Autor: Maria Afonso Peixoto

  • Um pé de guerra pelo “novo petróleo”

    Um pé de guerra pelo “novo petróleo”

    Título

    A guerra dos chips

    Autor

    CHRIS MILLER (tradução: Diogo Freitas da Costa)

    Editora

    Dom Quixote (Julho de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Muito se tem dito sobre o fim da hegemonia dos Estados Unidos, e o início de uma nova era onde outras potências adquirem destaque internacional, sobretudo a China, o seu principal adversário. Teme-se, digamos assim, que o verniz mais do que estale entre estas duas nações, em grande parte devido às tensões envolvendo Taiwan.

    Contudo, como Chris Miller demonstra em A guerra dos chips, por enquanto, se “guerra” há, esta vai-se travando com outras armas: os chips. 

    Professor de História Internacional na Tufts University’s Fletcher School, e investigador convidado no think-thank American Enterprise Institute, o autor deste best-seller do New York Times ocupa também o cargo de director para a Eurásia no Foreign Policy Research Institute. Eis, portanto, um verdadeiro especialista nas relações entre os Estados Unidos e a Rússia, a política externa russa e a história das relações norte-americanas com o estrangeiro, como se vê por algumas das suas obras, como The Struggle to Save the Soviet Economy: Mikhail Gorbachev and the Collapse of the USSR e ainda Putinomics: Power and Money in Resurgent Russia.

    A narrativa desta sua obra, agora publicada em Portugal, assemelha-se ao enredo de um filme de acção, em que os protagonistas se debatem pela vitória, enquanto os acontecimentos se vão adensando e tornando cada vez mais imprevisíveis, fazendo-nos colar ao ecrã. E o propósito será mesmo esse, uma vez que A guerra dos chips mostra ser uma espécie de thriller de não-ficcão e, por isso, o autor confere-lhe uma boa dose de intensidade dramática. Nesta história da vida real, o que está em causa é a cobiça pelo lugar cimeiro na indústria dos semicondutores – e é isso que assegurará a consolidação e manutenção do poder, a nível global, a quem o alcance. 

    Ao longo de cerca de 450 páginas, Chris Miller recua até às origens desta tecnologia, que diz ser o “novo petróleo”, e explica em detalhe como se tem desenrolado, neste campo de autêntica batalha, a luta entre os Estados Unidos e a China. Fala do caso das sanções à Huawei, que fizeram manchetes no início deste ano, mas que foram apenas uma das medidas que os Estados Unidos já tomaram para tentar evitar, ou atrasar, a ascensão da China neste sector. 

    Os chips, como se sabe, são uma peça fundamental de variados equipamentos, e o autor lembra-nos como uma grande parte da nossa existência está profundamente alicerçada nesta tecnologia. Desde os micro-ondas, smartphones, frigoríficos, computadores, à Bolsa de Valores e ao armamento, o Mundo como o conhecemos hoje não existiria sem estes minúsculos objectos. Na verdade, “grande parte do PIB Mundial é produzido com máquinas que só funcionam com semicondutores. Para um produto que não existia há 75 anos atrás, esta é uma evolução extraordinária”. (pág. 34)

    Não é, assim, de espantar que a China esteja tão apostada em destronar os Estados Unidos, gastando já mais dinheiro a importar chips anualmente do que em petróleo. No caminho, tem tentado fintar as duras restrições aplicadas pelos Estados Unidos, como a Lei dos Chips, e outros entraves à sua capacidade de produção, como os controlos à exportação de materiais necessários.  

    Para sabermos se será, ou não, bem-sucedida, teremos de esperar pelos próximos capítulos, mas aquilo que Chris Miller salienta é que se pode estar na iminência de uma mudança abissal no panorama geopolítico, alterando o equilíbrio das relações económicas internacionais e do poder militar. O seguinte trecho resume o seu argumento: “A Segunda Guerra Mundial foi decidida pelo aço e pelo alumínio, logo seguida pela Guerra Fria, que foi definida pelo armamento atómico. A rivalidade entre os Estados Unidos e a China pode muito bem ser decidida pela capacidade computacional”. (pág 29)

    Até a famosa Sillicon Valley, que é também central nesta indústria, deve ao seu nome ao material com que se fabricam os chips. Como Chris Miller destaca pertinentemente, a Internet e as redes sociais, de que hoje estamos tão dependentes, só existem graças à genialidade de alguns cientistas, e “porque os engenheiros aprenderam a controlar o mais diminuto movimento dos eletrões na sua corrida através de superfícies de silício. A ‘Big Tech’ não existiria se o custo de processar e memorizar 0 e 1 não tivesse caído um bilião de vezes nas últimas cinco décadas”. (pág. 32)

    Mas se é inegável a relevância desta tecnologia neste nosso Mundo globalizado, também é verdade que a sua importância assume contornos mais delicados, tendo em conta que a produção se concentra num reduzido número de companhias, que, ainda por cima, se localizam em países vulneráveis a conflitos bélicos ou até a desastres naturais, como terramotos – como é o caso de Taiwan e do Japão. 

    No entanto, o “fantasma” mais assustador, que paira sobre a gigante indústria dos chips e, acima de tudo, sobre o Ocidente, é a de uma Terceira Guerra Mundial entre os Estados Unidos e a China. 

    A guerra dos chips “troca por miúdos”, assim, tanto quanto é possível num assunto deste calibre, as dinâmicas perigosas entre as duas potências que continuarão, previsivelmente, a digladiar pelo “domínio” do Mundo, num verdadeiro duelo de titãs. 

    No final desta colossal e fascinante obra, Chris Miller confessa que “escrever este livro foi só ligeiramente menos complexo do que fazer um chip” (pág. 451), o que, passando o humor ou ironia, acaba por mostrar, com justiça, o grau de minúcia, investigação e de esforço de simplificação que ele colocou num tema tão complexo mas tratado com mestria.

  • ‘Em contraponto às tecnológicas, a Literatura pode nos devolver a possibilidade de coexistir, de conviver’

    ‘Em contraponto às tecnológicas, a Literatura pode nos devolver a possibilidade de coexistir, de conviver’

    É já um fenómeno da literatura brasileira, embora ainda com uma carreira literária curta. O primeiro romance de Itamar Vieira Junior, Torto Arado, arrecadou o Prémio Leya 2018 (e depois o Prémio Oceanos e também o Jabuti), foi aclamado pelo público e pela crítica, já vendeu mais de 750 mil exemplares, foi traduzido em 24 línguas e será adaptado ao pequeno écrã. Formado em Geografia e doutorado em Estudos Étnicos e Africanos, este baiano transporta para a sua arte os universos com os quais se cruzou desde a infância – primeiro através das suas raízes familiares, e até dos seus antepassados, e depois pelo trabalho que exerceu para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. O colonialismo, que diz ainda existir no Brasil, as desigualdades e as injustiças sociais são temas omnipresentes na sua escrita. O seu segundo romance, Salvar o Fogo, dá novo corpo à realidade dos que não podem falar por si. Nesta entrevista ao PÁGINA UM, o autor critica as grandes tecnológicas, pelo seu papel na crescente polarização da sociedade, que vê como uma ameaça à democracia, e reforça a importância de se saber conviver com a diferença.


    Na sua escrita, há uma tónica muito forte de intensidade, de vivacidade nas palavras e num modo emotivo de contar a história. Essa intensidade vem das suas experiências de vida mais marcantes?

    Sim, acho que tem uma relação com isso que você disse, eu até falava mais cedo. Esse mundo da leitura… Tem uma história de Moisés em Salvar o Fogo, quando ele fala da descoberta da leitura, acho que nesse ponto a minha vida se aproxima da história da personagem. Porque de facto, a minha rotina e o meu quotidiano, transformaram-se. Quando eu descobri a leitura, eu tenho a impressão de que a minha vida ficou maior, que ela não se restringe apenas a este espaço que nós chamamos de real. Há todo um mundo imaginário onde eu habito também, e onde as minhas personagens habitam, e que me dão histórias e narrativas que tornam a minha vida maior do que ela é. Então, eu tenho uma sensação de que eu habito estes dois planos – o que nós convencionamos chamar de real –, mas eu também habito a minha imaginação, este plano imaginário. E daí, imaginar que as histórias dessas personagens foram sentidas de uma maneira literal por mim neste plano e transmutar tudo isso em narrativas; transmutar tudo isso para a literatura. O meu interesse pela literatura, e acho que a maior parte do interesse dos autores, no fundo é a gente estar se debruçando sobre a nossa condição humana. Daí a importância de compreendermos as histórias, os sentimentos, e tudo aquilo que faz parte de uma narrativa literária.

    Além da imaginação, também o seu percurso profissional e académico permitiu que tivesse um contacto muito próximo com a realidade do Brasil profundo, onde há extrema pobreza e comunidades carenciadas. Que bagagem é que o seu trabalho lhe deu para escrever as histórias? Seria capaz de retratar estas personagens sem essas vivências?

    Olha, acho que talvez eu conseguisse escrever, mas não estas histórias e estas narrativas que eu tenho escrito. Vou dar o exemplo de Torto Arado, que é uma história que surgiu para mim muito cedo, na adolescência. Eu era muito influenciado por uma literatura brasileira que tinha sido escrita na primeira metade do século XX, que era uma literatura plural e que dava conta da nossa diversidade étnica e cultural; e depois, o Brasil perdeu-se um pouco neste caminho. Então, eu gostava muito dessa literatura e já foi algo que despertou a escrita de Torto Arado. Mas eu era muito novo, tinha 16 anos, não tinha metade das experiências da vida que eu tive, e que conquistei depois… E aí quando eu fui trabalhar como servidor público no campo brasileiro, há mais de 17 anos, aquela história que já existia em mim cresceu e eu pude contá-la com a densidade e a profundidade com que foi narrada. Então, eu sinto todas essas experiências profissionais que eu tive – e não só profissionais, mas do ponto de vista académico. Eu terminei o curso fazendo graduação em Geografia, fiz mestrado em Geografia e depois um doutoramento no campo da Antropologia e Estudos Étnicos. Toda essa formação me deu um repertório de vida e social que termina reverberando naquilo que eu escrevo. Não existe, nem é dissociável o Itamar que foi pesquisador e cientista e o Itamar escritor; o Itamar servidor público e o Itamar escritor. Eu sou apenas uma pessoa, e tudo aquilo que eu experimentei e vivi termina reverberando naquilo que eu narro e escrevo também.

    A pobreza, as desigualdades, o colonialismo e o racismo são temas que não só estão presentes na sua obra, como também os tem abordado publicamente. Considera que um artista deve usar a sua visibilidade para se tornar também, de certa forma, um activista?

    Eu gostaria de não ser lido e não ser visto como um activista. Mas eu acho que todos nós criadores que trabalhamos com arte – não só na literatura, mas num contexto geral – estamos reflectindo sobre o nosso tempo, não é? A arte termina sendo um testemunho que temos a compartilhar com o outro da nossa vida, do meio onde vivemos, daquilo que é relevante para nós, daquilo que precisamos pensar e reflectir no nosso tempo. Então, eu acho que é inevitável que coisas que fazem parte do nosso mundo hoje, ou que fazem parte das nossas preocupações hoje, surjam naquilo que nós escrevemos. E claro, depois que me tornei autor e conquistei leitores, eventualmente eu precisei me manifestar como pessoa pública, como cidadão, sobre temas relevantes para o Brasil. Não gostaria de fazer isso com frequência, e tento não fazer com frequência, mas, por exemplo nas últimas eleições presidenciais, eu percebia que o país estava em risco. Então, não havia possibilidade de permanecermos neutros, até porque a neutralidade é uma conduta e uma opção política, não é? E eu disse: não, eu preciso me manifestar.

    Torto Arado, romance inédito vencedor do Prémio Leya 2018, arrecadou depois, no Brasil os prémios Oceanos e Jabuti.

    Sentiu como se fosse quase uma obrigação?

    Eu me engajei mesmo naquele momento, porque achava que nossa democracia e a sociedade brasileira estavam em risco se optassem pela continuidade do governo anterior. Mas eu procuro não participar tão activamente de tudo. Claro que como cidadão eu quero partilhar muitas coisas, mas é porque eu acho que a Literatura já revela e já diz muito sobre mim. Já diz muito do que eu penso sobre o mundo. Então, eu gostaria, de facto, que a literatura bastasse. Que eu nem precisasse falar sobre as histórias, sobre os livros, que elas por si bastassem. Mas como eu sei que não é possível, às vezes eu tento me manifestar e, enfim, ocupar o espaço que os leitores me destinaram para que eu possa de facto fazer valer essa consciência também.

    Os seus livros também mostram o poder e a influência da Igreja Católica, nomeadamente como detentora de propriedades e, em certa medida, do domínio que exerce sobre as populações carenciadas. O Brasil é um país muito religioso, onde o Cristianismo tem um peso considerável. A forma como fala da Igreja em Salvar o Fogo pode ser lida como uma crítica directa a esta instituição? Acha que o cristianismo devia ser menos importante para o povo brasileiro?

    Eu acho que a História do Cristianismo no continente americano é uma história de grande violência. E neste caso, por acaso, é a Igreja Católica, mas poderia ser uma Igreja Evangélica, e a violência ainda assim seria a mesma. Então, na História da América e de quando o continente foi ocupado pelos europeus – estou pensando nos espanhóis, nos portugueses, nos ingleses, nos franceses –, as sociedades que lá estavam no continente americano foram subalternizadas. Estes europeus que chegaram à América, a primeira coisa que colocaram não foi um tijolo para construir a parede de uma casa. A primeira coisa que se colocou foi uma cruz cristã nestes territórios. E esta cruz foi símbolo de muitos apagamentos de saberes, crenças e filosofias que existiam antes. Então, a história da Igreja Católica em Salvar o Fogo é a história de uma personagem, que é esta instituição, e que nos atravessa ao longo da História. Nos atravessa de maneira definitiva. Durante muito tempo, o empreendimento colonial escravista só teve êxito porque tinha o apoio decisivo da Igreja. Se pensarmos no Brasil, em particular, a Igreja era e ainda é uma grande detentora de fracções de terra. Até hoje, a Igreja em alguns lugares tem conflito com pequenos produtores. A Igreja foi a maior detentora de escravizados no Brasil, se considerarmos a instituição. As fazendas que ela detinha… O maior proprietário, digamos assim, de pessoas escravizadas, era a Igreja Católica.

    E é importante para si salientar isso?

    Sim, é uma história que não pode ser esquecida, que deve ser lembrada. Que, por fim, fala muito do nosso mundo e da nossa vida hoje. Hoje no Brasil, a Igreja Católica cada vez perde mais espaço institucional na sociedade, mas, em contrapartida, não quer dizer que a nossa vida seja diferente. A Igreja Evangélica assume tudo isso, e ela tem uma grande bancada na Câmara dos Deputados; ela participa de tudo na nossa vida pública. E interferiram sobremaneira nas últimas eleições, fazendo campanha para o presidente que foi derrotado no pleito. Ou seja, o Estado deveria ser laico, mas praticamente não é laico ainda, porque tem uma grande participação dos religiosos na Igreja no nosso quotidiano. As mulheres são as maiores vítimas de tudo isso, porque quando a gente fala de interrupção voluntária da gravidez, por exemplo, no Brasil não se pode nem falar isso. Isso não é um direito. Acho que em Portugal, claro, não deve ser uma coisa pacificada, mas ainda assim, a mulher que precisa não vai morrer na fila da Saúde Pública, porque é reconhecido como um direito. Ela tem o direito sobre o seu próprio corpo. Afinal, o Estado português é um estado laico.

    No Brasil, a religião continua ainda muito entranhada na política?

    No Brasil, embora o Estado laico seja propagado, na prática ele não é. Porque a nossa vida ainda tem grande interferência da religião e do Cristianismo. Sem contar que o Brasil, como é um país plural, temos outras práticas religiosas, práticas indígenas, práticas afro-brasileiras, e essas práticas religiosas sofrem imensa violência dos cristãos no Brasil. Eu vivo numa cidade que tem um grande número de templos, que são os terreiros de Candomblé, templos afro-brasileiros. E é muito comum invadirem esses templos, quebrarem as coisas que estão lá. Eu vivi durante um tempo no final de uma avenida chamada Mãe Stella de Oxóssi, porque homenageava essa sacerdotisa e a yalorixá de Candomblé, importante para a cidade. E na entrada da avenida tinha uma estátua dessa mulher, como tem uma estátua aqui do Marquês de Pombal. Colocaram essa estátua de um grande escultor baiano que até já morreu, o Tatti Moreno, foi uma das últimas coisas que ele realizou… E incendiaram essa estátua um ano depois, e foi incendiada por cristãos evangélicos. Ou seja, a liberdade religiosa deveria ser garantida a todos, não apenas aos cristãos. Mas essas pessoas que praticam outras religiosidades, como a Luzia em Salvar o Fogo, que tem essa relação com o fogo e com o sobrenatural, é tida como feiticeira, como bruxa. A estátua de Mãe Stella de Oxóssi foi queimada como se ela fosse uma bruxa, não é? Enfim, mostra um pouco dessa violência religiosa que ainda está muito presente no Brasil.

    Numa entrevista, afirmou que o Brasil, apesar de se ter tornado independente há 200 anos, ainda funciona numa lógica muito colonialista, e que agora os brasileiros são colonizadores de si mesmos. De que forma é que isso se manifesta, concretamente?

    Sim, eu acho que no período das grandes navegações – não estou falando só do Brasil e de Portugal, estou envolvendo os europeus e estou pensando no continente americano e no continente africano –, se inaugurou uma maneira de viver que ainda é determinante para os nossos dias. Que é este modo de habitar o mundo que é colonial, e que é baseado na exploração e na destruição das pessoas e dos meios. Quando eu falo em colonialismo, nesse habitat colonial, eu não estou apontando o dedo para ninguém. É apenas o reconhecimento de uma maneira de viver o mundo que está impregnada – não só no Brasil, mas na Colômbia e creio que em Portugal também, se a gente pensar no contexto da União Europeia. Portugal não é um país decisivo para a União Europeia, e fica muitas vezes a reboque daqueles que podem exercer a sua vontade. Estou pensando em países como a Alemanha, a França. Ou seja, esta relação entre opressores e oprimidos é uma coisa que se reproduz em muitas partes do mundo. Estou pensando na Palestina, em tantos lugares, não é? E o Brasil já poderia ter trilhado outro caminho; afinal, a independência do país foi declarada há 200 anos. Em 200 anos dá para acontecer muita coisa. Mas o Brasil, mesmo depois da Independência, optou por manter a escravidão em território brasileiro. Foi o último país do Mundo a abolir a escravidão. É um país onde essa estrutura do habitat colonial está impregnada em todos os contextos, porque é um país que tem uma classe que tem sobrenome, e que tem uma ascendência, muitas vezes europeia, que está dominando e domina as populações que não fazem parte deste grupo; que são subalternizadas.

    Segundo romance de Itamar Vieira Junior foi lançado em final de Abril em Portugal.

    Ainda há um caminho a percorrer…

    Exactamente. O Brasil continua a colonizar a si mesmo. Mas esta é uma constatação apenas, porque esta é a história do capitalismo. O capitalismo vive essa relação de explorador e explorados, de opressores e oprimidos. E inclusive, essa construção do que é ser branco, do que é ser negro, do que é ser indígena, não é algo natural nosso. Em algum momento da história, principalmente quando o capitalismo cresce assente nas grandes navegações, o ser negro e ser branco é uma construção social. E isto ainda está impregnado no nosso quotidiano, na nossa vida. São rankings de vida e valor construídas naquele tempo, que precisam ser descontruídas. Então, ainda vamos falar sobre isso durante muito tempo, não é? [risos]

    As mulheres assumem uma preponderância nos seus romances, são personagens de grande força, o feminino está muito exaltado. No seu crescimento, as mulheres da sua família tiveram um papel primordial? Foram, também, elas que o influenciaram e contribuíram para que desenvolvesse a sua sensibilidade artística?

    Com certeza. Eu acho que, embora talvez as feministas até contestem, há atributos que as mulheres carregam na sua maneira de ser, no seu corpo, na maneira como se relacionam com o mundo, com a História… E eu cresci numa casa atravessada pelo patriarcado, pelo machismo, mas com estas personagens que me intrigavam muito quando eu era criança. Porque eu observava elas serem vítimas de violência, às vezes vítimas de violência doméstica. Elas eram vítimas da sociedade que as tinham como pessoas inferiores com saberes inferiores, mas elas nunca se conformaram com isso e elas sempre contestaram. E o que é curioso é que não eram mulheres escolarizadas, letradas. Porque se fosse uma mulher que frequentasse a universidade, poderia ter contacto com escritos da Simone de Beauvoir e de tantas outras feministas, e construíam um repertório intelectual para combater tudo aquilo. Mas elas eram mulheres simples, pouco escolarizadas, e que ainda assim contestavam tudo aquilo. Isso se impregnou de tal maneira no meu imaginário, que sempre que eu escrevo, elas chegam inevitáveis com a força que essas mulheres – mãe, tias, avós, primas – tinham na minha família, não é? Então, para mim essa leitura de mundo, que às vezes caminha neste sentido que também é um sentido decolonial, vamos dizer assim, de desconstruir esse modo de viver a vida que foi construído no passado. Porque se a gente pensar no projecto colonial escravista, ele foi imaginado, projectado e executado por homens. Ou seja, é um projecto patriarcal.

    E trazer as mulheres para uma história que é desconstruir tudo isso, é devolver uma narrativa que lhes foi roubada, usurpada em algum momento. De que elas eram bruxas, feiticeiras, que eram personagens inferiores. Em Torto Arado, tem um personagem, o Zeca Chapéu Grande, que é um curador, uma espécie de feiticeiro, mas aquilo nunca é questionado. Claro que há racismo, mas nunca é questionado pelas pessoas do seu grupo. No caso da Luzia, ela é tida – eu não sei se sim, os leitores vão descobrir ao longo da leitura – como uma personagem que guarda poderes sobrenaturais. Mas ela, por ser mulher, é estigmatizada como bruxa, como feiticeira, como alguém que deve ser destruída, exterminada. Ou seja, estas duas histórias já dizem muito do lugar que a mulher ocupa na sociedade. E daí, essas mulheres incríveis que fizeram parte do meu imaginário e da minha educação, invadiram essas histórias com força também.

    Actualmente, a polarização da sociedade parece ser crescente, e o Itamar já criticou esta onda de cancelamentos a que assistimos. Como artista, naturalmente, valoriza a liberdade de expressão. Acha que a arte e a literatura podem ter um papel importante para combater esta intolerância?

    Eu não sei se a literatura tem feito isso com frequência, mas eu acho que é um excelente instrumento para que a gente desconstrua, para que devolvamos a ideia de sermos humanos – de que nós podemos acertar, mas também podemos errar. Parece que em nosso tempo a gente perdeu um pouco o sentido da nossa humanidade. Se a gente for olhar as redes sociais, é um massacre, é um discurso de ódio. Estou pensando principalmente no Twitter, eu nem tenho Twitter por causa disso. Eu brinco que o Twitter é o… Não sei se você já leu o 1984 de George Orwell, mas o Twitter é aqueles dois minutos de ódio. Quando tocava o sino naquela cidade, e as pessoas iam para a frente de uma tela – e é uma obra publicada em 1948, ainda não existia nada nisso, nem telemóveis nem Twitter –, e lá vociferam tudo o que sentem de ódio e exercitam o ódio para se manterem vivas. E as redes sociais virou essa teletela do 1984. Eu não sei como está traduzida no português de Portugal, mas no português do Brasil chamamos teletela. E, de facto, criaram-se ali ambientes onde as pessoas só aceitam conversar com quem concorda com elas, ambientes polarizados. E isso tem posto a democracia em risco. Porque se você olhar, o Partido Republicano nos Estados Unidos, que até há 20 ou 30 anos era um partido de centro-direita, tem caminhado para a extrema-direita. No Brasil, existia um partido de centro-direita, que era o PSDB, que governou com Fernando Henrique Cardoso, e durante muitos anos governou estados no Brasil. E ele deixou de existir praticamente, quase não existe mais; e quem ganha espaço é a extrema-direita.

    Os próprios algoritmos das redes sociais foram feitos de modo a fomentar a discórdia e a polarização…

    Exactamente. E pensamos que as Big Tech, as tecnológicas, são inocentes, não é? Que só estão ali para reunir as pessoas, mas não, elas têm trazido uma crise para a democracia no Mundo. E a gente perdeu o sentido de que nós somos humanos, de que nós erramos, de que as pessoas pensam de forma diferente, mas ainda assim isso não quer dizer que nós não possamos coexistir, não possamos conviver. E esse altericídio das redes sociais – porque é um altericídio, a morte da alteridade –, a Literatura pode nos devolver essa alteridade. Porque quando lemos uma história, nós aprendemos a gostar das personagens, mesmo que elas errem, mesmo que elas falhem. E reconhecemos nelas a Humanidade que também é nossa, porque nós somos isso. Nós falhamos, nós erramos, não é? Nós tentamos acertar, nós sonhamos. Ou seja, penso que em contraponto às tecnológicas, a Literatura pode nos devolver a possibilidade de coexistir, de conviver, de exercitar a alteridade também. Com muito menos polarização, porque não é algo saudável.

  • Bolsas há muitas

    Bolsas há muitas

    De entre as diversas entidades que atribuem bolsas, algumas associadas ao Estado, outras a entidades privadas ou personalidades, o PÁGINA UM foi “visitar” algumas para perceber se a Associação Sara Carreira “inventou a roda” e, se não – ou seja, se há mais entidades a apoiarem o estudo a jovens carenciados –, saber se escondem também os valores do apoio aos bolseiros.


    A Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), associada ao Estado, é porventura a entidade que mais apoios concede, mas não tendo como critério a situação económica do candidato. Abre anualmente concursos para bolsas “de diversas tipologias”, e em todas as áreas científicas, abrange bolsas de investigação para doutoramento; de doutoramento no âmbito de protocolos e parcerias; e bolsas de curta duração.  

    Segundo consta no “Aviso de Abertura de Concurso” de Janeiro de 2023, “o número de bolsas a atribuir é de 1.450, das quais um máximo de 400 serão alocadas à linha de candidatura específica para planos de trabalho em entidades não académicas”. Estes números são, no entanto, indicativos, “podendo ser revistos de acordo com a disponibilidade orçamental ou em função do número de candidaturas admitidas em cada linha de financiamento”. Os bolseiros também têm direito a um “seguro de acidentes pessoais relativamente às atividades de investigação, suportado pela entidade financiadora”.

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    Tal como estipula o Regulamento de Bolsas de Investigação da FCT, I. P., de 16 de Dezembro de 2019, os valores mínimos mensais previstos para bolsas em Portugal vão desde os 412 euros, para bolsas de iniciação à investigação, a 1.600 euros para bolsas de investigação pós-doutoral. A estes valores acrescem ainda subsídios para actividades de formação complementar; apresentação de trabalhos em reuniões científicas; inscrição, matrícula ou propinas; e subsídio de viagem ou de instalação, quando aplicável.

    As candidaturas são abertas a “cidadãos nacionais, cidadãos de outros estados-membros da União Europeia, cidadãos de estados terceiros, apátridas ou cidadãos beneficiários do estatuto de refugiado político”. Entre as condições para a elegibilidade do candidato, constam a residência permanente e habitual em Portugal, não ter já obtido o grau de doutor, nem ter beneficiado já de uma bolsa da instituição.

    Já o Instituto Camões tem diferentes tipos de bolsas: Bolsas da Cooperação, Bolsas da Língua e Cultura Portuguesas, Bolsas de Governos/ Instituições estrangeiras e Bolsas PROCULTURA PALOP-TL. Destas últimas, são atribuídas “48 bolsas de estudos internacionais para licenciatura e mestrado e, em parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian, 60 bolsas para residências artísticas nas áreas da Música e das Artes Cénicas, entre 2019 e 2020, a cidadãos nacionais de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste e residentes nestes países”.

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    As Bolsas da Cooperação abrangem os graus de licenciatura, mestrado e doutoramento. Os valores são revelados, variando desde os 380 euros de subsídios de manutenção para licenciatura até aos 870 euros para doutoramento. Acresce um subsídio de instalação e outros pequenos apoios.

    Em Portugal, a Comissão Fullbright também disponibiliza bolsas que possibilitam aos estudantes e professores portugueses prosseguir os estudos, investigação, ou leccionar nos Estados Unidos, e aos estudantes e professores norte-americanos fazer o mesmo em Portugal. A oferta é vasta – algumas resultam de parcerias com outras instituições –, tanto para candidatos portugueses como estrangeiros. Para os portugueses, a Bolsa Fullbright para Mestrado, por exemplo, concede um financiamento máximo de 30 mil dólares para o primeiro ano de estudos, além de um Plano complementar de saúde e acidentes durante o período da bolsa.

    Por seu turno, os bolseiros da Bolsa Fullbright para Investigação, que tem a duração de 4 a 9 meses consecutivos, têm os seguintes benefícios: “Comparticipação financeira de $1.500 dólares americanos por mês de estadia, num total mínimo de $6.000 (4 meses) e máximo de $13.500 (9 meses); atribuição de um montante de €900 para apoio na aquisição de viagem de ida e volta entre Portugal e os EUA; plano complementar de saúde e acidentes durante o período da bolsa (ASPE).; emissão dos documentos necessários ao visto J-1, e isenção do pagamento do visto”.

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    Também com ares do outro lado do Atlântico, a Fundação Luso-Americana, em parceria com o Centro de Estudos Portugueses da Universidade da Califórnia, em Berkeley, “atribui uma bolsa para estudantes de doutoramento ou de mestrado que tenham sido aceites na Universidade da Califórnia, em Berkeley”, abrangendo todas as áreas científicas. Nesta edição de 2023, “a Bolsa será atribuída a um estudante de doutoramento”, com um financiamento de até 60 mil dólares, repartido ao longo dos cinco anos do doutoramento, “ou a um estudante de mestrado que vai receber até um total de 26 mil dólares durante os dois anos do seu programa de estudo”.

    Já a Bolsa para Junior Visiting Researcher @UC Berkeley 2023/2024 destina-se a “doutorandos portugueses ou residentes em Portugal que queiram fazer investigação para desenvolver a sua tese de doutoramento na UC Berkeley”, e o valor da bolsa totaliza 10 mil dólares, sem incluir seguro de saúde. Metade da bolsa será disponibilizada directamente pela FLAD ao bolseiro; e a outra metade é paga directamente ao Centro de Estudos Portugueses/ Instituto de Estudos Europeus da Universidade da Califórnia, Berkeley, para “cobrir os encargos com o processo inicial para a obtenção de visto, acesso à estrutura académica e serviços da Universidade”.

    A Fundação Oriente disponibiliza cinco tipos diferentes de bolsas – algumas de curta duração, outras para alunos provenientes do Oriente para aprender a língua e cultura portuguesas e vice-versa, e outras para doutoramento ou investigação. O objectivo dos programas é sempre “reforçar a relação entre Portugal e o Oriente”, apoiando directamente “a formação avançada de investigadores, artistas e estudantes nas mais diversas áreas”.

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    A Fundação estipula o pagamento de um valor mensal “e, nos casos em que se justifique, o pagamento de uma viagem de ida e volta do local de residência ao país de estudo”.

    A Embaixada da República Federal da Alemanha tem um programa de incentivo de alunos estrangeiros ao estudo de alemão, existente em 84 nações, e inclui uma “estadia de quatro semanas na República Federal da Alemanha aos melhores alunos de alemão selecionados com base num processo de seleção específico”. Em Portugal, através de um concurso, serão escolhidos dois jovens, entre os 15 e os 17 anos para beneficiar deste programa em 2023. Os premiados terão direito a aulas de alemão; excursões a diversas cidades alemãs, como Berlim ou Hamburgo; participação em eventos para jovens e eventos desportivos, e visitas a universidades, museus, teatros e outros estabelecimentos culturais.

    O Serviço Alemão de Intercâmbio Académico (DAAD) também tem um leque de programas que abrange diversas áreas académicas e científicas, e que inclui bolsas para mestrados, pós-graduações ou investigação em universidades alemãs. Dependendo do programa escolhido, as bolsas podem estender-se entre 10 a 24 meses de duração, e compreendem o pagamento de propinas mensais de 934 euros e de seguros de saúde e de viagem, existindo a possibilidade de o candidato obter benefícios adicionais, dependendo das circunstâncias específicas.

    A Fundação Calouste Gulbenkian, por sua vez, também disponibiliza uma oferta variada de bolsas, incluindo para formação em Artes no estrangeiro, para estudantes arménios noutros países, e bolsas de “mérito” ou de “novos talentos”.

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    As bolsas de mérito são atribuídas a candidatos pela primeira vez ao ensino superior, e com escassos recursos financeiros, que tenham tido uma nota de candidatura à universidade igual ou superior a 170 pontos. O financiamento é de 2.000 euros por ano lectivo, e “inclui um apoio adicional único para a realização de um período de mobilidade internacional, Erasmus ou outro programa similar oferecido por cada instituição de ensino”, também no valor de 2.000 euros.

    As bolsas de “novos talentos” destinam-se, por sua vez, a estudantes de universidades portuguesas com uma média igual ou superior a 17 valores. O valor anual da bolsa varia entre os mil e os 3 mil euros, consoante diversos factores.

    A Fundação Cidade de Lisboa não organizou, excepcionalmente, bolsas no último ano. No entanto, de acordo com o regulamento de 2019/2020, as bolsas são concedidas por concurso, com vista ao acesso garantido a uma universidade de Lisboa, pelo que os candidatos devem ter o 12º ano. A bolsa tem a duração de 12 meses, e o valor mensal é fixado anualmente pela Fundação.

    Também a Associação Duarte Tarré atribui bolsas sociais, individualmente, “a estudantes do Ensino Superior que apresentem dificuldade financeira para prosseguir o seu percurso de formação académica. Abrangendo todo o território nacional, este programa atribui, no minímo, 25 bolsas sociais anualmente. Ativo desde 2012, este apoio aos estudantes já beneficiou mais de 150 pessoas”.

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    De acordo com o regulamento, “o valor mínimo das bolsas a atribuir, a alunos de licenciatura, mestrado ou doutoramento, será de 1.200 euros”, e faz-se de forma faseada. A atribuição das bolsas “não é incompatível com a atribuição de outras bolsas ou prémios de mérito de outras instituições, mas terão de ser comunicadas à associação, sob pena de cancelamento.

    Também a ANA – Aeroportos de Portugal concedeu bolsas para o Ensino Superior, destinadas a alunos do 12º ano, com até 20 anos de idade, “que tenham tido bom aproveitamento (média igual ou superior a 14 valores) e que residam, e frequentem uma escola pública, num concelho limítrofe de um aeroporto” desta empresa. Além disso, o rendimento per capita do respetivo agregado familiar não deve ser superior ao salário mínimo nacional.

    O Programa Bolsas de Estudo ANA Solidária foi criado em 2012 para atribuir 12 bolsas, no valor de 3000 euros anuais, pagos em 10 prestações mensais.

    A Fundação da Caixa Agrícola do Vale do Távora e do Douro atribui Bolsas de Estudo, por mérito e por carência económica, aos estudantes universitários dos concelhos do seu âmbito de acção. Nas bolsas atribuídas por carência económica, o valor das propinas é integralmente coberto. Por sua vez, as bolsas de mérito – para os alunos com média igual ou superior a 15 valores –, compreendem um prémio habitualmente no valor de 600 euros.

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    Ainda de acordo com o seu regulamento, “compete ao Conselho de Administração da Fundação da Caixa Agrícola proceder à selecção dos candidatos a quem será atribuída a bolsa, de acordo com critérios objectivos e no respeito dos requisitos fixados”.

    A Fundação António Aleixo concede Bolsas de Estudo a alunos carenciados, que preencham os seguintes requisitos: “não ter idade superior a 25 anos à data da 1.ª candidatura para Licenciaturas, Mestrados e Mestrados Integrados; ser residente há mais de 5 anos no concelho de Loulé; ser natural do concelho de Loulé, ou filho de naturais do concelho de Loulé, residindo fora deste há menos de 3 anos”.

    O número e o valor das bolsas a atribuir é fixado anualmente pela Direcção da Associação Poeta Aleixo, e existem três modalidades, nomeadamente os escalões A, B e C, consoante variam os montantes.

    De acordo com o seu regulamento, a Fundação Millennium BCP atribui, anualmente, bolsas de estudos para mestrados, “a cidadãos provenientes de países africanos de expressão portuguesa e Timor, com os quais a Fundação e as entidades ligadas ao Grupo Banco Comercial Português (Millennium bcp) estabeleçam especiais relações de cooperação”.

    Os bolseiros têm direito ao reembolso de uma determinada quantia das propinas, mas o apoio financeiro definido nunca poderá “ser superior ao vencimento base de funcionário bancário de nível 1”.

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    A Fundação Eugénio de Almeida atribui bolsas em vários programas diferentes, incluindo de Alojamento, as bolsas “Eugénio Almeida”, e de Mérito. As Bolsas Eugénio Almeida custeiam “as propinas de alunos da Universidade de Évora (UE) de baixo rendimento económico e com aproveitamento escolar”. As Bolsas de Alojamento, por exemplo, têm como objectivo ajudar “a suportar o custo das despesas de alojamento de estudantes do Ensino Superior, nos diferentes ciclos, a estudar em qualquer instituição de ensino pública ou privada, em território nacional”, e os destinatários são os “estudantes do ensino superior, com residência oficial na região do Alentejo (Alentejo Central, Alto Alentejo, Baixo Alentejo e Alentejo Litoral)”

    A Fundação Rotária Portuguesa atribui bolsas de estudo sobretudo a jovens com dificuldades financeiras, privilegiando “estudantes do ensino secundário com bom aproveitamento escolar ou estudantes do ensino técnico-profissional se as aptidões o aconselharem”.

    As bolsas “resultam de donativos efectuados à Fundação por empresas, instituições ou pessoas singulares com essa finalidade”, e têm o valor de 500 euros para o ensino secundário, e 750 euros para o ensino superior.

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    A Fundação Caixa Agrícola do Noroeste atribuiu, em 2016, bolsas de estudo “no valor de 1000 euros, a alunos do distrito de Viana do Castelo e do concelho de Barcelos”. As bolsas foram entregues por mérito ou carência económica a alunos com uma média igual ou superior a 15 valores.

    Por fim, a Fundação José Neves tem em curso um ambicioso programa de bolsas de estudos “baseado no modelo Income Share Agreement”, ou seja, consiste sobretudo num sistema de empréstimo para estudar, incluindo o pagamento de propinas, sendo que o reembolso do valor investido apenas será reembolsado quando o rendimento do bolseiro ficar acima de um determinado patamar. É, por isso, um modelo ideal para estudantes carenciados.

  • Administração Biden proibida por juiz de pressionar Big Tech para aplicar censura

    Administração Biden proibida por juiz de pressionar Big Tech para aplicar censura

    Ontem, no Dia da Independência dos Estados Unidos, um juiz federal do Estado da Louisiana colocou um travão à censura nas redes sociais e determinou que o Governo não poderá pressionar nem estabelecer parcerias com as gigantes tecnológicas para retirar ou restringir publicações e conteúdos nas suas plataformas. Esta conduta intensificou-se, nos Estados Unidos e na Europa durante a pandemia de covid-19, sob o pretexto do combate à “desinformação”.


    Um juiz federal do Estado norte-americano da Louisiana proibiu, com efeito a partir de ontem, que a Administração Biden estabeleça acordos com as gigantes tecnológicas – como o Twitter, o Youtube e o Facebook – para que sejam censurados ou restringidos conteúdos nas suas plataformas – uma prática que se intensificou durante a pandemia de covid-19.

    A decisão do juiz Terry A. Doughty – nomeado durante a administração de Donald Trump em 2017 – concedeu razão aos apelos, como queixosos, dos Estados da Louisiana e do Missouri e ainda a cinco particulares, entre os quais o bioestatístico sueco Martin Kulldorff e o norte-americano Jay Bhattacharya.

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    Tal como outras personalidades, estes conceituados investigadores – o primeiro é professor da Harvard Medical School e o segundo professor da Universidade de Stanford – foram alvo de intensas campanhas de difamação e de censura nas redes sociais por apresentarem, com informação científica, opiniões contrárias às da Organização Mundial da Saúde.

    Além de Joe Biden, a proibição abrange quatro dezenas de pessoas associadas à Administração Biden e ainda 11 entidades públicas, entre as quais o National Institute of Allergy & Infectious Diseases – que foi presidido por Anthony Fauci, durante a pandemia –, o Federal Bureau of Investigation (FBI), o Centers for Disease (CDC), o Food & Drug Administration (FDA) e diversos departamentos federais. Todos ficam agora impedidos de contactar as plataformas digitais com “o propósito de incitar, encorajar, pressionar ou induzir de qualquer maneira a remoção, exclusão, supressão ou redução de conteúdo que contenha liberdade de expressão protegida”.

    Nesta medida cautelar (preliminary injunction), revelada num documento de 155 páginas, o juiz determinou ainda a proibição de as agências governamentais “sinalizarem publicações específicas às plataformas digitais, ou solicitarem relatórios sobre os seus esforços para banir conteúdos”. No entanto, ficam excluídos desta decisão eventuais notificações sobre “publicações que detalhem crimes, ameaças à segurança nacional ou tentativas externas de influenciar as eleições”.

    Terry A. Doughty, tomou decisão histórica.

    A ordem de Doughty surge no seguimento de um processo interposto pelo procurador-geral do Estado da Louisiana, Jeff Landry, e o antigo procurador-geral do Estado do Missouri, Eric Schmitt. Os queixosos alegaram que o Governo Federal norte-americano violou a Primeira Emenda, tendo invocado, entre vários exemplos, casos de censura de publicações que visaram Hunter Biden, ou que defendiam a teoria da fuga de laboratório do SARS-CoV-2.

    A acusação de censura imputada por Landry e Schmitt à Administração Biden teve eco nas palavras de Terry A. Doughty, que concluiu que “se as alegações feitas pelos queixosos forem verdadeiras, o presente caso provavelmente envolve o maior ataque contra a liberdade de expressão na História dos Estados Unidos”.

    De entre as organizações com as quais o Governo Federal norte-americano deixa de poder comunicar com o intuito de suprimir publicações nas redes sociais, estão entidades externas, como o Virality Project e o Stanford Internet Observatory, que já tinham sido alvo de escrutínio mediático aquando da divulgação dos Twitter Files.

    Martin Kulldorff, Sunetra Gupta e Jay Bhattacharya são três eminentes investigadores que, por se oporem às medidas radicais aplicadas pelos Governos durante a pandemia, foram difamados e alvo de restrições com a participação activa e empenhada da imprensa e redes sociais.

    De facto, os documentos internos da rede social divulgados com a autorização de Elon Musk, aquando da sua aquisição do Twitter no ano passado, avolumaram o debate em torno de um aparente conluio entre funcionários governamentais e a Big Tech para limitar a liberdade de expressão no mundo digital.

    Esta decisão em defesa da liberdade de expressão foi contestada por alguns círculos, mas aplaudida por outros, sobretudo jornalistas, cientistas e académicos que foram alvo de censura pelas suas opiniões sobre a pandemia. Nesta lista, constam Andrew Lowenthal e Paul D. Thacker, que foram, aliás, recentemente entrevistados pelo PÁGINA UM.

    No Twitter, Thacker respondeu a uma alegação da Casa Branca, que rejeitou ter pressionado as plataformas tecnológicas para censurar conteúdos. O jornalista, que participou na divulgação dos Twitter Files, aludiu especificamente a um e-mail de Rob Flaherty, no qual o funcionário da Administração Biden reagia de forma acesa e autoritária à recusa do Facebook em restringir algumas contas. “Vocês estão a falar a sério, porra? Eu quero uma resposta sobre o que aconteceu aqui e quero-a hoje”, recorda Thacker numa publicação partilhada.

    Para além dos procuradores-gerais, o processo foi também encabeçado por dois epidemiologistas que contestaram a gestão da pandemia, Jayanta Bhattacharya e Martin Kulldorff, Aaron Kheriatv, um professor demitido da Universidade da Califórnia pela sua recusa da vacina para a covid-19, Jill Hines, da associação Health Freedom Louisiana, e Jim Hoft, do site Gateway Pundit.

    As reacções à ordem de Doughty foram mistas, demonstrativas das fortes clivagens ideológicas, com os democratas a serem mais favoráveis a um melhor controlo daquilo que se convencionou chamar desinformação, mas que se transforma em mera censura como arma de silenciamento.

    Certo é que o procurador-geral da Louisiana apelidou a decisão como “histórica”, enquanto o procurador-geral do estado do Missouri festejou efusivamente no Twitter: “Feliz aniversário, América! Tens a tua Primeira Emenda de volta!”.

    O New York Times, que adianta que esta decisão judicial pode ter “implicações significativas na Primeira Emenda”, tentou obter comentários das plataformas mas sem sucesso. E diz também que a Casa Branca deverá recorrer da decisão.

  • Os destroços de uma utopia

    Os destroços de uma utopia

    Título

    Regresso da URSS seguido de apontamentos ao meu “Regresso da URSS”

    Autor

    ANDRÉ GIDE (tradução: João van Zeller)

    Editora

    Dom Quixote

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Nobel da Literatura em 1947, o francês André Gide (1869-1951) publicou, em 1936, Regresso da URSS, no qual relatava a viagem à União Soviética que fez naquele ano, e posteriormente lançou também Apontamentos , sobre essa mesma jornada. Agora, ambos os títulos foram publicados pela Dom Quixote num só volume, que conta com uma apresentação do filósofo, investigador e professor Paulo Tunhas, falecido em Abril passado.

    Considerado o último dos mais importantes escritores franceses do século, André Gide nasceu em Paris no seio de uma família burguesa protestante, tendo uma educação rígida e moralista. Influência que veio a desconstruir, já que Gide se enquadrava no arquétipo do artista subversivo: homossexual, praticava e defendia abertamente a pederastia, e nutria simpatia pelos ideais comunistas e revolucionários.

    Um prolífico escritor, Gide teve o seu primeiro livro publicado em 1891, e muitas das suas produções literárias eram de carácter autobiográfico. Escreveu em diversos estilos, incluindo ensaios e críticas, e traduziu ainda autores como Shakespeare, Joseph Conrad e Rainer Maria Rilke. O imoralista , Corydon e Os frutos da terra são algumas das suas obras de maior destaque. 

    O escritor francês conheceu a União Soviética em 1936, poucos anos depois de ter declarado, nas suas próprias palavras, direitos e amor pelo país. Porém, com a sua visita ao território soviético, a opinião que então acalentava esbarrou com uma realidade menos idílica do que aquela que tinha imaginado. Ainda assim, diga-se, o autor faz, logo no início, uma ressalva: apesar das críticas que desferem à União Soviética, consequências de um compromisso para com a verdade, a sua fé na possibilidade de o país alcançar o ideal comunista não abandonado.

    Mas, de facto, o que André Gide descreve parece longe de se assemelhar a uma utopia. Embora ressalte alguns aspectos positivos e dignos de elogio, o retrato que traça é inequivocamente mais negro do que risonho. 

    O que o escritor encontra aquela URSS de Estaline é um povo domesticado, mergulhado na propaganda do regime, sem conhecimento do que acontece além das fronteiras soviéticas, resignado e reduzido a uma uniformização castradora.

    Convencidos de que o seu país é, em todos os aspectos, superior aos demais, adultos e crianças vivem alheados da realidade dos restantes países europeus, mas convictos, não obstante, de que sabem exatamente do que se passa para lá “da sua rua”.  Mostram-se atónitos, até cinicamente descrentes, quando Gide lhes revela, por exemplo, que em França também existem escolas e um metropolitano.

    A somar à ignorância sobre a conjuntura europeia, as crianças aprendem desde cedo quais são as qualidades do regime estalinista, que reproduzem sem questionar. O lema subjacente é simples: tudo o que se faz na URSS é bom e virtuoso; o que se faz fora dela é, no mínimo, medíocre.  

    Gide revela-se igualmente desapontado com o culto do líder e a constante bajulação a Estaline, dando conta de que a sua efígie se ergue por toda a parte, e a sua imagem está pendurada em todas as casas por que passou. 

    Por outro lado, a pobreza ainda prevalecente que o regime comunista não conseguiu erradicar, constituiu uma surpresa para o autor: “Supostamente, já não existem classes na URSS. Mas existem pobres, muito pobres. Esperava, no entanto, já não os ver, ou mais precisamente: foi para já não os ver que fui à URSS” (p. 65).

    Sobre o Pravda, o principal órgão de comunicação social soviético, que determina o sentido que deve seguir o pensamento do povo, Gide é assertivo: “Todas as manhãs, o Pravda ensina-lhes o que deve saber, pensar, acreditar. E não é aconselhável afastar-se disso!” (pág. 51). 

    Salientando a importância da liberdade artística – por óbvias razões – como instrumento de crítica do poder e do status quo, o escritor lamenta a censura que observou: qualquer obra só é aceite se estiver “alinhada”. 

    Gide acaba por denunciar, enfim, a morte do espírito crítico, e o encorajamento à subserviência e à delação. Os opositores, que se atrevam a mostrar insatisfação perante o regime instalado, são facilmente imputados de uma atitude “contrarrevolucionária”. O essencial do seu pensamento sobre o que testemunhou pode resumir-se nestas linhas:

    Ditadura do proletariado , foi-nos prometido. Estamos longe disso. Sim: ditadura, obviamente; mas ditadura de um homem, e já não dos proletários unidos, dos soviéticos. É importante não nos iludirmos, e temos de reconhecer muito claramente que não era isto que gostaríamos. Mais um passo e diríamos até: é isto precisamente o que não queríamos” (p. 76). 

    Para além do sublime domínio da palavra, que tornou André Gide num marco na literatura francesa, o uso inteligente do sarcasmo e de um humor acutilante, faz deste relato uma leitura imperdível. 

    Em última análise, a obra convida o leitor, sobretudo o mais obstinado, a reflectir sobre se os mais nobres valores podem ter, como consequência legítima, a tirania. Mas, antes disso, se uma filiação ideológica deve redundar num envio que não permita constatar o esclarecer. Porque, como nota Gide, “é importante ver as coisas como são , e não como gostaria que fosse”. 

  • ‘A tecnologia nunca substitui o carácter humano da Educação’

    ‘A tecnologia nunca substitui o carácter humano da Educação’

    Autor bestseller, Jorge Rio Cardoso capturou a atenção de milhares de leitores que procuram as suas dicas sobre como maximizar o aproveitamento escolar de crianças e jovens. Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade de Aveiro, é professor no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa e no Instituto Superior de Línguas e Administração (ISLA), em Santarém. É também reformado do Banco de Portugal, onde exerceu funções como técnico superior. A sua carreira bem-sucedida como perito em Educação e motivação dos estudantes, começou com a conquista de um obstáculo: Jorge Rio Cardoso foi um aluno “sofrível”. Mas afinal o seu calcanhar de Aquiles transformou-se em força, depois de ter descoberto o atletismo, que lhe infundiu de autoestima e confiança. Hoje, ensina educadores e pais a ajudar os mais novos a serem bons alunos e o seu método Ser Bom Aluno – ‘Bora lá’? revelou-se eficaz a melhorar os resultados escolares. A pretexto do seu novo livro Como fazer dos nossos filhos alunos de sucesso, o PÁGINA UM entrevistou este professor e investigador que acredita que o foco da Educação não deve estar apenas nas classificações, e que os pais devem fomentar a alegria, a iniciativa e uma autoestima saudável nos filhos, para a sua formação como seres humanos.


    Tornou-se especialista em sucesso escolar, mas nos seus tempos de escola nem sempre foi um bom aluno, e só quando começou a praticar atletismo é que se deu uma viragem no seu aproveitamento. Até que ponto é que atividades extracurriculares, como o desporto ou as artes, podem contribuir para a motivação das crianças e dos jovens nos estudos?

    Eu diria que é essencial. Ou seja, não há ninguém que consiga aprender se estiver triste ou desmotivado. A motivação é fundamental, sobretudo aquela que nós chamamos de motivação intrínseca, aquela que vem de dentro de nós. Essa é a que é capaz de nos transcender. Realmente, eu era um miúdo com baixa autoestima, desmotivado, não via interesse na escola. Aliás, a escola não me identificava nada de bom. E as coisas mudaram quando apareceu na minha vida o atletismo. O atletismo deu-me alegria, regras, disciplina e, depois, essa alegria, eu passei-a também para os estudos. Comecei a perceber que quando me esforçava mais no atletismo, quando treinava mais, os resultados melhoravam, e comecei a perceber que com o estudo também era assim. Porque eu estava convencido de que uns tinham nascido bons alunos e outros maus alunos, e eu, logo por azar, estava nos segundos. Tinha nascido mau aluno, e estava mais ou menos conformado. Depois, comecei a perceber que realmente o problema era que estava desmotivado, não sabia muito bem o que era isso de estudar. Às vezes, os pais põem esta questão: como é que eu motivo o meu filho ou a minha filha para a escola? E eu digo sempre que a questão está mal colocada. É: como é que eu motivo o meu filho, ou a minha filha, para a vida? Ele tem que estar motivado para a vida. Dentro da vida há a escola e um conjunto de outras actividades. Quando eu confronto alguém, pode ser uma criança ou não, com duas actividades; uma de que ela gosta muito, de grande probabilidade, como jogar à bola, por exemplo, ou ballet, e outra de pouca probabilidade, que ela não gosta muito, como estudar, geralmente há ali fases comunicantes. Para ela merecer a primeira, geralmente vai apostar – serviços mínimos, pelo menos – naquilo que é estudar. No meu caso, foi um desporto que mudou as coisas, mas poderia ter sido, por exemplo, uma actividade que é essencial na concentração e na motivação, que é a música. Seja praticar um instrumento, seja cantar, tudo isso é muito importante do ponto de vista educacional. Também as neurociêncais dizem que há uma alteração profunda em termos cerebrais. Podia ter falado, como disse muito bem, nas artes, no teatro, na dança… Há imensas actividades que, para além das competências naturais que trazem, conferem também a alegria de viver, e isso depois propaga-se a tudo, nomeadamente num aspecto essencial, que é estudar.

    Também fala neste livro, Como fazer dos nossos filhos alunos de sucesso, da importância de fomentar uma autoestima saudável e dos afectos. Como é que os pais podem encontrar esse equilíbrio entre elogiar e reforçar a confiança das crianças, e ao mesmo tempo impôrem regras e disciplina?

    A questão está muito bem posta, porque temos que arranjar um equilíbrio. Os jovens terem autoestima é fundamental. No livro, dou até uma regra que acho importante, que é para cada crítica haver cinco elogios. Claro que às vezes os pais dizem que não têm muito para elogiar, porque se baseiam apenas nas notas, e então quando as notas não são boas, acham que não têm nada para elogiar. Mas, por exemplo, o esforço que o jovem está a fazer, ou encontrar qualquer coisa que não era dele e ir entregar, ou alguém que se aleijou e ele foi ajudar nos curativos… Tudo isso são motivos de elogio, e a sua atitude para com os outros. Porque, digamos, a Educação não é apenas passar conhecimento. Hoje, o conhecimento está na ponta dos dedos. E, portanto, aquilo que mais quero de um filho ou de uma filha, não é propriamente que ele seja doutor, engenheiro ou professor catedrático.  Mas sim que um seja um bom pai uma boa mãe, que viva a cidadania, tenha respeito pelos outros, isso é fundamental. E hoje em dia, na forma como a escola está, o ser solidário, o ter valores de honestidade, não é pontuado, não é? Não é assim que eu vou entrar em Medicina. Portanto, não é o tema deste livro, mas penso que a escola terá que mudar no sentido de treinar esses mesmos valores fundamentais para o cidadão de amanhã. Porque sabemos que os países mais ricos não são propriamente aqueles que têm mais metais preciosos ou mais petróleo. Nada disso. São aqueles que têm mais capital humano, e o capital humano não é apenas no sentido de saberem muitas coisas, mas precisamente porque são sociedades em que esse capital humano – que inclui vários aspectos, além de criar empatia com os outros, saber trabalhar em equipa, e saber ouvir os outros. Todos esses aspectos podem ser treinados naquilo que é a Educação.

    Referiu que a ambição dos pais não deve ser que os filhos sejam engenheiros ou médicos, por exemplo. No seu livro realça a importância de se detectar e potenciar os talentos das crianças e dos jovens. Como é que os pais podem fazer isso? Estando atentos às pré-disposições e às preferências das crianças?

    Sim. Hoje em dia, o ensino em Portugal já está muito voltado para isso. Até porque conhecemos o relatório do Professor Guilherme de Oliveira Martins. As competências essenciais à saída da escolaridade obrigatória… Aliás, num dos meus livros, foi ele que fez o prefácio exactamente por causa disso. Há um conjunto de competências, que muitas vezes vão muito para além daquilo que a escola valoriza, que é linguística e a lógico-matemática, mas há muitas outras, nomeadamente, por exemplo, criar empatia com os outros. Há aquelas pessoas que nos deixam bem dispostos, e não é propriamente a contarem piadas, mas a forma de elas estarem, a escuta activa. Tudo isso são aspectos muito importantes. E na sociedade nós notamos, há aquelas pessoas mais extrovertidas, ou mais exuberantes. Se estivéssemos a falar de uma casa, eu diria que isso seriam os tijolos, mas, às vezes, esquecemo-nos de uma parte, que é o cimento que une esses tijolos, e que não se dá por eles mas que são essenciais para a solidez desse edifício. E eu comparo esse cimento a essas pessoas que unem pontos e arranjam consensos. E portanto, estas pessoas são essenciais. É um talento realmente muito importante. Ser capaz de se ver o ponto de vista do outro, e no fundo, talvez a coisa mais importante, que é a inteligência emocional.

    Pois, dessa inteligência não se fala tanto.

    Há um estudo que eu gosto sempre de referir, que responde a esta pergunta: porque é que as pessoas têm sucesso? Sucesso, enfim, esta palavra tem muito que se lhe diga. Não é apenas no campo das notas; é, digamos, de singrar em instituições e serem respeitadas. E havia a ideia de que podia ser do chamado QI, que hoje está um bocadinho em desuso. E, curiosamente, o QI só explica 20% do sucesso das pessoas. Então, onde é que estão os outros 80%? Estão precisamente em aspectos ligados à inteligência emocional. E a boa notícia é que, enquanto a inteligência emocional é qualquer coisa que pode ser trabalhável, ou seja, nós conseguimos mudar as nossas atitudes, a maneira de ver os outros. É algo em que nós podemos evoluir. E com o QI já não é bem assim. O QI, seja alto ou baixo, é praticamente o mesmo ao longo da nossa vida, não há forma o mudarmos. E depois, também há outra coisa: às vezes, aquelas pessoas muito inteligentes são pessoas um bocadinho inadaptadas e que se isolam. Às vezes não são as pessoas mais felizes. E esta nossa capacidade de ser feliz, às vezes passa por viver aquilo que é a cidadania, mas com solidariedade perante aqueles que não tiveram uma vida tão simpática ou que à partida têm alguma deficiência. Aliás, quando há uma criança com necessidades especiais de Educação numa turma, é claro que é muito bom para a criança, porque vai ser estimulada, mas também é muito importante para todos os elementos da turma, porque o cuidado e a solidariedade vão ser ensinados e trabalhados. Embora, eu aqui gosto sempre de referir um aspecto: a integração é diferente da inclusão. Porque inclusão é a criança estar lá na turma. A integração é o que acontece depois nos intervalos: se ela fica a um canto, então não está integrada. Para as estatísticas, ela está lá, mas depois é preciso sensibilizar e promover valores, e isso é que é educar.

    E onde é que traça a linha entre aquele que deve ser o papel dos pais na educação de jovens e crianças, e aquele que deve ser o da escola?

    Há claramente uma linha de separação, embora a presença dos pais na escola seja muito importante. Eu tenho um filho pequeno, e a escola dele, que é uma escola pública, promove por exemplo grupos interactivos, e os pais são convidados a estarem na escola uma vez por semana. A presença dos pais na escola previne muito insucesso escolar. Sempre que há um problema, o acompanhamento próximo faz com que se detecte o problema que o aluno está a viver e resolve-se logo ali à partida.  A sintonia entre pais e escola é absolutamente fundamental. Às vezes, os pais, com a melhor das intenções, querem explicar ainda melhor aquilo que foi feito na escola. Acho isso bastante errado, porque nós às vezes estamos a explicar como nos ensinaram há 20 anos ou há 30, e não como são os modernos conceitos hoje. E isso pode provocar na cabeça do aluno alguma confusão. Agora, os pais têm de ir para além da escola. Há um conjunto de várias actividades que trazem competência, regras e alegria, e essas sim, é que os pais devem pôr à disposição. Os pais devem ajudar os filhos a ser. Ou seja, a outra parte que vai para além da escola. Diria que pais e escola estão em sintonia, digamos que cada um tem a sua área privilegiada, o que não quer dizer que não haja ali uma zona cinzenta, comum aos dois. O que os pais devem fazer é valorizar a escola, e o trabalho dos professores. É essencial, porque o jovem não vai investir o seu tempo, a sua paciência e a sua atenção numa coisa que os pais desvalorizam.

    Outra questão que gera alguma controvérsia tem a ver com os rankings e as classificações. Há quem considere que se tem baixado um bocado a exigência nas escolas, nos últimos anos, nomeadamente com as medidas relativas às reprovações. É, no entanto, possível defender-se que não se coloque demasiada ênfase nas notas, mas ao mesmo tempo, reconhecer-se que deve haver uma certa exigência. Qual é a sua visão sobre isto?

    Sim, percebo a sua questão. O facto de não haver reprovações, assim no sentido clássico, aquilo que estávamos habituados, não quer dizer que tenhamos baixado a exigência. Se calhar até é mais exigente. Não vou deixar ninguém para trás, mas se calhar vou ter que ter pedagogias alternativas, e vou ter que experimentar outras formas de fazer chegar o conhecimento aos alunos. Se eles tiverem que ficar mais um mês porque ainda não adquiriram as competências, se calhar, isso é um grande incentivo para trabalharem mais e esforçarem-se mais. Realmente, nós falamos de uma avaliação somativa, as notas clássicas. Mas há uma outra avaliação que é muito importante, .que é a avaliação formativa. Ele sabe trabalhar em grupo? Sabe arranjar consensos? A liderança, o empreendedorismo, são tudo coisas que se trabalham, não é? E, portanto, aquela ideia do sentido prático da vida também é fundamental. E aqui, falo da escolaridade obrigatória; claro que no ensino universitário as notas vão ser muito importantes. Mas às vezes há muito a cultura da nota, sacrifica-se tudo pela nota. E até se chega ao exagero de dizer uma coisa que é mais do que evidente, que é, os meninos e as meninas são diferentes uns dos outros… E sabemos que no plano teórico, se houvesse uma turma só de raparigas e outra só de rapazes, e houvesse um tipo de ensino de acordo com as características, e outro para eles, é claro que as notas subiriam, não tenho dúvidas nenhumas disso. E há quem defenda esta segregação, diria eu. Mas nós queremos é educar, e que os meninos e as meninas se conheçam. Que tenham os naturais conflitos, e os saibam resolver. Se calhar, assim estamos a prevenir violência doméstica, por exemplo. Também já houve a ideia de separar os alunos muito bons daqueles que são maus. Também sou completamente contra isto. Agora, o que acho que é o grande problema, e que mais tarde ou mais cedo vai ter que ser resolvido, é a forma como os alunos entram nas universidades. E ainda entram com as notas, hipervaloriza-se as notas. Se fossem as universidades a escolher… Com um médico, não são só as hard skills que importam, por exemplo, mas também a forma como comunica. Por isso, se as várias áreas do saber, as várias universidades escolhessem também os alunos, poderia haver também essa componente, para além da nota. Porque eu lido com muitos directores de agrupamentos de escolas, e eles dizem que essa parte dos valores realmente é muito, mas que têm que prestar contas perante o Ministério da Educação. E o Ministério da Educação olha para os rankings, vê em que lugar é que está a escola, no sentido de eles cumprirem as metas curriculares e os programas. Portanto, mesmo achando interessante esta história dos valores, não é por aí que estão a ser avaliados. Para que isto possa mudar, a forma como os alunos entram nas universidades pode ser uma parte da mudança.  

    Portanto, acha que se devia valorizar menos as notas e os rankings.

    Sim, claramente, porque, às vezes, estamos a comparar coisas que não são comparáveis. Agora, também não desvalorizo totalmente os rankings, atenção. Não vou dizer que eles não servem para nada, mas numa imagem, para se perceber o meu pensamento, é como um termómetro. Vejo a temperatura, e se for mais de 38 graus, há aqui qualquer coisa. Mas, dizer que só quero saber da temperatura corporal, não me leva nada. Se calhar, pode ser um problema grave ou pode acabar por não ser, pode ser uma pequena gripe, etc. Depois, há outros instrumentos que tenho que usar, e também na Educação é a mesma coisa. Os rankings dão-nos informação, mas há muitos outros indicadores. Temos que ver as coisas de um ponto de vista objectivo.

    Ia perguntar-lhe precisamente qual era a sua opinião em relação à segmentação do ensino de rapazes e raparigas, mas já respondeu.

    Sim, sou completamente contra, porque a sociedade é diversa. Aliás, nós até devemos, às vezes, colher os exemplos que saem da natureza. Sou a favor de todo o tipo de diversidade, seja ao nível da diversidade intelectual, ou de opiniões. Podemos não ter exactamente a mesma opinião, mas temos é que respeitar a opinião do outro, desde que seja, evidentemente, fundamentada. Sou contra essa segregação. Dir-me-ão que as notas subiriam. Não tenho dúvidas disso. Porque realmente, nós professores, quando estamos a ensinar, é para o aluno médio. Não é para um rapaz nem para uma rapariga, é para o que chamamos um aluno médio. Mas é muito importante que, nisto que é educar, os rapazes e as raparigas partilhem o mesmo espaço. Claro, não vai ser tudo um mar de rosas. Eles têm as suas diferenças, mas há com certeza uma interacção e coisas que eles começam a perceber, como a necessidade de respeitar o outro. O bullying trata-se disso, não conseguir respeitar uma pessoa que é diferente, seja por que motivo for.

    Sabemos o estado em que se encontra a Educação, e da desmotivação que muitos professores e alunos sentem. Acha que este modelo universal da escola pública está a atravessar uma crise? Ou, por outro lado, não vê o panorama actual de forma assim tão negativa?

    Ao longo da História da Educação, verificamos sempre que ninguém está contente. Ou seja, daqui a 30 anos ou 100 anos, evidentemente que as pessoas dirão que é possível fazer melhor. Acho que se tem caminhado na direcção certa. Para explicar um bocadinho aquilo que será o futuro da escola, tenho que falar em três modelos. Nisto, que é a Educação na escola, há sempre três elementos fundamentais: o professor, o aluno e um elo privilegiado entre o professor e o tal conhecimento ou competências; e aqui o aluno tem um papel passivo de ouvinte. Porque a ideia de ensinar é “eu ensino e tu aprendes”. E vais aprender o quê? O que eu acho que devo ensinar, porque o inteligente aqui sou eu. Ou seja, o aluno não participa na construção do seu conhecimento. Ele pode estar com uma grande curiosidade – e para aprender, a curiosidade é fundamental – sobre vulcões e, mas no programa os vulcões é só daqui a dois anos. E o professor: “olha, pena, não te vou ensinar”. Isto é evidentemente pouco simpático. Depois, há um segundo modelo, menos mau, digamos assim, que é um privilegiado entre o aluno e as tais competências. Ou seja, o aluno acede ao conhecimento fazendo umas leituras prévias antes de ir para a aula, e o professor é um elemento facilitador. Se o aluno não percebe alguma coisa, o professor ajuda. E isto é um bocadinho aquilo que nós chamamos a aula invertida; o aluno chega à aula e já tem algum conhecimento. O modelo de Bolonha de que hoje em dia tanto se fala, no fundo, privilegia este modelo. Agora, aquilo que eu acho que é o futuro é um elo privilegiado entre professor e aluno. O conhecimento e as competências ficam, digamos, para um segundo plano, porque muitos do conhecimentos que nós falamos, às vezes, ficam desactualizados.

    Não parece um contrasenso colocar os conhecimentos em segundo plano na escola?

    Lembro-me de conhecimentos que me passaram no primeiro ciclo – já foi há muitos anos –, que eram os caminhos-de-ferro de Angola, coisas assim desse género. Hoje em dia, podemos dizer que é um conhecimento inútil, porque alguns desses caminhos, se calhar, já nem existem. Quando pretendemos passar valores, esta proximidade entre professor e aluno é muito importante.  O peso das disciplinas – português, inglês, matemática –, como as conhecemos, vão perdendo peso, em benefício daquilo que chamamos uma lógica de projecto. Porque, quando estamos, por exemplo, a trabalhar numa aprendizagem relativamente às alterações climáticas ou outra coisa qualquer, geralmente há um conhecimento multidisciplinar. Portanto, vou buscar os conhecimentos de várias das tais disciplinas tradicionais. Podemos pensar em criar um evento, uma conferência final, e em quem é que vamos convidar para falar sobre isso. Pôr os alunos a pensar, a decidir e a trabalharem é muito importante, porque, às vezes, o output que dali sai tanto pode ser um vídeo, como um áudio… O que leva à indisciplina é o aluno estar sossegado na cadeira, porque nem todos estão. Por isso, gera-se barulho, os professores ficam enervados. Aqui, deixe-me dizer-lhe uma coisa que acho que vai ser o futuro da escola, e que é fundamental: a educação emocional. Porque só consigo estudar se estiver equilibrado emocionalmente. E, portanto, o yoga, a meditação e o mindfulness são absolutamente fundamentais.

    E vê isso a ser aplicado hoje, ou ainda está longe de serem práticas generalizadas?

    Hoje, ainda há escolas que passam completamente ao lado disto. E, hoje em dia, é mais difícil de estudar do que era no passado, porque há milhentos canais de televisão, redes sociais, há 1001 coisas que não havia, por exemplo, no meu tempo. As crianças hoje não são estimuladas, são hiperestimuladas. Depois, para eu treinar as aprendizagens, tenho que pôr água na fervura e voltar à minha calma. Tenho que saber identificar as minhas emoções e saber geri-las, e, às vezes, eles não têm esse instrumental. Nesse sentido, o yoga ajuda bastante, é científico. Por vezes, até estamos tristes e pode ser por pequenas coisas e não ter acontecido nada de especial. Se tivermos um instrumento como a meditação, aquilo imediatamente desvanece. Portanto, nas escolas – e agora as escolas podem escolher uma parte do seu currículo –, a educação emocional é absolutamente determinante no que vai ser o futuro daquele ser humano. É muito importante no sentido de eu saber resolver conflitos.

    Então, há mudanças a empreender e o momento actual pode ser uma oportunidade nesse sentido?

    Sim. O modelo que acho fundamental, e que será um bocadinho um guia na escola, é de um elo privilegiado entre o professor e o aluno. O conhecimentos ficam para depois.  Juntando isto a aulas mais atractivas, em que se põe o aluno a fazer, a trabalhar, a criar – seja um vídeo, um powerpoint, uma entrevista –, enfim, à procura do conhecimento. Havia um pedagogo que dizia que, mais do que uma cabeça cheia – de conhecimentos –, interessa-me uma cabeça que saiba pensar. Acho isto fundamental. Porque, hoje em dia, vivemos numa sociedade em que as pessoas, às vezes, não querem decidir, porque têm receio de ter alguém contra si. Então, vão passando nos intervalos da chuva. Por isso, não digo de que clube é que sou, ou de que partido é que sou. Não quero opinar porque, logicamente, terei pessoas contra mim e outras que, se calhar, até concordam com a minha posição. Mas esta ideia de educar passa muito por aspectos desta natureza.

    O uso da tecnologia para fins educativos é hoje um tema incontornável. Por um lado, há quem preveja modelos de ensino com amplo recurso à tecnologia, mas há também quem receie os seus perigos. Neste livro, fala dos limites que considera que os pais devem aplicar aos filhos na utilização dos aparelhos tecnológicos. Acredita que o ensino vai ser feito cada vez mais com a ajuda destes instrumentos?

    Sim. Acho que, às vezes, na Educação – e em muitas outras áreas do conhecimento –,  queremos transformar as coisas numa questão binária. Por exemplo, trabalhos de casa: é a favor ou contra? Na questão que me está a pôr, é exactamente a mesma coisa. Acho que tem sempre que haver uma coisa que é fundamental, na Educação e em tudo na vida, que é bom senso. A tecnologia veio para ficar, não a podemos ignorar. A tecnologia dentro da sala de aula, pois eu acho muitíssimo bem. Só que não vamos agora cair no exagero de dizer que é tudo tecnológico, e desprezo o papel, desprezo a escrita… Nada disso. A nossa ideia será um equilíbrio. Na sala de aula, aquilo que eu defendo é a tecnologia igual para todos e todos terem o mesmo acesso, porque isso é muito importante. Há pouco tempo, até dava este exemplo numa entrevista, do estudo de Os Lusíadas, que é uma coisa evidentemente difícil de trabalhar. Como nós sabemos, Os Lusíadas evocam um bocadinho a epopeia marítima portuguesa. É, no fundo, o percurso de Portugal até ao Extremo Oriente. E pergunto não seria tão mais fácil sensibilizarmos o aluno na sala de aula através do Google Maps, e mostrarmos exactamente o local que serviu de inspiração para o Camões escrever aquela estrofe. Evidentemente que sim. E, depois, até dei outro exemplo para pôr os alunos a pensar, que isso é que eu acho que é fundamental, e treinar a criatividade, que se chama o pensar fora da caixa. Então, e se Camões tivesse nascido hoje, em 2023, o que é que ele teria para elogiar do que é ser português? Já não seria a epopeia marítima. Não seria a epopeia marítima, então o que é que seria? E isto é uma coisa para pôr os alunos a pensar. Será o Ronaldo, a nossa simpatia? Portanto, a tecnologia dentro da sala de aula, acho que é muito importante. Porque hoje em dia, em face das fake news, é preciso que treinemos o sentido crítico de toda a gente, a começar pelas escolas.  E agora, com a inteligência artificial, ainda vai ser pior. Consegue-se pôr políticos a dizer coisas exactamente ao contrário daquilo que eles pensam! Portanto, as potencialidades são enormes, tanto para o lado positivo, como pelo lado negativo. Então, como é que nós fazemos isto? Podemos criar uma “polícia”, mas temos que desenvolver este espírito crítico, confrontar fontes, ver se são credíveis ou não. Isso é muito importante.

    E quando é que o uso da tecnologia deixa de ser saudável?

    Há um conselho que eu dou aos pais e que também falo neste livro: como é que devo tirar a tecnologia, ou não, das mãos do aluno? Há alguns sinais de alerta. Se aquilo está a virar obsessão e ele não passa sem aquilo, claro que eu tenho de corrigir. Se aquilo lhe está a tirar o sono. A forma dos pais lidarem com isto é regras de utilização. Portanto, ele tem direito, imagine, a uma hora por dia. Se continuam os sinais, então essa hora vai ter que ser reduzida. Se ele já mostra sinais de responsabilidade e de saber gerir os seus impulsos – a tal inteligência emocional –, então vamos alargar o período, porque ele merece. Enfim, isto funciona não só com a tecnologia, mas também, por exemplo, com as saídas à noite. Se ele se mostra responsável, podemos passar para o patamar seguinte. Educar passa muito por este aspecto gradual. Mas não sou a favor de um modelo de Educação em que é só com o papel e acaba-se com a tecnologia, nem só tecnologia e o papel é inimigo. Podemos arranjar um modelo equilibrado, em que a tecnologia vai auxiliar, mas nunca substitui o carácter humano da Educação.

  • ‘A nossa vocação para a tecnologia vai empobrecendo o nosso poder de comunicar com a Natureza’

    ‘A nossa vocação para a tecnologia vai empobrecendo o nosso poder de comunicar com a Natureza’

    ‘A Arte de driblar destinos’: o título do romance de estreia de Celso Costa, com o qual venceu o Prémio LeYa aos 73 anos – e que recebe em mãos este sábado na Feira do Livro de Lisboa – ilustra na perfeição a vida do matemático, professor e estreante autor brasileiro. Nascido no Paraná, de uma família com escassos recursos financeiros e com morada numa propriedade remota chamada Ribeirão do Engano, o romancista teve um percurso inusitado: para além de fintar a pobreza, a sua paixão pelos números levou-o a estudar Engenharia e Medicina, desistindo de ambas antes de, finalmente, encontrar a sua vocação no prestigiado Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), onde se focou na Geometria Diferencial. A partir daí, não houve mais recuos. Com o seu doutoramento, descobriu as equações de uma superfície mínima, solucionando assim um problema matemático com mais de dois séculos. Por esse motivo, a “Superfície Costa” foi baptizada em sua homenagem. Agora, chegada a altura de abandonar o papel de professor universitário, Celso Costa brincou novamente com o destino e abraçou as Letras. Algo que, afinal de contas, não era assim tão improvável: como confessou ao PÁGINA UM, apesar de seguir a sua amante Matemática, a Literatura sempre esteve ali, num lugar especial, no seu coração.


    A Arte de driblar destinos é um romance de autoficção, muito inspirado na sua própria vida e nas suas experiências pessoais. Como surgiu esta vontade de escrever e de contar a sua história?

    Essa vontade de fazer uma narrativa acontece num momento da minha vida em que estou na iminência de me aposentar da Universidade. Eu sou professor universitário, e ainda continuo a dar aulas, mas actualmente estou aposentado. E mais ou menos uns seis anos antes de me aposentar, como sou um leitor compulsivo… eu leio muito desde sempre, assim mais intensivamente desde os 14 anos. Mas quando eu comecei a ter mais acesso a literatura, comecei a ler muito. Então, com 18 anos eu conheci Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez, Júlio Cortázar, Jorge Luís Borges, o nosso Guimarães Rosa com o Grande Sertão: Veredas, Clarice Lispector, Machado de Assis. Já nessa idade, eu tinha uma certa amplitude de leituras. Lia os sonhos que os outros tiveram. E aí, segui uma carreira de matemático, e na iminência da minha aposentadoria, não sei se foi muito bem calculado, porque geralmente a gente não calcula muito o que acontece. Acho que as oportunidades e os desejos de repente eclodem, e você vai atrás daquele desejo.

    E foi o que fez?

    Sim, aí surgiu um desejo de escrever uma narrativa ficcional que se passaria num ambiente mágico chamado Aleph, pegando no O Aleph do Jorge Luís Borges, e que pudesse fazer um panorama da história da Matemática, mas focado através das lendas. Por exemplo, qual é a veracidade da lenda da maçã que caiu na cabeça do Newton? Será que lhe caiu mesmo essa maçã na cabeça? Arquimedes, quando descobriu a lei de flutuação dos corpos em líquido, ele saiu nu pela rua de Siracusa porque ele descobriu essa lei quando estava imerso numa banheira, lá nuns banhos gregos. Os gregos tinham muito a questão dos banhos, aqueles grandes banhos colectivos. Quer dizer, colectivos só para a alta classe do poder. Então, Arquimedes estava lá, e de repente teve aquela epifania, e descobriu uma lei física que diz que o volume de água deslocado é igual ao peso do corpo que está em flutuação. É uma lei simples no fundo, mas só é simples depois de se saber. Eu escrevi, então, sobre esse ambiente mágico colocando as lendas. Esse livro teve uma boa aceitação do público que orbita em torno da Matemática, e que é muito, porque são os professores da escola básica, os alunos universitários, os professores; é um público grande.

    Refere-se ao primeiro livro que publicou, A Vida misteriosa dos matemáticos, em 2018.

    Sim, foi o primeiro livro que eu escrevi, e teve uma repercussão muito boa que me animou. E falei: então porque não ficcionar as minhas memórias? Também têm o seu valor dramático. O seu valor pícaro, como disse o Manuel Alegre, do júri da LeYa. Então, resolvi escrever as memórias ficcionadas. E essas memórias, tal como A vida misteriosa dos matemáticos, demoraram-me cerca de quatro anos a escrever. Até chegar o momento em que eu coloquei o manuscrito no correio e mandei para a LeYa, que também foi um momento importante. E esse primeiro impulso que eu tive com o meu primeiro livro, levou-me a fazer essa ficção, que evidentemente vai ter uma continuidade, porque ainda há mais um livro pela frente. E outros tantos projectos que eu tenho sobre ficção, tenho muitos projectos iniciados. Então, eu vejo o Prémio Leya com um significado que o próprio nome diz: um prémio. E esse prémio certamente vai impulsionar-me, trouxe ventos de incentivo para que eu continue a escrever.

    Caminhou sempre nos campos das ciências exactas. Estudou Engenharia, Medicina e Matemática, áreas que são geralmente vistas como antagónicas à Literatura e às Artes. Como alguém que se movimenta tanto nos números como nas letras, como é que percepciona as diferenças entre estes dois domínios?

    Ambas são linguagens. Então, nós temos a linguagem da Matemática e temos a linguagem da narrativa. E quando eu falo em linguagem, falo numa coisa um pouco mais ampla, porque a linguagem matemática tem regras muito fixas. É como jogar xadrez. Quer dizer, você tem que seguir as regras para chegar a um resultado. Então, a Matemática tem as suas regras lógicas, já desde Aristóteles, mas evidentemente que foram aperfeiçoadas com o passar do tempo pela Humanidade. Então, desse ponto de vista, os preceitos para se fazer Matemática é você aprender truques para usar essas regras. Por exemplo, a gente tem livros de xadrez, que explicam as inúmeras aberturas possíveis. Porquê? Porque o jogo do xadrez é infinito, assim como o jogo da Matemática também. Na verdade, é mais infinito ainda, porque o jogo da Matemática está num degrau acima do xadrez, evidentemente. Então, se você de repente tem essa capacidade, que é uma coisa também um pouco inexplicável, evidentemente que todos podem caminhar na Matemática. Alexandre Alekhine, que foi talvez o maior jogador russo de xadrez, foi preso durante a época dos czares russos e colocado numa prisão, e jogava xadrez com ele mesmo. Mas o xadrez era um xadrez imaginário no tecto da prisão. Eu vejo que a Literatura também tem as suas regras; a narrativa tem as suas regras, que vão-se moldando ao tempo, vão-se desdobrando e reinventando. E é preciso também aprender essas técnicas, e eu dediquei-me muito a aprendê-las. A técnica do gancho; de atirar alguma coisa na narrativa e não contar tudo exactamente, para depois recuperá-la mais à frente. O pai dos contos russos, um dos maiores contistas que a Humanidade teve, que é Tchekov, dizia que se num conto, você coloca uma espingarda, essa espingarda tem de atirar nalgum capítulo. Ou se apresentar um doente de tuberculose no capítulo 50, ele tem que dar uma tossidinha no capítulo 5. Então, existem regras. Por exemplo, em A Arte de driblar destinos, o primeiro capítulo é uma tourada. E do ponto de vista da sequência cronológica, não é a primeira memória do narrador, porque a história vai desde que o narrador tem três anos, até aos 19. Mas o episódio da tourada acontece quando ele tem cinco anos. Não estou dando spoiler, porque o primeiro capítulo não é considerado spoiler [risos].

    Então, começar o livro com o episódio da tourada foi uma questão técnica?

    Sim, comecei pela tourada porque a narrativa pede isso. Uma narrativa é um compromisso que você faz com o leitor, e que é: “vamos viver o mesmo sonho”. E você não pode perder o leitor por um escorregão com a verossimilhança, não. Mas se esse contrato com o leitor é um contrato que se estabelece e é cumprido, então o leitor e o narrador vão até ao fim da situação. Então, pelo menos este é o meu ponto de vista, é preciso iniciar a narrativa lá no alto da chamada às emoções. Eu creio que essa tourada, esse pequeno espetáculo que se instala nessa pequena cidadezinha de mil habitantes… Uma cidade que não tem televisão, no tempo de 1960. Aliás, também não tinha geladeira, porque as geladeiras eram para os mais abastados que podiam ter. Mas tinha electricidade, que já era um grande avanço, e as vitrolas. Então, nessa pequena cidade, os grandes movimentos, as turbulências que aconteciam, era quando vinha uma tourada, um circo, ou um rodeo. Eu comecei com a tourada no sentido de ser um momento festivo, em que as emoções estão lá no alto.

    Se sempre teve uma paixão tão forte pelas letras, por que esperou tantos anos para começar a escrever

    Porque, de alguma maneira, a Matemática é uma amante muito exigente. E é muito divertido também, sempre foi muito divertido. Eu sempre trabalhei desde pequeno, desde os meus onze anos, que a minha família tem as suas precariedades. Vem de uma fazenda que se chama Ribeirão do Engano, e a cidade de onde a minha família toda veio chama-se Cinzas. Então, pais analfabetos, e eu sempre trabalhando em tudo quanto era ofício desde muito jovem. E depois numa cidade um pouco maior, já trabalhava numa oficina mecânica. E eu entregava as chaves para os mecânicos trabalharem lá nos carros, e ficava num pequeno escritoriozinho que tinha uma bancada. Aí chegava um mecânico, e falava “me dá uma chave de boca três quartos”. Eu apontava, e quando ele devolvia eu dava baixa. Mas enquanto isso, eu fazia divisões mentais no papel. Mas você pensa que eram umas divisões quaisquer? Não, eu dividia um polinómio por outro polinómio. Eu brincava com divisões de polinómio. Então, apesar de eu estar sempre trabalhando, a Matemática era essa amante exigente. Eu ficava mais ou menos quatro, cinco horas por dia ininterruptamente. E aí, comecei a impressionar os professores. E logo no final da minha escola secundária, antes de ir para a capital e ingressar na universidade, eu apaixonei-me por uma garota da minha classe, mas ela não me dava muita bola… E aí, eu escrevi um caderno inteiro de versos para ela. Dei-lhe e, felizmente, o caderno desapareceu. Aliás, ainda temos um grupo de WhatsApp da nossa turma, que eram 17 pessoas, e ela felizmente perdeu o caderno. Nunca mais vou ver esse caderno [risos].

    Portanto, não resultou? [risos]

    Não, não resultou nada, não me quis. Eu fui embora para Curitiba e as nossas vidas separaram-se durante muito tempo. E aí, temos esse grupo de Whatsapp das 17 pessoas que se formaram lá naquela cidadezinha do interior, e que depois cada um foi para o seu canto para fazer a universidade.

    (Foto: Luís Breda)

    Ainda a propósito da exigência da Matemática, numa entrevista recente chegou a dizer que alguns matemáticos proeminentes tinham terminado os seus casamentos com a obsessão de resolver certos problemas. Na sua tese de doutoramento, o Celso fez uma descoberta que resolveu um problema matemático com mais de 200 anos. No seu caso, houve algum momento em que a matemática lhe tenha roubado espaço para a vida pessoal?

    Não, acho que não. Nesse caso da vida pessoal, não foi afectada pela minha dedicação à Matemática, mas geralmente afecta um pouco. Fica muito obsessivo. E na verdade, quando eu fui para o Rio de Janeiro para frequentar um mestrado e um doutoramento na área da Matemática, num centro chamado IMPA – Instituto de Matemática Pura e Aplicada, que é certamente o mais importante centro de matemática da América Latina. Mas nessa época eu morava em Santa Teresa, que é um lugar que lembra muito Lisboa, porque é cheio de ladeiras. E os meus colegas na república que nós tínhamos lá, onde morávamos todos, tinham um conjunto de rock chamado O Bando da Santa, tinha um grupo de teatro infantil também, e mais eu e um amigo, que éramos matemáticos. A gente vivia todos ali na mesma comunidade. Então, foi nesse ambiente que eu continuei os meus estudos. E na minha tese de doutoramento eu resolvi esse problema antigo, e a Superfície Costa, que o mundo da Matemática denominou assim, passou a ser a terceira superfície no elenco das superfícies com as qualidades que ela tem, que é uma superfície mínima e mergulhada no espaço. Tem uma característica, um registo de propriedades que a fazem muito especial. Antes dela, existiu o catenóide, descoberto pelo Euler, um matemático suíço, em 1740, e o helicóide, que 150 anos depois, serviu para modelar a molécula do ADN. A molécula do ADN consiste em duplos helicoides que são unidos por pontes de proteínas. E a Superfície Costa surgiu como uma terceira superfície nessa galeria.

    E que impacte é que teve essa descoberta na sua vida profissional?

    Teve uma repercussão internacional muito grande e colocou-me na Academia Brasileira de Ciências do Brasil. O presidente da República na época, logo depois, condecorou-me com a medalha de Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico. Essas honrarias, o reconhecimento…

    (Foto: Luís Breda)

    E agora, é novamente distinguido, mas desta vez pela arte literária…

    É, aí eu um dia estou deitado porque ainda não me tinha levantado, porque lá é quatro horas a menos que em Portugal, e eu durmo tarde; às sete e meia da manhã, e o Manuel Alegre – eu vejo aquele número imenso com 55, internacional –, me ligando dizendo que eu tinha ganhado o Prémio LeYa. Fui apanhado de surpresa, de maneira realmente muito genuína, porque eu nem conseguia dizer-lhe nada. Eu só disse três palavras: poxa, poxa, poxa! [risos] E ele disse para eu me preparar, porque ia ter os jornalistas a ligarem-me. Mas ainda deu tempo de eu avisar a minha esposa, os meus filhos e os amigos mais próximos que eu tinha ganhado o prémio. Que coisa fantástica [risos]. Inacreditável, como é que pode, não é? Os meus amigos diziam, “o que é isso, mas você é um matemático e ganhou o Prémio LeYa, que história é essa”?

    Tendo em conta o seu percurso, seria um cenário improvável.

    É, muito improvável. Acho que talvez seja o único caso da História [risos]. Bom, do Prémio LeYa certamente. Nós temos psicólogos que escrevem literatura de alto nível, e médicos também. Eu tenho uma filha médica, começou na Medicina há uns três anos. E eu quase fui médico, não é? [risos]. Quando a gente estava numa mesa um dia, uma pessoa perguntou se eu gostaria de ter tido outro destino. E eu disse que talvez gostaria de ser médico. Porque acho que um médico tem uma experiência com a realidade que é muito contundente. A vida dele, o ambiente onde ele observa, de momentos muito delicados da existência humana. Então, tem muito médico que faz boa literatura, porque ele tem uma massa de observação muito importante.

    Mas quando estudou Medicina, acabou por desistir do curso. Mesmo assim, olhando para trás, pensa que gostaria de ter enveredado por esse caminho?

    Eu gostaria de ter sido médico porque agora quando eu peguei na literatura, eu pensei, poxa, se eu tivesse a observação de um médico [risos]… Acho que poderia beneficiar disso. Mas na época em que eu estudei medicina, na verdade eu queria ser professor do cursinho. Aqui em Portugal não tem essa questão do cursinho, porque se entra na universidade através de uma prova.

    (Foto: Luís Breda)

    Sim, em Portugal a média dos exames soma à média do ensino secundário. No Brasil têm que ter aulas de preparação para o exame que concede o acesso ao ensino superior, o vestibular, certo?

    Sim, no Brasil zerou o jogo, só a prova é que conta, e essa prova é para as universidades federais e é igual no país inteiro. Então, são milhões de estudantes fazendo aquela mesma prova, e tem uma que é de redacção, de Física, Química, essas coisas. Dependendo da sua classificação, você pode pedir uma primeira carreira ou uma segunda carreira. É evidente que, por exemplo, na área da Medicina, a pessoa pede Medicina ou depois pede Odontologia ou Veterinária, que são profissões em que a concorrência não é tão alta. Então, você pode optar por uma segunda carreira que não é aquela que você vislumbrava. Na época em que eu estava em Curitiba, que é a capital do Estado [do Paraná], e que eu estudava Engenharia, estava um pouco desgostoso porque eu gostava mesmo era da Matemática. Mas enquanto estava a estudar Engenharia, eu estava a morar numa casa de estudantes universitários e estava sem dinheiro também. Eu só consegui ir para Curitiba porque ganhei um prémio com dinheiro dos professores lá do meu colégio. Eles enviaram-me para lá, e comecei Engenharia. Entrei naquela casa com 400 estudantes universitários, em que você tinha alimentação, roupa lavada, cama, tudo o que você necessitava. No primeiro ano você tinha que trabalhar para poder pagar a casa: trabalhar no restaurante, na lavandaria, na fazenda, enfim. E depois no segundo ano já não precisava mais de trabalhar porque já era morador efectivo, se tivesse cumprido uma boa tarefa, não é? Mas pagava-se uma coisa mínima, eram 50 euros por mês para ter tudo isso. Aí, um dia eu estava no meu quarto, e algum estudante que estava atendendo na portaria a chamar-me, porque tinha um telefonema do interior do Paraná.

    Sim, e até pensou que o telefonema trazia uma má notícia…

    Eu já fiquei em sobressalto, porque podia ser notícias ruins da família. E cheguei lá, era o director do meu colégio falando: “Celso, o prefeito da cidade passou na câmara de vereadores uma lei em que vão pagar a casa de estudantes universitários até ao final do seu curso”. Não precisava de pagar mais a casa de estudantes. Mas estava sem dinheiro, não tinha dinheiro. E aí, resolvi ir lá pedir ao dono do cursinho para me deixar fazer um super-intensivo de dois meses, porque eu iria fazer o vestibular de Medicina, com a tentativa de ficar nos dois primeiros lugares e ganhar a posição de professor. Era assim que os professores entravam no cursinho. Aí, entrei na Medicina e me transformei em professor de Física do cursinho, e no primeiro ano, dissecação de cadáveres… Cadáver em cima da mesa, todo estraçalhado porque já tinha servido os estudantes dos outros anos. O livro ali para identificarmos os músculos, e aquilo começou a me desgostar, aquela coisa de você decorar os 206 ossos do corpo humano… O próprio professor lá, que era uma sumidade; era um fenómeno, porque ele era um ortopedista famosíssimo, cirurgião. Tinha o seu carro, mas ele não conduzia; tinha um motorista, porque aquelas ruas de paralelepípedo na direcção, podia afectar a sensibilidade das mãos dele. Folclore, não é? E aí, com o esqueleto lá na frente, ia identificando os 206 ossos do corpo humano. E eu decidi desistir dos dois. Achava que iria para São Paulo fazer Física na USP.

    Foi depois disso que surgiu a oportunidade de estudar Matemática?

    É, nesse momento eu tive que sofrer uma arguição da minha mãe, ela chamou-me lá para o interior. Perguntou porque é que eu estava a desistir, disse que eu estava a rasgar dois bilhetes de lotaria. Foi um drama na família. Mas aí, um professor me convidou para eu ir para o Rio de Janeiro, para fazer um curso curto de dois meses. Eu fui e tive um desempenho que impressionou os directores do curso, e pediram-me para eu voltar no próximo ano, que eu não precisava de Faculdade nenhuma e poderia entrar directamente no mestrado. Pulei a Faculdade, fui para o mestrado e para o doutoramento, fiquei sete anos lá, fiz a tal descoberta, entrei como profissional da universidade. Agora, pensando em me aposentar, sempre com a leitura actualizada, enveredei pela Literatura, pela escrita, pela narrativa.

    Uma das principais mensagens de A Arte de driblar destinos é a importância da educação e do conhecimento para conseguir ir-se mais longe. No Brasil, as pessoas que nascem em meios mais desfavorecidos têm essa oportunidade de vingar, ou as possibilidades são muito desiguais?

    As oportunidades são muito desiguais, porque a gente tem um sistema público e um sistema privado. É interessante, porque na época em que eu fiz os meus primeiros aprendizados, o sistema público era muito bom. Teve uma certa deterioração, actualmente o sistema público brasileiro está muito fraco. O sistema privado está muito forte, acontece inclusive uma inversão, porque o sistema público antes da universidade é fraco e o sistema privado é forte. Aí, quando vai concorrer na universidade que é pública, entram os estudantes do privado porque eles são mais fortes. Então, quer dizer, o sistema público é fraco no começo e depois é forte porque a universidade brasileira é bastante forte na pesquisa, no ensino, nessas coisas todas. Mas a questão, primeiro, é a do acesso à escola, não é? O acesso é muito desigual.

    Nem toda a gente consegue ter as mesmas oportunidades…

    Exactamente. Mas antigamente a situação era pior, porque actualmente a gente tem um programa que ajuda as pessoas em condições de pobreza extrema. Chama-se Bolsa Família, que dá 120 euros por mês para as famílias mais pobres, e dá mais 30 euros para cada criança, até três crianças com menos de cinco anos. Então, há um programa que é um combate à pobreza. Em 1960, nenhum desses programas existia. Era uma coisa muito difícil você ter as classes desfavorecidas na universidade.

    E prosseguiu os estudos muito por causa da importância que a sua família dava à Educação?

    Exacto, quer dizer, é também outra obsessão da família. O meu pai admirava muito as pessoas letradas, e os advogados. Porque tem essa cidadezinha pequena, mas tinha outra maior do lado, onde era a Comarca. Então, a Comarca era onde tinha o juiz, o delegado. Porque nesses lugarzinhos pequenos não tinha nem delegado; o delegado era um sujeito que recebia uma incumbência de cuidar da ordem. Mas ele admirava muito aquele júri, sabe, aquele jurizinho que uns advogados se batem, um acusando e outro defendendo o réu de um assassinato. Toda aquela cena, tem todo aquele drama que é contado ali. Ele gostava muito desse teatro. Então, queria muito que eu fosse advogado. Filho advogado seria bom [risos].

    [risos] Mas não quis ir por aí…

    Não, por falta de vocação também. Na época em que eu estive diante da universidade, as três carreiras mais importantes eram Engenharia, Medicina e Direito. Então, quem gostava de números iria para Engenharia, quem gostasse de saúde iria para Medicina, e quem gostava das letras e do social, iria para Direito. Eram as três carreiras nobres.

    Já que o título do seu romance fala em destinos, pergunto-lhe se, ao longo da sua vida, com todas as vitórias improváveis, reveses e reviravoltas que vivenciou, alguma vez sentiu que tudo acontecia de uma forma quase predestinada? Como se o destino tivesse um peso na forma como tudo se foi desenrolando? Bem sei que, por norma, os homens da Ciência não acreditam nestas coisas [risos]…

    Eu acho que existe uma transcendência que nós não sabemos explicar, mas que podemos apenas perceber e sentir, não é? Então, do lugar de onde eu vim, essas coisas eram muito fortes. Existiam pessoas de “poder”.  Num certo sentido, eu acho que a nossa vocação para a tecnologia vai empobrecendo o nosso poder, que não tem explicação, mas que é simplesmente um poder, de comunicar com a Natureza. A gente sabe que os indígenas, por exemplo, quando morre um companheiro, sabem que ele morreu naquele momento. Então, nesse lugar onde eu vivi, existia pessoas que tinham também essa capacidade de sentir as coisas dessa maneira. Por exemplo, geralmente os animais, quando se machucavam por algum problema, a ferida infectava e criava bicho; os bichos habitavam lá e começavam a comer aquela carne em putrefacção… E tinha pessoas que eram os benzedores. E eles chegavam lá e benziam os animais, e aquelas bicheiras todas caíam no chão sem nenhum remédio. E outro personagem – que eu não usei porque senão o livro teriam sido 500 páginas –, era uma pessoa que conversava com as cobras.

    Conversava com as cobras?

    É, ele pegava a cobra, botava no embornal e levava para casa. O meu avô tinha uma certa extensão de terra onde tinha uns boizinhos e eles começaram a morrer, porque a cobra picava no focinho. Se a cobra picar na perna, o animal não morre porque tem muito sangue para diluir o veneno; mas se pica no focinho, é uma zona muito irrigada, então espalha-se muito rapidamente e o animal morre, especialmente se for um animal jovem. E estavam morrendo. Aí, ele chamou o compadre dele, o nome dele era Dentinho Queijo, não sei porquê. O Dentinho Queijo chegou lá e o meu avô explicou-lhe o que estava a acontecer, e depois foram andando pelo terreno e chegaram onde morava a cobra. Ele ficou ali um bocado a fazer as rezas dele e depois saiu uma imensa cascavel lá de dentro. Ele começa a fazer as rezas, a cascavel se enrodilhou. E ele disse ao meu avô: “Seu Pedro, podemos ir tomar café agora”. Aí, ele foi lá na casa, que ficava perto, foi conversar, colocar os assuntos em dia… Era assim que se vivia, porque havia um rádio a pilhas mas não tinha muitas comunicações do exterior. Aí, eles fizeram todos aquela sociabilidade, voltaram lá para o lugar onde estava a cobra, botou no embornal e foi embora.

    Era uma espécie de encantador de cobras [risos].

    Era. Assim como também havia um sujeito que ficava em cima da água, esse cara também existia.

    [risos]  Passou por algumas experiências quase sobrenaturais…

    É. São experiências muito marcantes na infância e em parte da juventude. Existe um imaginário que eu – e isto já é uma teoria –, acho que esse avanço em direcção à tecnologia vai nos afastando dessa outra comunicação com a Natureza que a gente vai perdendo. Então, o Dentinho Queijo, no ADN dele, tinha a cobra. Porque nós somos animais, somos as árvores, somos os outros animais… Sei lá, eu por exemplo gosto muito de entrar de baixo de cavernas e buracos; talvez eu tenha um ADN também de lagarto, coisas desse tipo [risos]. É uma conexão com a Natureza, que é muito importante.

  • Quando os cenários sobrevivem aos filmes 

    Quando os cenários sobrevivem aos filmes 

    A série “Rabo de Peixe”, disponível na plataforma Netflix, trouxe a vila piscatória da Ilha de São Miguel, nos Açores, para o estrelato. Os diversos locais de filmagem da popular série portuguesa arriscam agora a tornar-se famosos. Não será caso único. Em todo o Mundo, vários locais de filmagem de filmes e séries saltaram para a fama e hoje constituem um ponto de atracção turística, mesmo passado décadas de os holofotes do set se terem apagado. O PÁGINA UM mostra-lhe 12 cenários construídos ou já existentes que se tornaram locais de peregrinação.  


    O cinema e a televisão são poderosos e influentes veículos de conteúdos. Prova disso é a capacidade que têm de suscitar nos espectadores uma curiosidade acerca de locais até então absolutamente desconhecidos ou pouco falados. A nova série portuguesa da Netflix, “Rabo de Peixe”, é agora mais uma evidência disso: com um retumbante sucesso que a colocou no topo do ranking daquela plafatorma de streaming, conseguiu pôr a pequena e pacata vila piscatória açoreana “debaixo dos holofotes”.

    No entanto, para além desta produção gravada na Ilha de São Miguel, muitos são os exemplos deste fenómeno em que localidades são subitamente catapultadas para o centro das atenções por servirem de cenário a filmes ou séries televisivas.

    Por vezes, algumas até se transformam em pontos turísticos “imperdíveis”, atraindo milhares de estrangeiros oriundos de todo o mundo. Alguns, que já tinham uma considerável afluência de turistas, viram a quantidade de visitantes aumentar ainda mais. Outros ainda, obrigaram à construção de sets que ainda hoje, passados anos do seu lançamento, recebem ‘enchentes’ de turistas. Aconteceu com O Popeye, A guerra das estrelas, Harry Potter, e até os Monty Phyton.

    O PÁGINA UM destaca 12 desses locais (agora ainda mais) turísticos.


    Matamata, Nova Zelândia

    A verdejante Nova Zelândia não precisaria de incentivos adicionais ao turismo, mas a popularidade que a trilogia O Senhor dos Anéis alcançou fez engrossar a percentagem de turistas que se deslocavam àquele ponto do globo. Em 2012 – mais de uma década após o fim da trilogia –, um responsável da Tourism New Zealand, uma empresa que promove o turismo naquele país, revelou à Forbes que se tinha registado um aumento de 50% de visitantes desde o lançamento do primeiro filme, em 2001. Com efeito, esta sequela foi pioneira no fenómeno da corrida aos locais e regiões que servem de palco para produções televisivas.

    Hobbiton constitui uma das principais atracções, e esta vila dos icónicos hobbits situa-se, na vida real, na cidade de Matamata.  É lá que se encontra o Hobbiton Movie Set, que serviu de palco para as gravações de ambas as trilogias cujo “pai” foi o escritor J. R. R. Tolkien: O Senhor dos Anéis e Hobbit. Ainda em Dezembro passado, em comemoração do décimo aniversário de Hobbit: Uma viagem inesperada, a plataforma Airbnb anunciou que os visitantes passariam a ter também a possibilidade de pernoitar nas pequenas casas que serviram de cenário às filmagens.


    Castelo de Alnwick, Inglaterra

    É impossível falar de sequelas de sucesso sem mencionar Harry Potter, e o impacto do seu sucesso colossal no número de visitantes que rumaram a Inglaterra ou à Escócia para conhecer os locais de filmagem também foi significativo. Entre castelos, estações de comboios e catedrais, são vários os ‘cenários’ que através do grande ecrã ficaram na memória dos fãs e espectadores em todo o mundo, e que todos os anos continuam a percorrer os principais locais onde se protagonizaram vários takes da saga.

    A aldeia fictícia de Hogsmeade – que na sequela, é a única exclusivamente habitada por feiticeiros – é um destes pontos, recriada nos estúdios de filmagem da Warner Bros, em Leavesden, 20 quilómetros a norte de Londres, onde se pode visitar a Studio Tour London – The Making of Harry Potter.

    Por seu turno, a plataforma 9¾ da estação de King’s Cross, em Londres, é uma paragem obrigatória para quem visita a cidade pela primeira vez. Na mítica plataforma, os turistas podem reproduzir as cenas onde os aprendizes de feiticeiros desapareciam ao atravessar as paredes do terminal com os seus carrinhos-de-mão. Também o viaduto de Glenfinnan, na Escócia, é outro conhecido cenário emblemático da famosa saga, que ainda faz as delícias de muitos turistas e fãs de Harry Potter.

    O castelo de Alnwick, em Inglaterra, também teve um “papel” importante na longa história de Harry Potter, tendo aparecido nos primeiros dois filmes da sequela. Foi lá que, em A pedra filosofal, os aspirantes a feiticeiros, “montados” nas suas vassouras mágicas, aprenderam a voar pela primeira vez. O castelo serviu também para as gravações da conhecida série britânica Downton Abbey.


    Baía de Wallilabou, São Vicente e Granadinas (Caraíbas)

    O filme Pirata das Caraíbas: A Maldição do Pérola Negra, que em 2003 eternizou a personagem do pirata Jack Sparrow, interpretado por Johnny Depp, também deu visibilidade a algumas localidades de areia branca e águas azuis cristalinas por onde o inigualável personagem se aventurou. Uma delas é a baía de Wallilabou, onde se construiu a cidade-cenário Port Royal, para as filmagens da famosa saga.

    Port Royal é uma cidade real situada na Jamaica, que constituiu historicamente um dos mais importantes pontos comerciais da Marinha Real Britânica, até um sismo em 1692 ter afundado grande parte do território. Conhecida até por ser, no século XVII, “a cidade mais malvada do mundo”, tornou-se, de facto, um efervescente centro de prostituição, piratas e “malfeitores”. No entanto, para efeitos das gravações de Piratas das Caraíbas, o país escolhido não foi a Jamaica, mas São Vicente e Granadinas.


    Aldeia do Popeye, Malta

    O carismático marinheiro Popeye – cujo centenário se celebrará em 2029 –, embora seja um cartoon ficcional que habita sobretudo o imaginário colectivo, teve uma versão em “carne e osso” através do musical homónimo, de 1980, em que o actor Robin Williams deu vida ao personagem.

    Malta foi o país escolhido para as gravações da produção cinematográfica, onde se criou, na baía Anchor, o cenário denominado Popeye Village: uma aldeia pitoresca repleta de casinhas de madeira. Ainda hoje uma pujante atracção turística, os visitantes que por lá passam podem usufruir de passeios de barco, espectáculos e ainda ‘conhecer’ as personagens do filme.


    Escadarias Bronx, Nova Iorque

    O Joker, lançado em 2019 e interpretado por Joaquin Phoenix – e pelo qual o actor viria a ganhar o Óscar de Melhor Actor em 2020 –, foi um sucesso de bilheteiras. Não será, por isso, surpreendente que uma singela escadaria, na confluência da West Street 167 com a Anderson Avenue, localizada no conhecido bairro do Bronx, em Nova Iorque, tenha registado um elevado acréscimo de curiosos a querer pisar os mesmos degraus que o temível vilão usou na célebre “dança” vitoriosa. O cenário que, aliás, também deu origem a muitos ‘memes’, é hoje um ponto de atracção para fotografias.


    Dubrovnik, Croácia

    A Guerra dos Tronos, transmitida na plataforma HBO, tem certamente um lugar de destaque na história das séries televisivas. E o seu estrondoso sucesso faz com que conste na lista de produções audiovisuais que mobilizaram os espectadores a conhecer os locais de filmagem com os seus próprios olhos.

    Desde 2011 até 2019, as suas temporadas foram gravadas em diferentes localidades e países, nomeadamente a Irlanda, Croácia, Malta, Islândia e Espanha. Muitos dos fãs da série rumaram a estas regiões, aumentando consideravelmente a sua afluência turística – por vezes, de forma “dramática”. Vários destinos se poderiam destacar, mas um dos que mais turistas atraiu foi Dubrovnik, a cidade mais visitada na Croácia, e que ainda hoje faz manchetes pela quantidade de turistas que recebe, e que se deslocam até à chamada “Pérola do Adriático” para ver por si mesmos o verdadeiro cenário de “King’s Landing”.


    Maya Bay, Tailândia

    Lançado no início de 2000, o filme A Praia, protagonizado por Leonardo DiCaprio, fez aumentar a procura pelas paradisíacas paisagens tailandesas. Em particular, por Maya Bay, a praia que serviu de palco às filmagens, e que se tornou desde então uma das atracções turísticas mais proeminentes na Tailândia. E, de facto, a projecção mundial que este destino adquiriu com o filme não esmoreceu com o passar dos anos.

    Na verdade, o número de turistas atingiu proporções tais – chegou a atingir os 5 mil por dia, a par com 200 barcos –, que o local teve que “fechar as portas” em 2018 devido aos danos ambientais causados pelo excesso de visitantes. Na altura, as autoridades tailandesas anunciaram que a Maya Bay, localizada na ilha Ko Phi Phi Leh, fecharia por tempo indeterminado para que pudesse recuperar do impacto cumulativo. Apenas em Janeiro do ano passado é que a famosa praia voltou a reabrir, mas, por um curto período, voltou a fechar novamente entre Julho e Setembro.


    Ilha de Skellig Michael, Irlanda

    A íngreme e rochosa ilha de Skellig Michael, na Irlanda, foi classificada pela UNESCO Património Mundial em 1996, mas a saga A Guerra das Estrelas elevou o seu protagonismo a um novo patamar ao escolhê-la como cenário para as gravações.

    Com um impressionante mosteiro que se acredita datar do século VI, a montanhosa ilha irlandesa, cujas condições de acesso e permanência são bastante inóspitas – só pode, inclusivamente, ser visitada durante os meses de Verão – serviu de cenário para a sétima e a oitava parte da sequela: O despertar da força e O último Jedi. Em A Guerra das Estrelas, o remoto lugar representou o planeta Ahch-To.


    Senoia, Georgia (Estados Unidos)

    Em The Walking Dead, a cidade ficcional Woodbury, existe na vida real, mas não foi, no entanto, na Woodbury “verdadeira” o local onde se filmaram muitos takes da famosa série, mas sim Senoia, uma pequena cidade que fica também no estado da Georgia – o que causou um aumento vertiginoso de turistas na zona.

    Esta localidade já serviu de cenário para outras produções audiovisuais, mas ganhou um enorme protagonismo com esta sequela sobre os assustadores zombies, e é graças a ela que recebe muitos turistas, que lá visitam os mais conhecidos sets de filmagem que viram no ecrã.


    Hotel Park Hyatt, Tóquio (Japão)

    Também a visibilidade de alguns edifícios e hotéis de luxo atingiu os píncaros, depois de lá se terem filmado êxitos cinematográficos. Foi esse o impacto que o filme O amor é um lugar estranho, (Lost in translation, no original), de 2003, teve no hotel Park Hyatt Tokyo, localizado na capital nipónica. A realizadora Sofia Coppola escolheu-o para cenário para as gravações, depois de ter ficado impressionada com a estrutura.

    A marcante cena em que os protagonistas, Bill Murray e Scarlett Johansson, se conhecem, foi filmada no “New York Bar”, que, com uma vista panorâmica e privilegiada sobre a cidade de Tóquio, fica no último piso do hotel. Uma das suas suítes também “apareceu” neste filme, que chegou até a receber o Óscar de Melhor Argumento Original.

    O hotel, que fica no cimo da “metálica” infraestrutura Shinjuku Park Tower, assumiu, de facto, uma importância comparável ao de uma personagem. Coppola descobriu o local em 1999, após uma deslocação que fez para promover o filme As Virgens suicidas.   


    Hotel Del Coronado, Califórnia (Estados Unidos)

    Outro hotel que ganhou destaque graças à Sétima Arte foi o Hotel Del Coronado, situado no Sul da Califórnia. Neste caso, a “culpa” foi da comédia Some Like It Hot, de 1959, com uma das loiras mais icónicas do Mundo, a actriz Marilyn Monroe. O filme obteve seis nomeações pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, mas ganhou apenas o Óscar de Melhor Guarda-Roupa. De qualquer maneira, certamente que as vestimentas dos personagens foram realçadas pelo “pano de fundo” representado por este hotel de San Diego.

    A acção desenrolava-se em 1929, e talvez por isso a estética de Del Coronado, e a sua “arquitectura victoriana”, tenha servido na perfeição para dar vida ao argumento. Contudo, apenas o frontispício do hotel apareceu nas filmagens, apesar de os cenários utilizados pela produção para os takes gravados em interior serem extremamente semelhantes ao Del Coronado. Segundo o site oficial do hotel, quem o visita, mostra-se incrédulo quando descobre que apenas a parte externa do charmoso hotel foi usada para o filme.


    Castelo de Doune, Escócia

    Os britânicos Monty Python têm muitos méritos, e o humor e boa disposição que trouxeram a muitos espectadores é com certeza um deles. No entanto, entre gargalhadas, o filme Monty Python e o Cálice Sagrado, de 1975, teve ainda um outro efeito: tornou o Castelo de Doune, situado no coração da Escócia, um alvo de atenção e curiosidade.

    Embora os castelos de Stalker e Kidwelly também apareçam no filme, que satiriza a lenda da busca do Rei Artur pelo Santo Graal, as gravações utilizaram sobretudo o Doune, aproveitando os seus diferentes ângulos.

    Anos mais tarde, Terry Jones, um dos actores principais, chegou a revelar que inicialmente a ideia era filmar também noutros castelos escoceses, mas a produção não conseguiu obter a autorização do Departamento do Ambiente do país. Para além de Monty Python, este castelo escocês que data do século XIV “participou” ainda nas filmagens de A Guerra dos Tronos e da série Outlander.

  • A arte de crescer e contrariar as probabilidades

    A arte de crescer e contrariar as probabilidades

    Título

    A arte de driblar destinos

    Autor

    CELSO COSTA

    Editora (Edição)

    LeYa (Maio de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    O título deste romance de estreia de Celso Costa, aos 74 anos, reconhecido matemático brasileiro e agora também escritor, encaixaria perfeitamente numa auto-biografia. E, na verdade, não sendo um livro de memórias, esta é uma obra de autoficção, precisamente inspirada na suas história de vida.

    Com o seu A arte de driblar destinos, Celso Costa recebeu o Prémio LeYa de 2022, para originais anónimos, e foi assim uma verdadeira entrada “em grande” no universo das letras, ainda mais impressionante para quem dedicou a sua (longa) carreira profissional às ciências exactas.

    Com efeito, Celso Costa começou por estudar Engenharia e Medicina antes de eleger definitivamente a Matemática, em especial a Geometria Diferencial, sobre a qual compôs a sua tese de doutoramento. E aí o autor, pode dizer-se, não é um estranho a honras e distinções: teve uma “superfície mínima” baptizada mundialmente em sua homenagem, a “Superfície Costa”, depois de ter descoberto a solução de um problema matemático com 206 anos. Em 1998 foi condecorado com a ordem nacional do mérito científico na classe de Comendador, pelo Ministério da Ciência e Tecnologia do Brasil. Recentemente, retirado do papel de professor universitário, que assumia desde 1981, Celso Costa estabelece-se assim, e agora, como uma revelação na Literatura.

    É difícil destrinçar o “criador” do romance do menino no qual a narrativa se centra, já que os seus percursos são idênticos. O narrador e protagonista de A arte de driblar destinos passou os seus primeiros anos de vida numa propriedade localizada no interior do estado do Paraná, chamada “Ribeirão do Engano”. À medida que cresce, descobre a sua paixão e vocação para os números, e quando atinge a maioridade acaba por trocar o meio rural, onde sempre viveu, pelo ambiente cosmopolita da cidade de Curitiba, para prosseguir os estudos na universidade.

    Num contexto familiar e social de agudas limitações financeiras e escassos recursos e oportunidades, no Brasil profundo dos anos 1950 e 60, a história narrada evidencia a importância da educação como agente propulsor da liberdade, para se ir além do que alguma vez se imaginava ser possível, e de voar por alturas mais elevadas.

    A arte de driblar destinos lê-se, na verdade, quase sem darmos por isso. É um romance descontraído, bem-humorado, descomprometido. Através de um retrato vivo e vívido, a narrativa transporta-nos para um Brasil profundo, apaixonante e em bruto, que é sempre o cenário no desenrolar da história. Desperta, aliás, em nós, uma intensa vontade de adquirir um bilhete de avião só de ida (e talvz uma máquina do tempo, também) e conhecer aquela realidade com os nossos próprios olhos.

    À falta de bilhetes, fica-nos a leitura. A escrita de Celso Costa consegue essa proeza de nos fazer viajar, pela forma como descreve os vários episódios, a cada página, imbuídos de uma autenticidade e simplicidade que nos desarma. Sempre presentes estão os elos e os dramas familiares, as amarguras da vida, e os seus momentos mais inebriantes, aqueles que quase pedem que nos belisquemos para ter a certeza de que estamos acordados.

    Com 277 páginas, o romance divide-se em 44 capítulos, que nos contam as histórias e peripécias que o narrador vivencia durante o seu crescimento, entre os seus três anos até aos 19 anos. Com esta idade, começa um novo “capítulo” longe de casa, contrariando todas as probabilidades, ao agarrar a oportunidade de estudar, que lhe permite traçar um outro destino para si.

    A linguagem informal e coloquial torna o romance leve e genuíno, e as castiças e singulares figuras que surgem no decorrer da narrativa, como o coveiro Cipriano Sombra, o ‘Faquir sertanejo’ ou o “prefeito” Malaquias Buarque, parecem ter sido retiradas de um engenhoso e criativo enredo cinematográfico. Há, também, o pai do menino, Zé Branco, que, de génio impetuoso, não mede as consequências dos seus actos, e a mãe, Nena, protectora mas de pulso firme. O jovem casal encanta e intriga o leitor com a suas personalidades fortes. 

    O 44.º capítulo, intitulado “Desembarque do caipira”, é onde o percurso do leitor chega ao fim, mas onde se inicia a derradeira aventura do jovem “herói” da história, que finalmente conhece a capital do Paraná, nas circunstâncias em que estas linhas exprimem:

    “Vindo de longe, tropeando seus sonhos desde o Ribeirão do Engano, ali está, sondando rumos, o caipira que nunca viu um semáforo, nem um prédio com mais de dois andares, e desconhece o mar.

    O moço de tocos de barba despontando tem fome. Com a mochila aos ombros, arrastando a mala grande, anda alguns metros sem deixar a calçada de desembarque e entra no bar. O aroma é apetitoso, cheiro bom de café acabado de passar pelo coador de pano. Com olhos ávidos examina a pequena vitrine em cima do balcão e indaga ao atendente, num sotaque do interior:

    – O que é que o senhor tem aí, de sal, pra comer? 

    O rapaz atrás do balcão, entre estupefato e divertido, estreita os olhos, enquadra a cara do caipira e dispara:

    – Temos sal!

    É o primeiro tranco do novato na cidade grande. Sem alternativa e com medo de ser zoado de novo, opta pelo simples:

    – Quero um copo de café com leite, meio a meio, e um pão com manteiga na chapa.

    Ao pedido, o atendente coloca a cabeça no guichê e grita para a cozinha:

    – Saindo uma canoa na chapa e uma média!

    Uma média, uma canoa! Assim o novato conquista as primeiras palavras de um novo vocabulário.”

  • Uma tragédia com um final feliz

    Uma tragédia com um final feliz

    Título

    70072: A menina que não sabia odiar

    Autora

    LIDIA MASKSYMOWICZ (tradução: Ivan Figueiras)

    Editora (Edição)

    Porto Editora (Janeiro de 2023)

    Cotação

    12/20

    Recensão

    As histórias sobre o Holocausto, narradas através da tela do cinema ou em livros, são inúmeras. Esta, é sobre Lidia Maksymowicz, uma sobrevivente dos campos de concentração nazis que foi levada para Auschwitz-Birkenau com apenas três anos e de onde só saiu treze meses depois, em Janeiro de 1945. Dizem os historiadores que foi a criança que passou mais tempo em Birkenau. Durante esse tenebroso período, foi uma das ‘cobaias’ de Josef Mengele para as suas experiências médicas, que incluíam a administração de vacinas a pedido de empresas farmacêuticas.

    Lidia não era judia (actualmente é católica); nasceu na Bielorrúsia, filha de guerrilheiros da resistência. O seu pai não acabou nos campos de concentração; é forçado a juntar-se ao Exército Soviético, separando-se do resto da família – Lidia, a mãe Anna e os avós – antes de estes serem capturados e deportados pelos alemães.
    Esta obra, prefaciada pelo Papa Francisco, é inspirada no documentário 70072: La bambina che non sapeva odiare, feito pela associação La Memoria Viva. Os números 70072 são aqueles que Lidia tem tatuados no seu braço, uma marca em si deixada pelo regime nazi. Tal como a terrível experiência que viveu estará para sempre gravada na sua mente, os dígitos que a identificavam em Birkenau permanecem ainda, indeléveis, na sua carne. A tatuagem foi beijada pelo Papa Francisco, a 26 de Maio de 2021.

    Como Lidia admite, as recordações que guarda da passagem pelos campos não são muitas – não obstante que, entre as poucas que tem, algumas sejam bem vívidas. Outras, ainda, não está certa se serão, de facto, memórias do que viveu ou se são construções que a sua mente foi edificando com o tempo, com base no que, já depois de ter sido libertada, foi escutando, lendo ou vendo e absorvendo sobre o que era o dia-a-dia dos prisioneiros.
    A história de Lidia, pode dizer-se, é daquelas que termina com “um final feliz”. Para além de ter conseguido escapar com vida da barbárie por que passou, foi adoptada, depois da libertação pelo Exército Vermelho, por uma mulher polaca, Bronislawa. Recomeçou a sua vida na Polónia, com a sua família adoptiva, na província de Oświęcim – lugar onde permanece até hoje, e que passou a considerar a sua casa.

    Também a sua mãe biológica sobreviveu aos campos nazis, e as duas reencontraram-se, finalmente, em 1961, já 17 anos após terem sido separadas em Birkenau. Este emotivo reencontro, que teve lugar em Moscovo, foi alvo de intensa cobertura mediática na altura, tanto pela comunicação social soviética como polaca.  Como Lidia explica, representou um dia que o regime soviético queria que fosse “histórico” e gritado aos sete ventos, para transmitir a imagem de que a União Soviética se preocupava com os filhos da sua terra. 

    70072 – A menina que não sabia odiar é um testemunho bonito de uma história que merece indubitavelmente ser contada, mas que acaba por ser apenas mais uma no meio de milhentas que já existem sobre Segunda Guerra Mundial. Não consegue ser particularmente impactante, e o leitor fica com a sensação de que o relato se sustenta mais nos factos que já são do senso comum – e que já foram repetidos múltiplas vezes ao longo das últimas décadas – do que nas memórias individuais e singulares desta sobrevivente em específico. Acaba por ter, por isso, um tom um pouco superficial e “fabricado”, carecendo de profundidade e sendo abundante em lugares-comuns.

    O momento mais comovente do livro é, então, aquele que se centra na reaproximação, após quase duas décadas de afastamento, de Lidia com a sua mãe biológica. As emoções contraditórias e humanas que envolvem este “retorno” improvável (e milagroso) da filha aos braços da mãe – já como uma mulher adulta e casada, e não como a criança que era –, conferem “cor” e intensidade à narrativa, que de outra forma não teria.