida a 50% pelo Estado. Depois ainda há os contratos de publicidade. Não se tem uma comunicação social. Por eu achar que vocês [PÁGINA UM] são independentes, não se pode tomar a nuvem por Juno. E não existindo uma comunicação social, também não existe democracia. Democracia em Portugal, não existe. Portanto, temos um regime formado por uma elite parasitária.

    Pegando na ideia que a nossa verdade e a nossa posição ética e moral nos pode conferir poder para dizer certas coisas, não corremos o risco de estar a incentivar aqueles que estão descontentes, de repente se juntarem para uma revolução contra tudo isto que está instalado?

    Esse código ético dá-nos sobretudo liberdade, e a liberdade dá-nos poder. Não é directamente ao poder, primeiro há a liberdade. Quando nós não temos medo e seguimos um código de verdade e de honestidade… e que não é um dado adquirido, toda a gente tem que saber autojulgar-se porque todos cometemos erros, mas isso não quer dizer que não tentemos diariamente seguir esse código. Ninguém é perfeito, e muito menos eu. Isso que me diz de poder haver, um dia, um grupo de pessoas que possa decidir, que quem ocupa o poder não representa os interesses de Portugal e da população portuguesa, e por isso retirá-los…

    Mas eles foram eleitos democraticamente…

    Não foram eleitos democraticamente. Não há democracia em Portugal.

    Para percebermos melhor, como é que não há se a pessoa se desloca à urna e põe lá o seu voto?

    A democracia não é meter um papel numa caixa. A democracia não é isso. Primeiro, tem de haver uma defesa dos interesses de Portugal. Nós vemos que os nossos políticos são pagos, são financiados, muitas vezes, por entidades internacionais, através de várias formas. E eles representam essas entidades. Hoje em dia representam sobretudo um movimento político que é o do desenvolvimento sustentável. É isso que todos representam, e isso não tem nada a ver com os interesses de Portugal. Desde a extrema-esquerda até à extrema-direita no Parlamento, estão ao serviço dos mesmos, portanto não há democracia. Sai um, entra outro e vai fazer exactamente o mesmo. E esse mesmo nunca será a defesa da população nem dos interesses de Portugal. Nós somos uma nação por alguma razão, as nações têm uma importância. Só existe uma nação se existir um núcleo social, que é a família, que seja forte e que se saiba proteger. Que os membros da família se saibam proteger uns aos outros. Nós vimos na pandemia, que os membros de cada família não se sabem proteger uns aos outros, atiraram os filhos para injecções com substâncias farmacêuticas experimentais… Está, e muito, erodido, esses valores estão erodidos.

    Foi por ter esses valores e essa visão do mundo que decidiu ser juiz?

    Não, eu decidi ser juiz há muito tempo, naquela altura ainda não tinha isto tão desenvolvido. Quer dizer, tive antes, num período em que era mais novo.

    Mas acreditava na justiça, acreditava sendo juiz, e sendo justo, podia aplicar essa justiça?

    Os juízes, não sei se as pessoas sabem, e isto é um problema que nós temos também em Portugal… Os juízes e os magistrados do Ministério Público (MP) começam na mesma turma, por assim dizer, no mesmo curso no Centro de Estudos Judiciais, que antigamente, até certa altura, eram 150 candidatos por ano, que eram selecionados em provas. No fim de dois anos de se ser auditor de justiça, tem-se uma classificação, e é em função dessa classificação que se escolhe livremente se se quer ser juiz ou magistrado do Ministério Público (MP). A maioria dos auditores de justiça querem ser juízes. A maioria dos magistrados dos MP são pessoas que não conseguiram ser juízes. Alguns estão lá por vocação, mas a maioria dos magistrados são juízes frustrados. E ao serem juízes frustrados e terem exactamente as suas instalações no mesmo edifício que os juízes acham, através de relações de amizade que depois desenvolvem, que conseguem influenciar as decisões. Isso acontece muito, juízes serem influenciados por amizade com os procuradores da República em relação às decisões que tomam. E o que eu lhe posso dizer é que muitos procuradores cortaram relações comigo durante a minha carreira, que nem sequer foi muito extensa, embora não seja tão curta quanto as pessoas dizem…

    Quantos anos?

    Eu entrei para o CEJ em 2003, tomei posse como juiz de direito em 2005, estive a exercer judicatura em diversos tribunais, inclusivamente aqui no Seixal, até 2011. Em 2011 decidi ir para o Brasil, por relações familiares, e então recomecei na advocacia. Portanto, são sensivelmente seis anos de exercício judicatura.

    Tocou num ponto essencial na sociedade: uma pessoa quando é frustrada a desempenhar seja que função for, principalmente quando tem poder nas mãos, torna-se perigoso. Qual é o risco de agora, depois de ter sido expulso da “Ordem dos Juízes”, ser um ex-juiz frustrado?

    [pausa] Só para lhe responder à pergunta anterior, eu espero que um dia haja esse grupo de pessoas que faça isso, eu espero. Terá de ser um movimento orgânico da população, para fazer isso que referiu, mas eu desejo que isso aconteça. Desejo vê-los retirados de lá, e desejo até muito pior. É bom que as coisas fiquem claras. Mas tem de ser um movimento orgânico. Tem de ser a população a decidir.

    Agora, respondendo aqui à sua pergunta. Uma das coisas que eu li, eu não leio muito sobre mim… Durante estes dois anos, talvez tenha lido uma ou duas coisas sobre mim. Mas uma das coisas que eu li sobre mim foi que houve um erro de selecção no CEJ; que eu consegui de alguma forma contornar os mecanismos de selecção do CEJ. Quem é que o CEJ selecciona? Selecciona pessoas que vêm na posição sobretudo do juiz uma ascensão social, um estatuto social, e também remuneratório. A maioria dos juízes vieram da classe média/baixa, portanto começar a ganhar três mil euros, ou coisa que o valha, acaba por ser um estatuto remuneratório, embora seja ridículo para a responsabilidade de quem está a exercer aquela função. E os pais daqueles candidatos investiram muito neles, quer na faculdade, quer depois nos cursos de preparação para se entrar no CEJ. Os concursos tinham geralmente mais de dois mil candidatos.

    Mas aquelas pessoas, quando conquistam aquilo, ficam agarradas, porque o mecanismo de selecção as escolhe. E, quando disseram que o mecanismo de selecção tinha falhado comigo, de certa forma foi uma das poucas coisas em que a comunicação social acertou. Não porque eu tenha tentado enganar o sistema – não tentei – mas porque eu passado alguns anos estava a sair de livre vontade. Portanto, estava a demonstrar que eu não precisava. Fiz a minha vida como advogado no Brasil a partir do zero, não tinha lá conhecimentos. Portanto, em termos financeiros também demonstrei que não precisava. Quando saí, comecei a escrever livros, tenho vários livros publicados. Vou publicar agora, muito em breve, o próximo. E portanto, eu não necessito da posição, nem como estatuto social nem remuneratório ou económico. Sou livre.

    Depreendo que não há frustração pela decisão…

    Eu não desprezo aquela posição [juiz]. Sempre tive orgulho em ter conquistado aquela posição, ainda que durante um largo período não a estivesse a exercer. Tinha orgulho e gostava do meu trabalho. Considerava-me, no mínimo, honesto a desempenhá-lo. E portanto, não desprezo a função, que é uma das principais de um Estado de Direito democrático. Aliás, é um dos poderes, o poder judicial. Mas fui livre para estar ali, e também para sair quando quis.

    Costuma-se dizer que se tivermos três advogados, temos três opiniões, mas com os juízes não devia ser tanto assim. Porque é que agora o Tribunal Constitucional vem dizer que diversas decisões que se tomaram eram contrárias à lei, nomeadamente questões ligadas à pandemia?

    Juridicamente, não há outra decisão a tomar. Embora se tenha inventado – penso que foi o Supremo Tribunal de Justiça que inventou alguns princípios da harmonização dos procedimentos. E defenderam que mesmo que Portugal tivesse um ordenamento jurídico que não fosse aberto às medidas, por uma questão de harmonização de procedimentos no nosso contexto europeu, tinha que se derrogar as regras. Isso é uma decisão política disfarçada de decisão jurídica, porque a decisão jurídica só poderia ter sido esta. E esta decisão jurídica, eu espero que não tenha sido tomada agora para justificar uma alteração da Constituição. O tempo dirá se foi para isso ou não.

    Nós estamos aqui a conversar de forma calma, pacífica, não sei se é da Natureza [risos]… De facto, o tema é bastante delicado. Mas quando nós olhamos para os temas que vai difundido nas redes sociais, nota-se uma pessoa mais impulsiva. Recorre a palavras duras, fortes. É uma forma de defesa, ou é uma forma de mostrar aquilo em que acredita?

    Não é nem uma coisa nem outra. É por razões psicológicas, nós devemos mostrar à população que não devemos respeitá-los. Eles não merecem o nosso respeito. Quando a população lhes perder o respeito, então estamos a começar a mudar alguma coisa.

    Por vezes quando há grandes discussões, há um argumento muito comum que é dizer: “bom, tinhas toda a razão, até àquele momento”. Ou seja, depois de teres feito aquilo, perdeste toda a razão. Não sente que tenha perdido razão?

    Não, isso são os padrões tradicionais da discussão, que eu também pretendo mudar neste país.

    Há uma vontade de mudar que vem de fundo?

    Sim, sim.

    Podemos subentender aqui o surgimento de um movimento cívico, e eventualmente político, no futuro?

    Pode dizer-se que já existe um movimento cívico e político, porque a Habeas Corpus tem um discurso político ao mesmo tempo que tem uma acção jurídica, não apenas na protecção dos seus membros… Nós conseguimos agora, até foi matéria do PÁGINA UM, o recuo do Corpo Nacional de Escutas em relação ao certificado digital. E foi uma acção que tivemos insistentemente, e eles recuaram. Portanto, nós temos esse papel de estreitar os laços através da solidariedade, que se faz de várias formas e uma delas é através do apoio jurídico aos nossos membros. Mas também temos um discurso político, que é agressivo e vai continuar a ser. E se calhar ainda se vai tornar cada vez mais agressivo.

    Até onde é que isto pode ir?

    Isso é a população que tem de decidir. Nós vamos continuar a fazer o que temos vindo a fazer. Nós só estamos a dar à população o caminho, mas depois é a população que tem que decidir o que fazer.

    As palavras que diz, e as expressões às quais tem recorrido, parece-me que, por vezes, facilmente alguém poderia acusá-lo das mais variadíssimas formas. Pergunto: isso está a acontecer ou porque é bastante cuidadoso e conhece a lei?

    Bom, eu já tenho dirigido os meus discursos a pessoas muito específicas. Não vou dizer aqui, mas toda a gente sabe. Imputo-lhes factos e utilizo designações em relação a essas pessoas, que em geral, em tese, poderiam consubstanciar crimes de difamação. No caso do Presidente da República (PR), um crime contra a sua honra. O facto é que toda a gente sabe onde eu estou, eu não me escondo. Dou a minha morada verdadeira nos requerimentos que apresento em juízo. Numa manifestação, até disse ao Ministério Público a propósito de um crime contra a honra do PR, disse num vídeo que no próximo dia tal ia estar num determinado local, se me quisessem encontrar, uma vez que eu nunca fui notificado. Disseram que tinham aberto um inquérito criminal, eu nunca fui notificado para ser constituído arguido. O que é facto é que eu não tenho conhecimento de quaisquer processos criminais abertos contra mim. E não quer dizer que não haja, mas não tenho. Não sei porquê, mas não tenho. Poderá especular-se, mas será apenas especulação. Em relação ao resto, eu desejo, um dia, desejo mesmo, que a população se revolte, e derrube este regime. Ao desejar isto, não estou a incentivar ninguém, estou a dizer que desejo isso.

    Mas se são todos iguais, saem estes e vêm outros…

    Exactamente, por isso é que eu também já disse, várias vezes, que não vale a pena fazer isso se nós não criarmos uma massa crítica que tenha um código ético. Sem isso não vale a pena haver golpes de Estado, haver isto ou aquilo.

    Mas isso educa-se. Ou seja, eu acredito que por exemplo se pegarmos nas crianças e se lhes conferirmos as ferramentas certas, se as habituarmos a fazerem perguntas mais do que a darem respostas, conseguimos ter uma sociedade diferente. Mas se iniciássemos esse processo hoje, só daqui a 20 anos é que teríamos resultados…

    É o que é, nós não podemos mudar uma sociedade com um estalar de dedos. Pode até ser noutras gerações depois de nós. No meu caso, pode ser depois de eu desaparecer. Não tenho pressa. Trocando aqueles que agora lá estão por outros, que seriam uma amostra da nossa sociedade actual, iria dar exactamente ao mesmo, se não fosse pior. Portanto, nós primeiro temos que revitalizar moralmente a nossa sociedade, formar uma massa crítica que siga um código de valores. E depois a é população que tem que escolher, porque movimentos revolucionários têm de ser genuínos e orgânicos. Não pode haver uma organização por trás.

    Mas se um líder, ou se alguém que comece a inspirar um grupo de gente a tomar certas posições, rapidamente pode ser aniquilado. Acredita que um grupo de pessoas consegue fazer parar o mundo a propósito de uma pandemia, não acredita que mais cedo ou mais tarde o vão por completamente de parte, silenciar ou aniquilar?

    Pode acontecer, isso é um risco que eu corro. Agora já não tanto, mas houve um período em que quase todas as semanas diziam que vinha alguém para me matar. Uma pessoa também se vai habituando a isso. Enfim, eu também vivi no Brasil, e assisti a tiroteios à minha frente, a 50 e 70 metros à minha frente. Era novo para mim, e tive que me habituar àquilo. Portanto uma pessoa vai-se habituando a um escalar da tensão e do risco… Enfim, riscos, eu corro, como é óbvio, mas assumo-os. Sem ser vítima.

    Entrevista transcrita por Maria Afonso Peixoto e editada por Pedro Almeida Vieira

  • Da inteligência e da honestidade

    Da inteligência e da honestidade


    A propósito de uma notícia curiosa sobre uma estrambólica fraude em Itália, ocorreu-me falar sobre honestidade. Honestidade que é inerente ao carácter e que está implícita na nossa forma de pensar, de agir, de ser.

     Se por um lado a vida parece ensinar-nos que “quanto mais esperto melhor”, o tempo revela que a esperteza – característica dos fracos – nada pode contra a sabedoria. Aliás, a esperteza revela ser a maior fraqueza dos que se julgam fortes.

    person using laptop computers

    Mas se enganar os outros é em si uma tarefa desonesta, enganar-se a si próprio é ainda mais corrosivo, lamentável, deplorável.

    Porque os políticos também nos contam “histórias”, há um em particular – Teófilo Braga – de quem me recordo. Presidente da República, num curto período (1915), foi ele também um profícuo ficcionista, ensaísta e etnógrafo, imortalizando diversas pérolas da tradição popular portuguesa, como a do cego e o mealheiro, integrada no segundo volume dos Contos Tradicionais do Povo Português, originalmente publicado em 1883 :

    Era uma vez um cego que tinha ajuntado no peditório uma boa quantia de moedas. Para que ninguém lhas roubasse, tinha-as metido dentro de uma panela, que guardava enterrada no quintal, debaixo de uma figueira. Ele lá sabia o lugar e quando ajuntava outra boa maquia, desenterrava a panela, contava tudo e tornava a esconder o seu tesouro. Um vizinho espreitou-o e, vendo onde é que ele enterrava a panela, foi lá e roubou tudo. Quando o cego deu pela falta do dinheiro ficou calado, mas começou a dar voltas ao miolo para ver se arranjava uma estratégia para reaver o seu dinheiro. Pôs-se a considerar quem seria o ladrão e achou lá para si que era por força o vizinho. Tratou de ir à fala e disse-lhe:

    — Olhe, meu amigo, quero-lhe dizer uma coisa muito em particular, que ninguém nos oiça.

    — Então que é, senhor vizinho?

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    — Eu ando doente e isto há viver e morrer. Por isso, quero dar-lhe uma parte de algumas moedas que tenho enterradas no quintal, dentro de uma panela, mesmo debaixo da figueira. Já se sabe, como não tenho parentes, há de ficar tudo para vossemecê, que sempre tem sido um bom vizinho e me tem tratado bem. Ainda tenho aí, num buraco, mais umas moedas de ouro e quero guardar tudo junto, para o que der e vier.

    O vizinho, ao ouvir aquilo, agradeceu-lhe muito a intenção. Naquela noite tratou logo de ir enterrar outra vez a panela de dinheiro onde ela estava, com a intenção de apanhar o resto do tesouro.

    Quando bem o entendeu, o cego foi ao sítio, encontrou a panela e trouxe-a para casa e então é que se pôs a fazer uma grande caramunha ao vizinho, dizendo: — Roubaram-me tudo! Roubaram-me tudo senhor vizinho.

    Daí em diante guardou o seu dinheiro num lugar onde ninguém, por mais pintado que fosse, conseguiria dar com ele.

    Assim, concluímos que enquanto formos espertos, facilmente encontraremos quem o seja mais do que nós. Já falar de sabedoria é outra história.

  • Não por ser mulher, mas por ser boa

    Não por ser mulher, mas por ser boa


    Posso sentir-me tentado a afirmar que as crianças de hoje vivem num mundo mais justo. Um mundo onde as oportunidades tendem a ser igualmente distribuídas e desprovidas de preconceitos. Porém, esta afirmação exige uma leitura atenta, esclarecida, porque tende a ser verdade em poucas partes do planeta. Infelizmente.

    Acredito que a simpatia, e a atenção, que tenho merecido por parte de quem lê, é sem dúvida um reflexo do profundo respeito que tenho por quem me lê – mas também pela Humanidade. Leio os comentários, as opiniões, os contributos… é justo que gaste tempo a fazê-lo. Estou grato.

    woman in black jacket sitting beside woman in white blazer

    Sublinho que não escrevo para ganhar prémios ou para agradar a uma classe, muito menos almejo qualquer retribuição que não seja a edificação de um mundo mais iluminado, mais esclarecido e assim mais tolerante. Por isso, no que toca a direitos e deveres defendo a igualdade.

    Defender a igualdade não significa o esvaziamento ou a redução da pessoa à ideia plástica de que somos todos iguais – até porque a ideia de igualdade não se esgota na tentativa de reduzir os elementos de possível comparação à ausência de diferenças. Igualdade é indiscutivelmente muito mais do que isso.

    Assusta-me que alguns oportunistas sobrevivam ao lado da defesa dos direitos humanos.

    Aterroriza-me que haja quem ouse evocar a questão da igualdade para alcançar aquilo que por mérito não alcançou.

    Chega a ser contraditório. Passo a explicar.

    woman holding white mug while standing

    Recentemente, ouvi uma mulher defender a sua candidatura para um determinado lugar de liderança, justificando-se com o facto de ser mulher: “Chegou a hora de ser uma mulher a tomar a dianteira” – afirmou, impiedosa.

    Não. Não chegou.

    Chegou, sim, o momento de os bons tomarem a dianteira – homens ou mulheres. O desejo mais oportuno é pelo tempo dos bons, dos competentes.

    Então, sendo intrinsecamente boa, que nenhuma mulher seja impedida de ocupar um lugar de liderança. Aqui reside, sem dúvida, o direito à igualdade.

    Na mente daqueles que, em primeiro lugar, desejaram a igualdade, estava implícita a diferença entre os estratos sociais – o título, o apelido, o estatuto social – que marcavam as oportunidades de cada um.

    woman sitting in front of desk with computer monitor and keyboard on top

    Somos todos diferentes, sempre fomos. Uns são melhores do que os outros – e isso é assustador. Ora quando ficamos assustados, jogamos ao ataque, destruímos, assumimos o preconceito e esquecemos o quanto é bom sermos todos diferentes.

    Aliás, talvez seja essa uma das grandes oportunidades de não sermos confundidos, pois quando dizemos que alguém marcou a diferença, fazemo-lo no intuito de distinguir o que é positivo. Por isso, parece oportuno mudar o discurso na forma e no conteúdo para que cada mulher possa, de facto, ser diferente e destacar-se pela diferença.

    Chegará o dia em que a luta será pelo direito à diferença – até lá viva a igualdade. Mesmo sabendo que uns serão sempre mais iguais do que outros.

  • Estranha forma de vida

    Estranha forma de vida


    A exposição frequente a um determinado estímulo gera tal familiaridade que nos vemos conduzidos a uma mudança de atitudes, na forma de preferências e afectos. Esta preferência é acima de tudo emocional e forma-se ao nível do subconsciente, ou seja, antes de se ter consciência dela.   

    Mas, antes de mais, ilustremos esta ideia com uma breve história.  

    six leafy vegetables

    Um homem muito rico desejou ser eremita e, por isso, foi viver para o deserto. Queria libertar-se do trabalho, das pessoas, da loucura social. Isolado e sem ter onde comprar alimentos, decidiu cozinhar um caldo com diversos tipos de ervas que foi encontrando aqui e acolá.

    Depois de muitas horas de colheita, ferveu a água e acrescentou-lhe os poucos ingredientes que colhera. Finalmente, depois de cozinhado o caldo, ao levantar a tampa para cheirar o paupérrimo manjar, um gafanhoto saltou para dentro da panela. Enojado, apagou as brasas, deitou a sopa fora e, nesse dia, fez jejum.

    No dia seguinte, desejava um caldo e, por isso, repetiu o mesmo cerimonial de recolha e confeção. Mas, cada vez que cozinhava, havia um gafanhoto a invadir-lhe a panela. Certa vez, aborrecido e cansado de desperdiçar a sopa, decidiu retirar o insecto com a concha e mesmo assim comê-la. Aquele gesto passou a ser rotina, pois percebeu que se assim não fosse acabaria por morrer de fome. 

    Pergunto-me se não será isto mesmo que acontece connosco quando crescemos e nos familiarizamos com o que está (e o que acontece) à nossa volta, desde a mais tenra idade. Comparemos, neste contexto, a vida a uma representação teatral.

    red theater curtain

    As pessoas, ou melhor, os “actores”, procuram deixar uma impressão favorável de si mesmos mediante a sua personagem, fazendo a distinção entre aquela que é a zona de cena e os bastidores. Naquela existe um público para quem representamos e de quem esperamos aplausos. Nos bastidores, “desmanchamos” a nossa personagem, andamos sem maquilhagem, sem roupas exuberantes e estamos despreocupados. 

    Para quem já esteve em cena, num palco a sério, sabe o quão exigente pode ser aquela circunstância. O desconforto das luzes que batem nos olhos, a permanente colocação da voz, os movimentos repetidos que não podem ser esquecidos, os textos, os imprevistos e acima de tudo, a expectativa acerca da reação do público.  

    Num exercício rápido e atento sobre o que nos rodeia, percebemos que não somos nós a escrever a peça, que em vez de “actores principais”, somos, na maior parte das vezes, “actores secundários” num espectáculo triste e amargurado por falta de público que aplauda. Percebemos que não há quem encontre o guião e que o palco carece de espaço para que todos brilhem em cena, simultaneamente. 

    Nos bastidores, encontramos gente cabisbaixa, deprimida, frustrada, drogada.  

    gold and black dragon figurine

    Aparentemente, ninguém nos explicou, desde cedo, que não se trata de representação teatral alguma, mas sim de viver uma vida livre e completa. Ninguém nos ensinou o quão bom é sentir cada beijo, cada respiração, cada abraço de forma plena e espontânea.  

    As religiões e a moral são acusadas de serem castradoras da felicidade. Porém, aqueles que nos rodeiam não param de nos gritar que subamos ao palco, que repitamos cenas, uma e outra vez. E de tanto repetir, passamos a acreditar que, de facto, há um público à nossa espera, à espera de que sejamos alguém que ninguém sabe quem é… 

    Voltando à história do eremita: conta-se que este, a partir de certa altura, passou a procurar gafanhotos para com eles fazer sopa, até ao final da sua vida.  

  • Prostituída e violada, mas generosa

    Prostituída e violada, mas generosa


    O nosso planeta – a Terra Mãe – atingiu um estado irreversível.

    Falhámos como sociedade e, como se não bastasse, permitimos a mentira, aceitamos que nos escondam verdades e envolvemo-nos conscientemente em orquestrações prejudiciais, das quais nos tornamos cúmplices.

    Possuir parece ser razão de prazer que justifica a luta de uma vida inteira – possuir terra, casas, carros, árvores, empresas, dinheiro, roupa, pessoas.

    outer space photography of earth

    Ao deter o olhar no passado, facilmente percebemos que não fomos capazes de viver ao sabor do natural, perfeitamente integrados na Natureza, razão pela qual acabámos por moldar tudo o que nos rodeia à nossa medida. Em nome da prosperidade, do progresso, da evolução, das ideias e ideais que prometiam a edificação de um mundo melhor, destruímos e transformámos a Terra num lugar pior.

    Fomos e somos descarados.

    Pode ser que se viva, hoje, melhor do que noutros tempos: habitam-se casas mais confortáveis, vive-se em espaços mais limpos, tem-se mais medicamentos disponíveis, tem-se cada vez mais tempo. Mas, estas evidências nunca estiveram ao alcance de todos.

    large tree in middle of forest during daytime

    Hoje, nesta Era Global, tudo tem impacto à escala mundial e, por essa razão, lutamos por direitos universais, viajamos e conhecemos todos os cantos da Terra, chegamos a todo o lado, estamos em toda a parte. Sentimo-nos omnipresentes, omniscientes e omnipotentes. Todavia, estamos conscientes de que trouxemos o nosso planeta a um estado de exaustão inqualificável.

    A nossa Mãe Natureza, que tudo nos deu – até a inteligência –, esperava certamente mais de nós, muito mais. Mais amor, mais respeito, mais dedicação.

    Estamos a prostituí-la, estamos a violá-la até às entranhas. As inundações a que assistimos são fruto das suas lágrimas de dor. As tempestades e os terramotos são gritos e espasmos amargurados de tanto sofrimento. As altas temperaturas e os incêndios nada mais são do que a cólera de um corpo quente, suado, saturado e doente, inflamado, vilipendiado…

    blue and gray rolling chair

    Chegámos ao fim de um mundo. Estamos prestes a acabar. Por tua culpa. Por minha culpa. Por nossa culpa. Chegámos ao aparente fracasso das religiões, das filosofias, da política, da educação. Este podia ser o momento de ressurgir, mas não queremos.

    Peço, por isso, desculpa aos meus filhos e a todas as crianças que jamais conhecerão aquilo que um dia eu conheci. Se o ser humano é capaz do melhor e do pior, resta-nos acreditar nas crianças, acreditar que sejam capazes de fazer bem melhor do que nós.

    No entanto, para a nova geração, deixou de existir o direito à liberdade de cuidar ou não do nosso planeta. Ficou o dever, por isso temo que tão cedo ninguém volte a ser livre.

  • Meretrizes da solidariedade

    Meretrizes da solidariedade


    Contemplar uma mãe que amamenta é repousar o olhar num acto de beleza incomparável. A naturalidade com que uma mulher o faz, não sugere qualquer tom sexual. Trata-se, aliás, de uma imagem bastamente romanceada que inspirou artistas de todo o Mundo e faz parte do leque de sonhos que muitas jovens desejam concretizar.

    Na constante tensão entre o que consideramos ser bom, porque nos dá prazer, e o que tem de ser feito, porque é nosso dever, está o eixo em torno do qual se desenvolve o nosso carácter.

    Se o egoísmo produz um efeito deletério sobre o desenvolvimento da sociedade, o altruísmo evoca o que de melhor existe no ser humano para viver em comunidade.

    Atente-se na imagem da mãe que amamenta. Para lá da ideia redutora da amamentação como um acto romântico, pode estar um cenário de dor, repulsa e ansiedade.

    Esta experiência de sacrifício dá lugar à comunhão entre dois seres. Esta conversão de dor em alimento é regeneradora e estabelece laços. Porque a Humanidade é uma família, é dever de cada um preocupar-se com o bem-comum e com a felicidade coletiva.

    Compete-nos, por isso, libertar a nossa sociedade materialista da idealização romântica da vida, revendo comportamentos e critérios a fim de se saber julgar o que é o bem, o bom e o dever.

    O gesto filantrópico arrasta consigo um mundo de beleza, que é vivido individualmente, e que se distingue de pessoa para pessoa. Importa, porém, recordar que uma coisa é viver para solidariedade e outra é viver à custa da solidariedade. Aquela manifesta-se uma extensão do bem, enquanto esta – perversa – se revela de natureza suspeita.

    O que não falta são associações de cariz solidário. As motivações distinguem-se particularmente não pelos seus estatutos, que se regem por uma lei geral e comum, mas pela forma como os sócios e respectivos órgãos sociais fazem a justa gestão dos bens que lhes são confiados.

    Se alguns o fazem para merecer o céu, outros há que enchem o seu coração por ver a felicidade de quem se alegra com tão pouco. Uns matam a solidão pelo envolvimento social, e outros ainda esperam o reconhecimento do alheio. Tudo isto faz parte desta missão que tanto tem de belo como pode ter de perverso.

    girl holding umbrella on grass field

    Numa interpretação diferente da que se popularizou, Rómulo e Remo, fundadores de Roma, teriam sido alimentados por uma prostituta, e não por uma loba, já que “lupa” tem duplo significado. Quem sabe se o leite desta mulher pertencia ou não a algum filho que nunca tenha chegado a ver a luz do dia. Deu-lhes tudo quanto tinha, confortou-os com o alimento do corpo e da alma. Contudo, talvez por ser mais poética, a imagem de uma loba veio a vingar.

    Hoje, tal como passado, continuam a surgir as meretrizes da caridade alheia. Apenas, em vez de alimentarem os que têm fome, estas enfartam-se até lamberem os próprios dedos, julgando assim esconder os vestígios da sua imundície.

  • Sombras da noite cintilando nas universidades

    Sombras da noite cintilando nas universidades


    Quem já navegou durante a noite entende perfeitamente a importância das estrelas e dos faróis. Se aquelas em nada dependem da mão humana para cintilar, estes são um exemplo extraordinário do engenho e da técnica da Humanidade. Apesar de tudo, por mais belos que sejam, nem as estrelas nem os faróis são um destino em si mesmo, revelando-se úteis ao ajudar o navegador a tomar consciência da sua localização e ao sinalizar perigos.

    Quando atingimos a frescura da adolescência, aventuramo-nos sem medo por águas desconhecidas e, num golpe de inconsciência, os jovens facilmente acreditam nos sonhos e na aventura, entregando-se a causas, às quais aderem de corpo e alma.

    Fazem-no pela adrenalina, pela novidade, pela provocação, mas acima de tudo, a sua atitude revela uma forte intenção de encontrar o seu lugar no Mundo. Mas há quem disso se aproveite e se alimente dessa energia juvenil.

    Em oposição à imagem dos abutres – que preferem carne em avançado estado de putrefação – é o comportamento dos vampiros que mais se aproxima daqueles que, sedentos de sangue novo, capturam os mais desprevenidos.

    Não é em vão que as juventudes partidárias circundam as universidades. É lá que vão pescar os potenciais camaradas, propondo-lhes um lugar de intervenção na primeira fila para mudar o Mundo.  Assim, infelizmente, o que podia ser uma escola de vida torna-se, em demasiados casos, numa escola mafiosa de atropelos e interesses, acabando por formar verdadeiros parasitas da sociedade.

    Já António Vieira, conhecido padre jesuíta, no famoso Sermão de Santo António aos Peixes, se tinha lembrado de nos alertar para os interesses dos parasitas e oportunistas dos pegadores, da vaidade dos peixes voadores, da soberba e arrogância dos roncadores e da traição do polvo.

    woman holding book on bookshelves

    O lugar dos jovens é no mundo! No mundo real do trabalho, dos projetos sociais e humanos que não servem propagandas, do amor que não escolhe apelidos… Tudo isto enquanto ganham uma autêntica experiência de vida.

    Estou certo de que todos gostaríamos de ver, no poder político, gente completa e dedicada, verdadeiramente vocacionada para servir a construção de uma sociedade organizada e justa em nome de ideais e valores. Começa a ser insuportável e insustentável viver neste clima de conformismo no qual mergulhámos e do qual dificilmente conseguimos emergir.

    Todos, sem exceção, devemos ser uma espécie de faróis uns dos outros. Referências e sinais de apoio para que cada um se encontre e, consequentemente, saiba o rumo que quer tomar.

    Este exercício contém em si responsabilidade colectiva e pessoal. Trata-se de deixar irradiar uma luz que não nos pertence e que, por isso, deverá ser sentida como dádiva. Desse modo quem seguir a nossa luz não nos segue a nós, mas a nossa mensagem.

  • ‘Somos um povo generoso, mas não somos solidários’

    ‘Somos um povo generoso, mas não somos solidários’

    Aos 65 anos, a vida de Eugénio Fonseca confunde-se com os valores cristãos e sobretudo com a Cáritas Portuguesa, a que presidiu desde 1999 até ao ano passado. Conhece os meandros da pobreza como ninguém, e nesta conversa intimista com o PÁGINA revela o que lhe foi passando na alma e o que amadureceu na mente.


    Mais de metade da sua vida foi dedicada aos pobres. Podemos dizer que a sua vida se resume à solidariedade?

    Sobretudo a partir dos meus 20 anos, eu diria que a minha vida passou a ser pautada por uma consciência mais correcta do compromisso que assumi de seguir uma pessoa, que se chama Jesus Cristo. E essa decisão tem consequências, naquilo que podemos chamar a dimensão social da fé para dar credibilidade àquilo em que acreditamos. E segundo as orientações da pessoa a quem sigo, não há volta a dar. Temos de nos alinhar com as questões que norteiam os valores do reino que ele anunciou. A verdade, a justiça, a caridade, a fraternidade, de uma forma particular, prestando uma atenção mais direcionada para aqueles que, entre os meus irmãos, são os mais frágeis.

    O Cristianismo passou a assumir um papel central no apoio social. Tendo a Igreja Católica tantos fiéis, não seria de esperar que tivessem conseguido erradicar a pobreza e acabar com as desigualdades sociais?

    Todos sabemos que ao longo da História, o percurso da Igreja nem sempre foi em conformidade com a matriz identitária. Nós, cristãos, acreditamos que, em Jesus, Deus se encarnou para viver a nossa Humanidade. O que nos pediu foi que o seguíssemos, anunciando um reino novo. E a Igreja, ao longo da História, tem-se preocupado mais com a estrutura que surgiu após a ressurreição de Jesus, do que propriamente com o reino que ele anunciou.

    Eugénio Fonseca, esta semana em Lisboa.

    Será então por isso que muitos se aproveitam da pobreza para dela viverem profissionalmente? Ou seja, dando emprego aos membros da estrutura – criando até mais estruturas – tornando-a dependente dos fins sociais?

    Eu não posso pôr em causa esses aspectos, não tenho condições para o fazer, porque isso estaria a entrar no domínio da consciência das próprias pessoas. Mas no serviço aos pobres nunca houve esta harmonia, e foi sempre com metodologias que eram mesmo contraditórias àquilo que Jesus pediu. No Cristianismo, a pessoa é considerada quase como um ser divino: fomos criados à imagem e semelhança de Deus. E nós nunca tratámos a pessoa como tal. E o que se vem percebendo ao longo da História, é que há sempre um conflito que a Igreja tem dificuldade em gerir.

    É irónico pensar que se os pobres atuais desaparecessem do Mundo, aqueles que hoje vivem de fazer caridade rapidamente se tornariam igualmente pobres, sem emprego. Qual é o risco de uma instituição, que se deveria preocupar mais com o espiritual, se transformar numa IPSS universal que passa a assumir como prioridade a gestão de velhinhos, pobres e património?

    Eu não estou a dizer que as instituições sociais não devam existir. Devia haver uma maior planificação para respondermos às necessidades concretas e criarmos uma partilha de bens que fizesse com que todos pudessem ter acesso a melhores condições de vida. Há o risco da tecnocratização, sim. Passámos de uma fase de amadorismo na prática social do compromisso social, para o excesso da norma, e daquilo que os técnicos, porque foram formados assim, trazem para as instituições. À direcção de uma instituição devia competir assegurar a identidade cristã, que não basta diferenciar-se das outras porque têm um crucifixo ou a imagem de um patrono num sítio qualquer, bem adornado. Tem havido algumas tentativas, mas a preocupação pela sustentabilidade financeira dessas instituições também é preciso ter, porque há salários para pagar. É pena que não sejam salários mais justos, embora saiba que as instituições estão a pagar aquilo que legalmente têm de pagar. Mas nós devíamos seguir os princípios daquilo que é o pensamento social cristão, para os validarmos. As nossas instituições sociais poderiam, como as nossas escolas, serem laboratórios, dentro da possibilidade, do que se chama doutrina social da Igreja.

    Na estrutura da Igreja o Eugénio Fonseca é um leigo. Alguma vez se sentiu inferiorizado por não fazer parte do grupo dos clérigos?

    A mim, a designação como tal, não me aflige. As atitudes que depois estão subjacentes a elas é que já me parecem um pouco mais complicadas. Por isso, sim, muitas vezes. Eu digo que estive 40 anos sempre em organizações marcadas pela hierarquia, e eu tinha consciência disso e aceitava isso, e fui sempre fiel a quem era designado para estar no patamar superior àquele que eu desempenhava, embora reconhecesse que às vezes a narrativa que utilizávamos para determinados problemas, não facilitava depois o exercício da missão. Temos um clero que se fixa muito nas questões teológicas e da gestão do sagrado e pouco inseridos no mundo. Isso criou-me algumas dificuldades. Era eu estar no mundo e, com as minhas limitações, tentar fazer passar a mensagem desse reino a que eu pertenço e quero estar inserido e lutar por ele, através de uma instituição que é a Igreja, e que muitas vezes não era compreendido no mundo. E havia algumas tensões e até incompreensões perante aquilo que eu via que a Igreja não estava a acompanhar, para o bem e para o mal, em termos da evolução da dimensão social na sociedade portuguesa.

    Podemos subentender que tomou decisões com as quais não concordava, mas exigidas pela hierarquia da Igreja?

    Algumas vezes tive que o fazer, mas nunca contra a minha consciência. Nunca fiz nada contra a minha consciência, mas algumas vezes fiz coisas que sabia que não eram as metodologias mais acertadas, e recuei naquilo que eu achava que se deveria avançar. Dou-lhe um exemplo. Eu nunca percebi porque é que na Igreja em Portugal, nunca se tivesse posto em prática um modo próprio, o Intimae Ecclesiae Natura, que é uma determinação do Papa. Bento XVI teve necessidade de a criar para explicitar melhor as funções do governo do bispo na área sócio-caritativa. Penso, ainda está por concretizar. As justificações eram que aquele modelo não era aplicável à Igreja e a Portugal. Aliás, a figura do clérigo tem de ser humanizada. Porque trata-se de uma missão que está a cumprir, como eu cumpro a minha missão como leigo; e a expressão “leigo” na língua portuguesa também pode ter outra conotação, mas também não é por aí que se vai criar o problema. Mas deve haver esta harmonização. Veja, os leigos estão sempre, até agora, na vida da Igreja, em concelhos consultivos. As decisões são tomadas pela outra casta que tem, por razões sacramentais, poderes de ordem divina superiores.

    Mas, se a Igreja acredita que é o Espírito Divino que a governa, não será que o sistema actual é o modelo que Ele quer?

    Em muitas das minhas atitudes fecho a porta ao Espírito Santo, por minha acomodação. E aí é que está; penso que é a grande conversão que temos que fazer.

    Esteve ligado à Cáritas em Portugal durante muitos anos, deixou um legado. Como vê a Cáritas? O espelho do amor de Deus?

    Não é. Não quero ser demagógico a dizer que todos somos capazes de amar até à plenitude que o amor exige. Porque temos, dentro de nós, ainda muitas situações que estão em permanente conversão. Não digo que o amor pleno se consiga concretizar com os condicionalismos que advêm da própria circunstância em que vivemos. Há sempre limites que nos condicionam a ter esse sentido do Amor. Amar é dar a vida. Não quer dizer que dar a vida seja só no acto em que alguém é alvejado ou crucificado. Nós damos a vida ao longo dos anos, quando vamos vivendo, e vamos oferecendo essa vida sem perdermos nada. Sobretudo, ficando intimamente mais preenchidos. E como tal, a Cáritas também é uma instituição. Eu sinceramente pensei a Cáritas no seguimento do meu antecessor, que foi um homem ímpar, como cristão e como cidadão. E que parte deste mundo de forma anónima e esquecida. Acho que a sociedade portuguesa e a Igreja terão um dia que lhe fazer o reconhecimento que ele merece, refiro-me ao Doutor Acácio Catarino. A ideia que ele dava da Cáritas era aquilo que eu gostava que a Cáritas fosse.

    Normalmente quem lidera associações e gere muito dinheiro, facilmente vê o seu bom nome e a sua honestidade serem postos em causa. Estou a lembrar-me dos fundos para as vítimas do incêndio de Pedrógão Grande em 2017…

    A Cáritas foi arrastada por aquele processo, que está meio esclarecido. Fizemos uma auditoria, quando eu ainda lá estava, sobre a utilização dos dinheiros, que gerou essa polémica. Não quer dizer que a gestão seja sempre a mais adequada, mas que seja uma gestão dolosa, isso nunca tive, felizmente. Pelo contrário, encontrei sempre gente muito dedicada. O problema é que a Cáritas mantinha, e espero que evolua, uma matriz muito assistencialista. Houve vários programas que tentámos implementar, que não tinham sucesso. Em determinada altura, a Cáritas passou a ter uma maior capacitação de intervenção, a partir da acção dos técnicos, mas as direcções deviam ter também igual capacitação, como eu disse há pouco, no plano das ciências sociais e do pensamento social cristão.

    O poder político, independentemente das cores, reconheceu o seu trabalho. Como é que conseguiu ganhar esse equilíbrio?

    Há sempre o risco de quem está a governar querer que os dirigentes de instituições – sejam elas do âmbito social, cultural ou educativo – estejam em sintonia consigo. E os que estão na oposição, querem que façamos com eles oposição àqueles que estão no poder. Eu tive sempre uma máxima: não tenho filiação partidária nenhuma, nem ideologia nenhuma, porque considero que o compromisso que assumi não é ideológico, é um compromisso de um sentido para a vida, fundamentado em princípios não apenas alicerçados em teorias. Se não forem materializados perdem todo o significado. Portanto, nunca me deixei condicionar porque alguém me prometia alguma coisa em troca de algo.

    Foi por isso que nunca aceitou um lugar como político? Ou nunca foi convidado?

    Não, não aceitei nunca. Várias vezes isso aconteceu.

    Sabemos que é um percurso comum, muitos começam por servir os pobres e depois acabam por servir o Governo…

    Por vezes, há conflitos que podiam ser evitados. Eu sei que uma das acusações que alguns membros da minha Igreja me faziam, era que eu tinha poder na igreja. E a sensação que eu tive é que sempre a servi. Eu nunca fiz nada contra as orientações daqueles que na tal hierarquia estavam acima de mim. A visibilidade que eu tinha não era por interesse próprio, porque ela traz até mais inconvenientes do que coisas boas, porque obriga-nos a termos muito mais cuidado com a forma como estamos, o que dizemos e o que fazemos.

    O Papa tem nomeado mulheres e leigos para lugares que até então estavam ocupados pelo Clero de homens. É isso que devemos exigir à Igreja portuguesa de hoje?

    Eu acho que não devemos entrar na lógica que a determinada altura os partidos políticos quiseram, por causa da tal “igualdade de género” – que não tem nada a ver com a ideologia de género. Eu acho muitas vezes que a Igreja está excessivamente preocupada com esta coisa chamada ideologia de género, que ninguém sabe o que é, nem tem fundamento nenhum. Há por aí umas vozes que atiram para o ar, e pode estar em causa uma coisa que é fundamental, que é a igualdade de género e de oportunidades, independentemente do sexo da pessoa. Eu não sou tanto de dizer que tem que haver X de homens e X de mulheres, essa coisa de régua e esquadro. Têm de estar as pessoas competentes nos sítios certos.

    Os últimos três anos vieram alterar o ritmo das nossas vidas e empobreceram o país. Parece-lhe que a pandemia veio complicar ainda mais o nosso sistema social?

    A pandemia foi mais um acontecimento, não foi a primeira vez que aconteceu algo similar na História. E até tivemos a sorte de vivermos num tempo em que as ciências médicas já estão muito mais evoluídas em comparação com o período da gripe espanhola. A pandemia veio chamar a atenção para a necessidade de uma maior coesão, que aparentemente está intríseca nas pessoas, mas mais por emotividade do que por convicção. Por exemplo, na crise entre 2006 e 2013, muitas vezes apelei aos consensos para não se exigir tantos sacrifícios às pessoas. Chamei-lhes pactos de regime, procurei dar-lhes um nome para que os deputados percebessem ser preciso unirmo-nos e deixar as ideologias de parte. As ideologias não matam a fome. Não se conseguiu aí, mas conseguiu-se na pandemia.

    Temos também os problemas com os nossos idosos que vivem em lares. A falta de condições ideais, para não falar dos maus tratos, continuam a ser um tema aparentemente esquecido ou ignorado…

    Isso veio ao de cima com a pandemia e com a crise económica anterior. Aliás, mal tínhamos saído de uma crise grave, entrámos noutra agora com a história da guerra na Ucrânia. Parece que estamos todos nesta expectativa de que alguma coisa se há-de resolver, e nunca se resolve estruturalmente. Temos sempre governos a governar para as eleições mais próximas. E, portanto, dirigimo-nos mais ao público que sabemos que garante o voto, e às vezes os velhinhos já não estão para isso. Como eles e os sem-abrigos, que são os mais esquecidos. Quanto aos lares, acho que tem que haver um planeamento maior. Eu não sei se todas as pessoas que estão num lar têm necessidade de lá estar ou se é a altura de lá estarem. Existe uma cultura predominante de não valorizar o que já não é produtivo.

    Entretanto, o Estado comparticipa com uma verba se o utente for para um lar de uma IPSS, mas se a opção for um lar privado já não comparticipa. Não haverá neste caso um favorecimento e até um sentido perverso?

    Não vejo nessa perspectiva. O Estado não financia as instituições, são as pessoas através das instituições. E depois temos aqueles que fazem negócio com o mesmo tipo de actividade. Estamos a falar de coisas diferentes. Uma IPSS que tenha uma bomba de gasolina pode ter regalias em termos fiscais em relação a outro que não explora. Não há aqui uma concorrência. Esse debate tem de se fazer.

    person sitting beside white sack

    Existe uma percepção de que as IPSS sobrevivem desses privilégios, das oportunidades, e de que se chega ao final do ano com lucros – ainda que estes não devam existir…

    Não poder ter lucro é um sofisma. Se não tiver lucro, corre o risco de falir. É por isso que eu não gosto do termo “sem fins lucrativos”. Prefiro dizer “excedentes”, e saber o que se faz com eles. Enquanto numa entidade lucrativa, os lucros são para serem distribuídos por aqueles que investiram – e bem –, numa IPSS servem para mais solidariedade.

    No apoio à Ucrânia, cometemos muitos erros. Enviámos toneladas de arroz e de massa que nunca poderiam ser cozinhados, pois não havia gás nem meios para tal. Enviámos toneladas de roupa, gastámos fortunas em camiões que transportaram material que nunca chegaram a ter utilidade. A ajuda não teve a eficácia que todos desejariam. Será que este é um bom exemplo para percebermos que não estamos preparados para sermos solidários?

    Essa foi uma das batalhas que travei. Eram frequentes as críticas nas redes sociais quando eu alertava para essas questões. Somos um povo generoso, mas não somos solidários. A generosidade faz parte da solidariedade, mas a solidariedade obriga a uma série de compromissos que vão para além da generosidade. E depois, ainda por cima, somos um povo, pela sua própria cultura, com uma generosidade mais reactiva do que pró-activa. É uma generosidade que se desencadeia conforme o fluxo de informação que nos entra pela casa dentro. E ficamos com “pena” daquilo que está acontecer, e a forma que temos de aliviar essa pena que sentimos, que muitas vezes não quer dizer compaixão; quer dizer um certo desconforto. Deixamos de usar a razão e passamos a utilizar a emoção. E depois acontece de tudo. Está a dar-me o exemplo da Ucrânia, mas aqui em Portugal acontece muitas vezes. Eu já caí na experiência de organizar uns quantos contentores para países que estavam sob regimes islâmicos. O trabalho de selecção do que era dado, que às vezes davam coisas que não podiam ir, como camisas rotas, sem botões, chouriços enrolados em calças, sei lá, tanta coisa… Eu perguntava-me a mim mesmo se o dinheiro que gastei nisto, somando o tempo, se comprasse lá no destino, movimentava a Economia de lá, gerava dinamismo económico, não empobrecia o país e facilitava mais. As pessoas não percebem que ao dar um quilo de arroz num mercado, se derem esse dinheiro a uma instituição, ela pode ir directamente ao produtor comprar.

    O problema é a falta de confiança nas instituições…

    Pois, é uma falta de confiança que tem de ser mais diluída por uma comunicação social que se empenha muito em estar em cima do acontecimento. Interessa-se no momento em que está a acontecer a morte, o incêndio, o desastre; e depois já não se interessa por saber o que foi feito e as coisas que foram doadas. Nós, para África, numas cheias que fizeram uma devastação em Moçambique, não levámos para lá nada porque em Maputo podia comprar-se as coisas, pois só determinadas províncias foram afectadas.

    Isso leva-me a recordar a velha máxima oriental que defende que em vez de se entregar o peixe a quem tem fome, devíamos entregar uma cana e ensinar a pescar. Porque será que ninguém anda por aí a oferecer “canas” e a ensinar a “pescar”?

    Até o próprio Estado. O próprio Estado, na forma de protecção social, até relativamente às instituições, tem uma dimensão muito assistencialista. O Papa Francisco diz muitas vezes que o diabo tem dois nomes na sociedade moderna: poder e dinheiro. São duas coisas que perturbam qualquer possibilidade de se poder avançar por caminhos mais seguros, tem a ver com transparência. E quando a esse ditado, Alfredo Bruto da Costa dizia que era mal pronunciado, porque não era “em vez de”, era “cumulativamente”. Ou seja, “dá o peixe e a cana”. E depois até se começou a acrescentar o “ensina a pescar”, e, posteriormente, “assegura que haja peixe no mar”. Portanto, está a ver as quatro dimensões fundamentais. Primeiro, intervenção social; se a pessoa tem fome, não lhe vamos dizer para esperar até que lhe arranjemos um trabalho. Não lhe posso dizer, porque se demorar muito tempo a arranjar-lhe o trabalho, não terá forças para trabalhar. Se a pessoa tem fome, há que acudir. Se precisa de pagar a casa, pague-se a casa. É uma parte da intervenção social que não pode terminar aqui. E o problema é quando se fica por aqui.

    Exactamente…

    Dá-se, e até à próxima. Ou então depois faz-se outra coisa. Há uma metodologia no Serviço Social que eu acho muito interessante, mas com uma eficácia que vale o que vale: o encaminhamento, mandar-se a pessoa para outro. Quando se encaminha, enquanto a brasa arde na mão do outro, não arde na minha. Depois, temos a parte, efectivamente, do dar a cana, que é ir às causas dos problemas. E dar uma cana, de acordo com a capacidade que as pessoas têm de pegar na cana, porque se eu dou uma cana muito sofisticada, ela pode não saber utilizá-la e não lhe serve de nada. Por isso, há formas de inclusão social diferenciadas. E nem todas são pela via do trabalho remunerado, porque há pessoas que têm de reaprender hábitos de trabalho que perderam ou nunca tiveram. Portanto, é dar de comer, ir às causas e capacitar as pessoas. Hoje temos pobres com o décimo segundo ano, temos pobres com ensino superior, e até temos pobres que trabalham. Há gente que trabalha, e mesmo assim continua a precisar do peixe.

    Tem sido bastante assertivo e concreto, e não se tem poupado de apontar o dedo aos bispos, aos políticos… Essa posição é fruto de uma maturidade de vida, em que já não tem medo de dizer tudo o que pensa? Porque se fosse há uns anos, se calhar não tinha assumido os cargos que assumiu, porque uma pessoa que diz as coisas tal como pensa, na nossa sociedade geralmente não vai longe.

    Quem ouvir este nosso diálogo, vai dizer que eu vou sempre bater no mesmo, mas, por imperativo de consciência, tenho de o dizer. Até aos meus 20 anos, não gostava dos pobres. Porque vivi numa família modesta, que se sacrificou muito e abdicou de ter casa própria. O meu pai [em Setúbal] abdicou de ter um barco onde pudesse ser mestre, e foi sempre servidor de mestres. Pela mediação de uma professora, e nesta questão da pobreza também é preciso mediações, alertou a minha mãe, que era uma mulher sábia e inteligente, apesar de ter apenas a terceira classe. E disse que eu e o meu irmão não podíamos ir para o mar. E uniram-se esforços, de acordo com os apoios do regime de então, que eram altamente proteccionistas. E as coisas alteraram-se, os meus pais investiram na nossa formação académica, juntando os seus valores, como a honra, a honestidade, a verdade.

    woman walking near concrete house at daytime

    Um marco que ficou para a vida…

    Quando eu começava a ver as pessoas a reclamar coisas, tendo bens mas não tendo investido, a minha referência era sempre a mesma: façam como os meus pais fizeram. Eu tive a minha “estrada de Damasco”, em que me apareceu um homem que se chamava Manuel Martins [bispo de Setúbal, falecido em 2017], e fez-me perceber que até ao nível cristão eu não estava a equacionar bem este tipo de coisas. E colocou-me no caminho. Ele não me deu tudo, mas abriu-me caminhos. E quando me convidou para eu ir para a Cáritas, eu disse-lhe que não queria ir, porque não percebia nada disso. E o facto é que eu gostava mais de ser catequista, animar grupos de jovens…

    Um menino mais fechado na sacristia [risos].

    Eu era aquilo que gostava de fazer, e tinha 20 anos. Nessa altura, até equacionava outro projecto de vida, que depois com ajudas muito preciosas se veio a revelar que não era o caminho da minha própria vocação pessoal. E ele [Manuel Martins] deu-me esta resposta, que é uma resposta estranha. Quando eu lhe digo que não sei nada disso, ele diz “é por não saberes aquilo que és capaz”. E eu questionei-o. “Aquele que sabe fazer está sempre a fazer o mesmo? Aquele que não sabe, porque não sabe, faz coisas que julga que vão resultar, e às vezes resultam, e outras vezes não resultam. Quando resultar, óptimo, é bom para todos. Quando não resultar, tens-me a mim para te ajudar a esclarecer.” E foi daí que eu comecei e que se deu a coincidência, ou a “deocidência”, de haver uma crise grave em Setúbal, e tive de me obrigar logo a arregaçar as mangas. Tudo isto foi um caminho. Claro que a maturidade que se adquire é feita de avanços e retrocessos. Apesar de algumas desilusões e frustrações, eu dou por muito bem empregue o tempo que a Igreja me proporcionou.

    Actualmente, que funções ou trabalho é que está a desempenhar na área social?

    Eu fui co-fundador da Confederação Portuguesa de Voluntariado, à qual sempre pertenci. Eu nunca saí de lá para ir para a Cáritas, simplesmente a minha visibilidade pública aparecia mais pela Cáritas. Agora estou mais dedicado à Confederação Portuguesa de Voluntariado, que representa mais de 600 mil voluntários. É aí que se centra a minha actividade, mas também estou a dar apoio a umas irmãs auxiliadoras da caridade, que estão na minha diocese e que se vão dedicar a mulheres vítimas de violência doméstica. Pertenço ao Conselho Geral do Instituto Politécnico. No último semestre dei umas aulas no Patriarcado, que também é uma coisa que gosto muito e foi muito gratificante. Estou nas ordens honoríficas da Presidência da República, e portanto vou sendo chamado para fazer uma intervenção aqui e acolá. Trabalho não me falta.