Autor: Natália Constâncio

  • Uma bela aliança entre a escrita e a Natureza

    Uma bela aliança entre a escrita e a Natureza

    Título

    Beira(s) – Imagens do ambiente natural e humano na literatura de ficção

    Autoras

    ANA CRISTINA CARVALHO & CRISTINA DA COSTA VIEIRA

    Editora (Edição)

    Edições Colibri (Dezembro de 2023)

    Cotação

    20/20

    Recensão

    Beira(s) – Imagens do ambiente natural e humano na literatura de ficção é o segundo volume de uma coleção publicada em papel e online dirigida por Ana Cristina Carvalho, investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa. Dedicada à Literatura Portuguesa e à representação literária da paisagem e do Ambiente, esta obra é antecedida de Alentejo(s) – Imagens do ambiente natural e humano na literatura de ficção (2021), a que se seguirá brevemente o n.º 3, que terá como base de estudo a região do Minho, Douro e Trás-os- Montes.

    O livro em foco resulta de uma parceria entre a CICS.NOVA-FCSH e a UBI (Departamento de Letras), tendo sido organizado e editado por Ana Cristina Carvalho e Cristina Costa Vieira. As editoras reuniram 18 investigadores de 13 universidades e institutos politécnicos e vários centros de investigação e cultura, numa cooperação autoral e institucional consagrada às Beiras. No seu conjunto, os investigadores analisaram cerca de quatro dezenas de obras de ficção de 15 escritores da Literatura Portuguesa. E, muito embora estejamos perante um livro de abordagem académica (com um painel de revisão científica de uma dezena de investigadores nacionais e estrangeiros), demonstra aptidão para cativar um público amplo, interessado nas questões ambientais e literárias: apresenta uma imagem de capa magnífica da autoria de Nuno Santos e cada capítulo é anunciado por fotografias a preto e branco alusivas à geografia a que se refere.

    Antes de prosseguirmos com a análise da obra que nos propusemos, convém (re)lembrar ao leitor que a descrição de uma paisagem literária não traduz uma paisagem objetiva, captada pela retina ou pela lente de uma câmara fotográfica. Ainda que esta noção desconstrua ou abale a idealização do leitor, a verdade é que o autor de uma obra literária realiza uma construção verosímil do universo que (re)cria – um texto/produto que edifica um espaço geográfico empírico, e suscita aos leitores a ilusão de referencialidade. Não obstante, o mundo prefigurado num texto literário é sempre um constructo – mediatizado por palavras e apela (de forma direta ou indireta) à imaginação do leitor. Tomemos como base a problematização axial equacionada entre a noção de verba e res, divulgada por inúmeros teóricos, de que sobressaem Erich Auerbach (1972) ou Northrop Frye (1990). Se tivermos em conta a perspetiva semiótico-comunicacional, a realidade e a linguagem precedem o texto literário (sistema semiótico secundário) e os seus códigos, porque os universos literários são construídos e fundados na e pela linguagem. 

    Ao atentarmos nos preceitos defendidos e propugnados pelos geógrafos, de entre os quais aludimos ao artigo “Thinking Space”, de Neal Alexander, percebemos que a Literatura pode educar-nos/ensinar-nos sobre a relação estabelecida entre os humanos e o ambiente circundante (2015: 3-6). Tomemos como paradigma o dealbar do mundo moderno: os seres humanos afastaram-se da terra, relegando-a, num evidente alheamento ecológico, e enaltecendo, pelas vozes de um Whalt Whitman ou de um Álvaro de Campos, a preponderância da tecnologia e das máquinas. Para trás deixam Gaia, a deusa-mãe, personificação da Terra. Contrariamente, outras vozes, de entre as quais se destaca Miguel Torga, enquadram a sua poesia ou as suas narrativas num ambiente telúrico, num canto laudatório da terra. Se tomarmos como paradigma este enquadramento, os artigos insertos no volume em estudo procuram, acima de tudo, compreender de que forma a natureza e a paisagem das Beiras surgem representadas na Literatura Portuguesa, pelo olhar dos escritores, nos enunciados instituídos. Sim: importa realçar que as narrativas são edificadas por palavras e as paisagens que nelas figuram traduzem o labor artístico dos autores que pintam, demiurgicamente, quadros com paisagens de uma Geografia Literária enraizada no território nacional.

    No livro Estruturas Antropológicas do Imaginário (1989), Gilbert Durand destaca a importância da terra, enquanto berço, morada e sepultura dos humanos. A natural serenidade com que nos acolhe em vida iguala a simplicidade com que nos alberga na morte. Estudiosa da tradição popular portuguesa, na obra Falas da Terra, Natureza e Ambiente na Tradição Popular Portuguesa (2004) Ana Paula Guimarães cita, frequentemente, uma quadra alusiva a esta condição:

    “Eu sou devedor à terra/ A terra me está devendo / A terra me paga em vida/ Eu pago à terra em morrendo”. 

    Na coleção em foco, cruzam-se diversas áreas do saber, que envolvem a Arte Literária, as Ciências Naturais, as Ciências Sociais e o Turismo Literário. A indissociabilidade entre o meio biofísico e o universo populacional emerge, pari passu, das ficções trazidas à colação pelos respetivos investigadores, que entretecem a sua análise com as perspetivas literária, ecológica e ambiental patentes nos autores cujos textos ostentam. E, pela voz dos escritores – cuja visão os investigadores procuram dissecar – subtilmente pesponta a celebração de um elo de relações simbióticas, que unem terra-povo-língua, emoldurando-os numa geografia vivencial e afetiva que pretende veicular um prisma inserível na Ecocrítica, como base de partida para um estudo que proporciona um terreno interdisciplinar de princípio ecológico. 

    O volume inicia-se com dois excertos de extraordinária vivacidade pictórica, retirados da obra A Beira (num relâmpago), de Teixeira de Pascoaes, prosseguindo com a apresentação de excertos do romance Finisterra, de Carlos de Oliveira (1921-1981), que escolheu como material da sua obra a imagética paisagística da região da Gândara. Guilherme d’Oliveira Martins inaugura a sequência de capítulos evocando António Alçada Batista. No primeiro capítulo, Jorge Costa Lopes alude à influência da filosofia heideggeriana no romance Alegria Breve, de Vergílio Ferreira, mostrando a importância da terra e o facto de os humanos não estarem preparados para a profunda transformação do mundo causada pelos meios tecnológicos. O ensaísta debruça o olhar sobre três romances inscritos numa geografia romanesca que tem por referência as várias Beiras e destaca o diálogo “obsessivo” que entre Homem e espaço (montanha e aldeia) se evidencia: “Porque o “homem pode subir alto, mas as raízes não sobem. Estão na terra, para sempre, junto da infância e dos mortos” (1965: 39-40).” 

    Partindo dos conceitos de “Ecologia da Paisagem e Metafísica da Paisagem”, António Queirós demonstra de que forma o património paisagístico das Beiras irrompe nos grandes nomes da Literatura Portuguesa. Serões da Província (1870) e Os Fidalgos da Casa Mourisca (1871), de Júlio Dinis, são objeto de estudo por parte de Fernanda Vicente, cuja análise textual enfatiza, sobretudo, a paisagem enquanto objeto de contemplação e criadora de estados de alma. Henrique Almeida elabora um percurso aquiliniano que engloba A Via Sinuosa (1918) e contos e novelas de geografia sentimental, evidenciando “o sentido épico da terra”. 

    No capítulo 5, Ana Cristina Carvalho reflete sobre A Lã e a Neve, de Ferreira de Castro, sublinhando que a obra “abre com um Pórtico – uma lídima lição de história natural e humana, num estilo claro e poético, sobre a serra da Estrela” – e que a estrutura “bifocal do romance ‒ nas tensões do universo rural e nas difíceis relações sociolaborais operárias ‒ pode aproximá-lo do neorrealismo no sentido em que a aspiração de fuga à miséria das condições de vida por parte do protagonista vem a unir-se a uma aspiração coletiva, após ele ganhar consciência da classe operária a que pertence.” (2023: 124). Para além da condição climocrítica, a autora do ensaio procura destacar as condições sub-humanas a que estavam sujeitos os pastores da Nave e os operários da Covilhã, num tempo de iliteracia e miséria que os hostiliza.

    Indo ao encontro da clássica e vetusta tradição que remonta a Esopo ou ao poeta latino Virgílio, Maria de Lurdes Barata realiza uma abordagem literária da obra de Miguel Torga bifurcada na representação contrastiva aldeia/campo e cidade. A alusão ao Mondego – rio de enfoque literário que evoca a pena camoniana – permeia o acervo de títulos da ficção literária portuguesa. Anabela Sardo e Ana Albuquerque expõem a relação literária de Manuel Alegre com “a paisagem da modernidade” e a paisagem humana do “lugar-origem”, ao debruçarem-se sobre o conceito de imagotipo de Águeda e o seu rio, fonte de sustento no Portugal salazarista dos anos 40 do século passado. A Coimbra do Bairro do Olival e dos “quintais floridos” e do Mondego agonizando sob “a blasfémia do calor de Agosto”, estão no centro da cartografia física e social desenhada por António Apolinário Lourenço, tendo como base Trabalhos e Paixões de Benito Prada (1993), romance de Fernando Assis Pacheco. Maria Mota Almeida e Teresa Branquinho focam a sua atenção nos escritores Tomás e Branquinho da Fonseca, remetendo para a paisagem do Caramulo, tendo como base analítica ficções que refletem o rigor do clima serrano. 

    Margarida Alpalhão demonstra como o saudoso professor de Literatura Helder Godinho estava certo na sua abordagem analítica, ao descortinar na aldeia e na cidade elementos fulcrais da “constelação imagética” de Vergílio Ferreira. O olhar atento de Maria Ilhéu contempla o rio, a principal nervura e expressão primordial das “paisagens aquáticas” das narrativas castrianas. Glória Bastos incide a sua atenção sobre a figuração do espaço geográfico das Beiras em três títulos da série ficcional juvenil Uma Aventura, estabelecendo uma ponte entre as obras e o turismo literário, e concluindo existir na série “um propósito de divulgação das topografias” que servem de cenário a cada livro. O volume encerra pela mão do geógrafo Rui Jacinto, num itinerário que propõe uma rota dedicada à(s) Beira(s).

    Como pudemos constatar, a onomástica citada é impressionante. Na obra Univers de la Fiction 1988: 167), Thomas Pavel chama a atenção para o facto de a ficção remeter para a criação de mundos – imaginários – que têm por base o universo real, que tomam de empréstimo. O trabalho desenvolvido por estes críticos – filiados em áreas científicas que englobam a Geografia e as Ciências do Ambiente, as Humanidades e, em particular os Estudos Literários – coloca-nos ante uma visão paisagística e geográfica emoldurada a partir da escrita literária que vai da Mata da Margaraça aos esteiros da laguna de Aveiro, a feérica cidade portuguesa flutuável. 

    Estamos perante uma coleção inédita que enriquece o panorama editorial português nos campos da divulgação ambiental da interdisciplinaridade, e única a nível europeu, sendo que os seus estudos e reflexões valorizam as imagens literárias da paisagem humanizada e da interdependência histórica entre o ser humano e os recursos naturais, incluindo o Clima. E vão ao encontro dos estudos preconizados no âmbito do projeto Atlas da Paisagens Literárias de Portugal Continental, atualmente coordenado por Natália Constâncio (IELT-NOVA-FCSH) e Daniel Alves (IHC-NOVA-FCSH).

  • Um desassossegado mundo de escuridão e de amor

    Um desassossegado mundo de escuridão e de amor

    Título

    O último minuto na vida de Saramago

    Autor

    Miguel Real

    Editora (Edição)

    Companhia das Letras (Junho de 2023)

    Cotação

    20/20

    Recensão

    Quem somos? O que somos? Que sorte nos reserva o Destino? Para onde vamos, no fim, quando a noite cai sobre nós, e as folhas, amarelas e esmaecidas, se desprendem das árvores e atapetam o chão, anunciando-nos um percurso desconhecido?

    A epígrafe com que abre o romance – “O último instante da vida é o que revela o sentido e a razão de toda a existência.” (1993: 34) –, retirada da obra In Nomine Dei, remete, explicitamente, para o tema da morte. A morte que a todos ceifa, independentemente da vontade, das riquezas que havemos, ou da influência social que possuímos. 

    Muitas culturas veiculam a importância da passagem da alma para o outro lado. Segundo a tradição clássica pagã grega, as almas eram transportadas num barco que atravessava os rios Estige e Aqueronte, no reino de Hades, deus dos Infernos. Irmão do Sono (Hipnos) e da Morte (Thanatos), o velho timoneiro tinha por nome Caronte. Entre nós, enquanto tradição judaico-cristã, Gil Vicente mescla as crenças suprarreferidas, expondo, alegoricamente, o momento em que as personagens em cena acabam de expirar. No cais, as barcas do Anjo e do Diabo aguardam as almas recentemente falecidas para as conduzirem ao Além, de acordo com o seu comportamento e as atitudes reveladas enquanto seres viventes. Inúmeras outras crenças aludem a um julgamento pós-morte, em que as almas são obrigadas a confrontar-se com os seus erros ou com as suas boas ações. Entre os egípcios, Anúbis e Hórus tinham por incumbência levá-las para a Sala da Dupla Justiça, onde o supremo Osíris, Máat (deusa da verdade e da justiça) e quarenta e dois juízes julgavam as ações dos recém-falecidos (LAMAS 1972-73). 

    Paul Ricœur (t.II, 1984 : 145) chama a atenção para o romance hodierno, cuja voz narrativa tende a converter-se numa pluralidade de centros de consciência irredutíveis a um denominador comum. Numa oscilação contínua entre o delírio e a realidade, o romance de Miguel Real subverte, parodicamente, a circunstância de revisão íntima da existência. A personagem José Saramago visualiza, num fio de consciência ininterrupto, o ecrã que projeta a sua vida, o seu passado, mas numa idealização ante-mortem, i.e., revê a sua existência como se de uma projeção se tratasse, num dialogismo com a vida – a real (ainda que ficcionada) e a ficcionada (agora tornada real). 

    Na esteira da narração de um ser que, ante a iminência do fim, para apaziguar a alma das dores corpóreas da enfermidade que o mina, redige as lembranças que abarcam a sua duração existencial, como sucede em Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, o narrador deste romance memorialístico apresenta, in ultimas res, uma ótica especial – a sua. O discurso enunciativo – autodiegético – vai, assim, expondo e revelando ao leitor uma análise dicotómica das experiências vivenciadas: as que habitam o seu universo interior e as que têm ancoragem real e pulula(ra)m o (seu) universo exterior.

    O livro em foco expõe, como dissemos, o momento que antecede a morte. Uma morte concreta e particular. Não nos deparamos, todavia, com uma perspetiva irónica e humorística, como a veiculada em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Nem com visões místicas, excecionais, sem suporte real, como as recriadas nas telas de Hieronymus Bosch, Marc Chagall ou Paul Gauguin. Ao invés. Deparamos com (um)a recriação de um universo íntimo, que nos faz seguir o caminho dos sonhos – por mais empedernidos se mostrem –, aquele que nos acompanha do nascimento à morte, e revisita oitenta e sete anos de uma vida comprometida com a escrita literária e a denúncia da injustiça social.

    Logo na segunda página do livro, os pensamentos do protagonista demonstram a negrura que tinge os apressados segundos que antecedem a sua partida do mundo terreno. Na esteira de antigos filósofos, como Lucrécio, para um ser ateísta e descrente, o fim surge envolto num niilismo irredutível. Mais trágico que o apresentado na Bíblia, o livro dos livros, que anuncia a morte, a moldura do nada – o pó a que retornamos. Porque os humanos são seres-para-a-morte, como sublinha o filósofo Martin Heiddeger : “a morte é isto, um túnel de forro preto que envolve o meu corpo, acolchoando-o” (2023: 14), lemos no enunciado que descortina o pensamento de Saramago.

    Perante o relativismo aristotélico que albergava a noção de verosímil como categoria estética e convencional, o lugar da literatura revela-se, na contemporaneidade, como um hipotético discurso de “verdade” ou de “realidade autenticamente real” (YVANCOS 1993: 65) . Obra caleidoscópica, o romance em foco apresenta em revista a vida de Saramago, em que, sob a pena de Miguel Real, o escritor galardoado com o Prémio Nobel da literatura reflete (sobre) o seu último minuto de vida – a vida (re)criada que se contempla ao espelho da vida real. O autor deste romance-memória obriga-nos a saltitar pelas recordações e a invadir o(s) pensamento(s) da personagem: José Saramago criança – serralheiro – empregado de escritório – editor – tradutor – jornalista – militante do PCP – escritor. E homem apaixonado.

    Está dado o mote para a construção de uma diegese que denota uma investigação aturada, minuciosa, repleta de elementos que mesclam vida e arte – a vida de José Saramago e a arte de Miguel Real refletindo e igualando a de Saramago. De facto, o autor deste romance entretece com palavras a riqueza das pequenas memórias – afinal, tão incomensuráveis – albergadas no coração de Saramago. Numa focalização interna, o discurso evidencia o pensamento, os sonhos e o engenho do escritor agonizante. A trama narrativa, entrelaçada num dialogismo inextrincável, sustenta a relação diádica José Saramago-Miguel Real, num jogo de escrita que patenteia a arte literária do autor em destaque e a de Miguel Real, que imita – numa extraordinária perfeição – a poética saramaguiana. Não obstante a mestria literária evidenciada na e pela criatividade da pena de Miguel Real, e em termos estilístico-formais, o livro impressiona, ainda, pela diversidade de temáticas: as memórias infantis de uma vida pobre e esforçada em Azinhaga, no Ribatejo. As questões ideológicas e políticas vivenciadas por Saramago. As ideias por que lutava. As recordações felizes associadas a Lanzarote. 

    Um dos elementos fulcrais na construção da narrativa diegética remete para o vínculo que une José Saramago e Pilar del Río, a esposa dedicada do autor moribundo, cujo nome próprio evoca o seu grande pilar, num percurso afetivo calcorreado por ambos: “os lábios da Pilar tocam os meus, a minha consciência reorganiza-se, ordena-se e emerge a ideia, aquela ideia nova sustentáculo dos meus romances” (2023: 155). É, indiscutivelmente, um percurso de sólido companheirismo. Um percurso alicerçado no e pelo amor. Ciente dessa proximidade, e sensível a essa teia de amor edificada ao longo dos anos, o autor do romance amalgama criador e criatura(s), num claro jogo intertextual: a afeição de Blimunda Sete-Luas e Baltasar Sete-Sóis traduz(-se), afinal, (n)a inabalável relação amorosa de José Saramago e Pilar del Río. A simbiose que o romancista Miguel Real edifica e constrói entre Blimunda e Pilar encontra-se magistralmente concebida. Trata-se, pois, de um encontro mais-que-feliz: “sinto a fragrância do perfume da Pilar” (2023: 14); “esboço o último sorriso da minha vida, desejo tranquilizá-la, à Pilar, ela percebe, afaga-me o rosto com mão de Blimunda-Madalena-Mulher do Médico” (2023: 154). 

    Tudo isto surge configurado no livro de Miguel Real que agora vem a lume. Porque o último minuto de vida de cada ser, o seu estado de alma, influencia a passagem para o Além, Pilar deseja que o esposo-romancista-lutador morra como viveu: desassossegado, protestando contra “um mundo de escuridão” (2023: 157). O tempo que, impiedosamente, urge na vida de Saramago – o último minuto –, afagado pelo amor de Pilar del Río, determina a sua partida, e parece-nos ecoar, numa convocação tímida e em surdina, as longínquas palavras de sua avó. Não obstante as agruras dos dias e do trabalho árduo – o mundo de escuridão que a memória do neto evoca –, a velhinha ribatejana enaltecia a existência com a ingenuidade dos simples que veem aproximar-se a hora da caminhada em direção ao éter florido: “O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer” (in Pequenas Memórias, 2006: 120). 

    Talvez por influência sua, ou devido à arte demiúrgica de Miguel Real, no preciso momento em que a alma – ou a vontade –, se desprendeu do corpo de Saramago-Sete-Sóis, não se evolou para o céu, nem subiu para as estrelas, porque à terra pertencia, e a Pilar-Sete-Luas

  • Uma viagem pela ficção

    Uma viagem pela ficção

    Título

    Do que não existe: Repensando o cânone literário

    Autora

    ANNABELA RITA

    Editora (Edição)

    Manufactura (Julho de 2018)

    Cotação

    20/20

    Recensão

    Do que não existe é o segundo livro de uma trilogia dedicada ao Cânone Literário no diálogo das Artes (Luz e Sombras no Cânone Literário, 2014; Do que não existe. Repensando o Cânone Literário, 2018; Perfis & Molduras no Cânone Literário, 2018) que Annabela Rita fundamenta também em duas obras atentas à sua emergência cultural e às relações entre o imaginário português e o europeu em que se inscreve (Sfumato. Figurações in hoc signo. Na senda da identidade nacional, 2019; Sfumato & Cânone. Na senda da identidade nacional, 2021).

    Para Aristóteles, a matriz da poesia consiste na imitação do real, e ao poeta atribui a função de contar o que é possível, de acordo com o princípio da verossimilhança. No Século das Luzes, Alexander von Humboldt (1799) atestava, categoricamente, o papel da poesia enquanto arte realizada pela linguagem. Na Antiguidade romana, ao aludir ao universo da poesia, Horácio frisava a sua inter-relação com a pintura – ut pictura poesis. Muitos teóricos literários contemporâneos, como Paul Ricœur (t.II. 1984) ou Linda Hutcheon (1991), sublinham o facto de a literatura coeva exibir – subtil ou ostensivamente – indícios da própria génese, apontando para a materialidade do discurso em imagens autorreflexivas e pondo em causa a ontologia do universo (re)criado.

    Como numa dança infinita, Do que não existe exibe uma performance das vivências ancestrais da Humanidade. A Professora Universitária discorre sobre a literatura e a sua imbricação nas artes, em geral. Assenta na universalidade e na gramática sistémica, que tem a faculdade de (re)criar e evidenciar uma forma de ser no mundo, palavras que tomo de empréstimo a Heidegger. Ora, se o verbo é palavra de ação, como o classifica Aristóteles, o Verbo de Annabela Rita é sinónimo de reflexão, pensamento e crítica. De uma ação que se traduz numa longa caminhada em torno e em prol das artes.

    Na esteira de críticos como Laurent Jenny (1979) ou Umberto Eco (1991), defensores da teoria de que os textos sempre convocam outros textos, assumindo relações dialógicas entre si, a autora relembra que os textos literários extrapolam para fora de si, realizando interações com outros sistemas semióticos, que não apenas as relações dialógicas no âmbito literário. A “revolução” da perspetiva de abordagem do Cânone literário assinalada por Miguel Real e por Isabel Ponce de Leão no paratexto de dois dos seus textos, tem sido, aliás, destacada desde o início da trilogia por Fernando Cristóvão (2014) e Daniela Marcheschi (2014). Também no Prefácio à obra em análise, o filósofo Miguel Real sanciona que a análise se centra especialmente no universo ocidental, o português e o lusófono, e que o itinerário desta obra se processa deliberadamente para fora do texto.

    Neste livro, a ensaísta traz à colação a simbologia subjacente ao pensamento e à efabulação artísticos – livros, pinturas, música, monumentos… – apontando para uma reflexão que tem como base o cânone estético e cultural do Ocidente (cf. Bloom 1997; Rita 2014) e, em particular, da portugalidade. Annabela Rita verte o olhar sobre as cantigas de Dom Dinis, rei-sábio-poeta, plantador de árvores e de sonhos. E, como na contemplação de um quadro, debruça-se sobre a janela que enclausura Joaninha, a bela adormecida de olhos verdes imortalizada por Almeida Garrett. Analisando obras e autores clássicos ou coevos, põe, também, em destaque olhares e visões quase fantasmagóricos: o da feiticeira Circe, espreitando por detrás dos versos de Natália Correia, o de Ulisses, na obra de Teolinda Gersão, o do desalento omnipresente na obra de Gonçalo M. Tavares.

    Num outro prisma, focaliza-se a dicotomia pictórica: a desenhada pelas palavras e a instaurada pela tinta. À semelhança do que retrata uma pintura ou uma fotografia, no poema “De Tarde”, Cesário Verde apela ao sentido da visão, exibindo a alegoria da relação amorosa. Opõem-se lhe visões místicas recriadas por autores como Jerónimo Bosch e Marc Chagall, ou visões oníricas, como as ostentadas na pintura de El Greco. Fernando Pessoa, António Cândido Franco ou Agustina Bessa-Luís são alguns dos autores cujas obras a ensaísta se propõe analisar, sob a perspetiva caleidoscópica inter-artes.

    Segundo a autora, os Painéis de S. Vicente (1470-1480), pintados sob a égide da cultura ocidental cristã, sancionam o modelo parenético do reino. O mesmo sucede com a edificação de complexos arquitetónicos que contribuem para a mitificação de uma geografia sagrada ou messiânica. De entre os exemplos apresentados na obra, citam-se o Convento de Tomar ou a escadaria do Bom Jesus de Braga, elos que se unem misticamente numa peregrinação que culmina em Santiago de Compostela.

    O Monumento de Mafra erigiu-se a sete léguas da capital do V Império: Lisboa. No imaginário sustentado por Camões, a cidade é celebrada como Nova Roma; António Vieira denomina-a Cidade Eterna, tomando de empréstimo o epíteto a Vergílio, que assim cognominava Roma. Na senda da antiga e mítica portugalidade, Lisboa edificou-se numa área de sete colinas, à semelhança de Jerusalém ou de Constantinopla, referências arquetípicas e simbólicas para os mundos Judaico, Muçulmano e Cristão. Mitologicamente fundada por Ulisses e osculada pelo Tagus, o rio que alardeava areias de ouro, facto anotado por Ovídio e Cervantes, Lisboa é, também, objeto de análise neste livro. O percurso de Belém ao Cais das Colunas evoca uma dupla cartografia: a do império real e a do império mítico que anseia pela chegada triunfal de Dom Sebastião.

    Muito haveria a enunciar sobre esta obra, que diria enciclopédica. Mas apenas a leitura pode preencher as lacunas deste puzzle que me propus completar. Balzac definiu a Constantia como a virtude da permanência. Emoldurando as artes, de que a literatura é exemplo, Annabela Rita define, de forma douta e refinada, o cânone literário Do que não existe, construindo uma tela que obriga a uma reflexão dialógica entre a imaginação da ficção literária e das artes, em geral.