Autor: Maria Afonso Peixoto

  • ‘Num mundo woke, se eliminarmos qualquer expressão passível de ser ofensiva, acabaremos a não poder falar’

    ‘Num mundo woke, se eliminarmos qualquer expressão passível de ser ofensiva, acabaremos a não poder falar’

    De onde surgiu o denominado wokismo e a cultura do cancelamento? Jorge Soley, economista espanhol e professor universitário, acredita que o movimento remonta à Revolução Francesa, mas que bebeu muito do regime comunista de Mao Tsé-Tung. Em O manual do bom cidadão, editado em Portugal pela Dom Quixote, Jorge Soley explica as estratégias e mecanismos que os “zelotes wokes” utilizam para silenciar os “hereges” do século XXI, proibindo o debate, humilhando os “transgressores” e impondo a auto-censura. Evocando diversos casos de palavras, livros, estátuas, e pessoas “canceladas”, em Espanha e no mundo, apela para a resistência à ditadura do politicamente correcto, porque “a neutralidade já não é uma opção”. Em entrevista ao PÁGINA UM, Soley disseca este fenómeno, transversal a todo o Ocidente, não esquecendo de falar sobre os “cancelamentos” durante a pandemia.


    Há quem critique aqueles que falam do ‘wokismo’ por não definirem, propriamente, o termo. Como deve ser definido?

    Não é fácil defini-lo numa frase, porque creio que não seja um movimento unívoco, já que agrega diferentes influências. Mas se tivesse mesmo de o definir, diria que é a crença de que o mundo em que vivemos é estruturalmente horroroso e que temos de o transformar todo desde a raiz. E que quem quer que se oponha é má pessoa. Penso que há muitos aspectos da questão, mas um aspecto comum em todo o mundo ‘woke’ e politicamente correcto é não quererem discutir. Querem cancelar o debate. Eu tenho as minhas ideias, e há pessoas com ideias muito diferentes das minhas, e podemos falar e trocar argumentos; poderão até convencer-me que algumas das ideias que tenho são equivocadas e incompletas, e vice-versa. Mas, no mundo woke, algo muito característico é a eliminação do debate. Porque dizem: “não, se tu não estás de acordo com isto, és má pessoa, és a favor do racismo estrutural, das fobias, da homofobia estrutural, e contigo não se pode falar porque estás do lado errado da barricada”.

    No seu livro fala das origens do movimento woke, defendendo não ser fenómeno de agora. Como surgiu?

    Creio que é uma confluência de muitos factores e alguns, inclusivamente, contraditórios. Detecto na Revolução Francesa alguns elementos, por exemplo, com o que se passou durante o Terror. É a tal ideia de que todos os que não estão de acordo comigo são inimigos da Humanidade; foi o que aconteceu com Robespierre. Nos dois séculos que se seguiram, foram-se somando novos contornos e, no meu livro, falo da influência da Escola de Frankfurt, de Antonio Gramsci, de Mao. Mais do que Marx, de Mao. Acredito que Mao, Gramsci, e a Escola de Frankfurt são muito importantes para a visão ideológica do mundo woke.

    De um modo geral, as pessoas ficam surpreendidas com a comparação que estabelece entre o Maoismo e o wokismo? Acham exagerado…

    Bem, sim… O que é que eu encontrei em Mao? Encontrei vários elementos que me parece que são semelhantes ao que estamos a viver agora. Em primeiro lugar, chamou-me a atenção o facto de haver certas ideias não permitidas. Depois, outro paralelismo tem a ver com a Revolução Cultural. E também os fenómenos através dos quais, de repente, as massas se lançam sobre uma pessoa e a destroem. Evidentemente, na altura de Mao isso fazia-se com paus e afastando os professores que supostamente não compartilhavam do movimento maoista. Muitas vezes, havia castigos físicos. Hoje, evidentemente, o linchamento é feito nas redes sociais. Outro aspecto da Revolução Cultural é o exigir que os dissidentes, aqueles que não estão de acordo, se humilhem publicamente. E, para além disso, não basta humilharem-se, ficam estigmatizados para sempre. A escritora J. K. Rowling será para sempre uma “transfóbica”, porque já a rotularam assim. Mesmo que agora se arrependesse, seria igual, não valeria a pena, porque se pedir perdão é uma prova de que estava errado. Se eu cometo um erro, não tenho nenhum problema em pedir desculpa. Mas o que não vale a pena é desculpares-te numa tentativa de que te “salvem a vida”, ou que te perdoem, porque não te vão perdoar. Nem Mao, tão pouco, perdoava. A pessoa ficava marcada para sempre.

    Também é professor universitário, e as universidades, no mundo ocidental, têm tido um papel significativo na difusão do “politicamente correcto”. Em Espanha, como é a realidade nas universidades?

    Creio que em Espanha, como em todo o mundo ocidental, há alguns casos de professores submetidos a pressões, inclusive sob risco de perder o emprego, por dizerem o que teoricamente não se pode dizer: por exemplo, que há apenas dois sexos, e que a biologia não depende do que alguém pensa, é o que é. No entanto, penso que sobretudo o que procura a ideologia woke não é tanto castigar aqueles que dizem o que é supostamente incorrecto, mas sim a autocensura. E acho que em Espanha há muito medo e autocensura. Com a maior parte dos professores universitários vê-se uma grande diferença entre o que te podem dizer em privado e o que dizem publicamente. Ninguém quer problemas. Então, em privado diz-se algumas coisas, e depois, em público, sobre as “questões problemáticas”, fala-se de uma forma muito cuidadosa, e autocensuras-te. E penso que isso é um empobrecimento enorme para a dimensão intelectual. A meu ver, temos de dizer o que pensamos e argumentá-lo; a autocensura é sempre má. E, nas universidades, a autocensura está muito presente.

    Teve algum tipo de represálias ou reprimendas, no seu círculo profissional, por se insurgir contra o politicamente correcto?

    Na verdade, não tive problemas graves. Pode haver sempre alguém que te critica ou que te insulte, mas pessoalmente não me aconteceu nada de grave. E também é verdade que, onde estou, quem me rodeia até concorda mais ou menos com o que eu digo. Além disso, digamos, já tenho mais de 50 anos; se fosse um jovem universitário, com 25, 30 anos, teria mais cuidado e iria exercer uma maior autocensura sobre mim mesmo. Com a minha idade, já me autocensuro pouco.

    No livro, utiliza o termo “patologização do dissidente”, que consiste em, além de se acusar os críticos das pautas woke de “discurso de ódio”, atribuir-lhes fobias várias, o que permite cancelar o debate de uma forma até paternalista ou condescendente…

    Sim, parece-me que são tentativas de cancelar o debate, rotulam qualquer coisa de “discurso de ódio”, ou dizem que és louco e que padeces daquelas fobias. Por este caminho, acaba-se com a liberdade de pensamento e com a liberdade de expressão. Acho que é muito perigoso, e que se deve restringir o consenso do que é convencionado como discurso de ódio. Estritamente, deve ser algo que cause um dano real a outras pessoas. Tudo o resto tem de ser legítimo, numa sociedade democrática, e tem de se poder falar sobre. Na minha opinião, ninguém tem o direito a não ser ofendido. O problema da ofensa é determinar se houve ou não ofensa; é subjectivo, é da própria pessoa. Então, qualquer coisa, até uma pergunta, pode subjectivamente considerar-se ofensiva. Se aplicássemos esse critério, num mundo woke, se eliminarmos qualquer expressão passível de ser ofensiva, acabaremos a não poder falar. Então, acredito que temos que nos poder expressar em liberdade, e isso significará que haverá coisas que ofenderão as pessoas. Têm que se assumir isso nas democracias ocidentais, faz parte do debate poder ser ofensivo. A mim, há coisas que me dizem que me ofendem, mas eu, diante disso, em vez de “cancelar” quem o disse, tento dar-lhe argumentos para fazer a pessoa ver que aquilo que disse é um disparate. Se, ainda assim, a pessoa me quiser ofender, bom, é um problema seu. Mas, enfim, creio que é algo que faz parte da nossa vida em comum, da nossa civilização.

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    Há um apelo à vitimização?

    Sim, agora, parece que o segredo para prosperar nesta sociedade é encontrar um grupo ao qual possas aderir, e onde possas dizer que te vitimizaram, que és uma vítima. Houve um momento em que fazíamos piadas sobre “vitimizar” os gordos, os condutores de camiões, os comedores de pizza. E, o que era uma piada, entre amigos, agora, há quem o reivindique, dizendo que existe uma pizzafobia e que os comedores de pizza – que não comem saudavelmente – são vítimas de uma sociedade que os obriga a consumir. Ou seja, no movimento woke, perante qualquer disparate que te ocorra, é muito provável que se torne realidade – é apenas uma questão de sentar e esperar; se esperares algum tempo torna-se realidade.

    Fala também sobre como os “desejos” de certos grupos se transformaram em clamores por direitos. Acha que os wokes instrumentalizam a narrativa dos direitos humanos para conseguirem o que querem?

    Sim, eu creio que sim, existem direitos, que são universais e são para todos os Homens. Quando se fala nos direitos das minorias… quer dizer, são os direitos de todos, todos temos direitos! Aqui, o problema desta transformação do conceito de direito, é quando aquilo que eu desejo tem de se converter num direito. Se eu desejo, por exemplo, ter um filho, tenho o direito de o ter. E tenho de o ter, porque se é a minha vontade, então é o meu direito. Quando algo se transforma num direito desta forma… Um direito implica sempre um dever: o dever da sociedade e do Estado de garantir esse direito. Para mim, cada um tem o direito a tentar levar a vida que quiser. Mas não tem o direito a que esse direito lhe seja mesmo garantido, se por si mesmo não o consegue. Porque se o modo de vida a que aspiro envolve ter filhos, mas não os posso ter, eu não tenho nenhum direito a reclamar que, por exemplo, o Estado me pague um ventre de aluguer. O problema dessa inflação de direitos é que, no final, se gera uma inflação de deveres e isso parece-me muito perigoso, porque então, estamos a desvirtuar o que é a sociedade e o Estado para assegurar qualquer capricho de uma pessoa.

    Há quem argumente que ser contra o wokismo é ser contra a igualdade de oportunidades. Como responde a esta crítica?

    Acho que é o contrário. Opormo-nos ao wokismo é, precisamente, garantir igualdade de oportunidades para toda gente, independentemente do seu sexo, da sua raça, do que for. Nos Estados Unidos, a denominada política de identidade consiste em negar a igualdade para criar os novos privilegiados. Estes privilegiados são os grupos vitimizados. São os novos reis, os “aristocratas” que têm, por exemplo, ajudas do Estado, a quem se reservam lugares nas universidades e postos de trabalho. Os opositores do wokismo estão contra esta nova “artistocracia”; são a favor da igualdade de oportunidades para todos. Para grupos, minorias, todos. É um pouco aquilo que disse Martin Luther King, que sonhava com uma sociedade em que a cor da pele não tivesse importância. Eu creio que Martin Luther King, nisto, tinha razão. Hoje em dia, todos os defensores da Teoria Crítica da Raça, dizem que Martin Luther King era racista. Era um racista branco. Porque, afirmam, a sua visão, em defesa de uma sociedade em que ninguém é discriminado pela cor da pele, é, ao fim e ao cabo, consolidar o racismo estrutural branco. Mas eu acho que estão errados, e estou do lado de Martin Luther King.

    Sim, segundo esses teóricos, é possível que um negro demonstre “branquitude”, ao ser bem-sucedido e não se mostrar oprimido, por exemplo. Também alegam que todos os brancos são inerentemente racistas, sem excepção. Trata-se de argumentos circulares e, por isso, de falácias?

    Sim; não são, verdadeiramente, argumentos. Como são circulares, no final, digamos, são apenas dogmas de fé. Face a isso, não pode haver um debate racional, porque qualquer coisa que digas, para eles, demonstra precisamente que és um defensor do racismo estrutural. É igual. Não há debate, porque são afirmações dogmáticas e circulares.

    Cita vários exemplos de “cancelamentos”, nomeadamente sobre transsexualidade, orientação sexual e racismo. Também houve, recentemente, o tema da pandemia, que mereceu muitos cancelamentos e rótulos, a médicos e investigadores reputados. No seu livro, contudo, acaba por não abordar muito esta questão…

    Não sou cientista, por isso, na verdade, nunca me considerei negacionista nem nada, porque não tenho capacidade para julgar. Mas houve de tudo. Houve pessoas que disseram coisas que não se podiam comprovar; mas, depois, havia gente que dizia coisas pelas quais, num certo momento, foram canceladas porque se considerou que o que diziam era uma barbaridade, e que depois se viu que até tinham razão. Portanto, houve esse mecanismo de eliminar o debate com o rótulo de “negacionista”. Algumas pessoas, foram censuradas nas redes socais. E nas televisões públicas de Espanha foram excluídas porque expressaram dúvidas sobre o que dizia o Governo num dado momento. Coisas que, passado um ano, já se podia dizer e estava tudo bem, já não se era considerado negacionista por causa disso. Percebo que há momentos, como os que vivemos com a pandemia, em que havia muita incerteza e ignorância, não sabíamos o que enfrentávamos. Mas, apesar de tudo, há que assumir sempre riscos, é bom que as pessoas possam dar a sua opinião; e que possa haver um debate sobre as medidas, sobre as vacinas, os confinamentos e o seu impacto. Houve, por exemplo, uma pessoa que alertou para os confinamentos, porque poderiam ter um impacto muito negativo entre os adolescentes. E chamaram-no de tudo, disseram que não devia participar nos debates televisivos. E, agora, em Espanha, estamos a viver uma epidemia de suicídios adolescentes como nunca houve. Deveríamos tê-lo tomado em conta. Gostaria de pensar que, no futuro, se tivermos de enfrentar situações parecidas, possa haver mais debate e mais discussão civilizada, e ninguém seja destruído por dizer coisas diferentes das que diz, a cada momento, o Governo e o Ministério da Saúde.

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    Este livro tem como subtítulo “para compreender e resistir à cultura do cancelamento”. Como podemos, então, resistir e combater este fenómeno?

    Devemos combatê-lo de todas as formas. Podemos combatê-lo na nossa vida quotidiana, não cedendo, tendo a coragem de falar com naturalidade e dizer o que pensamos. Acredito que isso é muito importante, que cada um de nós possa dizer aquilo que quiser, e que o diga em público sem ter problemas. Se toda a gente fizer isso, é difícil que nos detenham. E, por outro lado, digo sempre, também, que temos de apoiar os meios de comunicação, universidades, políticos e intelectuais que falam abertamente contra o wokismo. Há que apoiá-los, porque pode ser-se corajoso, mas depois quando te atacam, é difícil. Eu já falei com pessoas que me disseram que se sentiam muito sozinhas por terem falado. Portanto, temos de dizer o que pensamos e, sobretudo, apoiar as pessoas com essa coragem. Há quem não tenha muita capacidade de influência, mas aquelas pessoas que têm, e que falam, devem ser apoiadas; escrevendo-lhes e mostrando-lhes o nosso apoio. Creio que tem de haver uma mobilização para que falemos. E, aliás, que se apoiem, por exemplo, os jornais que publicam entrevistas comigo [risos].

  • ‘Depois da sua captura, a história de Anne Frank é absolutamente terrível’

    ‘Depois da sua captura, a história de Anne Frank é absolutamente terrível’

    A trágica história da jovem judia Anne Frank percorreu o Mundo e comoveu gerações. Contudo, o famoso Diário da jovem judia termina quando ela e a sua família – o pai, Otto, a mãe, Edith, e a irmã, Margot – e mais quatro clandestinos num “Anexo Secreto” são capturados no final de 1944. Por isso, nada ela escreveu sobre as suas experiências nos campos de concentração. Depois do Diário é a obra que, fruto da investigação de quatro historiadores da Casa de Anne Frank, em Amesterdão, revela os passos que se seguiram. Um dos seus autores, o holandês Bas Von Benda-Beckmann, esteve em Lisboa e conversou com o PÁGINA UM sobre estes oito seres humanos que caíram nas garras do Terceiro Reich.


    O Diário de Anne Frank vendeu mais de 30 milhões de cópias. Ainda havia algo mais para dizer?

    Boa pergunta. Eu escrevi o livro em conjunto com colegas da Casa de Anne Frank, e uma das nossas missões é contar a história de vida de Anne Frank tão integralmente quanto possível. E este livro foi, obviamente, uma parte muito importante dessa tarefa. O seu diário é muito famoso, e milhões de pessoas em todo o Mundo o leram, mas a história dela não termina aí, certo? E uma parte muito importante começa no momento em que o diário termina. É um período da sua história onde há muitas lacunas, porque já não temos o diário. Até à captura, conseguimos ver pelos nossos olhos o que lhe aconteceu, e a partir daí já não. Houve alguns jornalistas que exploraram este tema e que procuraram testemunhas oculares, e as entrevistaram, o que é significativo, mas mesmo assim não conta a história de forma tão completa como precisaríamos. Portanto, o que fizemos foi tentar reunir todas as fontes disponíveis, como relatos de testemunhas oculares, mas também pedaços de informação que a administração alemã mantém, bem como outros diários e cartas dessa época. Juntámos tudo isso e tentámos reconstruir de modo tão preciso quanto possível aquilo que realmente aconteceu. E perceber também o que é que aconteceu aos outros ocupantes do Anexo Secreto, quais eram as condições nos campos de concentração, e para onde foram levados. Porque assim também vemos a verdadeira importância da sua história, que não é só o diário, mas também o que aconteceu posteriormente, e onde, como e quando é que eles foram mortos.

    Bas Von Benda-Beckmann

    Nessa tarefa de reconstrução, quais foram os maiores desafios? No livro abordam os problemas que advêm das testemunhas oculares, que muitas vezes providenciam relatos contraditórios, para além do grau elevado de subjectividade.

    Sim, é complexo. Aquilo que tentámos fazer foi, entre nós, verificar as fontes. Se temos testemunhas oculares que estiveram juntas na mesma altura, as suas histórias complementam-se ou contradizem-se? E quando alguma coisa é contraditória, qual será a versão mais provável? Portanto, tentámos ser absolutamente transparentes. Há coisas sobre as quais temos a certeza, e aí dizemos “isto foi o que aconteceu”, e outras vezes expomos as diferentes versões do que poderá ter acontecido, de acordo com uma testemunha, e o que poderá ter acontecido, de acordo com outra. E salientamos os pontos em que os seus testemunhos se contradizem.

    Houve algum aspecto surpreendente no vosso trabalho de pesquisa? Descobriram algo que não estivessem à espera?

    Há um par de coisas muito importantes e inéditas que vieram à luz com esta pesquisa. Durante muito tempo pensámos que Anne e Margot Frank morreram no final de Março de 1945; e através de uma reconstrução cuidadosa do que lhes aconteceu, pelo que relataram as testemunhas que as viram pela última vez, e que falaram sobre as doenças e as mortes de que elas padeceram, conseguimos saber que, na verdade, faleceram mais cedo, no início de Fevereiro. E isto pode parecer um pequeno detalhe, mas eu penso que o simples facto de ser tão difícil reconstruir a vida de alguém nesta situação e descobrir coisas básicas como quando foi o momento da sua morte, torna importante tentar fazer precisamente isso. Houve uma tentativa deliberada de apagar a história destes seres humanos e dos factos sobre o que lhes aconteceu. Portanto, desfazer isso e tentar juntar os pontos é algo que considero muito importante, não apenas por eles mas por todas as vítimas do Holocausto.

    Também destacam que alguns sobreviventes mostraram um certo desconforto e ressentimento por a história de Anne Frank se ter tornado tão conhecida, receber tanta atenção, quando é apenas uma entre milhões de vítimas do Holocausto. Como interpreta isso?

    Em primeiro lugar, eu consigo compreender esse sentimento, porque é verdade que a história desta família é muito importante, e toda a gente a quer ouvir, mas há também muitas outras histórias que foram esquecidas. E esse ressentimento também existe porque essas testemunhas oculares são entrevistadas e os entrevistadores perguntam-lhes muito sobre Anne Frank e a sua família, quando elas próprias também viveram algo muito dramático e horrível. Mas interessante é observar que estas vítimas não mostram apenas ressentimento, mas também ambiguidade, porque reconhecem a importância de Anne Frank como um símbolo na transmissão destas histórias e como alguém que é importante para espalhar a palavra sobre o que lhes aconteceu.

    Quais os motivos, na sua opinião, para a história de Anne Frank, em particular, se ter tornado tão conhecida?

    De muitas formas, ainda é um mistério. Penso que ajudou ela escrever realmente bem; portanto, o diário, se o lermos agora, mostra-nos mesmo o crescimento de uma jovem, que escreve sobre as suas emoções de uma forma muito vívida, e acho que isso ressoa em muitas pessoas. A certa altura simplesmente se tornou algo grande, fez-se uma peça de teatro e um filme, e tudo isso contribuiu para tornar a sua história famosa. Mas a pergunta é legítima: porque é que acontece a uma história e não a outra? É sempre muito difícil de dizer, e eu penso que talvez, se falarmos dos anos 1940 e 1950, quando a história de Anne Frank começou a tornar-se conhecida, provavelmente ajudou o facto de o diário não ser sobre o Holocausto. O diário é sobre uma rapariga num esconderijo e sobre a perseguição aos judeus, mas termina no momento em que o nosso livro se inicia. Não só na Holanda, mas noutros países também, não havia muito espaço para contar histórias horríveis sobre as vítimas e sobre o Holocausto em si, logo a seguir ao fim da guerra. O Diário é sobre esperança, e transmite muita positividade, enquanto que, se lermos o que sucedeu depois da sua captura, não existe qualquer espaço para positividade. Depois da sua captura, a história de Anne Frank é absolutamente terrível.

    Aborda também as hierarquias que se estabeleciam dentro dos campos, e dos kapos, que eram prisioneiros, alguns deles judeus, que exerciam a função de guardas. Porque é que o regime nazi criou esta dinâmica, em que uns prisioneiros obtinham privilégios e podiam mandar nos outros?

    Essa era uma parte da perversão no sistema dos campos, em que se dava a alguns prisioneiros poder sobre os outros, estimulando também que se tratassem mal entre si. A maioria dos kapos em Auschwitz não eram prisioneiros judeus, eram polacos ou presos políticos ou criminosos de guerra. Mas no campo de Westerbork, por exemplo, que foi o primeiro em que os Frank estiveram, aí já eram judeus, porque a maioria dos prisioneiros eram judeus. Mas isto era parte de um sistema mais abrangente de hierarquias, em que eram concedidos “privilégios” a algumas pessoas, o que acabava por ajudá-los a sobreviver aos campos. E os restantes, que não tinham estes privilégios, tinham uma experiência muito mais dura e menores chances de sobreviver. Portanto, era uma parte da realidade da vida nos campos, e penso que também assumiu um papel muito importante nas vidas dos ocupantes do Anexo, porque no caso de Peter van Pels – o rapaz que tinha mais ou menos a idade de Anne –, quando ele foi enviado para Auschwitz, através de alguns contactos conseguiu um trabalho muito bom como carteiro. Portanto, ele não era um líder nem um kapo nem nada do género, mas também estava numa posição privilegiada, porque podia abrir encomendas e tinha de desempacotar a comida e levá-la para o staff da cozinha, e assim conseguia muito facilmente guardar algum alimento para si. E, além disso, estava em posição de ajudar Otto Frank, que ficou doente em Auschwitz e teve de ir para o hospital, onde não havia cuidados médicos, por isso ele foi apenas deixado lá. Otto ficou muito dependente de Peter, que tinha uma posição que lhe permitia andar pelo campo e visitá-lo e dar-lhe comida extra. E isto foi muito importante para a sobrevivência de Otto. Por isso, sim, a posição em que se era colocado e o trabalho que se conseguia tinham um papel preponderante nas hipóteses de se sobreviver.

    Também destaca aqueles que eram os primeiros a chegar aos campos, que se tornavam uma espécie de veteranos e podiam deter alguma vantagem sobre os que vinham depois.

    Sim, isso é verdade, sobretudo para o campo de Westerbork. Os kapos de lá eram quase exclusivamente refugiados judeus da Alemanha, enviados para este campo durante o final da década de 1930, portanto, antes da invasão da Polónia. Era um campo de refugiados antes de os alemães o tornarem num campo de trânsito para as deportações. Por isso, alguns destes judeus já lá estavam no campo e, quando se tornou num campo de trânsito, eram os prisioneiros mais antigos. E eles conseguiram esses trabalhos mais cobiçados, e como eram alemães, falavam a língua, por isso era mais fácil para os guardas da SS [abreviatura de Schutzstaffel, autoridades do regime nazi] – que eram muitos poucos nos campos –, e para os chefes, trabalhar com eles. Portanto, era muito claro que estes prisioneiros mais velhos se tornaram nesta espécie de classe mais alta, responsável por guardar os restantes prisioneiros.

    Portanto, todos esses factores aumentavam consideravelmente as hipóteses de sobrevivência.

    Exactamente. E vemos, de uma forma muito clara, no caso de Peter van Pels [um dos ocupantes do Anexo Secreto] que esses privilégios podiam perder-se muito abruptamente. Quando Auschwitz estava prestes a ser libertado, e todas as pessoas do campo foram evacuadas e postas em marchas de morte para os outros campos – Otto estava no hospital e, por isso, ficou para trás –, Peter foi levado para Mauthausen, e aí perdeu todos os privilégios. Passou a estar num novo campo, as regras eram diferentes, e voltou outra vez à estaca zero. E nós também utilizámos a entrevista de outro rapaz judeu da Holanda com o mesmo percurso e que teve o mesmo tipo de posição em Auschwitz, e ele explica o choque que foi perder a posição que tinha, e caminhar na marcha da morte, ser maltratado e agredido. Mal sobreviveu. Esse rapaz sobreviveu, mas Peter não aguentou. O mais trágico é ele ter sobrevivido até à libertação do campo, mas, poucos dias depois, faleceu.

    Campo de concentração de Bergen-Belsen, onde Anne Frank morreu em Fevereiro de 1945.

    Outra parte que chocou muitas pessoas foi a existência de guardas femininas nos campos, capazes de cometer actos de grande crueldade. Qual era o papel destas mulheres?

    Na maioria dos campos, os homens e as mulheres eram separados uns dos outros. Em muitos dos campos, as zonas onde as mulheres ficavam eram fiscalizadas por mulheres. Não eram guardadas apenas por mulheres, mas as mulheres desempenhavam um papel importante nessas áreas.

    Para o regime nazi era relevante serem mulheres a vigiar outras mulheres?

    Sim, mas não era algo exclusivo dos nazis; era algo bastante comum de se fazer, optar-se por ter guardas femininas a supervisionar prisioneiras. Essas guardas-mulheres foram criadas e treinadas entre os nacionais-socialistas nesta linha de tratamento duro e de radicalização, numa forma muito semelhante aos homens. Acho que esta perplexidade sobre o papel dessas mulheres talvez diga mais sobre o que nós pensamos que elas deveriam ser. Se pusermos pessoas – sejam homens ou mulheres – neste tipo de treino e de pensamento, que vêem os prisioneiros como não sendo humanos como nós, é algo que pode acontecer. De facto, creio que, depois da guerra, as guardas-mulheres em particular foram tratadas como se fossem loucas, enquanto que, relativamente aos homens, se esperava mais que eles fossem violentos sem que isso fosse visto como fruto de alguma perturbação mental. Nos processos em tribunal depois da guerra, vemos que estas mulheres foram frequentemente tratadas como sendo loucas.

    A proporção de guardas masculinos e femininos era semelhante?

    Não, não, havia muitos mais guardas masculinos do que femininos.

    Também é interessante que, como é referido várias vezes no livro, Otto Frank, e outros sobreviventes, não se tenham estendido muito nos seus depoimentos e não falaram sobre as suas experiências com detalhe…

    Sim, seria de pensar que Otto Frank providenciaria um depoimento mais extenso. E eu acho que isso de pedir-se às pessoas que nos contem as suas histórias de vida em grande detalhe é algo que nós, como sociedade, só começámos a fazer já depois de ele ter morrido. Portanto, nós vemos projectos como o USC Shoah Foundation, ou o History Project nos Estados Unidos, em que pedem às pessoas para testemunhar durante horas e horas sobre o que lhes aconteceu, mas isso só começou por volta dos anos de 1990. Então, nós vemos com frequência que estes testemunhos mais iniciais não são tão detalhados como os testemunhos posteriores. Creio também que Otto acreditava em contar o que lhe aconteceu, a ele e aos judeus em geral, utilizando o diário da filha. O Diário foi algo ao qual ele dedicou a sua vida. Ele estava disposto a falar um bocado sobre a sua experiência, mas o mais importante sempre foi o diário de Anne, a história dela. De resto, talvez se devesse também a razões psicológicas, e definitivamente terá que ver com o trauma por causa de tudo o que passaram.

    Isso obstaculizou de alguma forma a investigação do Holocausto?

    Um obstáculo… Sim, por vezes queríamos falar mais sobre o que aconteceu. Felizmente, temos outras testemunhas que tiveram vidas longas e foram entrevistadas já após a morte de Otto, e que complementam a história contando as suas experiências. Alguns amigos de Otto deram testemunhos muito detalhados sobre como sobreviveram juntos a Auschwitz, e como tentaram não desistir. Portanto, sim, tivemos que olhar para outros depoimentos.

    Já se passaram quase 80 anos desde o fim da Guerra, e este livro ainda traz novos dados sobre esta já tão conhecida história. Ainda há margem para novas desenvolvimentos no futuro?

    É sempre difícil de dizer. Já percorremos um longo caminho, sobretudo quanto ao período nos campos. Surpreender-me-ia se descobríssemos algo completamente novo para acrescentar a esta história, até porque este livro não é apenas o resultado da nossa pesquisa para a Casa de Anne Frank, mas também reúne tudo o que fizemos e pesquisámos durante as últimas décadas. Portanto, seria surpreendente encontrar algo novo, mas nunca temos certeza na investigação histórica. É sempre possível que novas informações se revelem. Por outro lado, nas biografias destas pessoas, que terminam nos campos de concentração, penso que há mais terreno para desbravar relativamente às suas vidas na Alemanha antes de terem sido obrigadas a fugir para a Holanda, e ao período que antecede. Nunca se sabe. Da família Frank, claro, já sabemos bastante. Mas dos outros ocupantes do Anexo e dos ajudantes, acho que ainda haverá mais coisas para contar, sim.

  • ‘A agenda dos activistas antirracistas é criar uma narrativa com o homem negro no centro da História’

    ‘A agenda dos activistas antirracistas é criar uma narrativa com o homem negro no centro da História’

    Doutorado em História pela Universidade Nova de Lisboa, João Pedro Marques foi professor universitário e do ensino secundário e investigador do Instituto de Investigação Científica Tropical, além de romancista de créditos firmados. Especialista em História da Escravatura, tem sido uma das principais vozes críticas contra o politicamente correcto em redor das questões raciais de séculos passados. “Descobrimentos e outras ideias politicamente incorrectas“, a sua mais recente obra, integra sobretudo um conjunto de textos publicados na imprensa nos últimos anos onde contraria alguns dos argumentos que defendem a demolição de estátuas ou as alterações da toponímia para apagar algumas figuras da História Colonial. Numa conversa politicamente incorrecta com o PÁGINA UM, com o foco principal na escravatura, mas abordando também o wokismo e ainda Joan Baez e até George Orwell.


    Existe a ideia de que foram as revoltas dos escravos que foram determinantes para a abolição da escravatura. Mas no seu livro destaca a preponderância do movimento abolicionista na libertação dos escravos nas colónias, e do papel dos ocidentais nesse processo. E defende que o primeiro país a abolir a escravatura foi o actual Haiti, antigo Saint-Domingue

    Essa opinião está errada. Quer dizer, estritamente falando, está errada. Repare, o jogo aí é utilizar a palavra “país”. É isso que condiciona, deturpa e esconde o que foi a realidade. Os estados do norte dos Estados Unidos da América já estavam a abolir a escravidão. Começaram a fazê-lo na década de 70 [do século XVIII], ou seja, quase 30 anos antes de o Haiti se ter tornado independente [em 1804]. O Vermont, a Pensilvânia, Nova Iorque… A pouco e pouco, esses estados do norte dos Estados Unidos iam abolindo, de uma forma gradual, a escravidão. Mas naquilo que viria a ser o Haiti, já a França tinha abolido a escravidão. Ou seja, o primeiro país a abolir a escravidão, foi a França. Globalmente, foi a França, em 1794, em plena revolução francesa. O comissário francês que na altura estava na colónia francesa então chamada São Domingos [Saint-Domingue], um indivíduo chamado Sonthonax, em 1803 decretou a abolição da escravidão. No ano seguinte, a Assembleia em Paris ratificou a medida do seu comissário e aboliu em todas as colónias da República Francesa. Portanto, o primeiro país a abolir a escravidão foi a França. É verdade que, adiante, no tempo de Napoleão, a medida foi revertida. Em 1802, Napoleão repôs a escravidão. E quando o Haiti se tornou independente constitucionalmente, em 1804, aboliu definitivamente a escravidão nessa região. Mas, como vê, a história é mais complexa do que essa visão taxativa. De facto, os abolicionistas foram decisivos. Sem os abolicionistas, boa parte dos quais brancos, não teria havido abolição. Isto não é uma opinião exclusivamente minha. Muitas colegas historiadores defendem este ponto de vista, mas são quase todos velhos como eu, não é? Anteriores à chegada do wokismo.

    João Pedro Marques

    E até que ponto é que os próprios africanos colaboraram, eles próprios, com o tráfico transatlântico de escravos? Porque parece ter-se muito a crença de que os ocidentais forçaram essa prática aos povos africanos.

    Que forçaram, e que assumem o ónus de todo o processo, não é? Mas não. Foi um negócio, horrível, de mútuo acordo. Aliás, os ocidentais não tinham possibilidade técnica, material, humana ou médica de penetrar em África. Antes dos anti-malários, e, depois, das vacinas contra a febre amarela, a entrada naqueles territórios era mortífera.

    Então, eles não teriam sido capazes de levar a cabo este processo sem a colaboração africana?

    Não, sem haver um sistema montado, nunca teria sido possível transportar aquele número de pessoas para as Américas. Portanto, foi qualquer coisa feita em colaboração estreita, recíproca, e para benefício mútuo – é uma ideia que é importante acentuar – dos dois lados da equação. Os africanos ganhavam de uma forma diferente daquele que era o ganho dos ocidentais. Os ocidentais ganhavam de uma forma que se convertia em moeda, tinham um lucro económico com todo o processo, com foco no tráfico, regra geral, que não era muito lucrativo. E, depois, aproveitando o trabalho dos escravos nas minas e nas plantações, e por aí fora, nas Américas. Isso, de facto, produzia muita riqueza. O açúcar, os produtos coloniais, produziam muita riqueza. Os africanos que estavam envolvidos no tráfico de escravos também ganhavam. Ganhavam num registo que, para nós, ocidentais, não fazia muito sentido, mas que nas sociedades africanas era muito valorizado. Ganhavam em termos de prestígio e de poder político. Aquilo que os ocidentais levavam para lá, que para nós não tinha um valor por aí além – como têxteis ou tabaco de terceira qualidade, que os africanos adoravam, mas que para nós aqui no Ocidente nem sequer era permitido vender – era escoado para a costa de África e, com esses produtos, os africanos competiam. Distribuíam aquilo e obtinham subordinação e fidelidade política e dependentes. E, portanto, isso era, para eles, do ponto de vista social e económico, muito recompensador. Por isso se envolveram naquele negócio, não foram forçados a fazê-lo.

    Já tem salientado que a escravatura é imemorial, e que o que foi, de facto, específico ao Ocidente não foi a prática da escravatura – que sempre existiu –, mas sim a sua abolição. Considera assim que, por parte de certos sectores da sociedade, existe uma desvalorização do papel dos europeus na abolição da escravatura, certo?

    Isso acontece porque há uma agenda política. Essa agenda política tem como objectivo – o que é compreensível, e até é louvável e respeitável – elevar as comunidades afrodescendentes e colocar os negros no centro da História.

    E isso passa por realçar o papel das revoltas escravas?

    Sim, realçar todo o papel dos escravos – negros, muitas vezes – e descobrir e enaltecer heróis entre eles e, simultaneamente, reduzir a importância dos povos ocidentais, dos brancos.

    E são os próprios ocidentais a fazê-lo, apelando muitas vezes a um sentimento de culpa, não é? Esse movimento de autoflagelação também acontece fora do Ocidente? É comum todos os povos auto-denegrirem o seu passado e a sua História?

    Não, é uma doença específica do Ocidente. Nós não vemos os povos muçulmanos fazerem isto, e estiveram envolvidos no processo escravocrata da mesma forma. Enfim, com variações, não é? No Ocidente importavam-se maioritariamente escravos do sexo masculino, força de trabalho para usar nas plantações do açúcar, por exemplo. No mundo muçulmano importavam-se sobretudo mulheres e crianças. Pela sua capacidade reprodutiva, para haréns e coisas desse tipo. Digamos que são complementares, não é? O que sai através do Atlântico é maioritariamente masculino, e o que sai através do deserto Saara e do Oceano Índico, é maioritariamente feminino. Mas as condições de transporte e de exploração, o quantitativo, são muito equivalentes. E ninguém vê o mundo muçulmano a rasgar vestes e a culpabilizar-se por tudo isso que se passou.

    E os asiáticos, por exemplo?

    Também. A escravatura é qualquer coisa de intemporal e disseminada à escala do planeta. Desde a Coreia até à América, anterior à chegada de Cristóvão Colombo. Saiu recentemente um trabalho de historiografia importante, uma obra colectiva, que faz o ponto da situação no estado actual dos conhecimentos. Chama-se Cambridge World History of Slavery. E vai desde a escravatura antiga, desde a Mesopotâmia, Roma e Grécia, até à escravatura recente, de final do século XIX, princípio do século XX. E encontra lá muitos países. A Turquia, a Coreia, a Índia, o Japão… Havia escravos em todo o lado.

    No seu livro fala também da vontade de activistas antirracistas de reescrever alguns pontos da História. Estão a conseguir?

    Eu já não dou aulas no secundário há muito tempo, e já não estou muito por dentro. Dei uma olhadadela nos programas, mas já não estou lá. Mas eu suspeito e receio que os activistas estejam a ganhar, e que estejam a impor a sua agenda a pouco e pouco, subterraneamente. O poder político não se tem pronunciado sobre isso, mas eu acho que eles vão cedendo às pressões. Tal como cederam, tanto quanto se consegue perceber, no caso do Museu dos Descobrimentos.

    Foi prometido por Fernando Medina, quando presidente da autarquia de Lisboa… Entretanto, ficou em águas de bacalhau?

    Aparentemente. Nunca mais ninguém falou nisso. O assunto discutiu-se em 2018, fazia parte do programa do governo camarário de Fernando Medina. Em 2018 começou a haver muita contestação, por parte de grupos académicos e de associações de afrodescendentes. E a partir daí deixou de se ouvir falar no Museu dos Descobrimentos.

    Em paralelo, há quem defenda a construção de um Memorial da Escravatura.

    Exactamente, e eu não tenho nada contra um Memorial da Escravatura, desde que não se encha o país de memoriais da escravatura, não é? As coisas têm a proporção que têm. Agora, uma coisa não deve obstaculizar a outra. Um memorial da escravatura, sim senhor. Um museu dos Descobrimentos, com certeza.

    Qual seria a importância de um Museu dos Descobrimentos?

    Enorme. Os Descobrimentos têm um papel muito importante na História do nosso país, e da nossa identidade como povo. E na forma como os outros nos reconhecem historicamente, não é? Como nos identificam historicamente. Portanto, querer denegrir os Descobrimentos, e apontar só os seus aspectos nocivos, sangrentos e violentos – que todos os grandes processos históricos infelizmente têm –, é algo inescapável e, trágico. Pondo apenas o foco nisso, e querer, inclusivamente, banir a própria palavra… eu acho isso de uma burrice e de um fanatismo indescritível. Isso corresponde, de facto, a subverter as coisas e a aplicar uma agenda política.

    Um dos argumentos contra o uso da palavra Descobrimentos é que os nativos não se sentiram descobertos quando os ocidentais lá chegaram…

    Como acontece em qualquer relação interpessoal ou internacional. Quando eu encontro alguém, posso sentir-me de uma determinada maneira, e isso não quer dizer que a outra pessoa se sinta da mesma forma. Mas é a minha maneira, sou eu que sou o narrador.

    Tem de se escolher uma perspectiva para contar a História?

    Pois, não se pode contar a História de todas as perspectivas em simultâneo. Tem de se ter uma perspectiva. E eu não tenho nem devo abdicar da minha perspectiva só porque aquele senhor ali ao lado não gosta, porque não é a dele. Pois não, é a minha!

    No seu livro dá até o exemplo do Museu da Liberdade em França…

    Exactamente. Houve muita gente na Revolução Francesa que não se sentiu nada libertada, pelo contrário. E não é por isso que deixa de se chamar Museu da Liberdade ao museu sobre a Revolução. E por aí fora, podíamos aplicar isso a muitas situações… Nunca se agrada a toda a gente, é impossível. Mas não é por isso que temos de abdicar de designações.

    Critica também a “febre” da remoção de estátuas e renomeações de ruas, por evocarem pessoas que possuíam escravos, pela sua incoerência. Dá até o exemplo da rebaptização de uma rua de Nova Iorque em homenagem a Jean Jacques Dessalines, que mandou matar milhares de brancos após a Independência do Haiti…

    Foi o homem que tornou o Haiti independente. Era um general subordinado de Toussaint Louverture, e ex-escravo. Louverture não era escravo. Ou seja, tinha sido, mas na altura em que surge a revolução, Louverture já era um homem livre e proprietário de escravos. Mas Dessalines teve uma rua baptizada com o seu nome, e foi um torcionário. Ao contrário de Louverture, que era um contemporizador e um indivíduo que queria proteger a comunidade branca da colónia francesa que viria a ser o Haiti… queria harmonizar as tensões entre os brancos, os mestiços e os negros. Este Dessalines, não. Era um tipo vingativo, e terá mandado matar cerca de cinco mil pessoas. É isso que eu digo: as perspectivas são, muitas vezes, diferentes e conflitantes.

    Mas, supostamente, o objectivo de renomear ruas é expurgar a violência e as atrocidades do passado…

    Expurgar a violência dos brancos, não é a violência dos negros. Não se refere a violência dos negros, mas não imagina o que foi a revolta de escravos do Haiti. Eu não lhe vou dizer para não lhe dar pesadelos. Ninguém fala nisso, mas foi uma coisa verdadeiramente aterradora. A tal ponto aterradora que, no mundo ocidental, ficou, durante décadas, a imagem do Haiti como o pesadelo. O pesadelo no mundo colonial era aquilo. De tal modo que, 70 anos depois, aqui nas cortes portuguesas em Lisboa, quando surgiam casos de escravos em Luanda que mataram um senhor, ou havia pequenos tumultos… nunca houve revoltas escravas em Luanda, mas houve uns incidentes na altura, e o assunto foi discutido nas cortes, no Parlamento de então. E ainda se evocava o caso do Haiti, o caso de São Domingos. Portanto, repare bem até que ponto o que se passou lá ficou marcado e impressionou extraordinariamente as pessoas. Os extremos a que aquilo foi levado.

    Não houve mais nenhuma revolta dessa dimensão nas outras colónias africanas?

    Houve revoltas escravas, mas com aquela dimensão e com aquele nível de terror, não. Porque a própria colónia estava em guerra, e é preciso dizê-lo, porque esta parte não é contada, não é? É contada como tendo sido a revolta escrava que provocou tudo aquilo. Mas não. A colónia já estava em guerra devido à Revolução Francesa, já estava em tumulto e em conflito. Entre os mestiços e brancos, realistas e republicanos. E, quando a revolta surge, torna tudo muito mais complicado. Pior ainda quando os ingleses e os espanhóis intervêm. Portanto, aquilo foi um tumulto de todo o tamanho. E, mesmo quando o país se tornou independente em 1804, e passou a existir o Haiti em vez da colónia francesa de Saint-Domingue, continuou em guerra civil. Entre o norte, do imperador Dessalines, e a parte sul da colónia, onde prevaleciam os homens livres mestiços. Portanto, continuou com uma guerra civil durante imenso tempo. E o país ficou completamente destruído. Ainda está.

    E essa revolta teve um efeito dominó no processo de abolição da escravatura? Foi o que permitiu a libertação que viria a acontecer nas restantes colónias?

    Não teve. Nenhuma potência quis reproduzir uma coisa daquelas. Aquilo só é explicável no contexto da Revolução Francesa. Se tivesse sido num outro contexto, não teria acontecido, nem se teria propagado daquela forma. O que acontece é um esfarelamento do poder político francês, com todos aqueles tumultos e convulsões. Sem a Revolução Francesa não é explicável. É explicável uma revolta, mas teria ficado confinada, como, aliás, em vários momentos do processo esteve para ficar. Só não ficou porque os ingleses e os espanhóis entraram na guerra, e Sonthonax, o comissário de que falei, precisou de gente para combater. Então, libertou os escravos. Portanto, é um contexto muito particular. A única coisa onde houve uma influência exterior, foi no apoio que o Haiti já independente deu a Simón Bolívar, na altura das lutas pela independência do que viria a ser a Venezuela. Aí, o Haiti apoiou, com soldados. Mas foi a única coisa, não interferiram em nada. No meu ponto de vista, a revolta do Haiti teve um efeito contraproducente para a liberdade das outras colónias, porque o poder político e os senhores tornaram-se muito mais vigilantes e punitivos do que já eram. Não houve nenhuma repetição daquilo nos anos seguintes. O fim da escravidão nos outros países aconteceu décadas depois, e por um processo completamente diferente.

    Outra coisa que salienta, é que muitos dos escravos revoltosos, não se insurgiram contra a escravatura em si, mas apenas contra a sua própria condição de escravos. E refere também que muitos deles, como homens livres, adquiriam escravos. Acha que as pessoas, de modo geral, têm noção disso?

    Não, isso é omitido. Mesmo na própria revolta do Haiti, é sempre omitido que Toussaint Louverture tinha escravos, que era livre e tinha escravos. É sempre omitido que os líderes da revolta escrava – que foram várias pessoas ao longo do tempo – mas, antes de Toussaint se ter tornado líder, que eram dois escravos chamados Georges Biassou e Jean-François, faziam comércio de escravos.

    Escravos negros?

    Escravos negros. Mulheres, sobretudo; vendiam-nas para os espanhóis. Isso é tudo omitido, tudo escondido. Não se refere isso porque, lá está, não convém. Não é politicamente correcto dizê-lo. Mas, para um historiador, essa é que é a verdade. Aliás, esses indivíduos nunca se juntaram, depois, a Toussaint Louverture e aos franceses. Continuaram fiéis à Espanha, e, quando o exército da República Francesa no Haiti, comandado por Louverture, foi ganhando a guerra, eles acabaram por sair da colónia. Jean-François foi aqui para Espanha, Cádis, se não me engano. E Biassou foi para a zona do Louisiana. Portanto, os líderes da revolta escrava continuaram a escravizar. E não queriam a liberdade para os escravos todos, era só para eles e para as famílias.

    Na verdade, ainda existe escravatura, com particular destaque para África e a região da Ásia e do Pacífico…

    Sim, mas repare, a escravatura tornou-se ilegal em todo o Mundo. Não nos podemos esquecer que antigamente era legal. Implicava uma forma de propriedade legalmente reconhecida. Isso agora tornou-se ilegal. Mesmo em países como a Mauritânia, que ainda a praticam, é ilegal. Mas existem é situações de exploração do trabalho e do corpo, escravatura sexual. Por exemplo, eu às vezes vejo números, com mulheres e crianças, coisas aterradoras. Aos milhões. Mas, tudo isso é ilegal. Agora existem formas de exploração do trabalho que são similares. Trabalho forçado, por exemplo, mas a pessoa não é propriedade daquele que a explora. Enquanto que, antigamente, era. Tinham direitos totais sobre a pessoa, inclusivamente sobre a sua prole. Em princípio, legalmente, isso acabou.

    Mas o jornal The Guardian, por exemplo, em 2019 reportava a existência de 40 milhões de pessoas em condição de escravatura moderna. Claro que temos de ter em conta o facto da densidade populacional ser hoje bastante superior…

    Mesmo assim, comparado com os 12 milhões e meio que terão ido, ao longo de mais de quatro séculos, de África para as Américas, dá-nos ideia da dimensão do problema.

    Tem conhecimento de alguns destes activistas antirracistas, que têm condenado diligentemente o passado escravista do Ocidente, fazerem algo para combater o actual flagelo da escravatura moderna?

    Não faz parte da agenda deles. A agenda dos activistas antirracistas é, de facto, criar uma narrativa com o homem negro no centro da História. Ainda no ano passado – eu não vi o filme, mas falei disso com o meu filho, que é crítico de cinema no Expresso –, foi lançado um filme chamado A Mulher Rei, que é sobre aqueles regimentos a que os ocidentais chamavam amazonas. Amazonas, por analogia com a mitologia greco-romana. Eram mulheres guerreiras do reino de Daomé, que corresponde ao Benim actual, e existiu mesmo. Foram mesmo reais essas amazonas, essas mulheres guerreiras, que eram um regimento que fazia parte da Guarda do reino… e eram temíveis em combate, até porque os homens, os ocidentais, como os soldados franceses, tinham algum retraimento em matar mulheres. E, portanto, sofriam baixas enormes em combates com elas. O cavalheirismo do século XIX… [risos].

    Interessante, é engraçado isso…

    É, não é? Mas, de facto, elas eram terríveis, e muito resistentes fisicamente, tinham uma grande capacidade de sacríficio… Mas, no filme, são representadas como combatentes contra o tráfico de escravos. E o reino de Daomé era um cerne do tráfico de escravos! Portanto, a História está completamente pervertida.

    people harvesting crops painting

    Isso acaba por transmitir uma mensagem, apesar de ser ficção.

    Passa a mensagem dos negros a combaterem o tráfico de escravos, quando era o contrário, o reino de Daomé vivia disso. Era um reino guerreiro, guerreava os povos em redor, escravizava-os e vendia-os aos ocidentais.

    Estes episódios de reescrita do passado que se têm sucedido de diversas formas, levou-o, inclusivamente, a fazer uma comparação com o livro 1984, de George Orwell. Acha mesmo que está a haver essa manipulação da História?

    Sim, uma reescrita. Em 1984, o protagonista Winston Smith, do Ministério da Verdade, tinha a função de reescrever as notícias do passado para que elas se ajustassem ao presente. Isto é um pesadelo. Então para um historiador, é um duplo pesadelo. Mas para qualquer pessoa, não é? Porque se perde a noção da espessura do tempo, da diferença, que é para isso que a História serve, para explicar a diferença.

    Não é para julgar?

    Não, não é para julgar, isso é os tribunais. E, de facto, o que está a haver hoje em dia, na narrativa histórica, mas não só, é um esforço de reescrita inclusiva, de textos do passado.  Pense, por exemplo, que já houve propostas – e que penso que foram levadas avante em certos estados norte-americanos –, de reescrever certas passagens de livros. Por exemplo, o livro do Mark Twain, todas as partes que têm uma linguagem…

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    Considerada racista…

    Sim. É óbvio, aquilo passava-se numa sociedade racista! Portanto, as personagens falam como falavam as pessoas daquela altura. Agora, tem de ser corrigido. Corrigido, suprimido, adaptado ao tempo. Até dei, num artigo para o Diário de Notícias, a propósito das demolições de estátuas e da correção da linguagem, o exemplo de Joan Baez. Baez ainda é viva, mas foi uma cantora de intervenção muito famosa na década de 60. E, em 1971, ela teve uma música de muito sucesso chamada The Night They Drove Old Dixie Down. Ela descreve a noite em que o Sul perde a guerra civil, a bandeira é arriada, o general Robert E. Lee rende-se… E refere Robert E. Lee, comandante das tropas do Sul. Essa letra hoje em dia seria proibida! Isto é aterrador, nós pensarmos que a rainha do progressismo na altura, que era ouvida em todos os campos universitários e estava na primeira fila da contestação e do espírito revolucionário, hoje em dia seria banida.

    Ou “cancelada”, como se diz hoje em dia…

    Seria cancelada. É impressionante, não é? Isto é pior que 1984.

    No seu livro também aborda a pressão que os historiadores hoje sofrem para se conformarem com essas posições. Por outro lado, há alguns historiadores que defendem mesmo este tipo de práticas expurgatórias do passado. No seu círculo, vê mais colegas coniventes com essa ideologia, ou outros que pensam de forma igual a si?

    No meu círculo – que é uma coisa restrita, até porque estou fora da Academia já –, são sobretudo aqueles que concordam comigo, muitos dos quais não se pronunciam, por razões que eles saberão. Agora, vejo, fora do meu círculo, muitos historiadores activistas e que escrevem sobretudo no Facebook e nas redes sociais. Vejo, nesta área das ciências sociais e humanas, um grande activismo nas universidades. Activismo da parte de uns, silêncio da parte de outros.

    E também há activistas que não são historiadores…

    Muitos, eu diria que são talvez a maioria, não é? Antropólogos, sociólogos, jornalistas… Eu diria que a maioria não são historiadores. Há dois ou três historiadores que têm uma intervenção, os outros estão mais discretos. Não se metem muito nisto.

    Já começou a estudar a escravatura colonial há mais de trinta anos. Quando é que começou a dar-se conta deste movimento revisionista dessa época da História, que se iniciou nos Estados Unidos?

    Para mim foi um bocado surpreendente, digo-lhe com toda a franqueza. Comecei a dar-me conta, e escrevi sobre isso, num livro que publiquei em 2006 chamado Revoltas Escravas. Foi a primeira edição desse livro aqui, que depois veio a ser traduzido nos Estados Unidos e em Inglaterra. E, depois, foi reeditado em Portugal no ano passado. Mas, em 2006 dei-me conta do peso disto em França, porque um colega meu francês, que se chamava Olivier Pétré-Grenouilleau, começou a ser alvo de uma pressão enorme. Queriam expulsá-lo da universidade e por aí fora. Ele ainda me pediu para que eu testemunhasse a seu favor, e eu acedi. Portanto, na altura, eu apercebi-me disso em França e nos Estados Unidos, e escrevi: Deus queira que isto nunca chegue cá! Deus não me fez a vontade [risos].

    Chegou a todo o lado [risos].

    Eu sabia que iria chegar cá, mais cedo ou mais tarde. Mas, quando chegou, fui colhido de surpresa. E chegou em 2017, na sequência da ida do presidente da República ao Senegal e das declarações que ele fez sobre a escravatura, e sobre Portugal ter abolido a escravatura. E, aí, de repente, houve um sector da opinião pública, ligado sobretudo à extrema-esquerda, que caiu em cima dele. E aí eu percebi a dimensão que aquilo tinha. Fui-me apercebendo. Já mais recentemente, em 2017, cheguei a escrever um artigo no Público onde contei a história do meu colega Olivier Grenouilleau e a pressão enorme que os grupos de activistas de afrodescendentes exerceram, com ameaças à família e por aí fora. E sabe porquê? Porque ele deu uma entrevista em que disse coisas deste género, que para qualquer historiador são óbvias e evidentes: o objectivo dos negreiros não era matar pessoas, era transportá-las vivas, se possível, para o outro lado do Atlântico. Por causa disso, acharam que ele era um perigoso racista, e exerceram imediatamente pressão para que fosse expulso da universidade. Isso gerou, de uma parte dos historiadores franceses, um movimento de solidariedade. Outros historiadores franceses antagonizaram-no, mas os mais prestigiados, diria eu, puseram-se do lado dele e criaram até um movimento chamado Liberté pour l’Histoire, em sua defesa.

    A pressão agora é tal que, se fosse hoje, talvez esses historiadores já não tivessem coragem de se insurgir em defesa de Grenouilleau…

    Se fosse agora já não seria assim, mas aqui já estou a especular. Em Portugal não tem sido assim, porque isto é um debate que dura desde 2017, portanto já vai para seis anos, e têm sido pouquíssimos os historiadores que se têm pronunciado.

    No seu caso, tem-se pronunciado bastante. Isso tem-lhe valido muitas críticas?

    Sim, sim, este mês já saiu até um artigo meu no Observador sobre isso [Não conseguem cancelar? Difamem]. Nas redes sociais, sim, sou um alvo a abater [risos]. Mas eu acho que posso bem com isso.

  • ‘Na literatura, a infância é a chave’

    ‘Na literatura, a infância é a chave’

    O escritor guatemalteco Eduardo Halfon esteve em Portugal para participar no FOLIO 2022 – Festival Literário Internacional de Óbidos, e aproveitámos esta visita para falar com o autor, que em 2019 venceu o Prémio Internacional do Livro Latino e em 2007 foi considerado um dos 39 melhores escritores latino-americanos pelo Hay Festival de Bogotá. O romancista acaba de lançar Un Hijo Cualquiera em Espanha, mas o seu mais recente livro a chegar a Portugal é Luto, editado em Fevereiro passado pela Dom Quixote. É o sétimo volume de um projecto literário em que o narrador se chama, também ele, Eduardo Halfon, e partilha da mesma biografia que o autor – desde o nascimento e país de origem, ao passado da família. E as suas raízes familiares são, precisamente, um dos temas mais característicos da sua obra. Neste Luto, Halfon traz-nos a história do sequestro do seu avô em plena Guerra Civil da Guatemala (1960-1996), misturando acontecimentos verídicos com ficção e confundido o leitor sobre o que é apenas arte e o que foi mesmo real… um mistério que Halfon explicou ao PÁGINA UM, numa conversa que aborda também a forma como a escrita tomou de assalto a sua vida, o conflito bélico que dividiu e assolou o seu país no século passado e os problemas que ainda se mantêm.


    O seu projecto literário, do qual Canción faz parte, é composto por vários romances, mas este é o segundo a ser editado em português, depois de Luto

    Sim, é o segundo volume a ser editado em Portugal, mas não em Espanha. Em Espanha, são já seis livros… ou serão sete? Deixe-me contar [risos]. O projecto começou com o livro El boxeador polaco , publicado em 2008, e foi aí que “nasceu” este narrador, a sua história, a sua voz. É um livro muito pequeno, e que, por acaso, termina em Portugal. No último capítulo, a história desenrola-se na Póvoa de Varzim.

    Porquê em Portugal?

    Aconteceu. Fui convidado para o festival Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim, e escrevi sobre a minha passagem por lá. Acabou por resultar muito bem como final para esse livro. Portanto, publiquei esse livro em 2008 e, três anos mais tarde, uma dessas histórias tornou-se um capítulo de La Pirueta. Dois anos mais tarde, mais uma das histórias entrou num capítulo de Monasterio. Então, Monasterio é o terceiro, Signor Hoffman é o quarto, Luto é o quinto, Canción é o sexto, e acabei de publicar um novo livro, Un Hijo Cualquiera, que é o sétimo. Adoro como soa o título deste último em inglês: Any Given Son. Acho lindo [risos]. Mas, portanto, em português publicámos apenas dois volumes deste projecto. Um projecto que eu não tinha planeado de todo fazer.

    Quando escreveu El Boxeador Polaco ainda não sabia que iria dar-lhe continuidade?

    Não, não fazia a mais pequena ideia de que iria fazê-lo. Publiquei El Boxeador Polaco, e pronto, pensava que a história terminava ali. Mas, depois, foi evoluindo, as personagens reapareceram… e a história começou a crescer diante dos meus olhos. Agora, não sei para onde está a ir, nem sei quando vai e como vai acabar. Os livros não seguem nenhuma ordem particular. Uma editora pode começar por publicar Luto, e depois os outros. Ou, mesmo um leitor, pode lê-los na ordem que quiser. São apenas sete livros todos contados pela mesma voz. Com o mesmo narrador, os mesmos medos, os mesmos temas, a mesma família, os mesmos desejos… Dou-lhe um exemplo. Canción começa no Japão, e conhecemos Aiko, uma personagem que já tinha aparecido no antepenúltimo livro. Foi uma participação curta, de uma página, e eu não sabia quem ela era, simplesmente apareceu-me. E, agora, já sei quem ela é! Mas foram precisos três ou quatro livros… isto acontece recorrentemente. Por isso, não existe nenhum plano pré-concebido. É um projecto que tem vindo a crescer de forma autónoma, com a minha ajuda.

    O narrador é participante e seu homónimo. Além disso, tem também em comum consigo, a idade, a nacionalidade, a história familiar… Por vezes, parece que são exactamente a mesma pessoa. O que é que distingue, afinal, Eduardo, o narrador, de Eduardo, o autor?

    Pois, não somos a mesma pessoa. Nós partilhamos o mesmo nome, a mesma “biografia”… mas é só isso. Ele tem uma personalidade muito diferente da minha, um temperamento diferente. Ele fuma, e muito. Eu não. Ele viaja, eu já não viajo. Portanto, nós partilhamos o “superficial”, digamos assim. La fachada, diríamos em castelhano. Mas ele é muito diferente, é toda uma personagem. Eu sei como é que ele fala, conheço a voz dele, que não é como a minha. Ele diz as coisas com muito mais à-vontade do que eu, é muito mais diplomático. Por isso, sim, trata-se de uma personagem. O que torna tudo mais confuso é o facto de ele ter o meu nome. Mas ele é, de facto, uma personagem ficcional.

    No final de Canción, há uma passagem que diz que “todo o autor de ficção é um impostor”. Uma vez que, nas suas obras, a linha que separa o verídico da ficção se torna tão nebulosa, como engana o seu leitor? Levando-o a acreditar que o que está a ler aconteceu mesmo, quando não aconteceu, ou o oposto?

    Sim, eu sei que engano o leitor, e faço-o de propósito. É como um mágico que faz um truque, e lhe conta como o faz, mas, ainda assim, consegue impressioná-la com o seu truque. Então, eu digo ao leitor que o livro é um romance; é a categoria em que está. Mas, na página 5, ele já se esqueceu disso. E lê-o como se fosse uma autobiografia, como se fosse absolutamente real. E não é, é uma ficção. É verdadeiro, mas não é verdade. São coisas diferentes. Porque é que eu faço isto? Porque eu quero que me leiam assim. Quero enganar o leitor, e que ele leia como se fosse real, porque assim a reação emocional será maior. Ficará mais envolvido com a história. É quase como ler como uma criança, que não se questiona sobre se aquilo é real ou imaginário. Simplesmente é. E isso acontece com os meus livros: o leitor sabe que se trata de ficção, mas esquece-se, e é “engolido” para a história. E creio que é por isso que o faço; é a única resposta que eu tenho para o porquê de escrever desta forma, e de cruzar ficção com realidade. E eu já vi acontecer, vezes e vezes sem conta, pessoas que leram os meus livros como se não fossem ficção.

    Falou na reacção emocional de quem o lê. Qual é que tem sido o feedback dos seus leitores?

    Depende do livro em questão, porque o sentimento que eu pretendo suscitar nas pessoas difere muito em cada uma das minhas obras. Luto comove muito os meus leitores, especialmente o final, e era isso que eu queria. Queria retratar quase uma death march de crianças, em direcção ao lago… Então, a reacção que tenho dos leitores pode ser muito diferente. Canción é uma viagem à América Latina e ao seu passado, mas também a estes lugares estranhos da minha identidade e à aceitação daquilo que significa ser o neto de um homem libanês. E o livro começa no Japão, mas é por uma razão muito específica: quando fui convidado para esta conferência de escritores libaneses no Japão, que realmente aconteceu, eu pensava que era um engano ou uma piada, porque eu não sou libanês. Mas eles disseram-me “és sim, tens um avô libanês, tens essa herança”. E, na altura, eu não levei isso muito a sério, mas algo aconteceu no Japão que mudou o meu foco. Foi quando comecei a investigar a história do meu avô paterno.

    Então, Canción começa com essa conferência no Japão, porque foi esse acontecimento que o levou a descobrir o sequestro do seu avô paterno em plena guerra civil da Guatemala, que é o mote para este livro. Antes disso, não tinha tido curiosidade em explorar esse lado da família…

    Exactamente. Eu descobri a história do sequestro depois de ir ao Japão. Antes disso, estava mais interessado em explorar a história do meu avô materno, que era polaco. Então, El boxeador polaco era mais sobre ele; sobre Auschwitz e tudo o mais… Portanto, alguns livros são mais sobre a sua história de vida, a viagem à Polónia e a Israel. E, de repente, o Japão aconteceu e a minha atenção desviou-se.

    A sua família tem histórias que dão para muitos livros?

    Sim, mas eu acho que todas as famílias têm. Todas as famílias têm histórias, a diferença está só no facto de eu as escrever. Porque todas as histórias que eu conto, antes de as passar para o papel, são apenas memórias familiares, coisas que oiço. Dizem-me, “sim, sim, o teu avô passou por X ou Y…”. O “truque” está apenas em transformar essas histórias em literatura. Mas eu acredito que todas as famílias as têm.

    Mas sempre teve interesse no passado da sua família?

    Não, nunca. Até começar a escrever. Escrever fez-me ganhar interesse na história da minha família e na História do meu país… porque eu também não estava interessado na Guatemala. Também não tinha interesse no judaísmo, de igual modo, e passei a ter. Estou interessado em tudo isso, como escritor. Eu tenho uma relação muito distante com a minha família, vivo longe e não somos muito próximos. Sinto uma grande distância em relação ao meu país, e em relação ao judaísmo… excepto quando escrevo. Portanto, interesso-me em tudo isto, do ponto de vista literário. São histórias.

    E quando é que começou a escrever?

    Bom, eu só me tornei um leitor aos 27 anos. Antes disso, não gostava de livros, e nunca lia. Estudei engenharia industrial na faculdade, e só descobri a literatura mais tarde, por acidente. Então, só comecei a escrever por volta dos 30, e publiquei o meu primeiro livro com 32 anos. Precisei de alguns anos para perceber o que estava a acontecer, porque foi muito inesperado, uma mudança abrupta na minha vida. Eu não gostava de livros, não os compreendia, e de repente, algo aconteceu. Houve um clique, e mergulhei nesse mundo. Tornei-me um leitor e não queria fazer mais nada senão ler, durante dois ou três anos. Só queria ler, lia compulsivamente, era um vício. Lia um livro por dia, não queria sair de casa nem trabalhar. E acho que começar a escrever foi uma consequência, uma reação ao excesso de leitura. Li demasiado, e depois pus-me a escrever.

    E foi quando percebeu que queria ser escritor que rumou a Paris? Por achar que era o lugar ideal para escrever…

    Bem, sim, não fui para lá viver, mas fiz uma viagem a Paris. Quando percebi que queria experimentar isto da escrita, fui para Paris durante alguns meses, com esta ideia romântica e estúpida de que seria perfeito para escrever, mas foi horrível! Foi horrível, fiquei muito doente assim que lá cheguei, estava sozinho, num hotel barato… Foram uns meses terríveis. Ia para os cafés ler, mas a sentir-me indisposto. Mas, algo aconteceu depois! Quando regressei a casa, no dia em que cheguei, recebi uma chamada de um professor de uma universidade a oferecer-me trabalho como seu assistente. Então, agora, quando olho para trás, vejo aquela altura como um ponto de viragem. Antes de Paris, eu era um engenheiro, um filho obediente. Depois de Paris, comecei a trabalhar na universidade e a escrever. E, pouco tempo depois, publiquei o meu primeiro livro. Por isso, Paris resultou de uma forma muito estranha. Não da forma que eu estava à espera, mas de outra.

    A partir daí, largou a ideia de que Paris era a cidade idílica para a arte de escrever… [risos]

    Eu queria escrever, e não sabia como. Queria escrever em castelhano, mas tinha perdido a prática, porque passei a minha adolescência nos Estados Unidos. Portanto, eu estava muito longe de ser um escritor quando fui para Paris. Foram necessários alguns anos para aprender a arte da escrita.

    Em castelhano?

    Sim, eu apenas escrevo em castelhano, só escrevo em inglês se mo pedirem. Embora eu ainda pense em inglês. O inglês passou a ser a minha língua mais “forte”.

    Mas nunca escreveu um livro em inglês?

    Não. Escrevi algumas histórias, ensaios, mas nunca um livro.

    Porquê?

    Porque a minha infância foi em castelhano. Quando me perguntam porque é que não escrevo em inglês, essa é a minha resposta. Não creio que seja porque castelhano é a minha língua materna, acho que não é esse o motivo…

    Não?

    Não. Foi porque a minha infância foi em castelhano e, para mim, na literatura, a infância é a chave. É fundamental, e é onde vou constantemente.

    Já viveu na Guatemala, nos Estados Unidos, em França, agora está na Alemanha, em Berlim… Onde é que se sente em casa?

    Em lado nenhum… Aqui, numa livraria [risos]. Desde criança, nunca senti nenhuma ligação a lugar nenhum. Deixámos a Guatemala quando eu tinha 10 anos e fomos para os Estados Unidos, mas mesmo antes disso, não me sentia guatemalteco. Eu era um miúdo judeu num país completamente católico. Então, 99,999% dos meus conterrâneos eram católicos. Apenas 100 famílias eram judaicas. Por isso, todos os meus amigos eram católicos. E era muito estranho, porque todos eles estavam a fazer a primeira comunhão, celebravam o Natal, a semana Santa… As datas do calendário escolar correspondiam a comemorações católicas. E era do género: “onde é que eu fico nisto?” Nunca me sentia parte do país, era como um mero observador distante. Então, sempre me senti deslocado. Sempre. Em Espanha, no Nebraska, Iowa, Paris, Berlim… Um sentimento constante de nómada, sem raízes. “Desarraigado”.

    Não tem sentimento de pertença a nenhuma terra nem a uma religião?

    Não, não. E mesmo a literatura não é uma “casa” para mim. Eu não venho deste meio. Estou aqui agora e é o meu trabalho, mas no es mi patria. E era algo fácil para mim, até o meu filho nascer. Depois, as coisas complicaram-se. O meu filho tem seis anos e já viveu em cinco países, fala quatro línguas, tem três passaportes, e nunca teve uma residência permanente. Nós alugamos sempre ano a ano. Portanto, eu estou a ensinar-lhe este estilo de vida nómada, a dar-lhe esta herança é muito difícil.

    É sobre isso que fala no livro que publicou agora em Espanha, Un hijo cualquiera?

    Falo um bocado, mas não de forma muito directa. Tenho falado mais sobre isto em entrevistas, porque lancei o livro e têm-me perguntado como é que está a ser este nomadismo como pai, que agora sou, e é um bocado assustador, porque não sei se é isto que quero para o meu filho. Quero que ele tenha um lar, que vá para a escola e tenha amigos dos quais não se tenha de despedir após um ano. E até agora não tenho conseguido proporcionar-lhe isso, temos estado sempre a mudar-nos.

    As referências às memórias de infância marcam a sua obra. Tem muitas recordações marcantes dessa altura?

    Sim, tudo, lembro-me de tudo. Se ler estes meus sete ou oito romances, vê que eu estou sempre a voltar à minha infância. Estou sempre à procura de coisas que me aconteceram em criança, quase como fundamentos para explicar o presente. Por exemplo, em Canción, há uma cena na casa dos meus avós. E no restaurante, há uma parte em que entra uma sequestradora. Então, há sempre estes flashbacks à minha infância. Por isso, penso que regresso sempre a essa altura, para encontrar pequenas histórias ou “explicações”.

    Como criança a viver num país durante uma guerra civil, houve momentos traumáticos?

    Não, não, de todo. Foi uma altura maravilhosa, feliz. Estava sempre com os meus primos. Nós vivemos na Guatemala durante o período mais violento da guerra civil, os anos 70, mas a guerra travava-se sobretudo nas montanhas – e não na cidade – até ao final da década. Então, um ano antes de sairmos do país – em 1979 ou 1980 – a guerra chegou à cidade, e eu lembro-me disso. Lembro-me de haver sequestros, bombardeamentos, tiros de caçadeira durante a noite e, de repente, o meu pai andava com um guarda-costas. Portanto, eu lembro-me destes primeiros episódios de violência, mas, antes disso, tudo era idílico. Vivi uma infância idílica. Mas tudo começa na nossa infância, a nossa relação com os nossos familiares, com os amigos…

    Pode ser terapêutico para um escritor, escrever sobre a infância?

    Não, para mim não sinto que seja. Quando escrevo sobre alguma coisa, não sinto que a tenha “descortinado”, ou que a consiga compreender melhor. Na verdade, compreendo-a ainda menos. Não sou uma pessoa melhor quando acabo de escrever um livro, nada disso. Porém, sinto que para os leitores é terapêutico. Ainda há pouco, uma pessoa me disse que o meu livro Luto a ajudou a ultrapassar a fase de luto em que se encontrava. E dizem-me isso com frequência. Creio que nos acontece a todos enquanto leitores: já li livros que me ajudaram a atravessar e a perceber determinadas situações. Mas como escritor, isso não acontece. Pelo menos a mim, não me acontece, não é um processo terapêutico. É apenas trabalho. Um trabalho que envolve a linguagem, sobretudo.

    Mostra-nos o poder da arte e dos livros…

    Sim, sem dúvida. A arte tem o poder de suscitar reacções emocionais muito profundas. Quando vemos um filme, ou vamos a um museu, ou ouvimos uma música. Acho que algo acontece quando somos confrontados com arte. Não é só com a literatura, todas as artes, e creio que especialmente com a música, que parece que vai directamente ao “sítio certo”. A arte pode comover-nos, arrastar-nos, espoletar uma mudança em nós. E tudo isso acontece na condição de leitor, não como escritor.

    Houve livros que o mudaram?

    Sim, sim. E sob várias dimensões. Houve livros que me impactaram como homem, e outros que me impactaram como leitor, particularmente naquela fase em que lia compulsivamente. Há livros que li nessa altura, e que, até hoje, continuo a regressar, porque foram tão importantes na minha descoberta da literatura. Roberto Bolaño, Hemingway, Tchekhov, Raymond Carver… Mas, como escritor, foram outros livros. Quando eu comecei a escrever, a forma como eu lia mudou. Porque eu já não estava a ler como leitor, mas como escritor. Pensava: “como é que eles fazem isto?”. Então, comecei a ler de outra forma. Mas sim, há livros que eu ainda “levo” comigo.

    Já recebeu vários prémios, incluindo, em 2018, o mais importante galardão literário no seu país, o Prémio Nacional de Literatura da Guatemala.

    Sim, é o mais importante na Guatemala, o que não significa grande coisa, porque a Guatemala não é, de todo, um país de leitores, nem de escritores, nem de cultura.

    A minha questão era nesse sentido, porque deve ser bom sentir-se reconhecido no seu país, mas, por outro lado, há prémios internacionais de maior prestígio para um escritor…

    Foi um prémio complicado para mim de receber, e explico-lhe porquê. Na Guatemala, é considerado a maior honra para um escritor, e atribuem-no anualmente. Mas eu não o queria receber vindo daquele Governo. Não quereria recebê-lo vindo de nenhum governo guatemalteco, porque são todos uma merda. São só políticos corruptos, perigosos e violentos. Mas não queria, particularmente, naquela altura. Por isso, vi-me numa situação muito desconfortável, porque não queria parecer ingrato para com as pessoas da minha terra. Então, arranjei uma solução, que foi receber o prémio, mas doar o dinheiro. E, na altura, considerava que um dos maiores problemas do país era a forma como o governo tratava as mulheres em geral, mas sobretudo as mais jovens. Por isso, entreguei o montante a uma organização que ajuda jovens mulheres. Foi algo simbólico, porque não era uma quantia avultada, mas foi a minha forma de dizer que recebo a honra, mas não consigo aceitar o dinheiro, e prefiro oferecê-lo a uma instituição à qual o Governo não dará nada. E o auditório inteiro estava em lágrimas, porque uns dois ou três meses antes, o Governo tinha queimado um orfanato de raparigas. Morreram 43 órfãs. E foi um grande escândalo na altura. Trancaram as raparigas no orfanato e atearam-lhe fogo. Então, era uma ferida que ainda estava muito aberta, quando eu recebi o prémio e acusei o Governo de não cuidar das suas niñas. “Por isso, o dinheiro vai para elas”, disse eu, e toda a gente começou a chorar. Foi um discurso breve, mas muito importante para mim.

    (Foto: Ferrante Ferranti)

    Muitas vezes os artistas tornam-se, intencionalmente ou não, activistas políticos, de alguma forma. Como artista, sente que tem algum poder para fazer a diferença no seu país?

    Não, não. Eu não acredito que possamos mudar alguma coisa, mas podemos “apontar” para os problemas. Por alguma razão, puseram um microfone à minha frente, como escritor, e posso dizer coisas. Posso dizer “passa-se isto ou aquilo” ou “isto não está bem”, e provavelmente não irá mudar nada, mas pelo menos eu posso chamar a atenção para as situações. Posto isto, há que dizer que em países como a Guatemala, o México… é algo muito perigoso de se fazer. Há jornalistas a serem mortos por falarem. No meu caso, é um bocado diferente, porque eu falo através da ficção. E ninguém lê na Guatemala! Contudo, arranjo sarilhos e recebo ameaças quando dou entrevistas. Não pelos meus livros, porque eles não os leêm, mas quando sou entrevistado, sim, aí já sofro alguma intimidação. É muito real.

    Do governo guatemalteco?

    Não directamente, mas de pessoas que simpatizam com o Governo. É um grupo pequeno, mas poderoso, da população. Muito virado à direita, e que não quer que se fale do genocídio que aconteceu e de todas as mortes que tiveram lugar durante a guerra civil.

    Uma criança a viver uma guerra civil no seu país, ainda não é capaz de escolher um “lado”…

    Pois não. Aquilo que faz é escolher o lado dos pais, porque é a história que lhe estão a contar. E os meus pais eram pessoas de classe alta, mais à direita, e, por isso, era esse lado da guerra a que eu tinha acesso em casa. Então, por exemplo, quando eu estava a crescer, a palavra “guerrilheiro” era sinónimo de ladrão, ou meliante. Para os meus pais e para essa parte da população, a guerra era assim: os guerrilheiros eram os inimigos. E, aos poucos, à medida que fui crescendo, especialmente nos meus 20 anos, e quando voltei à Guatemala e casei com a filha de dois guerrilheiros – tanto a minha sogra como o meu genro são antigos combatentes –, comecei a ver que a história que me tinham contado não era verdade, era tendenciosa e enviesada, e tive que me reeducar. E creio que isso acontece com muitas crianças, porque só lhes é contada uma parte da história, que geralmente vem da família. Nós herdamos as nossas visões políticas. Então, para mim, foi um longo processo de perceber a história da Guatemala, que é extremamente complexa. Quem é a vítima: o sequestrador ou o sequestrado? É muito complexo…

    A maior parte dos assuntos é mais complexa do que parece…

    Sim, e uma criança não tem a capacidade de perceber isso, só muito mais tarde.

    A sua opinião polarizou-se para o outro extremo, ou ficou mais no meio?

    Esta história, por exemplo, do rapto do meu avô, eu queria mesmo contá-la de um ponto de vista muito objectivo. Queria ser capaz de escrevê-la com imparcialidade e tratar os dois lados por igual. Mas, quem ler o livro, percebe de que lado é que eu estou. Não tenho de o dizer, mas é perceptível, está implícito. O peso da História quase que força o leitor a olhar para ela de um certo prisma. Na altura, o poder estava tomado por ditaduras militares muito, muito violentas, que tinham uma política de genocídio. Não há outra forma de ver a coisa. Enterrava-se corpos o tempo todo. Não há outro modo de o “pintar”, não há como branquear. Aconteceu. Portanto, mesmo que se tente analisar objectivamente, a justiça tem que prevalecer.

    O lado bom é sempre o lado mais justo?

    Não sei se lhe chamaria o lado bom, mas creio que, eventualmente, a Justiça leva a melhor. Podem ser necessárias décadas, até gerações… Porque há pessoas que não querem que se faça Justiça, ou se esforçam muito para a impedir. Mas ela faz-se. Fez-se aqui, depois da ditadura em Portugal. E é assim em todo o lado.

  • A mão e o abismo

    A mão e o abismo

    Título

    Dor fantasma

    Autor

    RAFAEL GALLO

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Março de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    A escrita de Dor fantasma terá sido, de certo modo, um exercício catártico para Rafael Gallo, que se digladiava com uma depressão durante o processo criativo. O labor não foi em vão: a obra valeu ao autor brasileiro o Prémio Literário José Saramago 2022. Uma distinção que o escritor almejava, já que é um fã assumido do Nobel português da Literatura e leu quase todos os seus livros.

    Nascido em São Paulo, Rafael Gallo venceu também o Prémio São Paulo de Literatura pelo romance Rebentar, lançado em 2015, e o Prémio Sesc de Literatura com o livro de contos Réveilon e outros dias, de 2012.

    Dor fantasma é aquilo que o título dá a entender: uma história de dor, tanto física como emocional, que tem como protagonista Rômulo Castelo, um ilustre pianista que vê o seu mundo ruir quando perde a mão direita depois de ser atropelado por um motociclista à porta da universidade onde ensina a sua arte. Após o acidente, é-lhe amputada não só a extremidade do braço direito como toda a sua (frágil) identidade.

    Rômulo é um homem profundamente atormentado, e por isso intragável, para quem os que o rodeiam são seres ineptos, sempre aquém da perfeição e da excelência – qualidades que procura incessantemente alcançar através do seu trabalho. O seu trato difícil e frequentemente agressivo começa, a pouco e pouco, a alienar todos os que lhe são mais próximos. A sua mulher, Marisa, os seus alunos e colegas vão começando a perder a tolerância com a atitude hostil do pianista, que parece ter construído um fosso entre si e tudo o que não seja o seu piano.

    Até ao fatídico dia que o priva do seu instrumento de trabalho, os dias de Rômulo são quase todos iguais. Quando o despertador toca de manhã, fecha-se na sua sala de estudos, a sós com o seu Steinway para praticar o Rondeau Fantastique, a “peça intocável” do reputado pianista e compositor húngaro Franz Liszt. Rômulo é um dos melhores intérpretes do artista, e cada execução que repete da partitura é rumo a tornar-se numa espécie de “reencarnação” do compositor. O engenho que exibe foi herdado – ou incutido – pelo seu pai, George Castelo, um maestro que inculcou no filho, a par da paixão pela música, uma disciplina indefectível.

    Rômulo também tem um filho, de oito anos, a quem deu o nome Franz em homenagem ao seu ídolo, mas o descendente nunca irá preservar o talento que corre nos genes dos homens da família, já que sofre de uma forma rara de paralisia cerebral. Por isso, “Franzino” apenas recebe do pai uma declarada rejeição.

    De facto, o abismo começa a desenhar-se com as queixas por agressão dos seus alunos e o pedido de divórcio de Marisa. A partir daí, a descida aos infernos é ininterrupta. Não podendo fazer a tour pela Europa que tinha planeado antes de ser amputado, Rômulo deixa de ter a única razão que tinha para existir, e para que, pelo menos, o seu corpo estivesse presente, já uma espécie de ‘fantasma’.

    Nesta obra, as palavras seguem um encadeamento lírico, uma procede a outra, como se juntas formassem uma composição musical. Têm movimento, exaltam-se na leitura. Há uma ordem que é bela, o ritmo é compassado. A história é desconcertante. Dor fantasma é um romance sólido, pleno e arrebatador.

  • O poeta místico

    O poeta místico

    Título

    O pensamento esotérico de Fernando Pessoa

    Autora

    YVETTE K. CENTENO

    Editora (Edição)

    Companhia das Ilhas (Julho de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    De origem germano-polaca, Yvette K. Centeno é um dos pesos-pesados, no feminino, da nossa literatura e considerada uma das maiores intelectuais do país. Escritora, poetisa e professora, é também uma investigadora, intensiva e extensiva, da vida e obra de Fernando Pessoa – e a prova é este livro, que teve a sua edição original em 1990 pela editora & etc, e surge-nos agora acrescida de um posfácio.

    Licenciada em Filologia Germânica, Yvette Centeno fez a sua tese de doutoramento sobre A alquimia no Fausto de Goethe. E não é irrelevante para o caso. Fausto e Goethe são, aliás, nomes que surgem por diversas vezes ao longo deste O pensamento esotérico de Fernando Pessoa.

    Este ensaio é algo intimidante, confessa-se, uma vez que nos coloca frente-a-frente com a genialidade de não uma, mas duas mentes. E os temas abordados não facilitam a tarefa: aqui cabe tudo o que é místico e oculto, desde a filosofia hermética, a religião, a Kabala, ao estudo de sociedades secretas como a Maçonaria e o Rosacrucianismo. Todos estes domínios se cruzam – na verdade, amiúde se sobrepõem –, pelo que é apenas natural que se fale de todos ao mesmo tempo.

    A leitura desta obra não apela ao intelecto, pois, para esta nossa dimensão humana, adentrar nestas matérias é sempre como andar por areias movediças. As linguagens simbólicas não são decifráveis do mesmo modo que as ciências exactas. Porque aqui, nunca é o que está lá que importa, mas o que está implícito. É preciso ver-se com outros olhos. Afinal, como diz o poeta: “O mistério (que é tudo) não é compreensível senão à emoção, a inteligência não pode compreender o mistério”.

    E Fernando Pessoa deseja ardentemente desvendar esse mistério, sem, no entanto, se deixar consumir por ele. Como assume, é “Mercúrio” que o guia, o Deus do conhecimento, o “Mestre do entendimento dos seres e da sua natureza”. 

    Deste modo, ele não pretende integrar as sociedades secretas pelas quais parece interessar-se tanto. De facto, o que o move é a avidez de saber. Faz, aliás, uma “declaração de diferenças”, em que explica isso mesmo. Declara a sua simpatia pelo ocultismo, fazendo, contudo, a ressalva de que não é, ele próprio, um “ocultista”.

    Há doutrinas que só podem ser transmitidas de forma codificada, porque como explica Pessoa, “divulgar é destruir”. Isto é, desvendar é inútil, quando não é também prejudicial, porque os incautos não vão entender – provavelmente irão, de qualquer modo, subverter o significado. E é por isso que a Bíblia, por exemplo “é ininteligível e absurda sem a chave ‘alquímica’”. E foi esta alquimia que o poeta nitidamente buscou em vida e, o que encontrou, está patente na sua obra.

    Crítico do catolicismo, a “Igreja de Roma”, Fernando Pessoa parece, de facto, acreditar que a religião foi sempre mal compreendida: para o poeta, os Evangelhos são “rituais dramáticos, nada tendo que ver com qualquer realidade histórica”.

    No seguinte trecho, o “nosso poeta” – nas palavras de Yvette Centeno – tece considerações dignas de destaque:

    “A par do cristismo oficial, com os seus vários misticismos e ascetismos e as suas magias várias, nós notamos, episodicamente vinda à superfície, uma corrente que data sem dúvida da Gnose (isto é, da junção da Cabala judaica com o neoplatonismo) e que ora nos aparece com o aspecto dos cavaleiros de Malta, ou dos Templários, ora, desaparecendo, nos torna a surgir nos Rosa-Cruz, para, finalmente, surgir à plena superfície na Maçonaria. (…) As fórmulas e os ritos maçónicos são nitidamente judaicos; o substrato oculto desses ritos é nitidamente gnóstico. A Maçonaria derivou de um ramo dos Rosa-Cruz.”

    E prossegue, aludindo à influência do movimento em algumas efemérides: “Pareceria absurdo citar esta subcorrente cristista, se a importância dela na história não fosse, apesar de ser oculta, enorme. Ela agiu fortemente na Renascença e na Reforma; a sua ingerência na Revolução Francesa é assinalada”.

    Simpatizante da maçonaria – o seu avô era maçon –, o poeta discordou fortemente, em 1935, de um projecto-de-lei contra a Ordem Maçónica, que fora apresentado por um deputado.

    Fernando Pessoa discorre, com a astúcia e profundidade que são tão suas, sobre os símbolos da “rosa” e da “cruz”. A cruz é a matéria e o movimento; a rosa é o mundo (Rosamund), “a vida divina” que enche essa mesma matéria e movimento. Juntas, são o “Resultado” ou a “Terra”.  A este respeito, uma das conclusões a que chega é que “o símbolo cristão completo e final é o símbolo da Rosa-Cruz”.

    Quando ao cristianismo, diz-nos que é preciso “sentir” e, ao mesmo tempo, “repudiar”. A lógica (aparente ilógica) da contradição e do paradoxo é uma constante na dialéctica de Pessoa. Tal é evidente quando preconiza o “sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo”. A multiplicidade no sentir teve expressão máxima na sua heteronímia, sobejamente conhecida.  

    Para Fernando Pessoa – e talvez isto ajude a explicar o seu fascínio –, a iniciação em sociedades secretas não é mais do que uma “mimetização”, em sentido figurado, no plano terrestre, de uma “iniciação verdadeira”. Como tal, as cerimónias maçónicas são meramente simbólicas. Para se ser um iniciado, não é, portanto, necessário pertencer-se a qualquer ‘ordem’. Ainda assim, e parafraseando o poeta: “Ao homem vulgar, que queira entrar as portas do oculto, diremos só uma coisa: não tentes! O oculto é que nos procura, não nós a ele”.

  • A comovente homenagem aos eternos amigos

    A comovente homenagem aos eternos amigos

    Título

    As melhores histórias do melhor amigo

    Autores

    Vários

    Editora (Edição)

    Parsifal (Outubro de 2022)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Este As melhores histórias do melhor amigo é um livro sobre o amor. Uma das mais bonitas, fraternas e universais formas de amor – a que existe entre o Homem e o seu eterno melhor amigo de quatro patas: o cão.

    O fundador e editor da Parsifal, Marcelo Teixeira seleccionou quase uma vintena de breves contos e textos, escritos por reputados autores nacionais e internacionais, para homenagear os nossos sempre fiéis companheiros.

     É, por isso, verdadeiramente, uma coletânea de histórias de amor. Alguns escritos são de carácter ficcional, outros contam experiências reais. Cada um deles descreve uma vivência diferente, e em todos a emoção é tónica muito presente, com a relação (ou as relações) entre humanos e canídeos como protagonista.

    Formado em Arqueologia e História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Marcelo Teixeira dedicou grande parte da sua vida às letras, sobretudo como editor, onde se destacou como coordenador editorial da Oficina do Livro, antes de fundar a Parsifal em 2013. É co-autor dos livros de poesia Terna Ausência (2005) e Santo Ofício (2006), e dos livros História(s) do Estado Novo e Reflexões sobre a expedição punitiva norte-americana no México na imprensa portuguesa.
    Como o próprio assume, esta obra sobre a paixão por canídeos não teria surgido se não fosse a insistência dos seus filhos para que acolherem, na família, um novo membro, quadrúpede e peludo.

    Nesta “enxuta” obra de apenas 156 páginas, podemos assim ler escritores, vivos e já falecidos, tão distintos como Mark Twain, Anton Tchékhov, José Luís Peixoto, Machado de Assis, Sérgio Luís de Carvalho e Filomena Marona Beja. Todos os textos são uma ode a essa encantadora espécime que são os canídeos e a quem, como tão bem elucidam as palavras de Sérgio Luís Carvalho, “pouco falta (…) para serem humanos; e o que lhes falta apenas reverte a favor deles”.

    O “acervo” escolhido é bastante heterogéneo: alguns contos ou fábulas, bem-humoradas, arrancam-nos um sorriso aberto ou até mesmo uma gargalhada, enquanto outras suscitam-nos comoção, nostalgia ou compaixão.

    Assim, com Tchékhov, em A senhora do cãozinho, um lulu-da-pomerânia branco testemunha o início de uma história de amor. Em Rumo ao primitivo, de Jack London, temos um cão estilo “super-herói” chamado Buck. O cómico e indiscreto Black, um bull-terrier, é responsável pelo desenlace de um casal, ao “denunciar” o caso de dois amantes, no conto de Artur de Azevedo. Já Mark Twain, em A história de uma cadela, fala-nos sobre uma família canina bastante erudita, em que a mãe, uma collie, sabe, inclusivamente, que a palavra “agricultura” é um sinónimo de “incandescência intramural”.

    Marcelo Teixeira salienta, e bem, na introdução, a omnipresença destes animais na arte, na literatura, na cultura, e no quotidiano do Homem desde tempos imemoriais. Conseguirá alguém imaginar um mundo sem cães? O amor incondicional, a alegria, a lealdade, a proteção e a companhia que proporcionam aos seus bípedes pais adoptivos não têm par, e por isso esta homenagem a estes seres deveras especiais é uma justa retribuição.

    Vale muitíssimo a pena ter este livro em casa – com ou sem cão –, já que a sua aquisição é um ganho duplo: por um lado, acrescenta-se à biblioteca um tributo enternecedor a estes nossos fiéis amigos de quatro patas sob a forma de peças literárias imaculadas; e, por outro, contribui-se para a Associação Zoófila de Leiria – Fiéis Amigos e para a Associação Protectora de Animais da Marinha Grande, já que as receitas obtidas com as vendas revertem, na totalidade, a favor destas instituições.

    Deixo apenas uma advertência: quem não for já dono de um bichinho destes, poderá, com a leitura deste livro, ser assaltado por um forte desejo de se dirigir ao canil mais próximo e levar um consigo para casa. Se for o caso, não resista. É que, e para concluir, citando novamente Sérgio Luís de Carvalho: “E – vejam bem o que os cães nos fazem – mesmo sendo ateu convicto desde a minha juventude, chego muitas vezes ao ponto de agradecer a Deus por os ter criado”.

  • #TwitterFiles: Universidade de Stanford foi o epicentro de uma tenebrosa máquina de censura

    #TwitterFiles: Universidade de Stanford foi o epicentro de uma tenebrosa máquina de censura

    É mais um episódio tenebroso da gestão da pandemia da covid-19. A Universidade de Stanford liderou um projecto para “caçar” textos nas redes sociais, indicando mesmo pessoas e também temas que deveriam ser banidos, mesmo que não fossem falsos. Os Twitter Files revelam agora que as universidades, que deveriam ser o primeiro reduto da liberdade de expressão e de questionamento, funcionaram afinal como uma máquina de censura.


    Virality Project – assim se chamava o projecto liderado pela Universidade de Stanford, iniciado em Maio de 2020, em colaboração com a Tandon School of Engineering, o Center for an Informed Public, o Centre for Social Media and Politics, o National Conference on Citizenship, a Graphika e a DFRLab. Mas em vez de apenas estudarem comportamentos sociais, o projecto acabou por se transformar numa “máquina de censura”, sobretudo quando, a partir do início de 2021, encetaram uma colaboração directa com o Twitter e outras redes sociais. 

    Na mira dos académicos estava a “moderação” de uma ampla variedade de discursos em redor da pandemia, desde as teorias da imunidade natural e da alegada fuga do SARS-CoV-2 do laboratório de Wuhan, até “piadas preocupantes” e casos reais de efeitos adversos às vacinas anti-covid. Relatos de países que tivessem proibido algumas vacinas, ou de mortes de celebridades após a vacinação também estavam incluídos.

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    Na prática, o projecto consistiu numa rede de censura de todas as publicações que pudessem beliscar a confiança da população face às vacinas contra a covid-19 – mesmo que estivessem em causa informações factuais e verdadeiras. O Virality Project registou uma actividade visível a partir de 2021, e deixou de ser actualizado em Agosto do mesmo ano.

    A acção de censura do Virality Project orquestrada por universitários – homens da Ciência, portanto – é o mais recente episódio dos Twitter Filles, ontem divulgado por Matt Taibbi, um dos jornalistas independentes que tem tornado públicas as práticas daquela rede social durante a pandemia, e antes da sua compra por Elon Musk.

    Na fachada, de acordo com o seu site oficial, o Virality Project era “uma coligação de entidades de pesquisa focada em apoiar a troca de informações em tempo real entre a comunidade de pesquisa, autoridades de saúde pública, agências governamentais, organizações da sociedade civil e plataformas de social media“, com o objectivo de “detectar, analisar e responder a incidentes de desinformação sobre a vacina contra a covid-19 em ecossistemas online e, finalmente, mitigar o impacto de narrativas que, de outra forma, prejudicariam a confiança do público na segurança desses processos nos Estados Unidos”. Mas foi muito mais do que isso.

    Os Twitter Files continuam a revelar um mundo tenebroso de censura e controlo de informação durante a pandemia.

    A parceria entre o Twitter e o Virality Project teve início pouco tempo depois da tomada de posse de Joe Biden, em Fevereiro de 2021. Nesse mês, a rede social recebeu o primeiro relatório semanal sobre “desinformação anti-vacinas” que, no entanto, continha “inúmeras histórias verdadeiras”, como salienta Matt Taibbi.

    Até as preocupações com a perda de direitos e liberdades com a eventual criação de um certificado digital de vacinação foram consideradas como informações imprecisas, como se lê num relatório endereçado à equipa do Twitter.  De facto, a veracidade, ou falta dela, não importava: desde que fosse susceptível de “promover hesitação vacinal”, qualquer conteúdo poderia ser considerado “malinformation” e, assim, alvo de censura. Ao contrário da “desinformação”, o termo malinformation designa informações que, sendo factuais, são veiculadas com o propósito de causar dano a um cidadão, país ou organização. 

    Para além do Twitter, o Virality Project colaborava ainda com o Facebook, Instagram, Google, Youtube, Tiktok e o Pinterest.  Segundo Taibbi, o projecto depressa ganhou também “visibilidade” junto de outras plataformas alternativas, como o Telegram e o Parler.

    O Virality Project teve autonomia para classificar entidades como suspeitas. Assim, por exemplo, o Worldwide Rally for Freedom – uma iniciativa organizada via Telegram, que abrangeu várias manifestações em dezenas de países contra as medidas anti-covid – ficou descrita como sendo uma fonte de “desinformação”.

    Num dos relatórios enviados ao Twitter, alertava-se aquela rede social para a data em que estava previsto o próximo protesto, acrescentando-se a hashtag utilizada para as publicações sobre o evento, #WewillALLbethere, e o facto de estar a “ganhar tracção online entre os principais influencers cépticos da covid-19, tanto na Inglaterra como na França”.

    Outro relatório do Virality Project versava sobre os comprometedores e-mails de Anthony Fauci, o antigo director do National Institute of Allergy and Infectious Diseases (NIAID) divulgados legalmente no âmbito do Freedom of Information Act em Junho de 2021. Os e-mails, que abordavam as directrizes para as máscaras e a fuga de laboratório, foram vistos pelo Partido Republicano como uma prova de que Fauci “enganou o público americano”, referia-se no relatório. 

    Colaboração iniciou-se em Fevereiro de 2021.

    Por exemplo, neste caso foi até identificado um denominado “influenciador anti-vaxxer”, Alex Berenson, antigo jornalista do The New York Times e conhecido escritor norte-americano. Berenson chegou a ter a conta suspensa em Agosto de 2021, apenas sendo restabelecida no início de 2022 num acordo extra-judicial.

    Noutros casos, são identificados “reiterados infractores” (repeat offenders), os quais deveriam ser vigiados por ser expectável que viessem a escrever sobre temas delicados. Neste grupo constava o advogado Robert F. Kennedy Jr..

    O projecto da Universidade de Stanford considerou, de forma completamente abusiva, que referências ou alegações sobre os e-mails de Fauci também configuravam desinformação, já que “fomentavam desconfiança”.

    Matt Taibbi refere que até no seu último relatório, o Virality Project qualificava como desinformação a tese de que “a vacina não prevenia a transmissão, ou que os Governos planeavam implementar passaportes digitais”. “Ambas [as teses] se revelaram verdadeiras”, salienta agora o jornalista.

    A hipótese, que agora é assumida pelo FBI, foi classificada como desinformação pelas redes sociais por influência da Universidade de Stanford.

    A colaboração com o Virality Project marcou, conforme se consta agora neste episódio dos Twitter Files, um ponto de viragem nos critérios da rede social sobre os conteúdos afectos à covid-19 que pudessem ser “sinalizados”. Até Julho de 2020, ainda nas primeiras fases da pandemia, o Twitter somente “cortava” informações que fossem “comprovadamente falsas” sobre a covid-19. 

    Depois dessa data, a plataforma tecnológica então liderada por Jack Dorsey, sucumbiu aos padrões impostos pelo Virality Project, cujo principal objectivo era não melindrar os cidadãos norte-americanos no que dizia respeito à vacinação anti-covid.

    Embora os documentos agora revelados pelos Twitter Files sejam apenas sobre esta rede social – e já não se apliquem sobre os seus utilizadores –, mostra-se fortemente plausível que as outras redes sociais também tenham sido seduzidos pelo Virality Project. Aliás, o Facebook ainda censura e aplica “castigos” aos seus utilizadores, mesmo sobre matérias já comummente aceites como verdadeiras. Esta semana, mesmo referências feitas pelo PÁGINA UM às declarações do ministro da Saúde alemão, Karl Lauterbach, foram abusivamente eliminadas pela rede social de Mark Zuckerberg.

    Leia aqui toda a cobertura dos “Twitter Files” feita pelo PÁGINA UM.

  • Estados Unidos: Combate à desinformação estrangeira serviu para censurar americanos

    Estados Unidos: Combate à desinformação estrangeira serviu para censurar americanos

    Uma organização criada no último ano da presidência de Barack Obama, o Global Engagement Center (GEG), que visa alegadamente o combate a desinformação estrangeira, está no centro da nova polémica revelada pelos chamados “Twitter Files” – Parte 17. Aquela entidade, habitualmente classificada como departamento estatal, financia diferentes organizações em vários países para o alegado combate a desinformação. Entre as organizações que financia, está alegadamente uma britânica que “classifica” órgãos de comunicação social por níveis de “risco”, o que gera menos receitas publicitárias para os media considerados com pior classificação. Mas há mais. Os Estados Unidos financiaram, através do GEG, organizações que criaram listas negras de contas no Twitter, incluindo de cidadãos norte-americanos comuns.


    É mais uma polémica a juntar às que já foram criadas com a divulgação dos chamados “Twitter Files”, que têm vindo a expor as antigas práticas de censura da rede social Twitter.

    Na edição número 17 dos “Twitter Files”, o jornalista Matt Taibbi revela que uma organização criada no último ano da presidência de Barack Obama para alegadamente combater a desinformação estrangeira, Global Engagement Center (GEC), mantinha listas “negras” de contas a censurar naquela rede social que incluíam utilizadores que eram norte-americanos comuns.

    Uma das entidades financiadas pelo GEC, um laboratório de investigação forense digital, pediu ao Twitter que censurasse 40 mil contas por alegado comportamento suspeito e apoio ao partido do primeiro-ministro indiano Narendra Modi, o Partido do Povo Indiano, e ao nacionalismo hindu.

    Em Junho de 2021, Andy Carvin, um analista da Atlantic Council’s Digital Forensic Research Lab (DFRL), enviou à plataforma tecnológica a lista dos utilizadores, que julgava ser de “funcionários pagos ou voluntários” do Partido do Povo Indiano [BPJ, na sigla em inglês].

    No entanto, Taibbi revelou que, entre as contas supostamente duvidosas, constavam apenas muitos cidadãos americanos comuns sem conexões à Índia e alheios à política do país.

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    Na altura, Yoel Roth, então responsável do departamento de Confiança e Segurança do Twitter, respondeu a Carvin: “verifiquei uma data de contas, e quase todas parecem ser de pessoas reais”. O Twitter acabaria mesmo por manter muitas das contas activas.

    O DFRL é financiado com o dinheiro dos contribuintes americanos através do GEC, cujo mandato consiste em “reconhecer, compreender, expor e combater desinformação estrangeira”. No entanto, Taibbi argumenta que a missão de limitar o alcance e influência de organizações terroristas se transformou, a partir das eleições presidenciais de 2016, numa luta contra o “fantasma” da desinformação nas redes sociais, banindo as contas de pessoas comuns.

    Como Taibbi adianta, inicialmente o GEC teve como parceiras várias agências de inteligência que incluem o FBI, a CIA e a NSA.

    Segundo Matt Taibbi, o GEC chegou a solicitar ao Twitter que colocasse 499 contas na sua lista negra devido a desinformação estrangeira. Os motivos do pedido? Algumas utilizavam a aplicação Signal para comunicar e faziam publicações acompanhadas da hashtag #IraniansDebateWithBiden [IranianosDebatemComBiden].

    O GEC também suspeitava que 5500 contas alegadamente chinesas estavam a incorrer em “manipulação coordenada” em nome do Estado chinês. Curiosamente, a lista continha várias contas de governos ocidentais e pelo menos três membros da CNN fixados no estrangeiro.

    Tal como outras informações divulgadas pelos “Twitter Files” já tinham dado conta, a Rússia é um dos países que mais preocupação tem merecido das agências americanas de informação e segurança.

    Taibbi cita um relatório especial do GEC que circulou em 2020, intitulado Russian Pillars of Desinformation and Propaganda, em que a organização defendia que, para além de intervenientes diretamente ligados ao Estado, grupos independentes não deviam ser excluídos de suspeitas de um “ecossistema” de propaganda.

    Matt Taibbi adianta que um dos relatórios que o GEC enviou ao Twitter, sobre a França, “atribui a participação no movimento dos coletes amarelos a um alinhamento com a Rússia”, de acordo com uma afirmação de Aaron Rodericks, um funcionário da rede social.

    Além disso, Rodericks terá ainda dito que o relatório do GEC relativo à China “igualava tudo o que fosse pró-China, mas também tudo o que fosse contra a China em Itália, como parte da estratégia russa”.

    Encontrando pouco respaldo no Twitter, o GEC terá tentado instrumentalizar a comunicação social para que pressionassem a gigante tecnológica sobre contas suspeitas de semear desinformação a mando da Rússia.

    O jornal Politico, por exemplo, deu eco a um relatório da New Knowledge, uma agência constituída por antigos funcionários da NSA, que visava cinco contas alegadamente russas. Algo que o Twitter contrariou, esclarecendo que duas das contas eram apenas de “spam comercial”, e uma delas era americana e não era de todo suspeita.

    Taibbi refere ainda que seguir contas de diplomatas chineses ou partilhar memes iranianos a favor da libertação da Palestina pode ser suficiente para fazer soar os alarmes das agências de inteligência no que toca à desinformação. E comprova-o com uma mensagem que Samaruddin Stewart, Conselheiro Técnico Senior do GEC, enviou a uma funcionária do Twitter.

    As revelações dos “Twitter Files” surgiram da vontade de Elon Musk, que concluiu em Outubro de 2022 a compra do Twitter, de divulgar documentos e mensagens internos da empresa que demonstram as antigas práticas de censura que eram praticadas na rede social pela anterior equipa de executivos. Musk decidiu confiar a análise e divulgação dos “Twitter Files” a jornalistas independentes.

    Dois dos jornalistas que têm estado a divulgar os “Twitter Files”, Matt Taibbi e Michael Shellenberger, vão testemunhar na Câmara dos Representantes norte-americana, no dia 9 de Março, numa audiência sobre a conduta do FBI durante a administração anterior da rede social.

    Leia aqui toda a cobertura dos “Twitter Files” feita pelo PÁGINA UM.

  • A leveza de uma vida notável

    A leveza de uma vida notável

    Título

    Peste e cólera

    Autor

    PATRICK DEVILLE (tradução: José Mário Silva)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Dezembro de 2022)

    Cotação 

    15/20

    Recensão

    Alguns heróis são mais esquecidos do que outros – e não se incomodam com isso, porque nunca tiveram a pretensão de o ser. Alexandre Yersin 1863-1943, discípulo de Louis Pasteur, foi um microbiologista, polímata e cientista suíço que se encaixa nesse perfil.

    Pouco conhecido pela generalidade das pessoas, não é um dos nomes mais sonantes da História da Medicina, embora o bacilo da peste negra, Yersinia pestis, descoberto pelo cientista em Hong Kong em 1894, tenha sido nomeado em sua honra.

    Felizmente, o escritor francês Patrick Deville, escreveu um romance inspirado na intensa vida de Yersin, que foi um explorador em várias áreas da vida, e não apenas da Ciência. Intitula-se Peste e cólera, e tornou-se, no ano passado, o primeiro romancista traduzido para português do romancista, estando integrado na Colecção de Alberto Manguel,uma iniciativa da Tinta da China e da RTP. Originalmente publicado em 2012, recebeu nesse ano o prémio Femina e o Prix de Prix em França.

    O romance é abundante – talvez em demasia – em apontamentos históricos e curiosidades, ou não fosse também o seu próprio autor um aventureiro e viajante profissional.  Patrick Deville partiu para o Golfo Pérsico como adido cultural, com apenas 23 anos, e foi professor em países como a Argélia e a Nigéria, tendo publicado o seu primeiro livro em 1987. Também noutras das suas obras, Deville inspirou-se em figuras reais, conjugando as suas vidas com a ficção.

    Se Alexandre Yersin nunca obteve uma grande notoriedade, tendo ficado relegado um pouco como uma personagem secundária, neste romance o aprendiz de Pasteur é o protagonista – e em pleno direito. É justo porque, como se percebe em Peste e cólera, a sua vida é digna de ocupar estas 222 páginas, e a sua história é daquelas que vale a pena conhecer. Não sendo assim uma biografia, é um romance que retrata, contudo, com grande fidelidade a sua vida, a qual se pôde reconstruir sobretudo através das cartas que, nas suas muitas viagens, escreveu à mãe, Fanny, e à irmã, Emilie.

    Poder-se-ia chamar Alexandre Yersin um homem dos sete ofícios, multifacetado. Sedento de conhecimento, foi o arquétipo do génio eremita. Sempre nutriu uma profunda admiração por David Livingstone, um conhecido missionário e explorador escocês. E, de facto, Yersin teve essa faceta aventureira: aos 27 anos tornou-se médico de bordo da Messageries Maritimes. Em navios a vapor, percorreu a costa do sudeste asiático, região cujo centro chegou a explorar, tendo até estado de caras com a morte.

    Não mais quis voltar à Europa, que trocaria definitivamente por Nha Trang, uma província que corresponde hoje ao actual Vietname. Nesse país, Alexandre Yersin é ainda hoje venerado pela forma como altruisticamente serviu a população vietnamita ao longo do quase meio século, e onde faleceu com 79 anos. Ali, abriu um pequeno laboratório que, poucos anos mais tarde, se tornaria uma filial do Instituto Pasteur.

    O romance percorre todas as estações da longa vida de Yersin: a infância, a juventude, a idade adulta e a velhice. Não o faz, contudo, por ordem cronológica. Ao longo do livro, vai-se avançando e recuando no tempo. Não sendo obra imperdível, com Peste e cólera ninguém perde nada com a sua leitura. É um livro leve, descomprometido, que cai bem.

    É certamente uma boa adição à biblioteca de qualquer pessoa. A escrita tem beleza, e a vida do cientista suíço é deveras impressionante.