Autor: Mendo Castro Henriques

  • A solução final

    A solução final


    O dia-a-dia do marechal começava pelas seis horas. Nessa madrugada, enquanto o sol procurava o seu lugar no céu, Rommel redigiu o postal que todos os dias enviava a Lúcia.

    Querida Lu,
    Ao contrário do que se poderia esperar, faz frio em Jerusalém. As noites têm muitas estrelas e dá vontade de conversar com elas. Espero que o Manfred esteja bem. Em breve deverá ser chamado para a Juventude Hitleriana. Ele que se ofereça antes como voluntário para a Luftwaffe.
    Teu,
    Erwin

    Escrevera a carta logo de manhã para melhor enfrentar um assunto que o deixava contrafeito. Da Alemanha chegavam relatórios segundo os quais, e tendo em conta as mentiras oficiais, se davam conta da enormidade de atos bárbaros perpetrados contra os judeus. Se era assim em relatórios oficiais, como seria na realidade? Mais do que uma vez Rommel se indignara na Wehrmacht contra o tratamento infligido a judeus; como comandante, sempre se recusara a realizar deportações. Mas agora chegavam-lhe ordens de Berlim, diretamente de Hitler, para se preparar para executar a diretiva Solução Final, ali mesmo, na Palestina. “Fuehrer’s Befehl”, uma Ordem do Chefe, ali naquela terra de ordens e mandamentos divinos.

    Erwin Rommel (primeiro à direita) inspecciona um posto de observação de artilharia na costa da Líbia.

    Na reunião de Estado-Maior das oito da manhã, apenas estavam os principais chefes. Gause apresentou a situação do dia e as informações sobre a comunidade muçulmana. Na cidade, não queriam confrontações que redundariam num banho de sangue. Mas no campo, queriam vingar-se dos assaltos vindos dos Kibbutzim. “… E vice-versa, não?”, acrescentou Rommel. “… Naturalmente, Herr Feldmarschall. O Palmach está mais ativo do que nunca e já identificámos várias das suas células em Jerusalém.” “… Tudo isso é muito bonito, mas agora escutem a ordem que veio de Berlim… Westphal: proceda, por favor!”. O Coronel Westphal extraiu um telegrama de um envelope já aberto e começou a ler: “… Operação Solução Final. É minha vontade que o Exército de Panzer de Afrika, antes de iniciar a próxima ofensiva, diligencie a prisão e imediata execução dos cabecilhas judaicos dos movimentos de resistência e prepare a comunidade judaica da região para futuras deportações. Wolfschanze, 5 de Agosto de 1942“. Fuehrer’s Befehl. Ordem de Hitler. O telegrama foi deposto em cima da mesa, como se fosse contagioso.

    Um silêncio pesado percorreu a sala. Aquelas cabeças de Estado-Maior, habituadas a pensar em planos, distâncias e métricas, a fazer cálculos e repartir forças, digeriam duas operações de rajada: matar dirigentes judaicos e marchar para o Cáucaso. Assim, sem mais nem menos. Rommel entendia bem esse estado de espírito. Passara pelo mesmo quando o telegrama lhe chegara às mãos, pelas sete da manhã, decerto proveniente de uma das insónias de Hitler. Sabia estar numa encruzilhada; qualquer escolha que fizesse, não iria correr bem. Tinha de sentir como pulsavam aquelas mentes endurecidas por anos de guerra.

    “Mais atrocidades?”, perguntou o general Buelowius no salão do Estado-Maior.
    “… Mais atrocidades, Buelowius? Quer saber o que são atrocidades…?”, replicou Rommel. “Gause, queira informar o Estado-Maior do que falámos esta manhã.” O general Gause ergueu-se e falou vagarosamente. “Várias organizações do Reich, militares e civis, usam os judeus em estações experimentais para a produção de gás, usam corpos para a extração de gorduras e os ossos para a fertilização dos campos, e transportam milhares de judeus de um lugar a outro em caminhões de gado e em comboios especiais.” Gause continuou, após uma pausa para beber água. “… Desde a invasão da Polónia, a Wehrmacht criou um império na Europa Oriental. As nossas forças aprisionaram um grande número de judeus. No início, foram conduzidos para guetos e usados em trabalho escravo; em muitos casos foram assassinados. E, entretanto, os dirigentes planearam a ‘Solução Final’.”

    “… Qual solução final?”, perguntou Bayerlein. “… É óbvio para todos que Hitler está determinado a levar a cabo o extermínio físico de todos os judeus na Europa, como afirmou repetidamente nos seus discursos”, disse Gause. “Mas o marechal dar-vos-á mais pormenores.”

    Rommel, que colocara ambas as mãos sobre a face, retirou-as lentamente e cruzou-as em cima da mesa.
    “Senhores oficiais, há já muito tempo fui visitado por um meu amigo, Goerdeler, burgomestre de Estugarda; começou quando regressei da vitoriosa campanha de França.” Os presentes entreolharam-se um pouco receosos do que iria dali sair. “Desde 1934 que Goerdeler instou, em memorandos, que Hitler deveria alterar a sua ‘política judaica’, por questões de justiça e de interesse nacional. Argumentava que a Alemanha poderia desfrutar de boas relações com a Grã-Bretanha, França e Estados Unidos se alterasse as políticas relativas à ‘Questão Judaica’. Em 1941, propôs que a Liga das Nações criasse um estado judaico com a cidadania para todos os judeus, nomeadamente a maioria dos judeus alemães.”

    E Rommel continuou: “… Saberão – e se não sabem, ficam a saber – que teve lugar a 20 de Janeiro de 1942, no palacete de Wannsee, junto ao lago, a sudoeste de Berlim, e presidida por Heydrich, uma conferência à porta fechada, sobre o que eles chamam ‘a solução final da questão judaica’, a expulsão dos judeus de todas as esferas da vida do povo alemão, Endlösung der Judenfrage. O braço direito de Heydrich, Adolf Eichmann, foi encarregado de redigir a minuta da reunião.”

    Bayerlein, agitado desde o início da reunião, obtemperou: “… Nós somos militares e não creio que tenhamos de nos imiscuir em questões políticas. Temos, desde há muito, uma questão judaica, e muitos são os antissemitas…”“… Bayerlein, não me venha com militarismos a mim. Isto é uma questão de humanidade.” Ninguém poderia, de facto, dar lições a Erwin Rommel de como ser militar, ele que era um puro-sangue dessa raça. Na invasão de França, comandara a 7ª Divisão Panzer, a “Divisão fantasma”, à frente de todas as outras, a tal ponto que nem o Estado-Maior sabia onde se encontrava; capturara mais de 50.000 prisioneiros franceses e britânicos, centenas de carros de combate e milhares de veículos. Essa campanha vitoriosa valera-lhe a Cruz de Ferro de Cavaleiro, laureada com espadas, folhas de carvalho e diamantes, a mais elevada condecoração de guerra. Para Rommel, que já fora condecorado com a medalha Pour le Mérite, na 1ª Grande Guerra, isso pouco acrescentara. E como tudo isso estava longe, agora que se tratava da vida e morte de milhões de pessoas.

    “… Eu jamais cumpriria esta ordem de Hitler sem destruir o frágil equilíbrio de forças aqui em Jerusalém e na Palestina… Mas não quero tomar qualquer decisão antes de vos ouvir sobre a segunda ordem de Hitler. Prossiga, Gause: “… O caminho mais direto seria através da Turquia; mas isso está fora de questão. É um país neutro. O segundo caminho exequível leva-nos a atravessar quatro nações: Jordânia, Síria, Iraque, Irão, até chegar ao Cáucaso, às fronteiras da União Soviética, no Azerbeijão.”

    Unidade Judaico-Polonesa em Jerusalém,

    Rommel tomou a palavra:“Creio que todos adivinham que Hitler não nos quer parados do lado de cá do Cáucaso. Os primeiros 3.000 quilómetros seriam metade do nosso caminho. Certamente, teremos de atravessar a cordilheira, a uns 2.000 metros de altitude. E, finalmente, mais 3.000 quilómetros ao longo do Mar Cáspio até chegarmos ao Volga e talvez até Estalinegrado, que é o objetivo da campanha de verão das nossas forças na Rússia… É uma missão impossível com as forças que temos.” “E não teremos reforços?”, inquiriu Bayerlein.

    “… Aqui? Se nem existem reforços para as planícies russas, vamos esperar que cheguem aqui? “… Meus senhores”, rematou Rommel, “A minha primeira decisão está tomada. Não exterminarei cabecilhas judaicos. Da vossa parte, fiquem a pensar na ordem de Hitler de partir em direção ao Cáucaso, sobre a qual ainda faltam pormenores.”

    [CONTINUA]

  • Sh’ma Israel

    Sh’ma Israel


    Num palco apertado, com uma cortina vermelha janota a servir de fundo, uma jovem rapariga de cabelos castanhos, anelados e frisados, entoava com requebros uma canção que os presentes pareciam conhecer perfeitamente: “Sh’ma Israel elohay ahshav ani levad”. Chegado o momento certo, os convivas elevavam e faziam tilintar as canecas, os copos ou as taças que empunhavam, e escutavam enquanto entoavam o refrão solicitado por Raquel – assim se chamava a cantora: “Escuta, Israel/Quando o coração chora, a alma grita!”

    Para os que ali vinham pela primeira vez, a canção estranhava-se, mas logo se entranhava. A melodia insinuava-se, e toda a sua melancolia ajudava os circunstantes a esperar por dias melhores: “…Escuta, Israel, meu Deus, tu és o todo-poderoso/ Tu me deste a vida, tu me deste tudo/ Em meus olhos uma lágrima, o coração chora em silêncio/ E, quando o coração se cala, a alma grita.” Eram apenas palavras, mas todos viviam o refrão, aconchegando-se do frio que se fazia sentir, aproximando-se uns dos outros, no bar Mitzvah, no coração da cidade velha.

    Numa mesa encostada a um dos recantos escuros do Mitzvah, trocava impressões um pequeno grupo mais recolhido, após se escutar o Sh’ma Israel. Foi para lá que Raquel se dirigiu após recolher uma salva de palmas e colocar as mãos em gesto de agradecimento.

    Via Juliana e a torre do YMCA (Young Man’s Christian Association) em Jerusalém. Anos 40

    “… Raquel, vem, vem depressa!”, exclamou Ester. “… Há bolos de mel.” “… E o chá de menta está a ferver.” “Não me fales nisso, que me fazes lembrar como este inverno nevou em Jerusalém.” “… Ainda estou a ver os nossos rapazes a divertir-se, atirando bolas de neve uns aos outros.” “… É verdade. Foi em fevereiro. Os tetos ficaram de uma brancura nunca vista.” “… Os mais velhos dizem que não nevava desde 1921.” “… Em 21 ainda estávamos a nascer.” “… Olha, o frio deve ter ajudado muito”, disse um dos amigos, que usava uma pala negra sobre o olho esquerdo.

    O grupo era formado por membros das organizações clandestinas nascidas para defender os colonatos judeus contra os ataques árabes. Estavam ali companheiros como Moshe Dayan e Yigal Allon. Tinham aprendido a táctica das guerrilhas com o capitão britânico Charles Orde Wingate, que organizara os Esquadrões Noturnos Especiais para combater os árabes. Durante os motins de 1936-1939, serviram no Vale do Jezreel e na Galileia e, depois, colaboraram na libertação do Líbano e da Síria das garras de Vichy. Dayan entrara para a Haganah aos 14 anos de idade e perdera o olho esquerdo em combates no Líbano. Quando os britânicos proibiram a Haganah, em 1939, ficou preso e encarcerado por dois anos. Allon, no retorno à Palestina, ajudou a fundar o Palmach.

    Ester pegou no prato com azeitonas que estava sobre a mesa e, enquanto as distribuía a cada um dos presentes, disse em tom mais baixo:
    “… Um dos nossos foi aprisionado por patrulhas alemãs em Tiberíades e levado para o YMCA. Sabemos que é um sargento do 8.º Exército britânico, de seu nome Hans Jonas. Ora aí está alguém que jamais fará má figura, se for torturado pelos alemães.”
    “… Estes alemães não torturam; o Afrika Korps não é a SS”, obtemperou Ester.

    Raquel mudou o rumo da conversa:
    “… Não me falem só de guerras. Olhem, o que eu queria agora era que me oferecessem um par de sapatos vermelhos, que os meus estão velhos. Não gostavas também de ter um par, Ester?”
    “Eu preferia os azuis-escuros expostos na montra da Jevod…”, respondeu esta.

    Moshe Dayan (à esquerda) aos 20 anos.

    Estavam nisto quando frei Werner entrou no Mitzvah. Ali vinha amiúde e imediatamente se dirigiu ao encontro da tertúlia. Nada mais o identificava como sacerdote senão uma minúscula cruz de lata, usada no casaco como flor na lapela.
    “… Werner!”, disseram alegremente as raparigas.
    “… Finalmente alguém que não pensa apenas em granadas e metralhadoras”, acrescentou Raquel.

    O franciscano esboçou um sorriso cúmplice e serviu-se de uma taça de chá quente, na qual molhou delicadamente o bolo de mel.
    “… Esta manhã, o marechal Rommel visitou a minha basílica.”

    Os olhos de todos, exceto os de Ester, abriram-se mais:
    “… A sério? Antes deslocou-se ao muro e depois à montanha. Anda a ver o que valem as nossas religiões.”
    “A nossa vale pouco mais do que o poder no cano das espingardas”, disse Ester.
    “… E quem fala pelos muçulmanos?”, perguntou Raquel.
    “… Falas tu, já que lembraste deles e gostas de ser boazinha.”

    Raquel assentou uma canelada por debaixo da mesa a Moshe e acrescentou:
    “… Estejam mas é calados. Quero ouvir o que Werner nos tem a dizer sobre esse marechal.”

    Frei Werner continuou. “… Primeiro, foi uma surpresa que ele nos visitasse a nós, em vez do Sepulcro. E eu apenas lhe disse o que vos repito todos os dias: é preciso que alguém venha fazer a paz. Agora ando a ler muito um alemão que diz a mesma coisa. Chama-se Hans Jonas.
    “… Quem? Como se chama?”, exclamou Ester. “… Jonas.” “… Não é possível. Ontem um alemão com esse nome deu entrada na prisão.” “… Com o mesmo nome?” “… Sim.” “… Com uns 40 anos de idade?” “… Sim.” “… Ruivo, com óculos?” “… Sim…” Dayan, que estivera muito calado até então, sussurrou. “Não sabia que o sujeito escrevia livros. Esquisito.”

    Enquanto todos se admiravam daquela coincidência, o franciscano extraía um cachimbo do bolso interior do seu casaco e, com ele, batia na mesinha para retirar os restos de tabaco queimado, acabando por dizer no tom mais natural do mundo: “… Há uma coisa que se pode fazer.” “Então, Werner,” disse Raquel, enquanto lhe pisava levemente o pé por debaixo da mesa. “Queres convertê-lo à tua fé?” … Nada incomodado pela pressão, Werner olhou para dentro do cachimbo, como quem procura um objeto perdido lá dentro, e continuou sem levantar os olhos: “… Ester, podes tentar que Rommel escute um recado?” Ester nada dizia. “… Fazes isso, Ester? Fazes isso por mim?” “… Qual recado, Werner?” À sua volta todos se entreolharam, exceto Ester, sempre muito séria. “… Deveriam pedir a Jonas que ele levasse o mesmo apelo que eu lhe fiz”, exclamou Werner fitando todos, e um a um.

    Todos engoliram em seco, à exceção de Yigal, que, pegando na caneca pousada na mesa, emborcou um trago para depois dizer: “… Rommel não é nazi, e também não é parvo.”

    Jovem cantora judia . Anos 40

    Quase saía fumo da cabeça daqueles jovens que depois se lançaram a trocar impressões sobre se valia a pena convencer o marechal a receber um prisioneiro judeu, alemão mas britânico. Era preciso um motivo à vista. Comunicar informações? Não era crível! Que queria mudar de campo? Seria um golpe baixo e correria mal. Atribuir-lhe a revelação de um plano? No fim foi Raquel quem teve a ideia mais simples, enquanto ajeitava os caracóis. “… Digam a verdade. Que esse Hans Jonas lhe quer comunicar uma verdade. Se o marechal tem fama de homem reto, vai querer ouvi-lo de certeza.” Silêncio geral. “… Esta miúda vai longe”, disse Yigal. “… Ui, tenho que voltar ao palco. Já há novos clientes.

    Raquel regressou sorridente ao pequeno palco, onde também se instalaram dois velhotes, um com um violino e outro com uma trompete. “… Agora, em homenagem a um amigo meu que gosta muito da paz, vou cantar de Duke Ellington It don’t mean a thing.” A sala ajeitou-se para ouvir a novidade. O violino atacou devagarinho a melodia, e a trompete preparou os espíritos para o que ali vinha. Depois, Raquel começou a entoar a nova melodia que dera no gosto do swing: It don’t mean a thing. E, por uns momentos, em Jerusalém, pareceram bem longe as guerras enquanto se ouvia a canção de Duke:
    Não quer dizer nada, tudo o que há a fazer é cantar… Não faz diferença se é doce ou faz calor… Basta dar ritmo a tudo o que te ouço… Mas não quer dizer nada, se não tiver balanço.

    [CONTINUA]


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • Rochas que tocam o Céu

    Rochas que tocam o Céu


    Ainda a manhã era uma criança, uma coluna de viaturas do Estado-Maior do Panzer Armee entrou na cidade velha pela porta de Jaffa. Pouca gente nas ruas. Seguindo ao longo da rua do rei David, a coluna prosseguiu na direção do muro das Lamentações, o mais importante lugar de peregrinação para os judeus. O marechal Rommel decidira auscultar as comunidades religiosas. Se judeus muçulmanos, e cristãos conviviam nos Lugares Santos, porque combateriam fora deles?

    A comitiva chegou ao muro, aquele resto da muralha do que outrora, um outrora muito distante, fora o templo de Jerusalém. O Templo. Desde a noite dos tempos. Onde nasceu a Contemplação. “… Uma edificação gigante ocupara toda aquela colina de Jerusalém…” explicou o guia judaico.” “… O primeiro templo foi arrasado por Nabucodonosor no século VII. E entre lágrimas, os judeus exilados levaram os rolos com os quais criaram um novo templo de papel a que chamaram a Torah, os livros sagrados.”

    O franciscano alemao.

     Veio a libertação do cativeiro de Babilónia e Israel construiu o segundo templo. Ainda mais grandioso que o primeiro e com a arca da Aliança. A Festa das Luzes – Hanukká – celebra a vitória militar de Judas Macabeu e a dedicação do Templo em 165 a.C. Um candela­bro de oito braços, com uma luz extra para acender as outras sete em cada dia de festa.

    “… No majestoso pátio reunia-se o povo eleito para pagar o meio shekel de prata, a única moeda que não tinha a efigie do imperador romano. Colada ao Templo, erguia-se a Torre Antónia, e o pretório de onde os ocupantes romanos vigiaram e controlaram a cidade até que as legiões romanas de Tito e Vespasiano destruíram o templo em 70 d.C., não deixando pedra sobre pedra”… exceto aquele muro ocidental, outrora de Glória, agora das Lamentações.

    Um pequeno número de judeus rezava e tocava o muro. Que dizem eles, perguntou Rommel? O guia foi pressuroso. “… Entoam o Escuta Israel /Quando o coração chora, só Deus escuta. Mas porque tapam os olhos e batem com a cabeça no muro? “… Diz-se que Judá ha-Nasi ao recitar o primeiro verso do Shema em voz alta, criou o costume de cobrir os olhos com a mão direita. O marechal continuou: “… Bater com a cabeça é sinal da lamentação. É isso que fazem …lamentar-se?“… “Sr. Marechal: Segundo a nossa tradição, este é também o sítio onde deverá construir-se o terceiro e último templo quando chegar o Messias, o salvador que vai redimir o povo de armas na mão”.

    O marechal registou as respostas com uma atitude respeitosa que tinha para com todas as informações, mas notava-se que o seu espírito prático não apreciava aqueles atos de contrição. Convidou o guia a acompanhá-lo ao monte sagrado, o terceiro lugar mais sagrado do islamismo. O guia perfilou-se “… Um judeu não penetra nesse local; foi profanado pelo Islão e poderíamos estar a violar, sem querer, o Santo dos santos”. Após uma breve troca de impressões com o séquito, Rommel deu ordens para findar a visita do Muro.

    Basílica de Getsémani,com a Rocha da Agonia.

    A comitiva levou pouco mais de dez minutos a chegar ao monte do Templo, o local mais sagrado da cidade e talvez do mundo, para judeus cristãos e muçulmanos. A rocha usada em sacrifícios, é uma das razões pelas quais a cidade de Jerusalém é considerada Cidade Santa por várias religiões. Os muçulmanos chamam-lhe o Nobre Santuário, Al-Haram ash-Sharif. E não admira porquê. O centro da esplanada corresponde ao monte Moriá onde terá ocorrido o sacrifício de Isaac, filho de Sarah dizem cristãos e judeus. Ou de Ismael, filho da escrava Agar, dizem os muçulmanos. Sobre a “pedra do sacrifício”, o rei David  ergueu um santuário para acolher a Arca da Aliança. As obras do Primeiro Templo foram terminadas por Salomão  mil anos antes de Cristo, e destruídas por Nabucodonosor II em 587 a.C., com o exílio judaico na Babilónia. O Segundo Templo voltou a ser destruído em 70 d.C. pelos romanos, com a exceção do Muro das Lamentações

    E ali estavam no centro da esplanada, no centro do mundo, rodeados da mole de madraças, refeitórios, fontes e cúpulas entre as quais sobressaía a Mesquita de Al-Aqsa, construída pelo califa Omar no século VII sobre as ruínas do Templo. Entre todas as construções a que ofuscava a vista era a Cúpula da Rocha. Era um octógono perfeito de admiráveis proporções, coroada por uma gigantesca cúpula…

    Descalçando as botas no exterior, o marechal Rommel e a comitiva penetraram na Cúpula onde se admirava a elaborada decoração a vermelho e ouro. O guia, que vestia uma jelaba de cor vermelha e capuz pontiagudo teceu louvores a Saladino que conquistara Jerusalém aos Cruzados. O interior da cúpula estava repleto de uma massa de azulejos que louvavam a um só Deus e a Maomé o seu profeta. Um segundo conjunto de azulejos louvava Jesus como o maior dos profetas, escritos em um tempo em que o Islão era concorrente direto.

    Basílica das Nações, Getsémani.

    Por estas escada de rocha, Maomé subiu aos céus…”, dizia o guia sobre a Al Miraaj, a viagem aos céus realizada pelo profeta Maomé ajudado pelo anjo Gabriel… No interior da cúpula está o poço das almas. E a mais antiga misdrad do mundo aponta na direção de Meca.

    “… O Islão é guerra santa. Que tem o guia a dizer sobre isto?” Enquanto o intérprete militar traduzia a pergunta do marechal, o guia ficou muito crispado e respondeu por tiradas… “… Maomé era chefe de Estado e fez a guerra. Quando foi atacado por Meca, lutou. Mas trouxe a paz para a Arábia e unificou-a através da diplomacia. No Ocidente tendes a ideia de que o Alcorão é jihad e guerra santa. Mas das 40 vezes que o termo surge no Alcorão, apenas dez se referem à guerra. Jihad também é aperfeiçoamento, partilha. O marechal insistiu. “… Mas pergunte-lhe quem decide se a jihad é de paz ou de guerra.” “… Está tudo no Corão”, foi a resposta.

    Já o sol de Agosto dardejava sobre os tetos de Jerusalém, e a manhã ia avançada quando Rommel e a comitiva transpuseram os portões de ferro forjado que demarcam os terrenos da Basílica da Agonia. Descendo em ziguezague das muralhas sul da urbe, surgia de repente esse cristianíssimo templo, no sopé do Monte das oliveiras, e dos grandes cemitérios judaicos que bordejam o vale de Josafat. Era uma construção invulgar com uma fachada multicolorida e doze pequenas cúpulas no teto, evocando as doze nações que a construíram. Era ali que o marechal decidira concluir a visita das três religiões. Poderia ter ido à igreja do Santo Sepulcro, mais esplendorosa, quiçá mais simbólica. “… Jerusalém é uma cidade de pedras e rochas e dizem-me que está ali a rocha da agonia”, dissera o marechal.

    Aguardava-os um franciscano alemão, frei Werner. Estatura elevada e porte afável, sotaina castanha bem cuidada tal como as sandálias da mesma cor. “… Sr. marechal foi neste jardim de Getsemani que Jesus e os seus discípulos oraram na noite em que o Messias foi preso pelos soldados romanos”. No interior da basílica, frei Werner explicou o que viam retratado nos painéis dos muros. “… Ali apareceu-lhe um anjo do céu para o confortar. Acolá Jesus disse “aquele a quem eu beijar…”. Enquanto ladeava o recinto octogonal junto ao altar-mor, rodeado por uma colunata, o franciscano relatava os eventos como se tivessem sucedido ontem. “… Foram-no buscar para o prender quando se sentava ali, nesta rocha. “Outra rocha”, disse Rommel… “como na mesquita”. “Sim sr. Marechal… Mas ali ao lado é uma rocha que evoca a glória de deus. Aqui no monte das oliveiras, é uma rocha de sofrimento, de agonia dos homens.”

    Marechal Rommel, em revista às tropas.

    O marechal escutou aquelas palavras enquanto caminhavam lado a lado. “… frei Werner, pouco sei fora da minha vida militar: sei que o suor poupa sangue, que o sangue poupa vidas, e que o cérebro poupa ambos. Acha que Jesus se devia ter deixado prender? Não seria melhor ter fugido?” Frei Werner olhou algo compadecidamente para o compatriota e afirmou. “… E o que é o cérebro, sr. Marechal? É quem pergunta ou quem responde? É quem nos guia, ou é guiado?” Rommel preferiu nada dizer. Tinham atingido a rocha da agonia, junto ao altar mor.

    Era cercada por uma cinta de ferro forjado encimada por aves – falcões, pombas e melros – era a rocha da agonia onde Jesus orou. frei Werner continuou o relato: “… Segundo o Evangelho de Lucas foi aqui que Jesus entrou em agonia e o seu suor tornou-se em gotas de sangue a escorrer pela terra.” Esta rocha recolheu o sangue de Cristo até ele mais não aguentar e exclamar “… Pai afasta de Mim este cálice!” “… Que significa isso?” perguntou Rommel.

    Werner cruzou as mãos atrás das costas e disse em tom mais baixo que até aí usara de tal modo que Rommel se teve que inclinar para o escutar: “… Quer a resposta convencional ou quer algo mais profundo Herr Feldmarschall?  Diga o que achar mais verdadeiro. Werner continuou com à-vontade: “… Na minha Ordem, houve um monge do século XII chamado Joaquim, que profetizou o início da terceira era, a era do espírito. Depois na obra de um filósofo nosso compatriota, li que estamos no início da terceira época do cristianismo: a fundação da Igreja de João. As revoluções e as batalhas desta guerra culminam o avanço da história para o final. Mas é preciso que alguém ponha termo à guerra para que surja a ” redenção”. Dito isto, Werner calou-se abruptamente.

     Rommel entendeu que o franciscano lhe queria segredar algo mais. “…E então?” “… Então, pegue nessa ideia e permita a conclusão da ideia joaquimita e joanina. Toda a Alemanha o admira!, senhor marechal ”. Werner animava-se. “Todos seguirão um herói. Ponha fim a tanto derramamento de sangue, a tanta perseguição. Afaste de nós esse cálice! Werner estava a ficar exaltado. ”… Ponha fim à guerra aqui em Jerusalém… Chame todos os judeus, muçulmanos e cristãos. Diga que não admite mais mortes e que ressuscitou a nossa Alemanha, a Alemanha de Kempis, Cusa, Tauler, Eckhardt, Durer, Lutero, Kepler, Bach, Goethe e Beethoven e Heine e Einstein. Werner já não cabia em si -. “…Diga a todos que vai fazer a paz, a começar por aqui, Jerusalém”. Ao proferir as últimas frases, Werner estava praticamente a gritar, com as lágrimas nos olhos. Os circunstantes tinham-se virado para ele guardando profundo silêncio, à espera da reação de Rommel.

    Mesquita de Omar [ex-Basílica da Rocha], Jerusalém. Circa 1941-45.

    O marechal nada disse. Passados longos segundos que a todos pareceram uma eternidade, tomou a mão direita do frade franciscano, empunhou-a calorosamente e colocou a sua mão esquerda por cima de ambas. “… frei Werner explicou-me maravilhosamente o que foi a agonia de Jesus. Estou-lhe muito grato por isso.” E depois calçou as luvas enquanto se dirigia rapidamente para o exterior.

    Nessa noite escreveu a sua mulher.

    Querida Lu

    Jerusalém tem três religiões e todas sabem o que querem, mas creio que ainda está por nascer quem saiba fazer o que pretendem. Visitei os lugares santos. Todos rezam ao mesmo Deus e plantam oliveiras. Talvez um dia tente plantar uma destas árvores em Herrlingen. Bons sonhos para ti e espero que colhas as maçãs do nosso jardim e faças a receita da compota.

    Teu

    Erwin

    [CONTINUA]


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • O estado-maior

    O estado-maior


    “… Meus senhores”, anunciou o marechal Rommel ao seu Estado-maior reunido num amplo salão do segundo piso da torre YMCA, enquanto o seu ajudante, o capitão Aldinger, ajustava um mapa de Jerusalém e arredores sobre a mesa. “…Acabámos de conquistar a cidade mais volúvel do mundo e cujo nome, dizem-me, significa santa paz. Aqui vivem cristãos, judeus e muçulmanos, de várias denominações e obediências. Têm ódios que veem da noite dos tempos e dedicações que temos de compreender se os quisermos dominar. Os nossos antecessores britânicos não tiveram muita sorte nisso”.

    Pelas janelas avistava-se o parque de cedros, plátanos e ciprestes que ornamentavam os jardins da residência e, à distância, via-se a cidade velha de Jerusalém com as suas cúpulas, minaretes e torres. Naquela reunião, estavam os grandes nomes do Exército Panzer de Afrika: Gause, chefe do estado maior: Bayerlein, comandante do Afrika Korps, Westphal, chefe do estado maior; comandantes das grandes unidades como Marcks, Buelowius, von Thomas, von Sponeck. Todos sabiam o que o marechal deles esperava; uma exposição clara e franca das dificuldades e soluções. Sabiam que Rommel dividia os militares em inteligentes, tolos, preguiçosos e ambiciosos. Os tolos e ambiciosos eram perigosos e livrava-se deles. Aos tolos e preguiçosos, atribuía tarefas inócuas. Aos espertos e preguiçosos, fazia-os seus comandantes, zelando para que cumprissem ordens. Aos ambiciosos e inteligentes, colocava-os no seu estado-maior, pois queria ajuda. E eles ali estavam, com a bandeira que serviam, sem nada omitirem dos riscos e ameaças.

    A Via Juliana e a torre do YMCA (Young Man’s Christian Association) em Jerusalém.

    “… Srs. Oficiais”, continuou Rommel: “… O comandante em chefe decidirá como entender; mas tendes de lhe apresentar as possibilidades. O coronel Westphal vai expor a situação, e os desafios para mantermos Jerusalém, antes de passarmos ao nosso próximo objectivo”. 

    Um rumor aprovador percorreu a sala. O coronel Westphal de porte atlético, iniciou a exposição com a determinação do seu chefe. “… O Panzer Armee Afrika está ainda demasiado fraco para uma nova ofensiva, e os britânicos demasiado frustrados para qualquer novo ataque. Tanto podemos continuar a ofensiva para leste pela Jordânia e Iraque até aos poços de petróleo retirando aos Aliados esse nervo da guerra; como podemos seguir até junto à fronteira turca e ao Irão, envolvendo a União Soviética pelo flanco sul e assim levarmos a guerra até às paragens do Volga e apoiar o 6º exército que marcha sobre Estalinegrado…”

    Seguiu-se um debate acalorado sobre este dilema.

    “… Temos de aguardar que Berlim se pronuncie”. A linha ofensiva sobre os campos petrolíferos é insustentável, …” Os territórios do Cazaquistão estão demasiado longe.” “… Hitler prefere a guerra económica”, declarou o general von Thomas. ”… Ele quererá o petróleo”.

    O briefing prosseguiu com o general Gause. “… Até aqui, combatemos sobretudo no deserto, com populações fugidias. Agora estamos numa malha urbana onde existem organizações paramilitares, árabes e judaicas. E nada é fácil com elas, prosseguia o general Gause, o intelectual do grupo, com vastos cabedais de conhecimentos históricos. “Os muçulmanos são os antigos moradores da terra … que se tornaram cristãos com a ascensão do cristianismo e muçulmanos com a chegada do Islão” … A dispersão dos judeus para fora da Terra de Israel após a destruição do Segundo Templo pelo imperador romano Tito é um “erro histórico”. Muitos dos “trabalhadores da terra permaneceram para trás e converteram-se ao cristianismo e ao Islão. Então, interrompeu Rommel, os árabes palestinos são os irmãos de sangue dos judeus.

    A torre da YMCA em Jerusalém, concluída em 1933. Do mesmo arquitecto do Empire State Building.

    Assim é… Palestina é um nome romano que ficou da Antiguidade para indicar estes territórios em que nos encontramos a que os judeus chamam haaretz Israel e os cristãos chamam de Terra Santa E em que nos afecta isso? “…A população da Palestina não tem uma postura unânime face a nós, como não a tinha face aos britânicos,”, respondeu Gause.

    O chefe do estado-maior do AK, o general Bayerlein, um duro de roer, afirmou que muitos líderes e figuras públicas muçulmanas consideravam que a vitória do Eixo seria a forma de garantir que a Palestina jamais seria restituída aos sionistas e aos britânicos.  “… O SS-Reichsfuehrer Himmler, apóstolo das teorias raciais de Hitler, apoia o Grande Mufti de Jerusalém, Mohammad Amin al-Husseini, na luta contra a hegemonia britânica. Vamos ter os muçulmanos todos do nosso lado. E devemos explorar isso ao máximo…”

    “…Não diga disparates”, atalhou o marechal Rommel. “… Devem existir mais de 500.000 muçulmanos a lutar pelos Aliados contra nós. 300.000 marroquinos e argelinos combatiam em França. Eu mesmo lutei contra essas forças coloniais francesas na passagem do Somme em Maio de 1940. E centenas de milhares de muçulmanos lutam no Exército britânico da India. Até os soviéticos têm soldados muçulmanos. Mas já vi que tu, Bayerlein, não gostas do susto que nos deu a 4ª divisão indiana em Tobruk”. Os circunstantes entreolharam-se e riram. Bayerleien não se deu por achado. “…Até capturei o brigadeiro Clinton dessa 4ª divisão”. “… Que depois fugiu, replicaram. “… Mas foi recapturado”, retrucou… “Mas voltou a fugir em Itália...” Rommel não ligou à troca de picardias. Parecia cismar em algo de diferente.

    Gause esboçou um sorriso retorcido. Fritz (era o primeiro nome de Bayerlein) é melhor não ires por aí… Saber quem entre árabes e judeus está por nós, é quase impossível.  Até os sionistas colaboraram com o Partido em meados dos anos 1930 e Goebbels mandou cunhar uma medalha em 1935 comemorando a aliança sionista-nazista.

    Forças em parada no pátio da YMCA

    Uma jovem serviçal que entrou procurando não chamar a atenção. Os seus cabelos escuros formavam uma trança e tinha o corpo bem torneado. Não aparentava mais de vinte e cinco anos, mas nos olhos fulgia uma sabedoria ancestral. Serviu em silêncio um sorbet de limão a todos os oficiais e ia retirar-se quando subitamente Rommel lhe perguntou. “… A menina, espere um pouco”. A jovem estacou, sem ostentar preocupação. “… Qual o seu nome, por favor?” Era Ester. “… Muito bem, Ester, se eu lhe perguntar se os árabes estão por nós, alemães, que diria?” A jovem respondeu em perfeito alemão: “… Sr. Marechal: apenas sei que nesta cidade cada um está por si próprio e o resto conta pouco”. Rommel agradeceu a resposta.

    O briefing se aproximava do fim. Os sionistas, a Yishuv – continuou Gause – vive em grande preocupação desde Tobruk. Falam em duzentos dias de ansiedade. Com apoio britânico, os judeus sionistas formaram o Palmach – uma unidade de élite pertencente a Haganah – grupo paramilitar composta de tropas de reservacom o fim expresso de nos combater.

    “…São, pois o nosso principal inimigo, acentuou Bayerlein. “Mas que sabem eles fazer?”. “…. Atentados terroristas, sobretudo. Foram treinados por Orde Wingate. “…. Wingate, aquele capitão britânico que Churchill chamou para o enviar contra os japoneses em Burma?” “…. Esse mesmo legou ao Palmach as tácticas de guerrilha que vêm do tempo de Lawrence em 1916. Só que Lawrence servia-se dos muçulmanos e Wingate serve-se dos judeus. Os sionistas radicais foram empenhados pelos ingleses em atividades terroristas contra os árabes, mas tanto esfaqueiam árabes, como judeus não-sionistas, ou mesmo ingleses. E agora, temo-los à perna

    Marechal Erwin Rommel ( à esquerda) general Alfred Gause ( ao centro) e outro oficial do Eixo.

    “… Enfim, meus senhores”, concluiu Rommel. “… Como vimos, Jerusalém tem radicais. Os islâmicos de Husseini estão de um lado da barricada. Irgun, Palmach e Hagannah do outro. Esperemos o pior de todos. Teremos que os identificar e neutralizar e procurar quem no meio desta cidade quer as pazes connosco. Quanto ao mais, Berlim decidirá. “

    Houve um rumor de pastas a serem arrumadas quando o coronel Stauffenberg, conhecido como católico, arriscou: Berlim e Deus, Sr. Marechal. “… Deus? Sr. Coronel? Deus marcha com os grandes batalhões” asseverou Rommel, acrescentando com um ar maroto. “…. Mas isso não é razão para que O não visite na sua cidade preferida”.

    O marechal saiu para os seus aposentos acompanhado por Aldinger que lhe perguntou. “… Será que os ingleses nos atacarão?” O marechal tinha pouco a dizer. “… Não travarei batalha se nada ganhar com a vitória. E eu ainda não sei o que posso ganhar em Jerusalém. Agradeceu a Aldinger e, após este ter fechado a porta, sentou-se a uma secretária de mogno e iniciou a breve missiva que todos os dias enviava à sua bem-amada esposa, Lúcia, em Herrlingen. Datou a carta – 2 de Agosto de 1942 – e começou:

    Querida Lu

    Estou bem de saúde e espero que assim estejas tal como Manfred. As minhas primeiras impressões desta cidade são ainda fugidias. Não sei quanto tempo aqui ficaremos, mas tudo me impressiona. Pessoas, árvores, edifícios. Jerusalém é um mistério!

    Teu

    Erwin

    [CONTINUA]


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • A estrada para Jerusalém

    A estrada para Jerusalém


    Prólogo

    No ano dito da graça de 1939, a Inglaterra dominava a maior e melhor parte do Médio Oriente na sequência dos mandatos que lhe tinham sido atribuídos após a vitória sobre o império otomano na 1ª Grande Guerra.

    Com a tempestade da Segunda Guerra Mundial, surgiu nas areias do Norte da África, uma força tão imprevista como o vento do deserto que tudo varre à sua frente: o exército do marechal Rommel que, após sucessivas vitórias sobre os britânicos, chegou a 4 de Julho de 1942 a El Alamein, às portas de Alexandria.

    Quem sabe o que teria sucedido se Rommel não tivesse sido detido nesse verão em El Alamein pelas forças do 8º Exército britânico do general Auchinleck? Quem sabe se, após conquistar o Egito, não marcharia pelo Próximo Oriente adentro em direção à Palestina e, depois, quem sabe, em direção ao Iraque para capturar os poços de petróleo aos Aliados ou em direção ao Irão para atacar a União Soviética, enquanto o 6º Exército alemão se aproximava de Estalinegrado?

    Não sabemos. E porque não sabemos podemos imaginar pois é desse estofo que são feitos os mitos e, neste caso, a novela improvável que dá pelo título de Rommel em Jerusalém.


    A 1 de Agosto de 1942, à cabeça de uma longa coluna do Africa Korps, o 33º Batalhão de Reconhecimento rolava em direção a Jerusalém, culminando o formidável avanço das forças do marechal Erwin Rommel no Próximo Oriente. Deixando para trás Tobruk, conquistada no primeiro dia daquele Verão, o Afrika Korps triunfara em El Alamein contra o 8º Exército britânico. Após a queda de Alexandria em 10 de Julho, o Panzer Gruppe Afrika e os aliados italianos dirigiram-se para o canal de Suez, e cruzaram-no em Port Said, sem mais delongas nem dificuldades. Após uma paragem para reabastecer e reforçar, em que recebeu a 164ª Divisão, vinda de Creta, Rommel decidiu continuar a avançar. Conquistou El Arish no deserto do Sinai, e dirigiu-se para a Terra Prometida, via Gaza. Para trás ficava o norte de África; à sua frente estendia-se o Médio Oriente.

    Entrando na Palestina por Siquém, o Afrika Korps realizou a habitual manobra em tenaz, do Blitzkrieg. Enquanto a 15ª Divisão Panzer subiu para norte pelos montes de Hebron, a 21ª Panzer dirigiu-se para Haifa de onde depois obliquou para Jerusalém. Os generais ingleses encaixavam golpe sob golpe, preferindo retirar a serem derrotados em campo aberto. E após uma derrocada de três meses, que começara nas linhas de Gazala, na Tripolitânia, recuaram para a linha de obstáculos naturais da Cisjordânia, – formada pelo rio Jordão, o Mar Morto e o Lago Tiberíades – procurando negar o acesso dos alemães aos cada vez mais próximos campos petrolíferos do Médio Oriente. Os soldados britânicos sentiam-se bravos, mas confundidos e os generais reconheciam-se confundidos mas bravos. Jerusalém foi declarada cidade aberta e nela apenas ficaram as células do Hagannah.

    Ao longo da estrada batida pelo pó levantado pelas viaturas alemãs, os árabes saudavam o desfile com ramos de palmeira enquanto as mulheres emitiam trinados de aprovação. Sem dúvida um momento glorioso a ser proclamado pelos jornais e rádios nazis como mais uma soberba vitória do Eixo. O Terceiro Reich chegava ao Reino de Deus. Sr. Marechal os jornais vão dizer de si que é um novo Alexandre Magno ou um novo Frederico Barbaroxa gritava-lhe o tenente Berndt, dos serviços de propaganda da Wehrmacht e que gozava de confiança particular junto de Hitler. Talvez, talvez, Berndt, sorria-lhe o marechal enquanto se dessedentava bebendo água da sua caneca de zinco e acenando à multidão. Vamos escrever que o senhor traz o Ocidente às ruas de Jerusalém. Rommel gritou-lhe passados uns instantes. Escreva o que quiser, Berndt. Mas sabe bem o que faziam nos triunfos romanos. Berndt sabia.Havia sempre um escravo atrás do conquistador que repetidamente aproximava-se do ouvido do general e dizia: “Lembra-te que és mortal!”

    A coluna de veículos roncava no meio dos povoados que salpicavam as colinas dos montes de Hebron, onde piteiras e figueiras separavam as culturas em socalcos das populações da região. Enquanto se sucediam os quilómetros, os pensamentos de Rommel voavam para paragens bem longínquas. Uma vez chegado a Jerusalém teria de decidir o passo seguinte. Como um touro que investe, teria de escolher com qual dos dois cornos possantes acossaria os adversários. Poderia seguir em direção aos poços de petróleo do sul do Iraque, privando os Aliados do nervo da guerra que alimentava tudo o que se movia na terra, mar e ar; ou então poderia seguir até ao Irão e às portas do sul da Rússia, levando a guerra até perto de Estalinegrado. Qualquer dos objetivos seria um alvo grandioso a acrescentar à sua grandiosa vitória no solstício de Verão. Hitler fizera-o marechal nessa noite ainda recente. mas já tão distante de 21 de Junho. Rommel apenas comentara “Preferia que me enviasse mais uma divisão” enquanto impelia as unidades a seguir para o Egipto.

    As longas filas de veículos eram como os anéis de uma serpente a aproximar-se da vítima. Sucediam-se os blindados de reconhecimento, os transportes de rodas e lagartas cheios de infantaria, tratores de artilharia e muitos camiões capturados aos ingleses – o chique inglês do Afrika Korps – e ainda mais blindados, camiões tanque e, sobretudo, os tanques, vencedores de cem batalhas, cavalos de aço, com os seus trilhos, cascos e torres de onde emergiam as poderosas peças de 50 e 75 mm, curtas e longas, prontas a cuspir a morte. Era o Afrika Korps sempre à míngua de homens, veículos e abastecimentos, mas impelido pela vontade de aço do seu comandante. Os soldados mastigavam nacos de carne fria, extraída das latas de conserva da administração militar italiana, onde se destacavam as letras AM, que os alemães por irrisão liam como Armes Mussolini. “Pobre Mussolini”, o chacal da 2ª Guerra Mundial que vinha sempre no fim de cada batalha à procura de despojos. Mussolini até mandara bombardear Tel Aviv, Haifa e Acre no início da campanha do norte de África, em Junho de 1940, infligindo estragos e vítimas e dando origem a grande ansiedade nas povoações.

    Após ladear as colinas da Judeia pontilhadas por pequenas casas, a estrada começou a subir suavemente até Jerusalém. Oh Jerusalém! Esplendorosa, antiga, eterna, suja, ruidosa, estirada ao sol, cheia dos bons e maus cheiros de alimentos e estercos, e repleta de gentes, religiões, fés e mistérios. Por entre a massa de casa baixas, erguiam-se minaretes de mesquitas, torres de igrejas, cúpulas moles de sinagogas, a torre de David, e basílicas que subiam pelo monte das oliveiras, apontadas ao céu, como antenas dirigidas a um mistério maior do que a humanidade que cá em baixo se arrastava. A mais poderosa máquina de guerra do mundo chegava à mais santa das cidades, à cidade da paz, Oh Jerusalém devassada, que mais te aguardava? Que te iria suceder?

    O marechal Rommel, numa das suas viaturas

    À medida que entrou nas encostas urbanizadas de Jerusalém, a coluna mudou de dispositivo: para trás ficavam colonatos judaicos, aldeias de árabes cristãos e de árabes muçulmanos. Entrava-se agora nos arrabaldes e a estrada aberta cedeu lugar a ruas onde poderia espreitar o perigo. Os soldados empunhavam as espingardas nas mãos crispadas e as metralhadoras pesadas giravam nas torres dos veículos blindados. Contudo, não se via sinais de hostilidade e aqui e além, novos grupos saudavam a entrada dos conquistadores   

    As colunas aproximavam-se da cidade velha. Na esquina da estrada de Jaffa com a rua de Malka, o general Bayerlein gritou ao condutor enquanto consultava o mapa “Vire à direita e siga na direção da avenida do Rei David. Nessa esquina, onde estava a loja do fotógrafo Marar, a sapataria Jevod com a sua bela montra, e a empresa de construção Seraphim, vários soldados saltaram dos veículos e ofereceram cigarros à população. Eram a guarda avançada aos veículos que agora avançavam em marcha lenta, com os motores a roncar. A serpente de aço estava agora no coração moderno de Jerusalém com ruas arejadas e edifícios de porte.

    Nessa beira ocidental da cidade, avultava um edifício que tinha sido assinalado para estabelecer o quartel-general do Panzer Armee. No alto de uma colina rodeada de amplos jardins, erguia-se a Associação Cristã da Juventude, abandonado pelos proprietários norte americanos; era um marco orgulhoso erguido por Arthur Harmon, o mesmíssimo arquitecto do Empire State Building, contraponto do novo mundo da América à antiga torre de David que se erguia a pouco mais de um quilómetro de distância. Para ali se dirigiu a guarda avançada de Rommel.

    O esquadrão passou pelos grandiosos portões abertos e entrou no pátio rodeado de palmeiras do complexo de edifícios do YMCA, imaculadamente brancos. Ao centro, destacava-se uma torre sineira ladeada por dois corpos de quatro andares. Os veículos pararam, os soldados montaram um dispositivo de segurança. Após uma primeira inspeção ao edifício pelos pioneiros, para lá se dirigiu o alto comando alemão. Ali se instalaria o novo senhor da guerra na Terra Prometida. Quantos conquistadores por lá tinham passado… Quantos tinham ficado às portas, como Ricardo Coração de Leão. Quantos tinham ali conhecido o triunfo e a glória. Quantos tinham ali saboreado a copa da vitória…

    Militares britânicos em Jerusalém, 1940, próximos da torre de David.

    Nabucodonosor arrasou o primeiro templo e expulsou os judeus para Babilónia. Tito e Vespasiano destruíram o segundo templo após a revolta de Simão bar Kosheba. Adriano aplanou a cidade e mudou-lhe o nome para Aelia Capitolina. Heráclio perdeu-a para o califa Omar. Os muçulmanos perderam-na para os Cruzados e Godofredo e Balduíno tornaram-se reis de Jerusalém. E estes voltaram a perdê-la para Saladino. Os britânicos de Allenby conquistaram-na em 1918 aos otomanos e agora perdiam-na para os alemães. As cruzes gamadas iriam drapejar em Jerusalém, não se sabe por quanto tempo. Por certo que o mundo se preparava para algo de terrível.

    “Marechal, por quanto ficar tempo ficaremos aqui? “perguntou-lhe o tenente Berndt. Rommel deixou passar alguns momentos. “… Sabe uma coisa Berndt? Esta cidade é um mistério…”

    [CONTINUA]


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • De Praga a Paris

    De Praga a Paris


    Em meados do século XIX, quando os comboios começavam a circular a 40 km à hora e não havia sofás com almofadas de molas, nem móveis com verniz; quando os jovens desiludidos ainda não usavam óculos, e as mulheres filosofavam pouco; nesses tempos ingénuos, a meio caminho entre o paleolítico e a nossa era espacial, em que se entrava para a terceira classe  dos caminhos-de-ferro com um farnel cheio de provisões; quando os jornais começavam a saltar das rotativas, e as patentes dos laboratórios para as fábricas; quando as chaminés cuspiam longos rolos de fumo negro e os salões de baile eram iluminados por candelabros de cera, com os móveis dispostos simetricamente; quando ainda se travavam duelos à pistola ou à espada, por uma questão de honra, e se corria para o lado oposto da sala só para apanhar um lenço propositadamente caído; quando as senhoras de sociedade usavam vestidos de saias redonda, cintura de vespa e mangas soltas, e as operárias tinham saias estreitas, cintura larga e mangas arregaçadas; quando as damas com camélias se escondiam da luz do dia e Maxwell punha em equação as leis do eletromagnetismo do amigo e sábio Faraday; nesses tempos longínquos em que os maçons ainda eram quase todos sérios, os judeus só eram perseguidos na Rússia e os católicos estavam suspensos de um papa infalível e se dizia que na Europa havia paz, uma das muitas famílias de apelido Kohn partiu da capital da Boémia, a terra por onde então viviam, para a cidade luz, a fim de prosseguir o grande sonho da integração social.

    Nessa época, trabalhava Ferdinand Kürnberger como colunista em Viena e costumava visitar todos os dias uma livraria muito conhecida. Um dia, quando estava no estabelecimento, entrou um jovem que lhe chamou a atenção. Quando ele saiu, Kürnberger perguntou ao livreiro o nome do jovem. “É um violinista conhecido” … “chama-se Connady.” “Connady, mesmo?” repetiu Kürnberger: “- “Não”, respondeu o outro, “na verdade chama-se Kohn.” Poucos dias depois, Kürnberger reparou noutra personalidade interessante. Quando perguntou o nome, o livreiro respondeu-lhe: “Este é o escritor parisiense Paul d’Abrest, mas não é esse o seu nome verdadeiro; é Kohn.” Kürnberger olhou para o amigo, pegou no chapéu e saiu em silêncio, meio a fungar.

    Mas as coisas não ficaram por aqui. Apareceu na loja o autor da comédia “As tristezas do jovem Heine”, que na altura causava sensação em Viena, e, tendo ele saído, disse Kürnberger: “O homem chama-se mesmo Mels? Parece-me demasiado elegante para nome de família.” – “Deus me livre”, disse o livreiro, “isso é pseudónimo“; o verdadeiro nome é Kohn.” Desta vez, sentindo que lhe saltava a tampa e convencido de que o amigo estava a troçar, Kürnberger agarrou o chapéu, não só para sair, mas também para nunca mais lá voltar, enquanto resmungava „Será que este acha que toda a gente no mundo se chama Kohn?“ E, no entanto, os três autores existiram, e na realidade tinham esse apelido.

    Os judeus da Europa – com exceção de uma escassa centena de famílias aparentadas – tinham vivido até ao século XIX em um mundo criado por eles próprios, sem contato com a história; e os cristãos tinham ajudado a isolá-los dos grandes movimentos históricos, como a Reforma, Renascimento e Iluminismo. Alguns que se emanciparam, tiveram existências solitárias e muitas vezes trágicas, nas margens da vida, depois cuspidos pelas próprias comunidades, como é o caso notório de Maimónides e Espinoza. No início do século XIX, porém, abriram-se os guetos. As famílias judaicas vieram em massa das aldeias para as vilas, das vilas para as cidades e destas para as capitais.

    A explosão libertou enormes energias: forças intelectuais e espirituais, que durante quase dois milhares de anos tinham sido treinadas, afiadas, domesticadas e amarradas ao estudo das Escrituras, podiam agora aplicar-se a construir as nações que começavam a despertar. A Inglaterra, pátria-mãe do romantismo, foi a primeira a ser estimulada por grandes movimentos liberais. Depois foi a vez da Alemanha, França, Itália, Polónia, Hungria, Portugal, Espanha, Grécia, e Rússia. Por entre movimentos religiosos, políticos e intelectuais, entre revoluções e contra-revoluções, o êxodo dos guetos colocou grandes valores à disposição dos povos europeus.

    Na França, além do caso especial dos Rothschild, os judeus desempenharam um papel significativo na literatura, economia e política desde a segunda república. Um israelita tornou-se o primeiro-ministro da Grã-Bretanha: Disraeli, Lord Beaconsfield, trouxe à Rainha Vitória a coroa da Índia e reforçou o imperialismo britânico. Na monarquia austro-húngara, de Viena, Budapeste e Praga, os israelitas ajudaram a transformar as antigas estruturas feudais em uma sociedade industrial moderna. Uma nova nobreza judaica surgiu e casou-se com famílias da aristocracia cristã, tanto no império austríaco como no Reich alemão, onde o implacável chanceler Bismarck via com bons olhos a união de “garanhões” cristãos com “éguas” judias como meio de procriação de uma classe dinâmica de líderes. É entre esses judeus europeus de educação germânica que passam para França e que ajudaram a criar pontes entre todas as nações da Europa que se encontram os Kohn que agora despertam a nossa atenção.

    Jacob Kohn e Sofia Altschul pertenciam à burguesia que habitava nas grandes cidades da Europa ocidental, uns em Praga então parte do Império austríaco, outros em Colónia, do Reino da Prússia, outros em Roterdão e Bruxelas, nos Países Baixos: geriam vários negócios, mas contando entre os antepassados alguns poucos médicos e numerosos rabinos. O trisavó Jacob – chamemos-lhe assim – nascera em 1823 em Chemnitz, pequena cidade perto de Praga, onde casou e onde nasceram a maior parte dos filhos. Ao arribar a França em 1858, obteve no ano seguinte a autorização oficial de residência beneficiando dos direitos civis e adotou o nome de Jacques. Começou a trabalhar como caixa num pequeno banco parisiense e depois passou para a Banque Génèrale de Suisse onde ficou encarregado de negócios, até 1869; nesse ano tornou-se contabilista em chefe da Sociedade Anónima de Refinarias Parisienses.

    Dos seus filhos, a mais velha, então com 18 anos, e também de nome Sofia ajudava a mãe a tomar conta dos irmãos mais novos, nascidos entre 1851 e 1855: Friedrich, Louis, Herminie, Léopold, Edmond, Sigismond e Mathilde. Um pouco mais tarde, em 1860, veio Eugénie, talvez assim chamada em homenagem à imperatriz consorte de França, Eugénie de Montijo. Foram viver para o 9º arrondissement, um bairro de urbanização recente no oeste da cidade, onde se estabeleciam com frequência famílias judaicas com posses. Para trás, ficavam as memórias de Praga que o tio Fred narra assim:

    Todos os dias, fizesse chuva ou sol, o Imperador descia das alturas de Hradschin ao tocar o meio-dia nas inúmeras torres sineiras da capital da Boémia. Ao chegar ao Ring, a praça central onde se encontra a Câmara Municipal, uma joia arquitetónica digna de comparação às mais belas Câmaras da Flandres, parava a carruagem conduzida por um cocheiro em grande libré branca, o tricórnio “em batalha” como o dos polícias; o trintanário saltava do assento para abrir a porta e o soberano que abdicara, descia acompanhado por um cavalheiro. Ambos trajavam de forma muito simples: davam duas ou três voltas à praça, e todos saudavam respeitosamente o Imperador, que respondia com muitos chapeladas e, por vezes, apertos de mão. De vez em quando parava à frente de uma loja para contemplar um objeto que desejava. Dava ordens para comprar, mas as suas instruções nem sempre eram seguidas, pois se sabia que uma hora depois já nem se lembrava da compra. Por vezes, interrompia a sua caminhada para ver as crianças que saiam das escolas.

    Estas – e eu estava lá entre elas – conheciam o bom Imperador, e se evoco esta memória, é porque a minha imaginação infantil ficou muitíssimo impressionada com o contraste que se me ofereceu ao chegar a Paris em 1858. Vi então, um dia, o imperador Napoleão III a dirigir-se para o Bois de Boulogne a galope no seu landau atrelado à Daumont, seguido e precedido por um destacamento de lanceiros. Na semana anterior, tinha visto o imperador Fernando caminhando no Ring de Praga com as mãos atrás das costas, sem qualquer comitiva, sem guardas nem soldados.”

    Os dois irmãos mais velhos – Friedrich e Louis – foram estudar para o liceu Condorcet, que na época se chamava Liceu Imperial Bonaparte. Era uma escola de excelência, uma das quatro mais antigas de Paris, localizada na rue de Havre, entre a estação de Saint-Lazare e o Boulevard Haussmann. Como escola não confessional tinha uma pedagogia relativamente aberta e liberal e contava com alunos israelitas e protestantes, fortemente pró-republicanos. Ao longo da história, o liceu alterou 11 vezes de nome, refletindo as mudanças de regime. A última vez foi em Maio de 68, em que adotou efémero nome de Karl Marx, até os estudantes descobrirem que o marquês de Condorcet também fora revolucionário! Nele estudaram Henri Bergson, Georges Mandel, Marcel Proust, Claude Lévi-Strauss, Raymond Aron, Jean Paul Sartre,  André Citroën, Marcel Dassault e mais dezenas de khâgneux de reputação mundial. Na verdade, toda a França estudou aqui, como numa universidade, incluindo os que reprovaram uma vez, como Proust, o que lhe deu a oportunidade de receber aulas de literatura do estimado professor Desjardins.

    Fossem alunos mais mundanos, ou mais doutos, o que dava ao liceu Condorcet a sua fisionomia única era a mistura muito parisiense de seriedade precoce e graça leve, de disciplina indulgente e rebeldia inofensiva, de ardor pelo estudo e gosto pelo prazer. Entre os alunos, o jovem Frédéric já mostrava ser uma mente brilhante aos dez anos, o que sem dúvida representava também um risco, como diz o seu amigo Jules Claretie, jornalista e escritor que veio a ser diretor da Opéra de Paris: “Vi, em Genebra, um pequeno prodígio de uma espécie especial. Não era o pequeno compositor prodígio, era o pequeno orador prodígio. Tinha dez anos, e alguém fê-lo subir para uma mesa e ele ali perorou, como uma espécie de Pico de Mirandola da política, sobre todos os assuntos, sem ter ajudas. Confiou-nos, por exemplo, e sem vacilar, a sua teoria pessoal sobre os impostos. Era muito inteligente. O curioso é que este orador de dez anos tornou-se, aos trinta, um jornalista talentoso, um verdadeiro estudioso, o Sr. Kohn-Abrest. Fala menos e escreve melhor. Geralmente as pequenas maravilhas, como árvores que florescem demasiado cedo, não dão fruto assim.

    Os assuntos do planeta giravam na época em torno da Europa, a Europa girava em torno da França e da Alemanha, e estas duas nações giravam em torno de Bismarck e Napoleão III; ambos tinham emergido após as revoluções de 1848. Esse ano foi a grande cicatriz com que o século XIX se apresenta na história. Em Frankfurt reunira-se um Parlamento como jamais se assistira, com mais de cem professores e duzentos juristas, escritores, sacerdotes, médicos, burgomestres, altos funcionários, banqueiros, donos de fábricas, proprietários rurais, e alguns rendeiros, mas nenhum artesão nem operário, começaram as revoltas que derrubaram os dirigentes da Santa Aliança. Havia muito idealismo nesses homens que adotaram a bandeira negra, vermelha e dourada mas que não tinham consciência das possibilidades da revolução industrial e enchiam a boca com palavras altissonantes e a cabeça com quimeras. Alguns milhares de belos discursos e alguns milhares de mortos foram a colheita de um ano de revolução em Viena, Paris, e na Alemanha e Itália que despertavam como nações; e foi também o ano do espectro que pairava sobre a Europa. E contudo, dessas grandes expectativas ficou uma enorme desilusão, a vergonha dos vencidos e o escárnio dos vencedores. As nossas fronteiras proclamou Bismarck, “não devem ser melhoradas através de discursos e decisões da maioria — o grande erro de 1848 e 1849 — mas com ferro e sangue.

    A primavera dos povos deixou muita amargura no ar e dois homens da ordem tomaram as rédeas do poder. De um lado, Bismarck. “O príncipe é como um enorme bloco de granito assente em um prado; se o deslocarmos, encontramos por baixo minhocas e raízes secas, mais do que qualquer outra coisa“, escreverá Guilherme II. O príncipe desprezava a maior parte dos oficiais profissionais, embora lhe agradasse usar o uniforme de general das milícias. É sobretudo um antigo guerreiro germânico, como os heróis das óperas de Wagner, que trava com paixão as suas guerras privadas, seja contra inimigos internos ou estrangeiros. Tanto combate os orgulhosos companheiros da classe nobre que se lhe opõem, e os príncipes adversários austríacos; como persegue ferozmente as organizações de trabalhadores alemães, a que chama o “quarto estado” com a mesma paixão e crueldade com que os nobres medievais faziam a caça ao homem. Os seus inimigos de ontem podem ser os aliados de amanhã; durante trinta anos à frente da Prússia e da Alemanha, foi dos primeiros a criar sistemas de segurança social e tinha entendimentos com Ferdinand Lassalle, o fundador da social-democracia alemã.

    Tinha consciência que levava dentro de si um “demónio teutónico” que adorava o raio e o trovão. Há neste príncipe da era industrial algo do arcaico e das antigas raízes pagãs; acredita no poder benéfico das árvores, dos bosques, e dos animais, sobretudo os cavalos. A posse da terra, a aquisição de território desperta-lhe uma paixão irreprimível; era a herança brutal dos colonizadores prussianos do leste, que se apegam com tenacidade às terras conquistadas pelos antepassados, o que muito distingue as gentes do outro lado do Elba dos germânicos ocidentais que, como Heinrich Heine, conhecem o verdadeiro ouro do Reno.

    Do lado da França, está “Napoleão o pequeno”, como o designou Vítor Hugo num panfleto famoso. Imperador que aprecia os plebiscitos, mas também carbonário que combateu pelo despertar da Itália. Não se sabe ao certo se era filho de Luís Bonaparte, rei da Holanda; mas a sua amada mãe Hortênsia de Beauharnais, irmã da imperatriz Joséphine, incutiu-lhe uma veneração sem limites pelo tio Napoleão. Fascinado pelo efeito mágico desse nome, o jovem foi capaz de o usar para conduzir milhões de franceses amedrontados pela revolução de 1848, a elegerem-no Presidente e facilitarem-lhe o golpe de estado de dezembro de 1851, com que se tornou imperador.

    Formado nas escolas da Alemanha, nos treinos militares na Suíça e iniciando a carreira política como jovem carbonário em Itália, até 1848 é apenas um proscrito da França. Apesar do seu nome mágico, falha em 1836 um putsch em Estrasburgo e em 1840 um golpe em Bolonha. Condenado a cadeia perpétua, exila-se em Londres, onde se relaciona com poetas e artistas, e apresenta-se em festas, mascarado de Guilherme de Orange; uma mania germânica do século XIX, de personalidades como Luís da Baviera, Wagner e Nietzsche e do imperador Guilherme II que se disfarçava de pastor protestante e fazia sermões; foi usando disfarces que Napoleão III fugiu da prisão para se entregar à sua missão. Ao contrário dos puros aventureiros, tinha um sentido de responsabilidade com que foi evitando as grandes catástrofes. Mas a sua hora aproximava-se. Paris tornara-se um turbilhão de danças em torno do velo de ouro, uma realidade que Offenbach descreve nas suas operetas, um estranho império que Victor Hugo increpa com a sua pena e que o próprio imperador assim descreve em 1865: “O meu governo não vai por um bom caminho; e como poderia ser de outro modo, se a imperatriz é legitimista, Morny é orléanista e eu sou republicano? Bonapartista, só mesmo o Persigny; e esse está louco.

    Nessa Europa da década de 1860 os regimes evoluem e as fronteiras políticas mudam. À margem das convulsões geopolíticas e da questão candente das nacionalidades, emerge o jovem estado federal suíço – fruto das revoluções de 1848. A vida cultural do país, na intersecção das áreas de língua francesa e alemã, e ainda italiana e romanche, pertence tinha escala europeia. Genebra era “o quinto contente”, dissera Tayllerand, um observatório ideal, um caso aparte. E nada mais natural que este cosmopolitismo atraísse o tio Fred, cada vez mais versado nas paixões políticas da sua pátria adotiva e à procura do seu pequeno lugar no grande drama da história. Sucedera que o velho deputado da extrema-esquerda Glais-Bizoin, (n. 1800) de Saint-Brieuc, um opositor dos Bourbons que se distinguia no parlamento menos pelos discursos do que pelas interrupções, vira proibida a representação de uma sua peça.   

    Vi-o e ouvi-o em Genebra, em 1866, quando os genebrinos ofereceram um banquete ao Sr. Glais-Bizoin, que ia protestar, perto do lago Genebra, contra a censura que proibia uma das suas comédias em Paris. Rigor estupidamente inútil: se a peça La vraie courage tivesse sido autorizada, nada teria mudado em França; não haveria nem mais um dramaturgo. Mas este bretão Glais-Bizoin, resoluto e militante, quis protestar contra a arbitrariedade. Fez com que a comédia proscrita em Saint-Brieuc e Paris fosse apresentada na Suíça; e à sobremesa, um distinto jovem, que era precisamente o Sr. Frédéric Kohn, fez-lhe um brinde eloquente.(…)”

    [CONTINUA]


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.