Autor: Maria Afonso Peixoto

  • #TwitterFiles: Luta contra a desinformação ou cartel de promiscuidades?

    #TwitterFiles: Luta contra a desinformação ou cartel de promiscuidades?

    Em conversa recente com um jornalista da BBC, Elon Musk já deixara em aberto mais revelações sobre as promiscuidades e atitudes censórias praticadas no passado pelo Twitter e outras redes sociais. Anteontem, numa nova série de documentos escrutinados por jornalistas independentes, reforçam-se as provas da “colaboração”, mesmo antes da pandemia, entre Governo norte-americano, serviços de inteligência, académicos, organizações não-governamentais e jornalistas em prol do combate à “desinformação”. Ou em prol da censura, já não se sabe bem.


    “Estilo cartel” – são estes os termos crus e duros usados por Andrew Lowenthal, antigo director executivo da EngageMedia e gestor da newsletter NetworkAffects, para caracterizar a forma como grupos de interesses, lobbys e comunicação social têm vindo a funcionar nos últimos anos.

    Em nova sessão dos #Twitter Files, divulgados anteontem – e que desde Dezembro têm revelado, com a “autorização” de Elon Musk, os procedimentos anteriores desta rede social –, Andrew Lowenthal conta como se desenvolveram diversas iniciativas que redundaram em situações de promiscuidade entre entidades governamentais, serviços de inteligência, cientistas, organizações não-governamentais e jornalistas.

    blue and white arrow sign

    “Numa democracia funcional existe uma tensão dinâmica entre o Governo, organizações da sociedade civil, comunicação social e indústria, em direcção aos seus próprios interesses, na teoria garantindo entre si uma conduta honesta. Nos #Twitter Files, vemo-los todos a trabalhar em conjunto, estilo cartel”, sintetiza Lowenthal, destacando que as promiscuidades surgiram ainda antes da pandemia.

    Por exemplo, numa conferência à porta fechada em 2017, organizada pelo National Democratic Institute (NDI) e a Universidade de Stanford para discutir o “desafio global da desinformação digital” foram convidados “líderes de opinião” de empresas tecnológicas, organizações filantrópicas, entidades políticas e jornalistas de topo do Washington Post, The New York Times, Atlantic e NBC. Neste tipo de “proto-workshops de censura”, como Lowenthal os apelida, os jornalistas eram vistos como parceiros, como “participantes, e não adversários”.

    Andrew Lowenthal destaca que os documentos do Twitter confirmam, cada vez mais e de forma inegável, que “as companhias tecnológicas colabora[ra]m entre si e com o Estado”, criando e gerindo um sistema de “partilha multilateral de informação”, chegando a reunir frequentemente com o FBI, o Pentágono, o Departamento de Segurança Interna e até com membros da Câmara dos Representantes e do Senado norte-americano. As comunicações internas do Twitter também sugerem, inclusivamente, “um elevado acesso a dados por parte das Forças Armadas”.

    Andrew Lowenthal, ao centro, responsável pela divulgação de nova série de documentos dos #Twitter Files.

    Além disso, vários membros do Departamento de Segurança Interna norte-americano vieram mesmo trabalhar no Twitter e no Virality Project, um projeto da Universidade de Stanford para combater a desinformação. O Virality Project teve como principal parceiro a Graphika, uma empresa de análise de media social, muito activa na detecção de contas suspeitas de desinformação e de influências em perspectivas não oficiais.

    Ora, segundo os novos Twitter Files, “a Graphika recebe dinheiro do Pentágono, da Marinha e da Força Aérea, enquanto apoia, em simultâneo, organizações de direitos humanos como a Amnistia Internacional e a Human Rights Watch”. Ou seja, há uma porta giratória “interminável” entre a academia, o Governo norte-americano, organizações não-governamentais e as grandes tecnológicas.

    Lowenthal mostra também os promíscuos fluxos financeiros desta luta contra a desinformação encabeçada pelo Governo norte-americano e as plataformas tecnológicas, exemplificando com o contrato de 979 milhões de dólares entre o Departamento da Defesa e a Pentaron, uma empresa privada de segurança e tecnologia, para “combater desinformação especificamente originada por adversários dos Estados Unidos”.

    mixed paints in a plate

    Mas também houve investidores privados e magnatas envolvidos. Foi o caso de Craig Newmark, o multimilionário que criou a conhecida Craigslist, e que terá desembolsado mais de 200 milhões de dólares no financiamento de projetos jornalísticos e académicos para vencer a “guerra da informação”.

    Nem mesmo as Nações Unidas ficam de fora desta enorme teia de entidades poderosas que combatem a desinformação suportando a imprensa, de forma directa e indirecta. Por exemplo, a Public Good Projects (PGP), uma fundação sem fins lucrativos, que colaborou com o Twitter para conter a desinformação sobre a covid-19, também levou a cabo “iniciativas para fomentar a procura de vacinas”, tendo criado o Vaccination Demand Observatory em articulação com a UNICEF e o Yale Institute for Global Health.

    A pandemia da covid-19 aprofundou estas relações sem fronteiras entre entidades governamentais e não-governamentais, incluindo a imprensa. Nos e-mails internos do Twitter agora divulgados por Lowenthal, comunica-se, por exemplo, a lista dos principais grupos, canais e contas que formam uma alegada “Indústria de Anti-vacinas Online”, e refere-se que os seguidores destas páginas ultrapassaram o patamar dos 58 milhões de contas durante a pandemia.

    Em particular, salienta-se como foram identificado os “Desinformation Dozen”, os 12 activistas alegadamente “antivacinas”, entre os quais se destacava Robert Kennedy Jr. actual pré-candidato democrata às eleições norte-americanas de 2024 e um dos mais destacados (e outrora respeitáveis) defensores das políticas de combate às alterações climáticas.  Houve mesmo responsáveis governamentais norte-americanos que pediram então ao Twitter que banisse estes “Desinformation Dozen”.

    De respeitável defensor de causas ambientais, Robert Kennedy Jr. passou a proscrito pela imprensa mainstream pelas suas posições críticas às vacinas contra a covid-19.

    O antisemitismo foi outra preocupação no mundo online, mas onde se identificaram interesses com algum grau de promiscuidade. Por exemplo, o Center for Countering Digital Hate (CCDH) e a Anti-Defamation League (ADL) foram duas entidades supostamente independentes que mais acusaram as principais tecnológicas de não tomar medidas contra o “discurso de ódio e conteúdos antisemitas”, mas o “financiamento misterioso [do CCDH] nunca preocupou os executivos do Twitter nem os repórteres que transmitiram as suas exigências”, destaca Lowenthal.

    No final da divulgação destes documentos dos denominados Twitter Files, e perante a promiscuidade entre entidades supostamente independentes dinamizadas pela sociedade civil, entidades governamentais e imprensa, Andrew Lowenthal acaba a fazer um apelo. “Vamos colocar o ‘não-governamental’ novamente em ‘organização não-governamental’ e retirar o financiamento à indústria ‘anti-desinformação”.

    Leia aqui toda a cobertura dos “Twitter Files” feita pelo PÁGINA UM.

  • António Costa, o Bem-Amado

    António Costa, o Bem-Amado

    Esta semana assistimos a mais um “número” protagonizado pelo primeiro-ministro com a mãozinha das suas partenaires – leia-se, uma boa parte da imprensa dita de “referência”. Com o anúncio de um pacote de “medidas de apoio” aos jovens, António Costa afinal passou-nos, na verdade, mais um atestado de incompetência.

    Quis ele mostrar-nos, mais uma vez, que trata os portugueses como crianças; ele julga poder comprar-nos se nos passar umas guloseimas para a mão, na forma de subsídios e ajudinhas, para que permaneçamos pobres, mas um pouco menos, e assim nos lembremos que ele é o nosso bondoso “amigo”; e que nos lembremos do Partido Socialista na hora de irmos às urnas. Infelizmente, este modus operandi tem resultado muito bem: foi (também) assim que ele conseguiu – ou eles, se juntarmos o seu Partido Socialista – a maioria absoluta.

    Há quem gabe a arte, ou a “sorte”, de António Costa, como se o seu sucesso fosse atribuível a uma espécie de graça caída dos céus. Outros, dizem que é um político exímio e tacticista. De facto, há que reconhecer-lhe o mérito de conhecer bem a essência do povo português e de saber exactamente como o manobrar. Mas, note-se, as artimanhas do Partido Socialista não lograriam o mesmo efeito sem a preciosa ajuda (inadvertida ou não) da comunicação social mainstream. Os seus estratagemas, ainda que engenhosos, sairiam furados se não fosse a mediocridade de muita da nossa imprensa, que nos brinda com manchetes e notícias acríticas – umas atrás das outras.

    Feito o anúncio de António Costa na Academia Socialista – com toda a pompa e circunstância, como tem sido dito, para apresentar uma mão cheia de migalhas –, pouco se viu, na imprensa, contraponto jornalístico ou perguntas incómodas. Não se colocou o dedo na ferida, face à lástima em que o país se encontra – e cuja responsabilidade só pode ser assacada a quem nos governa há oito anos, independentemente das suas tentativas de ludibriar o povo com falinhas mansas.

    Mas a comunicação social não se limitou a não cumprir com o seu mais elementar dever, do qual, na verdade, já se demitiu há muito. Foi mais longe, e escrevinhou notícias tais como: “Prendas de Costa aos jovens” – note-se o tom paternalista concedido pelo Público: um governante que gere dinheiro dos nossos impostos, dá depois prendas aos jovens, mas esse dinheiro veio dos pais e demais familiares dos jovens… E isto já sem falar muito em títulos grandiloquentes sobre o nosso  “Costa, o ‘fazedor’ em Évora”, ainda por cima vítima das “mentiras” do Conselho do Estado.

    Por pouco, pensei, a coisa não descambava para títulos como “António Costa, o magnânimo”, “António Costa, o benfazejo”, “António Costa, o clemente”, ou ainda, sugere-me o director do PÁGINA UM (que é desse tempo), “António Costa, o Bem-Amado”.  Quem precisa de uma equipa de comunicação, quando se tem jornalistas encarteirados, e reconhecidos pela CPCJ, que escrevem notícias destas? Nem o veterano do marketing político, Luís Paixão Martins, consegue fazer o primeiro-ministro parecer tão bom – ou, se calhar, ali há dedo dele. Enfim, António Costa pode mesmo demitir o seu excelso técnico de comunicação; os seus serviços são dispensáveis.

    Vamos constatar o óbvio: António Costa não “dá” nada. António Costa, na verdade, tira-nos cada vez mais. António Costa desfere golpes na população através de pesados impostos, que são mal aplicados – veja-se o estado da Saúde e da Educação) –, e depois distribui pensinhos, enquanto alguns “jornalistas” fazem manchetes onde evidenciam a sua generosidade.

    Em paralelo, porque não há heróis sem obstáculos, a comunicação social insiste e persiste na cantiga da alegada “guerra” entre António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa. Mesmo a existir, uma contenda entre o primeiro-ministro e o Presidente da República, questiono-me se será matéria para tanta cobertura noticiosa e destaque de primeira página perante o estado da Nação. Não há outros temas no topo das prioridades?

    Cena de O Bem-Amado, famosa telenovela dos anos 70, sobre os projectos de Odorico Paraguassu na vila baiana de Sucupira.

    Mas a questão é que este suposto combate rasca Costa VS Marcelo, que nos impingem ad nauseam, parece não passar de mais uma história fabricada. Talvez para manter a aparência de uma democracia salutar, em que existe uma separação de poderes eficiente, em vez de uma mera partilha de poderes entre companheiros de longa data. De facto, tudo aponta para que os dois sejam “tu cá, tu lá”, e estejam (demasiado) à vontadinha, mas a nossa imprensa faz o obséquio de engendrar uma realidade alternativa para ir entretendo os portugueses.

    Enfim, o jornalismo mainstream deixou de ser o essencial watchdog do poder; neste momento é uma espécie de companheiro – na verdade, um fiel pet. E dos que vestem floridos laçarotes no pescoço, enquanto solta uns latidos de satisfação.

    Maria Afonso Peixoto é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Aeroportos nacionais com cinco meses de procura superior ao período pré-pandemia

    Aeroportos nacionais com cinco meses de procura superior ao período pré-pandemia

    Os dois primeiros meses deste ano confirmam uma tendência do crescimento da procura dos aeroportos portugueses acima dos níveis pré-pandemia. Segundo o Instituto Nacional de Estatística, que divulgou hoje dados referentes a Fevereiro deste ano, já se contam cinco meses (desde Outubro de 2022) com afluência de passageiros superior aos meses homólogos no período anterior à pandemia. Depois de uma valente queda provocada pelas restrições às viagens aéreas, que causou um descalabro sem precedentes na aviação comercial, o sector está agora com novas “asas”.


    Já não há “vestígios” da pandemia nos aeroportos portugueses, e isso vê-se pelos números de passageiros que passaram pelos aeroportos nacionais no último semestre. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), a afluência total ao longo de Fevereiro deste ano confirma mais uma vez, pelo sexto mês consecutivo, mais do que uma recuperação: um crescimento sustentado.

    Nos meses de Outubro, Novembro e Dezembro do ano passado, os números dos passageiros aerotransportados já tinham sido superiores aos dos meses homólogos de 2019. Agora, os dois primeiros meses de 2023 também apresentam valores acima de Janeiro e Fevereiro de 2020, antes do início das fortes restrições politicamente impostas às viagens aéreas por causa da pandemia.

    cars parked in a parking lot at night

    Nos dados divulgados hoje pelo INE ficou-se a saber que em Fevereiro passado passaram pelos aeroportos nacionais 4.042.000 de passageiros, representando um acréscimo de cerca de 8% face ao período homólogo de 2020. Em comparação com Fevereiro de 2022, quando ainda se aplicava a obrigatoriedade de certificado digital e/ ou de testes à covid-19, o crescimento é de 55,6%.

    Recorde-se que, em Fevereiro de 2022, o Governo decretou o fim da exigência de um teste negativo para a entrada em Portugal, mas ainda vigorava a obrigatoriedade de apresentação do certificado digital covid-19, ou seja, que atestasse a vacinação ou a recuperação (por um período de seis meses). Só em Julho de 2022 é que a Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC) anunciou o fim da imposição de teste ou certificado nas fronteiras portuguesas.

    O INE revelou ainda que em Fevereiro passado registou-se uma média diária de 73,6 mil viajantes a aterrar em Portugal – um aumento de 54,1% face ao mesmo mês de 2022, e de 13,1% em relação ao período homólogo de 2020. Nessa altura, os efeitos da pandemia, que não tinha sido ainda identificada em Portugal, não se faziam sentir no tráfego aéreo. No entanto, foi precisamente a partir de Fevereiro de 2020 que o movimento de passageiros caiu a pique e “tombou” entre Abril e Junho. Aumentou posteriormente, mas mantendo-se baixo durante os restantes meses do ano.

    Número de passageiros nos aeroportos portugueses entre Janeiro de 2019 e Fevereiro de 2023. Unidade: milhares. Fonte: INE.

    Saliente-se que já desde Abril de 2022 que se verificava uma recuperação significativa no sector da aviação comercial, com o número de voos a aproximar-se bastante do registado em 2019.

    Os dados do INE também revelam que no segundo mês deste ano foram mais os que entraram em solo nacional do que aqueles que o abandonaram. Porém, em ambos os casos, as deslocações tiveram lugar maioritariamente dentro da Europa, perfazendo estas cerca de 68% nos voos internacionais.

    A França foi, em simultâneo, o principal país de chegada e de partida dos voos. Entre os que embarcaram, para além da França, a maioria rumou ao Reino Unido, a Espanha, a Alemanha e a Itália. O ranking foi semelhante para os desembarcados, com apenas uma diferença assinalável: o Brasil foi o quinto país de onde chegaram mais passageiros, e não a Itália.

    A seguir à Europa, o continente americano foi a região mundial mais representada no tráfego internacional, tanto no destino como em origem.

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    O aeroporto de Lisboa manteve a sua primazia como origem e destino dos passageiros no sector da aviação comercial. Nos primeiros dois meses deste ano concentrou 56,3% do total a nível nacional, o que significou um aumento de 4,5% face ao período homólogo de 2020.

    No Porto, o aeroporto Francisco Sá Carneiro, também movimentou mais passageiros do que no primeiro ano da pandemia, com um incremento na ordem dos 3%, tendo ficado em segundo lugar no ranking, com 22,8% do total de passageiros transportados. Entretanto, o aeroporto da Madeira “destronou” do pódio o de Faro, registando a terceira maior afluência, com 636 mil passageiros.

    No transporte aéreo de mercadorias, porém, o cenário contrasta com o de passageiros. O movimento de carga e correio sofreu um decréscimo de 3,5% face a Fevereiro de 2020, e de 2,2% comparativamente com o mesmo mês do de 2022. Tendo registado uma quebra assinalável ao longo de 2020 e nos primeiros meses de 2021, na segunda metade daquele ano este tráfego já denotava um regresso à normalidade, e em 2022 ultrapassava até, em grande medida, os valores de 2019.

    airliner on runway

    No comunicado de divulgação destes dados, o INE destaca que o tráfego aéreo de passageiros é “tipicamente influenciado por flutuações sazonais e de ciclo semanal, e foi significativamente afectado pelo impacto da pandemia”.

    No entanto, os dados dos últimos cinco meses confirmam a tendência de retoma da normalidade com um apreciável crescimento, augurando assim uma época estival até acima da registada no Verão do ano passado, já próxima dos níveis anteriores à pandemia.

  • Rubiales: entre o feminismo e a hostilidade aos homens

    Rubiales: entre o feminismo e a hostilidade aos homens

    No auge do movimento MeToo, Marianne Williamson, uma escritora norte-americana e candidata presidencial pelo Partido Democrata nas últimas eleições, fez uma publicação na sua página de Facebook em que alertava para os excessos do clima persecutório instalado em relação aos homens, dizendo que, no que toca ao assédio, “existe uma diferença” entre um “criminoso” e um “idiota”.

    Choveram críticas por parte dos seus seguidores. Dias depois, Williamson revelou ter sido vítima de violação na sua juventude. Aqueles que se apressaram a julga-la só podem ter engolido em seco ao saber que a autora tinha sido vítima, não de um mero “idiota” que lança um piropo indesejado ou se atreve numa investida um pouco mais arrojada, mas, efectivamente, de um crime horrendo e cobarde.

    O beijo de Rubiales é uma situação que se encaixa na perfeição à advertência de Williamson. Não sei se Rubiales é um idiota – talvez! –, mas muito dificilmente se poderá, racional e honestamente, acusá-lo de ter cometido um crime.

     As feministas radicais, inebriadas como sempre pela sua misandria, sôfregas por qualquer pseudo-escândalo que sirva de oportunidade para gritar aos quatro ventos os chavões do “machismo tóxico” e “patriarcado opressor”, aproveitaram o caso Rubiales para se lançarem uma vez mais num apedrejamento público digno da Idade Média.

    Com o respaldo da comunicação social, que sem despudor se posiciona sempre no mesmo lado da barricada – o do feminismo bacoco hegemónico –, e das verdades absolutas, enquanto finge ser imparcial e democrática, o assassinato de carácter de Luis Rubiales, sem qualquer direito a defesa no “tribunal” da opinião pública, é já irreversível.

    Na CNN, há poucos dias, a directora da Visão, Mafalda Anjos, afirmava que são muitos e variados os exemplos de beijos e afectos públicos não consentidos, mas, para provar o seu argumento, precisou de ir buscar um caso ocorrido há 20 anos, entre Halle Berry e Adrien Brody numa cerimónia dos Óscares. De facto, nada mais demonstrativo de uma “pandemia” de assédio, do que ter de reportar-se a um episódio que se passou há duas décadas!

    Ainda assim, mais confrangedor do que ver feministas militantes e jornalistas de órgãos de comunicação social falidos nas suas habituais pregações, tem sido assistir à quantidade de homens que se perfilam para arrasar Rubiales numa mesquinha sinalização de virtude. Será este fenómeno inverso da mítica “solidariedade masculina” um espelho da progressiva queda de testosterona entre os homens, nas últimas décadas?

    É também de salientar a hipocrisia a que, de resto, este wokismo já nos tem habituado. Há menos de dois anos, a famosa cantora brasileira Anitta, afirmou que escolhera um bailarino apenas porque queria ter relações sexuais com ele, e não consta que tivesse havido na nossa praça qualquer manifestação de repúdio. Também aqui estava em causa uma relação de “subalternidade”. Imagine-se se Rubiales tivesse proferido semelhantes palavras – cairia o Carmo e a Trindade.

    Mostra-se, pois, evidente, que os casos “espontâneos” de demonstração de desejo pelos homens por parte de mulheres não merecem a mesma pronta condenação dos arautos da “igualdade”. Quando muito, são aplaudidos e vistos como um sinal de empoderamento.

    Devemos, por isso, perguntar-nos a que se deve esta duplicidade de critérios, quando o que se alega é defender a paridade de tratamento entre os sexos. Hoje, aliás, ao contrário do que o wokismo nos quer fazer crer, a masculinidade é vilipendiada, desdenhada, alvo de chacota, tanto em séries da Netflix, em livros, como na comunicação social e todos os espaços mainstream.

    Para deitar mais achas para a fogueira, a propósito do vídeo que tem circulado de Jenni Hermoso, no autocarro, a rir-se do beijo juntamente com as colegas, a comunicação social tem-nos também brindado com supostas “análises” psicológicas. Dizem os “especialistas”, ouvidos pela CNN, que a amena cavaqueira, em que Hermoso participou, se enquadra num “mecanismo de defesa”. Não sendo de descartar essa hipótese, é pertinente questionar por que motivo a imprensa se presta a estas “cambalhotas” argumentativas para determinar que Hermoso é uma vítima indefesa?

    Tendo em conta a “caça às bruxas” (ou aos homens), e os exageros que o movimento MeToo inaugurou, parece que, longe de uma preocupação genuína com as mulheres, esta gigantesca onda de indignação com o chocho de Rubiales brota, de facto, de uma hostilidade arreigada aos homens.

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    Mais: apelar à criminalização do beijo de Rubiales e Hermoso – o qual, aliás, inicialmente não suscitou qualquer queixa por parte da jogadora – é um desrespeito para com verdadeiras vítimas de abusos sexuais.

    Qualificar este incidente, que, no máximo, foi um disparate imponderado, como um crime sexual, seria apenas absurdo, se não fosse também perigoso, por arruinar, quiçá injustamente (quem não se lembra do caso Johnny Depp – Amber Heard?), a vida e a carreira de um homem, sem apelo nem agravo.

    Maria Afonso Peixoto é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • ‘Quem trabalha para caralho, como eu, quem faz negócios e ambiciona coisas, normalmente é de direita’

    ‘Quem trabalha para caralho, como eu, quem faz negócios e ambiciona coisas, normalmente é de direita’

    Aos 34 anos, Tiago Paiva já não é só um youtuber no nicho cada vez mais gigantesco das redes sociais. A partir do momento em que, em Maio passado, da tribuna do Parlamento, no decurso de uma visita informal a convite da Iniciativa Liberal, lançou um insulto ao primeiro-ministro António Costa, a sua fama engrandeceu-se. Embora conte com cerca de 176 mil subscritores no seu canal de Youtube e mais de 290 mil seguidores no Instagram, quer libertar-se de amarras e prepara o lançamento da sua própria rede social, a Hodl, como forma de “ripostar” contra a crescente censura. O PÁGINA UM quis conhecer melhor este portuense de gema nesta primeira entrevista aos Irreverentes da Nação. Preparem os cintos e não se escandalizem por não haver asteriscos: vai haver quem goste e vai haver quem deteste. Menos mau, conquanto todos possam opinar.


    És sobretudo conhecido como youtuber, mas começaste por apostar na música, e também trabalhaste como actor e argumentista. Afinal, qual era o teu sonho?

    Quando miúdo, o meu objectivo era ser actor e músico. A minha referência era o Jared Leto, porque é um actor incrível e é um músico incrível [vocalista e guitarrista dos 30 Seconds to Mars]. Entretanto, comecei-me a aperceber que, vivendo no Porto, não sabia como fazer para ser actor. Eu tinha tocado violino quando era pequenino, dos 7 aos 12 anos – a minha mãe era professora de música, e o meu avô era da orquestra sinfónica –, mas depois desisti. Tinha uma banda, mais ou menos 16 anos, só que os meus companheiros não tinham o ritmo… Quando entro em alguma coisa, é para ser a sério, não gosto de estar a fazer alguma coisa só por fazer. Tem de haver um objectivo, senão para mim não faz sentido. Não consigo estar num projecto só pelo prazer; para isso vou jogar golfe com os meus amigos. E mesmo para jogar golfe, se não tiver um objectivo, já não tem piada. Infelizmente, sou assim [risos]. Se calhar, gostava de ser um bocadinho diferente, às vezes.

    És ambicioso?

    Sim, mas não acho que seja só uma questão de ser ambicioso. Acho que tenho um bocadinho de overthinker, e se vou fazer alguma coisa, tem de haver um objectivo. Por exemplo, não consigo estar deitado na praia, quieto, só a apanhar sol, sem fazer nada.

    E qual o estilo dessa banda em que estiveste?

    Era de punk-rock americano. As referências eram Sum 41, Blink-182 e principalmente Yellowcard,. Foi por causa dessa banda que eu voltei a tocar, com o violino, e em punk-rock. A minha namorada da altura era a guitarrista. Eles mostraram-me uma música com violino, e então voltei a tocar. Só que depois percebi que se não ensaiássemos mais, não íamos conseguir levar aquilo adiante. Tentei puxar por eles, até perceber que era difícil, era cada um para seu lado. Então, decidi experimentar tocar violino em discotecas, achei que podia ser uma cena gira. A nível da música, foi assim que comecei.  A representação surgiu depois, quando já estava a ganhar um bom dinheiro. Nessa altura, ainda estava a estudar Arquitectura – a minha mãe queria que eu fosse arquitecto. Aquelas coisas…

    E tu não querias ser arquitecto…

    Opá, não. Estava a tirar o curso porque a minha mãe queria, e porque não havia nada que eu pudesse mostrar como alternativa. Então, foi com o violino que isso aconteceu, comecei a ganhar muito dinheiro, e disse-lhe que queria ir viver para Lisboa para estudar interpretação. Nessa altura, eu jogava golfe, era federado, e fazia os torneios todos. E o [actor] Lourenço Ortigão entrou nos Morangos com Açúcar; e eu conhecia-o porque jogava os torneios comigo. Eu liguei-lhe e perguntei-lhe como tinha conseguido, e ele disse: “olha, foi granda ‘pilada’, porque fui lá levar a minha namorada, eles viram-me e acharam que eu era parecido com o Zac Efron”. Sugeriu-me que experimentasse uns workshops de duas semanas para ver se gostava, e se gostasse podia fazer os de três meses. Fui para Lisboa fazer esses workshops, aproveitei e fiz mais um workshop de um ano de Produção e Música, mas na verdade pouco ia às aulas. Era muita iniciação, e eu já passava horas e horas a fio, até às 5 ou 6 da manhã, todos os dias, a produzir e a aprender por mim. Quando cheguei lá, aquilo que eles estavam a aprender, eu já sabia de cor.

    Foi então aí que decidiste criar a série 4Play?

    Eu comecei a perceber que não havia castings, fui ao dos Morangos [com Açúcar] porque era a única merda que havia na altura para fazeres. E a probabilidade de entrares era quase nula. Então, entendi que não dava. Depois vi um filme do Ben Affleck e do Matt Damon, O bom rebelde, e fui pesquisar, e vi que eles basicamente criaram a oportunidade deles. Ou seja, escreveram o guião, e até ganharam o Óscar de Melhor Argumento, e foram os dois as personagens principais. E eu pensei: olha, vou fazer a mesma merda, vou criar uma série. Naquela altura ninguém via séries, e eu, há 15 anos já “papava” tudo: Friends, Seinfeld, How I met your mother, tudo. Mas eram raras as pessoas que viam séries, eu tinha alguns amigos que viam, mas não é como agora, que é uma cena normal. Tanto assim que então as séries eram consideradas a “segunda liga”; havia o cinema e depois vinham as séries. Hoje, já estão no mesmo patamar: actores como Idris Elba e Matthew McConaughey fazem todos séries, mas antigamente isso não acontecia. Se fizessem, era porque não estavam bem. Mas eu adorava, e decidi criar eu a minha própria oportunidade, e fiz a 4Play.  

    Foi também aí que começaste no Youtube?

    Sim, eu comecei com o YouTube porque já tinha muitas ideias. Lembro-me de aos 16 anos, eu e o meu grupo de amigos termos como referência os Gato Fedorento [criados em 2003]. Eu já escrevia sketches e cenas assim engraçadas, e guardava na gaveta. Nunca tinha feito nada com isso, porque não era como hoje: os miúdos filmam tudo com o telefone, põem no Tiktok e já estão a bombar. Tenho a certeza que se houvesse Tiktok na altura teria sido desde cedo a bombar. Mas não havia, não havia câmaras nos telemóveis, e para teres uma câmara era preciso guita a sério. Acabei por deixar andar. Depois, fui fazendo uns vídeos de longe a longe, na inocência de achar que ficariam virais e que me catapultavam. Achava que se tivesse um vídeo viral no Youtube, se calhar conseguia arranjar mais trabalho como actor, que era o meu objectivo. Ao ser conhecido e ter visibilidade, se calhar ia conseguir arranjar certos trabalhos como actor…

    Então, o teu principal objectivo era mesmo ser actor…

    Sim, sempre foi, na verdade. Entretanto, já mudou o jogo, mas sim o objectivo era ser actor. Lancei meia dúzia de vídeos, e depois, ainda antes da pandemia, estava com a ideia de voltar a fazer YouTube, mas com mais consistência, e depois quando fui viver com o Ângelo Rodrigues… Nós tínhamos muitas conversas; filosóficas, de gajas, de tudo, e passávamos muito tempo juntos. Isto antes de ele ter aquele acidente. E uma cena que ele me ensinou, e bem, e que eu passo também para quem gosta, e para o meu público, é que temos de ter consistência se queremos fazer YouTube. Temos de lançar cenas todas as semanas, não é quando apetece. E eu já estava a preparar vídeos, tinha uma lista interminável de merdas no telefone.

    Quantos subscritores tinhas nessa altura, em 2019?

    Uns 30 e tal mil.  Porque fiz a 4play [em 2017], e teve sucesso. Não o sucesso que eu tenho agora, mas havia pessoas que me conheciam. Não era uma pessoa superconhecida; claro que quando andava na rua, havia pessoas a pedir fotos ou a pedir a segunda temporada. Porque antes de pedirem uma foto, a primeira coisa era perguntarem-me pela segunda temporada [risos]. Ainda hoje, passados quase sete anos… Enfim, eu já ia voltar para o YouTube, e com o Ângelo a bater na tecla da consistência; pronto, pensei, então vamos lá fazer aqui uma cena com consistência. Comecei a preparar vídeos para filmar, até que tinha filmado já um, e foi quando entrou a covid. Por isso, os meus vídeos do início, quando comecei a fazer isto a sério, são praticamente todos de máscara; as pranks que eu fazia na rua. Agora é impossível porque as pessoas conhecem-me, já não dá. Tenho pena, na verdade, porque era um conteúdo muito giro.

    Falemos do teu vídeo na Assembleia da República. O teu alcance junto do público cresceu muito?

    Cresceu mais o Instagram do que propriamente o YouTube, que já estava a crescer, e cresce todos os dias. Agora, é claro que o Instagram cresceu quase em 100 mil seguidores, foi imenso [risos]. Foi bom.

    E como foram as reacções ao vídeo? Mais positivas ou negativas?

    Foram completamente positivas; a única cena foi que eu já estava assim meio: “epá, já chega”. Durante um mês não conseguia andar na rua sem ouvir: “Costa vai para o caralho”. Literalmente, se eu estivesse a conduzir ou a pé, onde quer que estivesse, era a primeira coisa que me diziam, dos 12 aos 60 anos. E eu já estava: “pronto, está bem, já chega” [risos].

    Antes disso, já falavas sobre política?

    Já tinha falado de política no meu podcast Devaneios e noutras situações, já tinha mandado umas “berlaitadas”. Gosto de as mandar, e cada vez tenho de mandar mais, porque nós estamos numa situação que tem de mudar urgentemente.

    Mas sempre tiveste posições vincadas politicamente?

    Sim, já tinha, sempre fui um bocadinho mais à direita, porque a esquerda não funciona. O centro, como nós vemos, também não, e eu pelo menos sou um bocadinho mais à direita. Não sou extrema-direita, mas sou mais à direita.

    Dirias que os artistas tendem a identificar-se mais com a direita?

    Não!, pelo contrário. No mundo artístico tens muitos fascistas [risos]. Não, no meio artístico é tudo Bloco de Esquerda ou à esquerda; a maior parte é de esquerda. Mas eu digo-te porquê: são todos falidos, e, em geral, as pessoas falidas e artistas são à esquerda; é sempre assim. Quem trabalha para caralho, como eu, quem faz negócios e ambiciona coisas, normalmente é de direita. Porquê? Porque é quem cria empregos que põe um país a andar. Não é, como nós agora, a tentarmos ser todos iguais, que nunca vamos ser. As políticas deles [de esquerda] são boas no papel, porque na realidade nunca iriam funcionar. Portanto, a maioria dos artistas, principalmente de teatro e essas merdas, é tudo de esquerda. Vivem daquele dinheiro, e não entendem que uma pessoa como eu, ou como outras que trabalham 16 horas por dia, se for preciso, para que as coisas aconteçam, têm “direitos” diferentes. Quer dizer, os direitos são os mesmos, mas a questão é que, se eu trabalho mais, tenho de ganhar mais. Ninguém me obriga a trabalhar mais, mas eu trabalho porque quero. Portanto, se tu queres trabalhar pouco, tudo bem, mas vais ganhar pouco. Eu não tenho de ganhar o mesmo que tu se eu trabalho o dobro, ou se a minha área dá mais dinheiro. Isto é como aquela história do futebol feminino, de quererem ganhar o mesmo que no futebol masculino; e é estúpido. Minha querida!, o futebol feminino não tem a mesma audiência e a mesma revenue que o futebol masculino; logo, não podes ser paga da mesma forma. É tão simples quanto isso. Da mesma forma, uma modelo feminina ganha muito mais do que os modelos masculinos, é o que é. É o negócio. E vemos algum homem a dizer que quer ganhar como elas? Ou na pornografia, por exemplo, as mulheres ganham muito mais do que os homens. Elas é que são as estrelas, não são eles. Faz parte, é o que é.

    Esse facto de os artistas serem mais de esquerda é uma das causas para não serem tão contestatários e críticos do actual Governo? Não vemos muitos artistas a criticar os governantes, certamente não tanto como tu… Gostavas que os teus colegas falassem mais contra a situação do país?

    É lógico, não é? O Partido Socialista (PS) está no poder há anos. Agora, têm maioria absoluta. Ou seja, eles decidem tudo, não há como não decidirem. E acho que não podemos ter um partido com maioria absoluta, é mau para o país. A verdade é que o PS não defende o país, eles defendem-se a eles próprios. Defendem os tachos que arranjam aos familiares, e por aí fora, e continuamos nisto. Querem que o povo seja burro, e que seja pobre para que dependa deles. Eu fiz um vídeo com a avó da minha namorada, e ela estava contente com os 125 euros que o Governo deu, mas o que ela não vê é que dão 125 e tiram do outro bolso. Ou seja, eles mentem ao povo, mandam areia para os olhos dos velhinhos, e a nossa população é muito envelhecida…  E mete-me realmente nojo saber que o partido que manda no país é um partido que engana as pessoas, e engana velhinhos, para se manter no poder. Eles querem que sejamos pobres, na verdade, não querem que haja pessoas ricas. Assim dependemos deles, e depois quando nos dão alguma coisa, pensamos: “ah, eles são tão bons”… E isto tem de acabar.

    E no teu círculo vês outras pessoas com a mesma opinião, mas que não falam, não são tão vocais, por receio?

    Sim, claro. As pessoas têm receio, ou de serem canceladas, ou das marcas… Eu tenho amigos youtubers, dos “grandes”, que não vão dar opiniões políticas, ou actores que não dão opiniões políticas, porque os pode prejudicar no trabalho. É isso que eu gosto também no meu trabalho: eu estou-me a cagar, vou dizer o que me apetecer. Se os meus patrocinadores não gostarem, que vão à vida deles.

    Não te vais condicionar pelo dinheiro?

    Claro que não. Aliás, pelo contrário. Houve a situação toda do Costa, e em relação à pergunta que fizeste sobre as reacções, foi tudo positivo, e os únicos comentários que tive negativos foi no Twitter [actual X], que é a plataforma mais nojenta que existe. É tóxica, só estão lá pessoas tóxicas. Claro, vais ter comentários negativos no Instagram, e etc., mas na rua nunca ninguém me disse nada a não ser coisas boas. Disseram-me: “estamos contigo, estamos na luta, estes gajos têm de sair dali”. Portanto, foi este o resumo. Mas quando és figura pública, tens sempre comentários negativos e positivos. Até podias estar a acabar com a fome. Se eu agora tivesse 10 milhões na conta, e desse a um país qualquer em África, ia haver sempre alguém a dizer algo de negativo, mesmo com uma coisa tão positiva como essa. Portanto, não há como… Já estamos habituados a isso, mas no cômputo geral foi óptimo. Vendi muitas camisolas…

    Portanto, foi bom para o negócio? [risos]

    Foi bom para o negócio [risos]. Já não me posso queixar.

    Falaste no Twitter. Estiveste uns meses sem lá ir, e regressaste depois deste vídeo do Costa? Foi por causa dessa “toxicidade”?

    Eu nunca vou ao Twitter, na verdade. Não me interessa. Eu faço stories todos os dias; por acaso agora tenho feito menos, porque estou aqui para recomeçar a temporada do YouTube, negócios a acontecer novos, e estou um pouco cansado [risos].

    Portanto, podemos esperar que continues a criticar o Governo…

    Sim, claro que sim. Nós temos de falar contra o sistema, senão isto não muda. Não dedico o meu canal do YouTube a isso, logicamente, não gosto de meter as coisas de calçadeira… Mas quando há uma oportunidade de falar sobre as coisas, falo. Não vou fazer um vídeo só para falar nisso, isso deixo para os “Gonçalos” [referência ao youtuber Gonçalo Sousa] e todas as outras pessoas que falam sobre política, e eles que façam isso, que é o conteúdo deles. O meu é outro, mas quando tiver de mandar as minhas gaitadas, mando.

    Um dos teus projectos mais recentes é uma nova rede social, a Hodl. Será lançada em breve?

    Em breve, salvo seja. A única informação que posso dar, porque não posso mesmo falar, é que ainda vai demorar uns sete meses para sair a primeira fase. Vamos dividir isto em quatro blocos, e vamos começar só com um chat. É a única coisa que eu posso dizer. Tem algumas coisas diferentes dos Whatsapps e assim, umas ligeiras modificações, e tem uma cena que eu acho muito fixe mesmo. Depois vamos à primeira ronda de investimento, para depois avançarmos para as próximas fases, que já requerem muito mais investimento e dinheiro para manutenção em servidores.

    E um dos motivos que te levou a querer criar esta rede foi a falta de liberdade de expressão que sentias nas redes convencionais?

    Sim, e o facto de ser banido do Tiktok, de eliminarem histórias a toda a hora de cenas que não têm nada de mal, simplesmente porque fazem denúncias. Pessoas que não têm nada para fazer, e fazem as denúncias. O Tiktok é uma plataforma – e podes mesmo escrever – muito coninhas. Tu não podes fazer absolutamente nada. Eu já fui banido no Tiktok porque fiz um vídeo com a sunga do Borat. Tive de criar outra vez uma conta, já vou na terceira. Já nem tenho paciência, e já nem posto nada, não vale a pena. E depois no Instagram, houve stories e posts a serem removidos, que já eram de 2020 e 2019. Alguns actuais. E uma pessoa pensa: há aqui alguma coisa muito errada mesmo, porque já não se pode dizer nada.

    Que tipo de conteúdos eram?

    Já não me recordo, sei que era humor negro ou cenas assim do género. Enfim, se tiras a alguém a liberdade de fazer humor negro, ou qualquer humor que seja, estás a matar a liberdade de expressão. E não é só a mim, é a muita gente. Eu estava a criar uma espécie de rede social para Web3, ou seja, para a parte das NFTs [nonfungible tokens] e cripto. E depois pensei que tinha de ser algo tipo Web 2.5 ou Web 2, mas com algumas características de Web3.  E foi aí que cometi a “loucura” de pensar: ok, então vou fazer uma rede social melhor do que as outras, com mais liberdade de expressão e com características novas.  

    Sabe-se que tens falado sobre a covid-19 e as vacinas… Sentes que te tornaste mais crítico do estado das coisas após a pandemia?

    Eu acho que quem se preocupa, acabou por ficar mais crítico. Durante a pandemia fomos uns ratinhos, andámos de um lado para o outro a fazer o que eles mandavam. E depois percebemos que aquilo foi uma palhaçada autêntica. Não há outra palavra: foi uma palhaçada. Eu comecei a fazer YouTube quando começou a covid, e na altura tinha uma série de apartamentos meus, tinha feito um investimento num apartamento que ia remodelar e vender ou fazer alojamento local. De repente, tinha a minha liquidez toda nos meus apartamentos, e zero dinheiro. Na altura perfeita, que começa em Março, a época alta, e eu a esfregar as mãos, depois de todo o trabalho que tive, depois de suor, trabalho, dinheiro… Quando finalmente estou para recuperar aquilo que investi, vem a covid, e fechou tudo. Fiquei mesmo nas lonas. Tive de me reinventar e pensar: o que vou fazer agora? Como já ia fazer Youtube, apostei naquilo ainda mais. Por esse lado, até foi bom, se calhar se não tivesse sido a covid, não me tinha dedicado ao Youtube. Como não se podia fazer nada, dediquei-me àquilo. Mas sim, sinto que qualquer pessoa que se importe, acabou por ter um bocadinho mais voz e mais “vontade”, ao perceber que aquilo que eles fizeram foi estúpido… Resumidamente: uma coisa é os velhinhos tomarem a vacina, porque são mais debilitados, claro. Não digo que não. Mas pessoas jovens a tomarem uma vacina para uma doença que não [lhes] fazia absolutamente nada? Pá, não. E depois há os efeitos adversos, que é só ver as estatísticas, nem vale a pena estar a falar sobre isso… A Ciência não mente. Ainda ontem me apareceu um reel de um médico de 70 e tal anos a falar desta situação, e da gripe, que mata pelo menos umas três mil pessoas por ano. E a covid teve números muito parecidos, mas de repente já não havia gripe. Era só covid… Mas, enfim, tenho a certeza que tudo isto não cheira nada bem, digamos assim.  

    E sentiste que as críticas que fizeste nos últimos meses te prejudicaram financeiramente ou em termos de eventuais parcerias e trabalhos?

    Não. Já me aconteceu, por exemplo, uma marca que queria fazer uma publicidade, e depois não avançou, e provavelmente foi por causa da situação do Costa. Mas eu tenho os meus patrocinadores principais, como a Solverde, há dois anos, e muito provavelmente vamos renovar contrato. E são esses que me interessam, são esses que acreditam em mim há imenso tempo, e tenho um bom contrato com eles que dá para pagar a minha estrutura, que é grande. Já tenho uma estrutura grande e consigo mantê-la. Claro que em Portugal é sempre difícil, porque por muito bem que eu ganhe, 50% é para o Estado… Por isso é que muito provavelmente vai deixar de ser para o Estado português e vai para outro [risos]… É o que é. Se baixassem os impostos, as pessoas ficavam aqui. Não cabe na cabeça de ninguém que metade do que uma pessoa ganha vá para o Estado. Repara, vamos supor: se uma pessoa ganha mil euros, paga 25%, ou seja, 250 euros ao Estado. Portanto, se eu ganhar 10 mil euros, fazia sentido que eu pagasse 2.500 ao Estado, era o que fazia sentido. Ganho mais, mas é a mesma percentagem, por isso estou a pagar mais dinheiro na mesma. Então, por que razão há escalões se eu que ganho mais tenho de pagar metade e não os 25%? É porque o gajo que ganha os 10, os 20, os 40 ou os 100 mil, com mais dinheiro, vai ter mais estrutura, e assim vai contratar mais pessoas… Isto não faz sentido nenhum. E depois, o que é que acontece? Pessoas empreendedoras saem do país. E, enquanto continuarem com isto, é o que vai acontecer… Tens países inteligentes, que têm IVA a 4,5% e benefícios fiscais para empresas, etc. E os nossos benefícios fiscais são só para quem vem de fora… Um chinês que venha para cá não paga durante dois anos para ter um negócio dele. Não sei se ainda está assim, mas há uns anos, era assim. Passados dois anos, põe a empresa em nome do filho e continua 20 anos sem pagar nada. Pronto. Pagamos nós, não é?

  • Boletim P1 da contratação pública e ajustes directos: 11 Setembro de 2023

    Boletim P1 da contratação pública e ajustes directos: 11 Setembro de 2023


    Ontem, dia 11 de Setembro, no Portal Base foram divulgados 680 contratos públicos, com preços entre os 1,50 euros – para aquisição de medicamentos, pelo Hospital Dr. Francisco Zagalo (Ovar), por consulta prévia – e os 2.181.486,57 euros – para a aquisição de licenciamento de software Microsoft, pelo CEGER – Centro de Gestão da Rede Informática do Governo, também através de concurso público.

    Com preço contratual acima de 500.000 euros, foram publicados 22 contratos, dos quais 18 por concurso público, três por ajuste directo e um ao abrigo de acordo-quadro.

    Por ajuste directo, com preço contratual superior a 100.000 euros, foram publicados 12 contratos, pelas seguintes entidades adjudicantes: cinco do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia (um com a Medtronic Portugal, no valor de 748.120,00 euros, outro com a Medicinália Cormédica, no valor de 697.712,50 euros, outro com a Abbott Medical Portugal, no valor de 345.000,00 euros, outro com a Johnson & Johnson , no valor de 301.370,00 euros, e outro com a Eurofacilities – Serviços Integrados, no valor de 123.233,98 euros); Infraestruturas de Portugal (com a GTSPT – Ground Transportation Systems Portugal, no valor de 559.721,73 euros); Instituto Português de Oncologia de Lisboa Francisco Gentil, (com a Soquimica, no valor de 416.201,40 euros); Lisboa Ocidental, SRU – Sociedade de Reabilitação Urbana (com a Miguel Abecasis Arquitectos, no valor de 294.000,00 euros); Município de Oeiras (com a Mind – Software Multimedia e Industrial, no valor de 252.000,00 euros); Unidade Local de Saúde do Norte Alentejano (com a Locarent, no valor de 177.918,24 euros); e dois do Hospital de Loures (um com a Abbvie, no valor de 153.840,00 euros, e outro com a Sanofi, no valor de 123.140,60 euros).


    TOP 5 dos contratos públicos divulgados no dia 11 de Setembro

    (todos os procedimentos)

    1 Aquisição de licenciamento de software Microsoft para o triénio de 2023-2026         

    Adjudicante: CEGER – Centro de Gestão da Rede Informática do Governo

    Adjudicatário: Vodafone Portugal

    Preço contratual: 2.181.486,57 euros

    Tipo de procedimento: Concurso público


    2Fornecimento de gás natural em regime de mercado livre

    Adjudicante: Administração Regional de Saúde do Norte

    Adjudicatário: Petrogal

    Preço contratual: 2.089.664,06 euros

    Tipo de procedimento: Ao abrigo de acordo-quadro (artº 259º)


    3Contrato de empreitada de “Reabilitação de 9 Casas Unifamiliares da Colónia Operária Viterbo de Campos”

    Adjudicante: Domus Social – Empresa de Habitação e Manutenção do Município do Porto     

    Adjudicatário: Edizur – Engenharias 

    Preço contratual: 1.595.691,09 euros

    Tipo de procedimento: Concurso público


    4Contrato de prestação de serviços de seguros

    Adjudicante: Autoridade Nacional de Comunicações         

    Adjudicatário: Lusitania – Companhia de Seguros  

    Preço contratual: 1.337.789,44 euros

    Tipo de procedimento: Concurso público


    5Sinalização de segurança rodoviária da rede viária

    Adjudicante: Câmara Municipal de Almada 

    Adjudicatário: Trafiurbe – Sinalização, Construção e Engenharia

    Preço contratual: 1.250.944,00 euros

    Tipo de procedimento: Concurso público


    TOP 5 dos contratos públicos por ajuste directo divulgados no dia 11 de Setembro

    1 Aquisição de material para neurorradiologia     

    Adjudicante: Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia 

    Adjudicatário: Medtronic Portugal    

    Preço contratual: 748.120,00 euros


    2 Aquisição de material para neurorradiologia

    Adjudicante: Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia

    Adjudicatário:  Medicinália Cormédica

    Preço contratual: 697.712,50 euros


    3 Aquisição de equipamentos para adaptação da sinalização de Coimbra B e Alfarelos

    Adjudicante: Infraestruturas de Portugal

    Adjudicatário: GTSPT – Ground Transportation Systems Portugal

    Preço contratual: 559.721,73 euros


    4 Aquisição de reagentes

    Adjudicante: Instituto Português de Oncologia de Lisboa Francisco Gentil          

    Adjudicatário: Soquímica

    Preço contratual: 416.201,40 euros


    5Aquisição de material de cardiologia

    Adjudicante: Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia – Espinho

    Adjudicatário: Abbott Medical Portugal

    Preço contratual: 345.000,00 euros

  • A mística e a mágica das labaredas

    A mística e a mágica das labaredas

    Título

    Salvar o fogo

    Autor

    ITAMAR VIEIRA JUNIOR

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Abril de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Depois do seu romance de estreia, Torto arado, ter ganhado o Prémio LeYa em 2018, o baiano Itamar Vieira Junior estabeleceu-se como um dos escritores brasileiros mais reconhecidos da actualidade, e das últimas décadas. 

    Alcançando um sucesso estrondoso, Torto arado valeu também ao autor, em 2020, o prémio literário mais importante do Brasil, o Jabuti de Literatura, e o prémio Oceanos. Em 2022, Vieira Junior lançou ainda o livro de contos Doramar ou a Odisseia, também editado pela Dom Quixote.

    Com Torto arado, o autor cravou indelevelmente o seu nome no mundo literário transportando o leitor para a realidade de um Brasil rural, assolado pela pobreza e vítima de relações de poder e velhas estruturas opressoras que se perpetuaram no tempo. Em Salvar o fogo, replicou a receita (recuperando até uma personagem) –, e saiu-se bem. Não tendo conseguido exceder a “obra-prima” anterior, o que nunca seria tarefa fácil, solidificou o estilo com que se apresentou ao público.

    A história deste seu segundo romance passa-se nos anos 1960 e tem como protagonistas Moisés e Luzia, dois irmãos que vivem numa comunidade rural na Tapera do Paraguaçu, como inquilinos de terras detidas pela Igreja, e obrigados a pagar, todos os meses, impostos à instituição – uma injustiça aos olhos de Mundinho, o pai, que se recusa sempre a cumprir com os pagamentos. 

    Mundinho trabalha na terra, de sol a sol, e é dependente do álcool, ficado o peso da educação de Moisés, o “caçula”, para Luzia, cuja idade dista uma grande distância do seu irmão mais novo. Vivem apenas os três juntos, já que todos os outros irmãos abandonaram a aldeia assim que tiveram oportunidade; e a matriarca da família, Alzira, faleceu antes de Moisés poder sequer recordar o seu rosto.

    Luzia, por isso, assume o fardo de cuidar do “Menino”, como lhe chama, para além de trabalhar todos os dias como lavadeira da igreja do Paraguaçu, de forma abnegada e devota. Entre os dois, há um amor maternal profundo, mas raras vezes exteriorizado: Moisés anseia por afecto, mas a irmã educa-o de rígida e friamente, nunca se permitindo expressar actos de carinho. 

    Os dois primeiros capítulos são narrados na primeira pessoa, sendo o primeiro contado pelos olhos de Moisés, e o segundo por Luzia. É neste último que se revela ao leitor um dos grandes segredos do romance, e que se compreende, finalmente, a atitude sempre ríspida e amarga de Luzia. 

    A Igreja surge, ao longo do romance, como um símbolo da opressão – sobre ela e através dela, contam-se muitas histórias. Essencialmente, é retratada como uma fonte do “Mal”, do que é profano e perverso, de agressão e subversão. As dores e os traumas que o mosteiro da aldeia provocou a Moisés – o único da família que frequentou a escola –, levaram-no a abandonar a sua casa, a irmã e o pai, e a rumar à cidade, com apenas 15 anos.

    Depois de um incêndio reduzir o mosteiro a ruínas, e o estado de saúde de Mundinho se deteriorar, os irmãos que há muito tinham virado costas às margens do rio do Paraguaçu, regressam para um reencontro familiar. O reencontro, já 15 anos após a partida de Moisés, reacende os fantasmas de um passado que, longe de enterrado, continua vivo e “efervescente”.

    Ao longo da história, há uma aura de mistério que envolve as personagens principais e que se vai adensando, enquanto vão, também, sendo desvendados alguns dos seus segredos.

    Luzia é tida por toda a comunidade como uma “bruxa” e acusada de práticas de feitiçaria, sendo por isso ostracizada, vilipendiada e alvo de chacota. A corcunda que, estranhamente, desenvolveu ainda em adolescente só cimentou, entre a população supersticiosa, o mito de eventuais poderes sobrenaturais. 

    Moisés, por sua vez, nascido nas águas do rio em noite de Lua Cheia, cresce e vive com muitas dúvidas em torno das verdadeiras causas do desaparecimento precoce da sua mãe e das circunstâncias em torno do seu nascimento.

    Salvar o fogo é sobre desigualdades e abusos de poder de instituições seculares perpetrados sob um manto de boas intenções, mas, mais do que isso, é sobre a complexidade dos laços familiares e os dramas subjacentes, a força do feminino e da Natureza – e, claro, do fogo, literal e metafórico, que tanto consome e destrói como aquece e eleva.

    Sobretudo, é um romance que nos abre as portas a uma dimensão mística e mágica da vida, contrastando-a com a singeleza de vidas aparentemente “comuns” e simples, iguais a tantas outras que vieram antes. 

    A escrita é melodiosa e envolvente, embora fazendo-se por vezes uso de expressões que soam um pouco a clichés, já muito “repisados”. 

  • ‘Para as aves, as alterações climáticas são um problema, mas não o único, e nem sempre o mais importante’

    ‘Para as aves, as alterações climáticas são um problema, mas não o único, e nem sempre o mais importante’

    Observar seres alados, alguns pequenos, assustadiços e irrequietos, que fogem à menor aproximação humana, talvez não pareça uma ideia aliciante para a maioria das pessoas, mas o ornitólogo Gonçalo Elias garante que há cada vez mais adeptos. E gente que quer saber mais. Por isso, em co-autoria com o fotógrafo José Frade, lançou o livro Como observar e fotografar aves – Guia de iniciação, onde explica, passo a passo, como qualquer um pode “viciar-se”, primeiro à volta do quarteirão, ou até mesmo sem sequer sair de casa. Licenciado em Engenharia Electrotécnica e de Computadores, é hoje, aos 55 anos, um dos mais conhecedores especialistas em aves. E numa entrevista ao PÁGINA UM demonstra saber tanto que, na verdade, merecia talvez voar com(o) elas.


    Para si, que estuda aves há três décadas, que particularidade vê que as torna, para si, ainda fascinantes?

    Aquilo que nas aves mais fascinou as pessoas foi a sua capacidade de voar. Quase nenhum outro vertebrado consegue; os morcegos conseguem, mas são um pequeno grupo dos mamíferos. A esmagadora maioria dos outros vertebrados não consegue voar, mas com as aves é o contrário, quase todas as espécies conseguem. Isso fascinou muito as pessoas, e eu acho que até as inspirou no desejo de voar, que se concretizou através da construção dos aparelhos. E desde a Antiguidade que já se estudavam as aves e as diferentes espécies; e se percebeu que cada espécie tem as suas preferências, os seus hábitos, as suas características, a sua forma de comunicar. Por exemplo, Aristóteles é sobretudo conhecido por ser filósofo, mas também era um naturalista, muito interessado, e escreveu algumas obras, nomeadamente A história animal, que desenvolvia muito o conhecimento, já nessa altura, sobre as aves.

    Depois, com o avançar dos tempos e da Ciência, foram conhecidos mais aspectos muito peculiares, como as migrações. Ao contrário do que acontece, por exemplo, com muitos mamíferos e répteis, as aves não hibernam. Em vez disso, fazem migrações, ou seja, movimentos periódicos de umas regiões para outras, de modo a conseguirem passar as várias épocas do ano nas melhores condições de sobrevivência. Nem todas as aves migram, algumas conseguem sobreviver o ano inteiro na mesma região; mas uma grande parte das espécies efectua migrações precisamente para tirar partido das melhores condições nas várias regiões, em função do ciclo das estações.

    A observação das aves é ou não uma actividade dispendiosa?

    Não tem de ser dispendiosa. Claro, há pessoas que investem muito, e vão dar a volta ao Mundo para ver aves. Obviamente, quando chegamos a esse nível, já terá outros custos. Mas para qualquer pessoa começar, na verdade, não precisa de gastar dinheiro quase nenhum.  O essencial para começar é um instrumento de observação; normalmente um binóculo. Há quem use a máquina fotográfica para fazer registos fotográficos, o que também é muito útil. Hoje, há máquinas compactas já com algum alcance que nem são demasiado caras.

    Os smartphones não serão suficientes?

    Acho que não, porque as aves são muito pequenas; esse é o principal problema a nível da observação. E, sendo aves selvagens, não se deixam aproximar, daí precisarmos de auxiliares de observação, sejam binóculos ou máquina fotográfica.  Embora as câmaras já tenham evoluído bastante, o problema dos smartphones é fazerem sobretudo zooms digitais, e não zooms ópticos.  E, portanto, quando estamos a falar de ampliações muito grandes, isso acaba por ter consequências ao nível da qualidade da imagem. Para objectos ou, neste caso, animais, que estejam muito distantes, já não se consegue ver bem o detalhe. O smartphone serve para fazer uma foto de registo, mas não é o instrumento de observação nem de fotografia ideal. O ideal é ter um binóculo para conseguir observar os detalhes, porque como eu disse, as aves selvagens não se deixam aproximar nem apanhar. Mas há binóculos por 100 ou 150 euros, não é necessariamente um equipamento muito caro. Há para vários preços, mas por 150 euros já se consegue um binóculo. A máquina fotográfica é opcional.

    Então, basta um binóculo e uma máquina fotográfica para se começar?

    É também necessário, ou conveniente, ter um guia de identificação, um livro que nos ajude a identificar as várias espécies. O principal desafio, quando estamos a observar aves, é identificá-las correctamente. Em Portugal, temos cerca de 300 espécies regulares, ou seja, aquelas que aparecem todos os anos, e o principal desafio para quem se lança nesta actividade é aprender a distinguir umas das outras. Porque se não soubermos distingui-las, são apenas aves, não é? Mas quem se envolve nesta actividade, rapidamente aprende que as espécies são diferentes e que há características para identificar. E há aqui um outro aspecto que também estimula muito as pessoas: há aves mais comuns e aves mais raras. E normalmente aquelas que são mais raras são percepcionadas como tendo mais valor, como em qualquer tipo de coleccionismo. Por exemplo, há selos muito comuns, que valem muito pouco no mercado de usados, e depois há selos que são raros, e por isso mais cobiçados e mais procurados. Da mesma forma, com as aves, alguns bichos são mais difíceis de encontrar, e há um desejo de quem vai vendo as diferentes espécies de conseguir ver também as mais raras.

    No Como observar e fotografar aves – Guia de iniciação refere que podemos começar por ver aves ao pé de casa, e até mesmo dentro de casa…

    Sim. No livro, eu e o José Frade explicamos exactamente que qualquer pessoa, onde quer que more, pode ver aves. Obviamente, há sítios melhores que outros, porque depende da vegetação, da densidade de construção…  Já morei em sítios com características muito diferentes, incluindo em zonas densamente urbanizadas, e em qualquer sítio é possível encontrar aves selvagens. E não estou a falar só de pombos, porque os pombos nem sequer são realmente selvagens. Mesmo numa cidade, é possível encontrar zonas com água, com jardins, com terrenos baldios, e estruturas que servem de abrigo às aves. Só para dar um exemplo, na cidade de Lisboa já foram registadas mais de 200 espécies de aves selvagens. Isto inclui a zona ribeirinha do rio Tejo, e vários parques e jardins, mas a diversidade que podemos encontrar, até numa zona urbana, que é onde a maioria das pessoas mora, é absolutamente notável. Para observarmos ao pé de casa, podemos começar por ir dar uma volta a pé ao quarteirão. Eu também comecei assim. E isso não nos obriga sequer a ter custos de deslocação. Por isso, é uma actividade que pode ser praticada a custo reduzido.

    No livro, refere que uma das vantagens desta actividade é o maior contacto com a Natureza. A observação de aves leva a uma maior consciência ambiental e da importância da preservação da Natureza?

    Não gosto muito de generalizar, porque há diferentes tipos de atitudes e comportamentos. Penso que para entendermos o que é que leva as pessoas a ver aves, é importante clarificar que há diferentes motivações. Nem todas as pessoas vão ver aves pelos mesmos motivos. Grosso modo, podemos agrupá-las em cinco categorias diferentes. É uma classificação minha, não vi em lado nenhum, mas é a minha forma de ver isto. No primeiro grupo, temos aqueles que exploram mais a vertente científica, e cujo objectivo é escrever artigos científicos, seja em contexto académico ou outro. No segundo grupo, temos as pessoas que se dedicam a observar aves para a realização, por exemplo, de estudos de impacte ambiental. Até por normas da União Europeia, quando se constrói uma grande infraestrutura – como uma barragem, uma autoestrada, um parque solar, um aeroporto, ou um parque eólico –, é necessário fazer estudos de impacte e isso obriga a fazer determinados programas de monitorização; e, portanto, há pessoas, já com alguma experiência, que são recrutadas e vão para o terreno fazer estudos continuados para registar o que é que ali aparece. Depois há um terceiro grupo, as pessoas que se dedicam à Conservação. Muitas vezes estão ligadas a organizações não-governamentais, de Ambiente, e não só, e que vão observar as aves com o objectivo de recolher informações para tentar depois fazer a gestão do habitat e tomar as melhores decisões que favoreçam a conservação das espécies, nomeadamente as espécies que estão ameaçadas. Também há departamentos estatais que tratam dessa vertente, nomeadamente o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas. No quarto grupo há uma vertente mais comercial ou turística, onde se incluem pessoas que se dedicam a observar aves para vender esse serviço, ou seja, para mostrar a outras, que normalmente vêm de fora… Isto existe um pouco por todo Mundo; quando vamos a outro país ver aves, muitas vezes a técnica para conseguir encontrar as espécies que lá ocorrem é contratar um guia local. E, finalmente, há um quinto grupo, que são as pessoas que se dedicam a observar aves por lazer, ou seja, pelo simples prazer de desfrutar da observação. Este é o grupo que profissionalmente não tem a ver com a observação de aves, mas é cada vez mais numeroso, com milhões de pessoas por todo o Mundo. E essas pessoas vão recolhendo observações também e partilhando em base dados.

    São, de facto, grupos com motivações bastante diversas…

    Precisamente. Daquilo que eu vejo nas pessoas que se dedicam à observação por lazer, há um pouco de tudo. Há aquelas pessoas que têm a preocupação de não perturbar as aves e que, portanto, procuram seguir determinadas práticas e códigos de conduta que ditam que o bem-estar das aves está em primeiro lugar. Mas, infelizmente, como em qualquer outra actividade, também há casos de pessoas que não respeitam determinados limites, e que se for preciso entram em propriedades privadas e perturbam as aves para obter uma boa fotografia. São práticas que não são aconselhadas. Enfim, uns por não terem consciência, outros por falta de cautelas, nem todos respeitam estes limites. É importante passar a mensagem de que as aves são selvagens, estão no seu espaço e também precisamos de lhes dar alguma distância para conseguirem levar a sua vida, porque assim é que contribuímos para a conservação.

    Na Europa, existem disparidades no desenvolvimento desta actividade, e sei que um dos países que se destaca é o Reino Unido, como também se salienta neste livro. Essas diferenças prendem-se com aspectos culturais?

    Há diferenças culturais e diferenças históricas. Efectivamente, esta actividade ganhou mais tradição nos países do Norte da Europa; portanto, incluindo o Reino Unido, como referiu, e também os Países Baixos e a Suécia. São países com bastante tradição da observação de aves. Nos Estados Unidos também já há uma tradição que vem de há mais de 100 anos. No Reino Unido, penso que o interesse pela observação de aves começou no final do século XVIII, mas é preciso ver que ao início, esta actividade era praticada por muito poucas pessoas, nomeadamente grupos com maior poder de compra, ou aquilo que às vezes se designa por aristocracia ou elites. Portanto, não era uma actividade praticada em larga escala. Penso que isso mudou, pelo menos no caso da Europa, mais ou menos a partir de 1950 ou 60. Houve uma figura muito importante, um britânico chamado John Gooders, que já faleceu em 2010, e que ainda tive o privilégio de conhecer. Ele escreveu um livro que se chamava Where to watch birds [Onde observar aves]. Nesse livro, ele sugeria roteiros de observação de aves no Reino Unido. Porque podemos começar por dar uma volta ao quarteirão, mas ao fim de algum tempo vai crescer o desejo de se ver espécies diferentes. Para isso, é preciso saber onde havemos de ir, e nem sempre existe essa informação. Agora, é mais fácil, graças à Internet, saber onde se pode encontrar determinadas espécies, mas há 50 ou 60 anos não era assim.

    Esse livro democratizou a prática da observação de aves?

    Sim, o livro teve enorme aceitação, e abriu, de certa maneira, as portas da observação de aves a um grande número de pessoas. É claro que entre as pessoas que já praticavam a actividade, houve quem não achasse muita piada, porque aquilo era uma actividade de elite, digamos, e algumas pessoas não viram com bons olhos a abertura à sociedade em geral. Depois, John Gooders escreveu sobre birdwatching não só para o Reino Unido, mas também para a Europa. Aliás, o primeiro livro que eu li seu foi o Where to watch birds in Europe, em que sugeria roteiros de observação em diferentes países, e foi publicado nos anos 1970. Hoje já existem roteiros para praticamente todos os países do Mundo, porque rapidamente se percebeu que havia muito interesse por parte das pessoas em ter livros que as direccionassem para os melhores locais onde encontrar espécies interessantes. Mas John Gooders foi um dos percursores da observação de aves; não sei se exactamente o primeiro a nível mundial, porque penso que já se tinha aberto caminho antes nos Estados Unidos. Mas efectivamente, a informação que ele trouxe permitiu abrir as portas, e tornar mais fácil o acesso à informação. Isto depois espalhou-se a outros países da Europa, mas neste ponto de vista, o Reino Unido foi um bocadinho o pioneiro a nível europeu, e talvez por isso a tradição tenha conseguido avançar mais depressa nesse país.

    Quais os países mais interessantes para a observação de aves, a nível de diversidade das espécies? Ou a resposta dependerá sempre dos propósitos e das preferências individuais?

    Em termos de diversidade, grosso modo, podemos dizer que todos os países do Mundo têm potencial. De uma forma geral, a diversidade de espécies aumenta à medida que nos aproximamos dos trópicos, das zonas equatoriais. Na América, destacam-se países como a Colômbia, o Equador e o Brasil. Em África, destacam-se países como o Quénia e a Tanzânia; e na Ásia, destacam-se países como a Índia ou a Indonésia. Só para referir alguns. A diversidade de espécies é mais elevada nos países de latitudes tropicais, mas claro que em latitudes superiores também aparecem espécies diferentes. Portanto, todos os países acabam por se complementar uns aos outros. Além disso, também é importante referir que há países e territórios que, por serem ilhas, estão isolados dos restantes, e por isso têm espécies que se chamam endémicas, ou seja, espécies que existem ali e não existem em mais lado nenhum do Mundo. Isto acontece mais com as plantas, porque as plantas não têm tanta mobilidade, mas também pode acontecer com aves. Temos algumas aves endémicas em Portugal, tanto nos Açores como na Madeira. Por exemplo, na Madeira temos o pombo-trocaz e a estrelinha, conhecida localmente como bis-bis; e nos Açores temos o priolo e o painho-de-monteiro. Todas as principais ilhas do Mundo têm um grande número de endemismos. Destaco a Austrália, Madagáscar, a Nova Zelândia, as Filipinas e certas ilhas da Indonésia. São locais ricos em endemismos. Portanto, a proximidade aos trópicos e a insularidade tornam certos locais muito interessantes.

    E, de um modo geral, que países oferecem condições mais favoráveis para esta actividade?

    Depende do grau de desenvolvimento. Há países que por terem um menor grau de desenvolvimento, ou por outro tipo de problemas, como a instabilidade dos regimes políticos, podem não ser muito seguros para a observação de aves. Destaco alguns país de África ou do Médio Oriente e certos países da Indochina. Pode até nem ser só por questões de segurança, mas por haver também muitas restrições à mobilidade das pessoas, que as impedem de ir observar para onde querem. Depois, há países com um bom grau de desenvolvimento, mas já foram transformados de tal forma em termos de intensificação agrícola, industrial ou de urbanização, que acabam por não ser tão interessantes, porque têm um grande grau de poluição e de alteração dos habitats. Portanto, varia muito, embora, na maioria dos países, mesmo naqueles que já estão transformados, existem áreas protegidas, classificadas, com boas condições de visitação e que funcionam como bons refúgios.

    Para a maioria dos países, agora mostra-se fácil encontrar informação online sobre quais são os melhores locais de observação de aves. E nos casos em que o acesso seja mais difícil, há empresas especializadas que vendem pacotes de birdwatching, ou seja, tours de 10, 15 ou 20 dias especificamente para observar aves. Aí, a pessoa já vai acompanhada com um guia especializado, vai directa ao local, e, portanto, não tem de preparar nada nem de se preocupar com alojamento nem com transporte. E existem pacotes desses em países tão variados como a Argentina, a Malásia, a África do Sul, os Camarões, Marrocos ou China. Esses são pacotes relativamente caros, por serem viagens bastante especializadas, mas que permitem um contacto com aves que, de outra forma, a pessoa dificilmente conseguiria. Portanto, a nível mundial, há toda uma indústria em torno desta actividade.

    Agora falando apenas de Portugal. Quais as regiões mais interessantes para a observação de aves?

    Também há diferenças entre regiões, naturalmente. Pela minha experiência, a nível da diversidade de espécies, as zonas mais ricas são as chamadas zonas de influência mediterrânica, a Sul do Tejo; portanto, o Alentejo e o Algarve. E também uma parte do Ribatejo, e ainda o interior Norte e interior Centro, ou seja, Trás-os-Montes, Beira Alta e Beira Baixa. O litoral Norte e Centro, em parte por causa da influência atlântica e das enormes transformações do uso do solo – com a intensificação agrícola em certas zonas e o grau de florestação intensiva e urbanização também de grande densidade –, é uma zona que está muito transformada. No entanto, no litoral existem locais de enorme interesse, que estão principalmente em torno das zonas húmidas. Falo, por exemplo, do estuário do Tejo, que é também um hotspot a nível nacional, do estuário do Mondego e de outros estuários que existem mais para Norte, como o do Minho, do Cávado e do Douro. E a Ria de Aveiro, naturalmente. Isto para citar alguns exemplos. Portanto, genericamente, no litoral Norte e Centro, as zonas húmidas são as mais interessantes, embora haja também outros spots em cidades e pequenas serras. No Interior e no Sul, os locais estão mais distribuídos e a riqueza específica tende a ser maior a nível de aves terrestres. No conjunto, o país tem uma boa diversidade de espécies, complementando o litoral com o interior. E depois, ainda temos, como referi, o caso dos Açores e da Madeira, onde apesar da diversidade de espécies global ser menor – porque as ilhas normalmente têm menos espécies –, há coisas diferentes. Portanto, as ilhas complementam um bocadinho o Continente.

    As regiões com menos diversidade em aves acabam por compensar na existência de outro tipo de espécies.

    Sim, as ilhas por norma têm menos, porque, tal como algumas espécies evoluíram isoladamente, as outras dos continentes também muitas vezes nem sequer conseguiram lá chegar. Portanto, as ilhas de uma forma geral têm menos diversidade do que as regiões dos continentes. Nos continentes há muito mais intercâmbio de umas regiões para outras. As ilhas estão isoladas, e quanto mais remotas são, menor a diversidade. Por isso, os Açores têm menos espécies do que a Madeira a nível de nidificantes, porque a Madeira, apesar de tudo, está mais perto do continente africano.

    Daquilo que tem visto, em que grau as aves têm sido afectadas com o problema dos plásticos nos oceanos?

    O plástico é um problema grande para as aves marinhas, porque acabam por ingerir micropartículas. Não são necessariamente aqueles plásticos grandes que nós vemos a flutuar. O plástico vai-se decompondo, e as micropartículas ficam lá durante muitos anos. E as aves podem ingeri-las; às vezes, também bocadinhos de plástico maiores, e já houve vários casos de aves marinhas que foram encontradas mortas com grandes quantidades de plástico ingeridos. Portanto, é evidente que em termos de saúde das aves, terá algum impacto. Não sei exactamente até onde isto já foi estudado, mas a poluição, nomeadamente por plásticos e por outros poluentes – porque também já houve casos de aves contaminadas por hidrocarbonetos, por exemplo, na sequência de desastres de petroleiros… Este tipo de poluição também pode afectar as aves e outros seres vivos. É evidente que devem ser tomadas medidas para reduzir a poluição dos oceanos, porque põe em causa o equilíbrio dos ecossistemas, e nomeadamente dos ecossistemas marinhos.

    E o impacto das alterações climáticas, também se tem revelado significativo?

    As alterações climáticas são um problema bastante vasto e abrangente, e, sem dúvida nenhuma, tem impacto nas aves selvagens. Este assunto está a ser estudado para se obter mais dados; no entanto, há um aspecto que eu gostava de salientar: para as aves, as alterações climáticas são um problema, mas não o único, e nem sempre o mais importante. Depende também das espécies. Há outros factores em jogo. Eu recordo-me que há uns dois anos, assisti à sessão de apresentação online do Novo Atlas Europeu, um projecto para estudar as circulações das aves a nível da Europa, e que comparava com outro que tinha sido feito há 25 anos. E analisaram-se as distribuições das espécies e compararam-se para saber se se tinham deslocado para Norte ou para Sul; porque, em relação às alterações climáticas, existe uma teoria, digamos assim, de que se a temperatura aumentar, as aves vão-se deslocar para Norte, porque as regiões do Norte ficam menos frias, a temperatura fica óptima, e as aves vão atrás dos gradientes de temperatura… Isto é o que diz a teoria. Na prática, verificou-se que houve tantas espécies a deslocar-se para Norte, como espécies a deslocar-se para Sul, ou seja, em sentido contrário àquele que era suposto deslocarem-se se o único factor fosse o aumento da temperatura. E os autores desse estudo disseram que se metade das espécies se deslocaram para Sul, podemos interpretar que há aqui outros factores a condicionar a distribuição das aves. Portanto, é algo que tem de ser estudado mais em profundidade.

    E que outros factores poderão ser?

    Nem sempre sabemos. Normalmente, estas equações são complexas, há vários factores em jogo simultaneamente, e não conseguimos isolar uns dos outros para medir o impacto de cada um. Eu diria, pela experiência que existe em Portugal e noutros países, que um dos principais factores que condicionam a distribuição das aves são as alterações de habitat; se quisermos, as alterações do uso do solo, nomeadamente devido à actividade agrícola. E eventualmente florestal, e também devido à urbanização, à construção de barragens. Tudo o que faz mexer no habitat causa impacte, e isso pode fazer as espécies colonizarem novas zonas ou desaparecerem. Esse é um factor muito importante, e que deve ser tido em conta, independentemente das alterações climáticas. Ou seja, temos de entrar com o “mix” todo. Ainda pode haver outras variáveis, como a perturbação causada seja por observadores e fotógrafos, como por pessoas que estejam a praticar actividades desportivas, ou qualquer outro tipo de acções humanas. Portanto, perturbação, perseguição directa, seja caça legal ou ilegal, e introdução de espécies exóticas ou invasoras, são tudo factores que podem concorrer para causar desequilíbrios e alterações em determinadas aves. Sem esquecermos a relevância das alterações climáticas, não devemos cair no erro, como às vezes vejo, de achar que tudo se deve às alterações climáticas, e esquecermos que há outros factores que também podem ser muito relevantes, nomeadamente as alterações de habitat.

    Em Portugal, as medidas de conservação das aves têm sido suficientes, ou poderia fazer-se mais?

    Acho que se poderia, e deveria, fazer muito mais. Há 50 anos, fizeram-se muitas coisas más, como drenagens de zonas húmidas, e outras coisas que alteravam o uso do solo, e não se tinha noção dos danos que aquilo causava. Hoje, há muita informação, nomeadamente sobre o que pode ser feito a nível de gestão do habitat para conservar as espécies, mas, apesar de tudo, muitas vezes não são tomadas medidas para evitar alterações. Aquilo que eu defendo, antes de mais, é que se invista mais a sério em programas de monitorização das espécies ameaçadas. Eu penso que é essencial monitorizar-se as espécies para se poder perceber o que é que está a acontecer, e depois se poder tomar as medidas consideradas relevantes.

    Há poucas semanas estive em Vila do Conde, num simpósio internacional sobre picanços, que é um grupo de passeriformes, e a certa altura assisti a uma apresentação de uma pessoa do Canadá, que disse que nos 1990, essa ave foi classificada como ameaçada. E o Governo federal canadiano imediatamente decidiu pôr em marcha um programa de monitorização. E eu gostaria que em Portugal acontecesse algo semelhante. Nós também temos um Livro Vermelho, que saiu em 2005, e sairá outro daqui a poucos meses, penso eu, e o Livro Vermelho classifica determinadas espécies como ameaçadas. E eu gostaria que tal como no Canadá, quando uma espécie é classificada como ameaçada, imediatamente tivesse início um programa de monitorização para o acompanhamento daquela espécie. Caso contrário, esses estatutos de ameaça acabam por servir de muito pouco, porque não se tomam medidas. E, no limite, a espécie pode desaparecer, como já aconteceu, infelizmente. Portanto, o apelo que eu deixo aqui é no sentido de se investir mais, desde logo, na monitorização.

  • Salesianos: Gravidez fora do casamento de professora dá despedimento lícito nos Estados Unidos

    Salesianos: Gravidez fora do casamento de professora dá despedimento lícito nos Estados Unidos

    No mês em que o Papa Francisco apelou para a inclusão de “todos, todos, todos”, o Supremo Tribunal de Nova Jérsia considerou ser legítimo (e legal) o despedimento de uma professora por ter engravidado fora do casamento. Depois do seu afastamento em 2014, Victoria Crisitello tinha processado a St. Theresa’s School, uma escola salesiana, invocando uma lei estadual que proíbe a discriminação por situação de gravidez e estado civil. A escola católica não se demoveu e o tribunal deu-lhe razão. As palavras de Francisco caem em saco roto.


    O Supremo Tribunal do Estado da Nova Jérsia, nos Estados Unidos, decidiu a favor de uma escola primária católica, a St. Theresa’s School, no município de Kenilworth, que em 2014 despediu uma professora depois de o director ter sido informado da sua gravidez. A professora, Victoria Crisitello, não era casada.

    Para justificar o despedimento, a escola argumentara que a funcionária, Victoria Crisitello – que apesar de legalmente solteira, usava um anel de noivado –, tinha desrespeitado o código de ética da instituição ao ter relações sexuais fora do casamento. A escola conta com cerca de 300 alunos com propinas que rondam os 6.000 dólares por ano, e segue o sistema educacional de São João Bosco. Ou seja, adopta um sistema de ensino equiparado às escolas dos Salesianos existentes em Portugal.

    St. Theresa’s School, em Kenilworth, invoca o amor de Jesus e a Virgem Maria. À entrada tem uma estátua que parece invocar as aparições de Fátima.

    Conforme salienta o New York Times na sua edição de ontem, o processo judicial durou quase uma década com o tribunal de Nova Jérsia a declarar ser legítimo que a St. Theresa’s School subordine os seus funcionários às doutrinas da Igreja Católica. Para este tribunal, o despedimento foi legal por estar salvaguardado por uma “excepção religiosa” face à lei estadual que proíbe a discriminação.

    A lei em causa, que Crisitello invocara para colocar a escola em tribunal, garante a protecção contra a discriminação laboral com base na gravidez e no estado civil. No entanto, Victoria Crisitello – que foi também aluna daquela escola e entrou para os quadros em 2011, inicialmente como cuidadora em regime de part-time – terá assinado um documento que exigia obediência dos funcionários aos fundamentos católicos.

    De acordo com o New York Times, o advogado que representou a St. Theresa’s School neste processo, Peter G. Verniero, saudou a decisão do tribunal, por “defender os direitos dos empregadores religiosos de agir de acordo com os seus princípios religiosos”.

    Papa Francisco apelou à inclusão, mas nos Estados Unidos uma escola dos Salesianos “excluiu” uma professora por ter engravidado sem estar casada. Tribunal deu razão à congregação.

    Por seu turno, o advogado da professora demitida, Thomas A. McKinney, revelou-se “desapontado” e apreensivo com a possibilidade deste tipo de decisões não se limitarem apenas a instituições escolares católicas, dando azo, no futuro, a situações similares em “todas as entidades religiosas que empregam pessoas”, nomeadamente hospitais.

    Alguns representantes de organizações não-governamentais que defendem as liberdades civis, a American Civil Liberties Union da Nova Jérsia, já qualificaram o desfecho judicial como “decepcionante”.

    Este caso pode, efectivamente, criar um precedente, tanto mais que o advogado de Victoria Crisitello assegurou que não deverá recorrer da decisão, tendo em conta a jurisprudência do Supremo Tribunal dos Estados Unidos e a sua impossibilidade de interferir com as decisões legais a nível de cada Estado.

  • Mulheres na guerra de caneta em punho

    Mulheres na guerra de caneta em punho

    Título

    As enviadas especiais

    Autora

    JUDITH MACKRELL (tradução: Isabel Pedrome)

    Editora

    Casa das Letras (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Traçar perfis de mulheres marcantes é algo que já consta do “currículo” de Judith Mackrell, e um ofício para o qual tem inequívoco talento. A biógrafa britânica e crítica de dança no jornal The Guardian, lançou, em 2013, Flappers: Six Women of a Dangerous Generation, sobre seis artistas arrojadas que viveram com intensidade os ‘loucos anos’ 1920. 

    Em As enviadas especiais, editado no início deste  ano pela Casa das Letras, a escritora escolheu novamente seis figuras femininas mas por motivos diferentes: estas fizeram História, no século passado, por pavimentarem o caminho para outras repórteres de guerra, numa época em que a sua representação nestes trabalhos era escassa. No final da Segunda Guerra Mundial, cerca de 250 jornalistas mulheres tinham conseguido acreditação junto dos Aliados para reportar o conflito, mas até lá o caminho foi sinuoso.  

    Estas seis pioneiras tiveram de lutar contra convenções sociais, o preconceito, e muitos outros obstáculos perante uma realidade dominada pelo masculino. Contornaram as dificuldades com engenho, criatividade e coragem, como os factos comprovam. Por exemplo, Martha Gelhorn viu-se “obrigada” a se infiltrar num barco-hospital da Cruz Vermelha para desembarcar na praia de Omaha um dia após o Dia D. 

    Além de Gelhorn, as outras cinco “protagonistas”, que ficamos a conhecer em pormenor no final da leitura, são Sigrid Schultz, Virginia Cowles, Helen Kirkpatrick, Lee Miller e Clare Hollingworth. Com excepção desta última, que era britânica, todas de nacionalidade norte-americana.  

    Nesta obra são descritas as suas trajectórias como repórteres de guerra, revelando também as vidas que levaram depois da Segunda Guerra Mundial, e que continuaram a ser tudo menos aborrecidas, para além de longas. Por exemplo, Clare Hollingworth atingiu a meta dos 105 anos, tendo falecido em 2017. Foi a responsável pelo “furo do século”, ao noticiar o deflagrar da guerra, com a invasão da Polónia pela Alemanha.  

    A bravura destas jornalistas, plasmada nos acontecimentos relatados neste livro, valeu honrosas distinções: Helen Kirkpatrick recebeu a Medalha Presidencial da Liberdade, e Virginia Cowles – que quase foi presa em Espanha, em plena guerra civil –, foi distinguida com a Ordem do Império Britânico (OBE).

    Mesmo assim há muitas diferenças entre elas, embora em alguns casos os seus caminhos se tenham cruzado: Martha Gelhorn e Virginia Cowles tornaram-se amigas, apesar dos feitios pouco compatíveis e divergências políticas: a primeira apoiava ferozmente os republicanos, que combatiam a ditadura franquista, enquanto a segunda assumia uma postura de maior imparcialidade. A amizade, contudo, não foi isenta de crispação, e desenvolveu-se em grande parte como tentativa de ‘colmatar’ o sentimento de serem uma minoria feminina no meio dos homens. 

    Feitas as apresentações de cada uma delas, a narrativa desenvolve-se com histórias “entrelaçadas”, condensadas em 16 capítulos e quase 500 páginas. Profícua em detalhes sobre a vida pessoal (e também íntima e até sexual) das correspondentes, é notória a profundidade da investigação levada a cabo pela autora, que fez também uso dos seus diários, notas e registos. 

    As enviadas especiais expõe assim a complexidade das dinâmicas entre as jornalistas e os homens de quem estavam rodeadas, que se revestiam de diversas maneiras: romances sólidos ou fugazes, parcerias, amizades e também o oposto, nomeadamente “desamores”, traições, antipatias e competitividade.  

    Pela negativa, salientamos a omnipresente retórica feminista da obra, que por vezes se torna enfadonha – mas que não surpreende, dado o contexto actual. É perceptível um tom que diminui os homens, insistindo em apontar-lhes inúmeros defeitos, ao passo que as menções a virtudes são “guardadas” exclusivamente para as repórteres, a quem até os traços mais condenáveis nunca merecem reprovação, mas somente elogios.  

    Um dos exemplos é o caso amoroso entre Ernest Hemingway e Martha Gelhorn – que viriam a tornar-se marido e mulher, por poucos anos –, iniciado quando o famoso escritor ainda era casado. Explicando como o romance adúltero serviu para abrir muitas portas à (então aspirante) jornalista, a autora mostra-se complacente com Gelhorn, apontando a “crise” histórica que assolava o Ocidente, e que justificava a transgressão de quaisquer limites morais.  

    A propósito, é patente a forma como as repórteres souberam utilizar o seu ‘charme feminino’ para obter vantagens como jornalistas. Lee Miller, a fotojornalista que cobriu a libertação de Paris e esteve nos campos de concentração nazi de Buchenwald e Dachau, foi acusada por colegas (homens) de granjear sucesso profissional através da sua sexualidade.

    No todo, contudo, esta é uma obra sólida e bem documentada, recheada de dados curiosos. Desde a proximidade entre Martha Gelhorn e os Roosevelt e de Lee Miller com Pablo Picasso, à relação de relativa confiança de Singrid Schultz e Hermann Göring, um dos deputados mais prominentes do partido nazi, estabelecida com o intuito de obter informações privilegiadas sobre os líderes do Terceiro Reich.  

    A obra termina com uma espécie de balanço, em que a autora sugere haver ainda um longo caminho a percorrer para a igualdade, na cobertura de “guerras, revoluções e catástrofes” (pág. 491). Contudo, entre os traumas e horrores da guerra suportados pelas repórteres, torna-se cómico, mas elucidativo, que a Judith Mackrell faça alusão às palavras da jornalista britânica Kate Adie que, cinquenta anos depois da Segunda Guerra Mundial, afirmou: “Nunca é fácil (…) «baixarmo-nos […] no meio do deserto […] e fazermos chichi à frente de 2 mil tipos»”. (pág. 490)