O antigo jornalista e actual comentador Miguel Sousa Tavares tem estado debaixo de fogo, depois de ter criticado a escolha deste ano para Miss Portugal, que recaiu sobre uma mulher transgénero, de seu nome Marina Machete. No seu novo espaço de comentário, que estreou no Jornal Nacional da passada quinta-feira, Sousa Tavares dizia ao jornalista José Alberto Carvalho que não foi uma “mulher bonita” que venceu o concurso, mas sim o resultado das várias operações plásticas a que foi sujeita para se tornar mulher. Disse ainda que as mulheres saíam “maltratadas” com esta eleição, que tornou o concurso numa “anedota e numa batota.”
Como seria de esperar, depressa se elevou um coro de vozes indignadas, com vários comentadores da nossa praça a despejarem sobre Miguel Sousa Tavares os seus sermões e anátemas. É mais uma polémica “instantânea”, que num país saudável nem sequer teria lugar – mas aqui, cá estamos nós, mais uma vez, a fingir que não temos coisas realmente sérias para nos preocuparem e entreterem-nos, e que a história é merecedora de se lhe dedicar imensa atenção.
O único motivo que nos deve levar a reflectir sobre este (não) assunto é no sentido de concluir como hoje ter opinião se transformou num acto perigoso, se for a opinião “errada”, obrigando figuras públicas, pela pressão de uma ‘massa’ chamada opinião pública, a pedir desculpa apenas por terem dito a maior das obviedades.
Uma das tiradas que suscitou mais celeuma e foi quando Miguel Sousa Tavares perguntou a José Alberto Carvalho se casaria com Marina Machete. Qualquer pessoa tem o direito de considerar a questão esdrúxula ou a despropósito, mas será caso para revolta? É assim tão ofensiva e desrespeitosa? O mais provável é que se fossem duas mulheres a indagar se casariam com um homem transgénero, não assistíssemos a tanto burburinho – a não ser, talvez, entre a comunidade do alfabeto.
Ao porem em causa o sentido que faz uma mulher transgénero ser coroada Miss Portugal, os dois jornalistas receberam até a distinção de “machos dominadores” por uma fan-girl do actual Governo. Acredito que nunca ninguém tenha imaginado ler “machos dominadores” e os nomes de José Alberto Carvalho e Miguel Sousa Tavares na mesma frase, mas enfim, hoje é fácil contestar as afirmações de um homem, da forma mais básica, parecendo-se eloquente: basta acusá-lo de machismo.
Houve também quem condenasse a conversa de “balneário” e de “taberna” dos ditos cavalheiros. Falou-se ainda em boçalidade e numa “humilhação” feita a Marina Machete. Com todas as alarvidades e futilidades diariamente transmitidas na televisão portuguesa, incluindo nos espaços de comentário e de notícias, só agora a trupe Comentadores & Companhia se apercebeu que pouco ou nada se aprende em frente ao pequeno écrã.
Seja como for, afirmar que um homem biológico não é uma mulher só peca por ser tão óbvio que não deveria ser necessário recordá-lo – não devia fazer de ninguém um herege. Seguindo esta linha de raciocínio, não é de todo descabido defender que alguém que nasceu homem não pertence num concurso de mulheres.
A opinião de Miguel Sousa Tavares, concorde-se ou não, é estritamente racional e adstrita a um facto insofismável: Marina Machete não teria o físico que possui se não fosse pelos procedimentos cirúrgicos a que se submeteu. Constatá-lo não denota qualquer fobia; é uma verdade simples e objectiva. E mesmo não tendo qualquer simpatia pelo comentador em causa, que já terá proferido opiniões muito questionáveis, não creio, no caso em apreço, que mereça castigo por dizer uma verdade.
Certo é que alguns, a quem os factos fazem urticária e as opiniões “erradas” ainda mais, conseguiram que a polémica assumisse proporções tais, que José Alberto Carvalho se prestou a um mea culpa no Jornal Nacional de ontem, retratando-se e pedindo desculpa pela sua “atitude irreflectida”. Atitude essa que foi simplesmente responder a Miguel Sousa Tavares: que não se casaria com Marina Machete. Hoje, isto é um crime de lesa-majestade e serve de tema de discussão para vários dias.
Quem viva num universo paralelo e considere problemático afirmar-se em público que “um homem não é uma mulher”, ou outras verdades de La Palice, está no seu pleno direito se quiser indignar-se. Mas a sua ira não deve ter tanto poder que consiga silenciar quem bate o pé e tenta ser o adulto na sala, repondo alguma da sanidade perdida nos últimos anos.
Perante os gritos e choros da comitiva de ofendidos com a opinião alheia, a resposta não deve ser aquiescer, mas a indiferença. A liberdade que os arautos do politicamente correcto têm para ventilar a sua revolta, com a notícia do dia, não pode servir para espezinhar a liberdade de expressão dos outros.
Durante a polémica conversa, José Alberto Carvalho perguntou a Miguel Sousa Tavares se não tinha receio de ser acusado de transfobia, ao que o último respondeu “não ter idade” para se preocupar com as coisas de que o acusam. Veremos, na próxima quinta-feira, se o “desbocado” comentador mantém a sua posição, ou se verga a esta exaustiva censura.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Numa altura em que o país debate o Orçamento de Estado para 2024, e na mesma semana em que se assinou o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, é pertinente fazer-se uma reflexão sobre a situação em que nos encontramos e o rumo que estamos a tomar – não obstante muitos de nós termos os olhos postos no conflito Israel-Hamas. E, infelizmente, parece que ainda não é possível, nem será tão cedo, vislumbrar a cada vez mais esperada “luz ao fundo do túnel”.
Um relatório recente da Rede Europeia Anti-Pobreza revelou dados preocupantes – que se tornam ainda mais alarmantes tendo em conta que se referem a 2021, não reflectindo por isso a hecatombe da crise inflacionista e do aumento dos juros que o ano de 2022 nos trouxe. Ou seja, o cenário será ainda mais negro. Há dois anos, segundo este relatório, quase metade da população assolada pela pobreza encontrava-se, mesmo assim, a trabalhar. Também havia 1.696.000 pessoas em situação de risco, significando que os seus rendimentos se situavam abaixo dos 551 euros mensais.
O Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza também levou a que a atenção mediática e política se debruçasse, por momentos, no flagelo dos sem-abrigo, com o Presidente da República a pedir para se fazer mais, mas sabemos que ele é reincidente em pedidos deste género, como se viu em 2019 e no ano passado. Apesar dos desejos presidenciais, já havia sido noticiado em Setembro que Portugal é o sexto país da União Europeia com mais sem-abrigo, com quase 10 mil pessoas nessa condição. O Governo, por seu turno, aproveitou a efeméride para apresentar o “Plano de Acção da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2022-2025”.
Mas se a pobreza extrema é um problema grave e que necessita de ser combatida, é igualmente pavoroso assistir a uma classe média cada vez mais estrangulada, num país onde quem aufere 2000 euros brutos pertence ao clube dos mais “ricos”, e com um nível de vida já mais baixo do que a Roménia.
Ora, face às dificuldades financeiras crescentes, algumas das principais medidas previstas no Orçamento de Estado e que o executivo anunciou de forma emproada, foram a diminuição do IRS, o aumento do salário mínimo e de apoios sociais como as pensões e o abono de família, e subsídios a vitimas de violência doméstica. Uma migalha para cada nicho de eleitores, portanto, capitalizando o desespero generalizado – mesmo que, no fim, fiquemos com menos.
Quanto ao salário mínimo: se metade dos pobres, trabalham, deixarão de ser pobres com mais 60 euros por mês?! E se o preço das casas sofreu um aumento de 90% em relação a 2015, enquanto os salários aumentaram apenas 20%, subir salários por decreto servirá para resolver o problema?
No fundo, é mais um Orçamento assistencialista, numa perspectiva de damage control, mas, na verdade, com mais de damage do que de control. Porque, longe de promover soluções reais, apenas tapa buracos, e mal. No fim, sem se investir numa economia mais competitiva, continuará a não se produzir riqueza – e a tendência do empobrecimento não se inverterá.
O Governo adoptou a estratégia de parecer responsável, alardeando o slogan das contas certas – irónico, vindo do partido que nos colocou em três bancarrotas –, enquanto propagandeou uma redução de impostos que é, na verdade, ilusória.
Como foi noticiado, os impostos indirectos aumentaram, e serão mais 3 mil milhões de euros para os bolsos do Estado (mais 9% em relação ao presente). Contas feitas, o Governo deverá bater um recorde de receita fiscal em 2024. Falar de um alívio da carga fiscal é, assim, um engodo. Pelo meio, com a Saúde e a Educação a rebentar pelas costuras, também vemos dinheiro público desperdiçado para causas vazias, como a “Igualdade de Género”, para onde serão canalizados 426 milhões de euros.
Este executivo continua, enfim, igual a si próprio: vai tapando o sol com a peneira, enquanto fomenta a dependência do Estado, e nos corta cada vez mais as pernas. Por este caminho, o que se vai conseguir é esbater as diferenças, mas seremos apenas mais iguais na pobreza. A classe média será esmifrada, e apenas alguns conseguirão escapar a esta verdadeira carnificina.
Os portugueses continuam a caminhar em direcção ao abismo da dependência e da domesticação, e a contar os tostões para se manterem à tona. Neste cenário aterrador, o Governo fez o que faz bem: dá-nos a mão, não para nos salvar, mas apenas para que o afogamento seja um pouco mais lento.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Poderá existir amor verdadeiro num relacionamento tóxico? Infelizmente, não. Nas relações onde o desrespeito pelo outro e o “terrorismo emocional” são uma constante, o que se desenvolve é um vínculo patológico–quem o diz é Diana Cruz, psicóloga clínica doutorada em Psicologia Clínica da Famíliae autora de Não é amor, é uma relação tóxica, editado pela Manuscrito. A terapeuta vê como necessário esclarecer que o amor dá trabalho, mas “não deve doer”. Reconhecendo que também os homens podem ser vítimas de relações tóxicas fala, neste livro, sobretudo para as mulheres que sofrem abusos emocionais pelos seus companheiros, dando-lhes a mão no caminho para romper com a toxicidade e, claro, com o parceiro. A “desintoxicação” implica enfrentar muitos obstáculos, mas a psicóloga assegura que é possível sair da ‘teia’. Ao PÁGINA UM, explicou quais são as principais características destes relacionamentos, que podem ser verdadeiramente traumáticos – e que se desenvolvem também entre familiares, amigos ou até colegas de trabalho –, e como as ideias erróneas que ainda prevalecem sobre o amor não ajudam as vítimas a perceber que “caíram” numa relação tóxica.
No seu livro Não é amor, é uma relação tóxica, afirma que não há dois relacionamentos tóxicos similares. Sendo assim, quais são as principais características que os definem?
Há várias características muito comuns destas relações, e penso que nos devemos focar em duas ou três, provavelmente mais importantes, e que devem ser identificadas o quanto antes. Primeiro, são relações prejudiciais, em que há uma enorme falta de empatia e um desrespeito pelas necessidades e pelos limites da outra pessoa. Há, também, uma instrumentalização do outro. Ou seja, para o ‘parceiro tóxico’, a outra pessoa é mesmo como um instrumento, alguém que está ali para corresponder ao que ele precisa e às suas exigências, e para regular as suas emoções. São relações que não deixam espaço para os dois elementos, porque há um que é dominante e tem o espaço todo na relação. No fundo, é quem dita as regras. E depois há o outro elemento que está na relação com muito pouco espaço para a sua liberdade individual, e está sempre na expectativa de providenciar tudo o que seja pedido pelo parceiro tóxico – sejam coisas materiais, atenção, sexo, o que for.
No entanto, nestas relações, criam-se também dinâmicas que podem facilmente ser confundidas com actos de amor, mas que não o são, na verdade…
Sim, é isso que torna estas relações tão prejudiciais. No início, elas são muito facilmente confundidas com amor porque, numa primeira impressão, há uma intensidade de afectos muito grande. Há um período de sedução, que é muito forte e intenso, na primeira fase da relação, em que o parceiro tóxico aprende tudo sobre a outra pessoa – regra real, estes parceiros são extremamente inteligentes e capazes de o fazer e, portanto, têm uma capacidade enorme de ir ao encontro daquilo que nós queremos ouvir: seja os nossos interesses e objectivos de vida, o que gostamos e não gostamos. Portanto, cria-se uma intensidade afectiva e um vínculo que é quase instantâneo. É um vínculo patológico, mas é quase instantâneo, e que gera aquela sensação de “encontrei a minha alma gémea”, “é tudo o que eu sempre sonhei”. E só o facto de sentirmos isto já é uma alavanca para uma união, e para um vínculo muito forte. E, claro, este é um dos grandes poderes da relação tóxica, porque nós ainda estamos muito habituados a querer isso: a ideia de esperar pela cara-metade, a pessoa que encaixa perfeitamente em nós – quando, na realidade ninguém pode encaixar perfeitamente em ninguém e não há nada de errado nisso; pelo contrário.
Também é comum, por exemplo, confundir-se ciúmes excessivos com amor.
Sim; aí, acho que há vários sinais. Ainda recentemente, quando fui ao programa Curto Circuito, dei alguns exemplos que acho que acontecem nas relações de todas as idades, mas sobretudo com os mais novos, porque há uma partilha menor; por geralmente não viverem ainda juntos. Mas as pessoas pensam: se tem ciúmes é porque se importa muito comigo e não me quer perder, gosta de mim. Entretanto, surgem uma série de outras coisas: se comenta a roupa que eu visto é por causa do ciúme; é por causa do ciúme – ou seja, do “amor” – que ele me diz um colega de trabalho está a “dar em cima” de mim, e que é melhor afastar-me… É por causa do amor que não quer que eu siga esta ou aquela pessoa nas redes sociais… Sim, porque as redes sociais, nestas relações, também são “invadidas”; tudo é. E hoje, as redes sociais são uma parcela das relações interpessoais muito grande, como sabemos.
E, portanto, é aquela convicção que foi criada na tal fase de sedução, de que somos feitos um para o outro e não nos podemos perder, em que o parceiro tóxico aprendeu tudo e mimetizou tudo o que a outra pessoa quer ouvir, que justifica aguentar todas estas coisas. A maioria de nós, quando estamos de fora, e se pudéssemos pensar bem quando estamos dentro da relação, perceberíamos que esta pessoa está a limitar com quem eu falo e quando falo, o que visto, onde vou. Portanto, está a limitar a minha liberdade individual, e não está a confiar em mim. Está só a isolar-me cada vez mais, até que a certa altura – e isso é uma coisa que acontece muito e é uma característica muito pesada destas relações –, há uma espécie de uma bolha, um isolamento muito grande, que pode até incluir os familiares. E esse afastamento contribui ainda mais para que aquela relação pareça tão importante – a certa altura, não há mesmo mais ninguém. Ela é importante porque o desamparo é gigante, e esse desamparo foi criado pela própria relação. O parceiro tóxico convence a outra pessoa que quem está ao seu redor não lhe quer bem, recorrendo muito à crítica e à desqualificação, e dizendo coisas como “tu não percebes nada”, “toda a gente te engana”… E todas estas características se enredam umas nas outras e transformam estas relações num ‘novelo’ do qual é mesmo muito difícil sair.
Como referiu, há traços transversais nos comportamentos de um parceiro tóxico, mas não é possível reduzir estas pessoas a um único perfil; podem existir diversos tipos de personalidade tóxicas, certo?
Sim, estas pessoas geralmente são muito egocêntricas, muito centradas em si próprias e nas suas necessidades, no que querem para si e no que pretendem dos outros e da vida. Lá está: como disse ao início, pessoas que têm muito pouca empatia; não têm grande preocupação com o impacto que as suas acções têm nos outros e com a dor que possam provocar – pelo contrário, mesmo com a outra pessoa a explicar imensas vezes ao parceiro que o seu comportamento a faz sentir-se ofendida ou humilhada, ele torna a fazer, se for preciso, no próprio dia.
Pode dizer-se que são narcisistas?
Podem ser verdadeiros narcisistas, pessoas que não estão nada preocupadas com o outro. Também são pessoas muito imaturas emocionalmente – uma característica muito típica das personalidades narcisistas. No fundo, são um bocado como uma criança grande. As crianças estão muito centradas nas suas coisas, mas é natural, porque são crianças. Mesmo assim, uma criança conhece empatia; com os outros miúdos, com os animais… Mas estas pessoas tóxicas acreditam que não têm de dar, só de receber, e emocionalmente são muito instáveis, frustram-se e irritam-se facilmente. Estão perfeitamente convencidos que há um sistema de regras que são só deles; há as regras para nós seguirmos, mas eles não têm de as seguir; têm as suas próprias regras, que os próprios fazem. O exemplo das redes sociais que já referi é típico: ele pode definir com quem é que eu falo, mas eu não posso fazer o mesmo. Enfim, têm esta expectativa de que o outro está ao serviço. Neste caso, geralmente, são mais os homens que têm estas características.
É por isso que dedica este livro às mulheres?
Sim, eu quis mesmo que fosse um livro de mulher para mulheres, que é uma coisa que está a ficar fora moda e que é delicado de se fazer agora. Mas acredito que é um livro que pode ser lido, igualmente, por homens – mesmo que aqui eu esteja a falar para as mulheres, se ele for vítima de uma relação tóxica, vai fazer-lhe sentido. E já tive feedback de alguns homens, mesmo em pouco tempo, o que é muito curioso. Também tenho recebido muitas mensagens de amigas de mulheres que estão nestas relações, e que dizem que não sabem mais o que fazer para as ajudar. Então, este é um livro de mulher para mulheres, mas isto não é dizer que não há homens a viver relações tóxicas. Claro que há, tal como há nas relações homossexuais também. Na verdade, em qualquer tipo de relação, incluindo entre pais e filhos; há mães e pais tóxicos, chefes tóxicos e amigos tóxicos. Claro que, depois, a natureza da relação muda um bocadinho e a forma como tudo se manifesta. Mas não é muito diferente, porque estão lá as características que falámos inicialmente, aqueles sinais para vermos se estamos numa relação tóxica, o desrespeito pelo outro e pelos seus limites. Também me dirijo sobretudo às mulheres porque é o que há mais e porque é o que a minha experiência conhece melhor; são elas quem mais vem ao consultório pedir este tipo de ajuda.
E de acordo com a sua experiência, que características pessoais é que tornam alguém mais susceptível de ser vítima de uma relação tóxica?
É muito difícil falar disto, e mesmo na escrita do livro tive muito cuidado e dei muitas voltas até achar que estava explicado da melhor forma. Porque é muito fácil ler esta entrevista, ou o livro, e pensar que são as mulheres que geram isto, com a sua maneira de ser. Não. Mas, de facto, as relações têm dois lados e há características que tendem mais a entrosar-se com outras.
Ou, por vezes, atribui-se a culpa à vítima por se ter mantido na relação, não é?
Exacto e, portanto, não é dizer que elas têm culpa, mas há de facto características nossas enquanto mulheres que podem facilitar isto. Também é por isso que são mais as mulheres que são vítimas destas relações: porque regra geral, somos mais orientadas para as relações; enquanto os homens mais orientados para os objectivos. É incontornável – cromossomas XX e XY [risos]. Depois, são as mulheres mais empáticas e mais focadas na relação com o outro, ou muito compassivas, compreensivas e que tendem a racionalizar muito as atitudes do parceiro. Então, acreditam que se o amarem e orientarem, ele vai conseguir ser diferente. Regra geral, são as mulheres que têm esta crença de que o amor é uma força bruta de mudança.
Acreditam que conseguem mudar e “salvar” o companheiro?
Sim, no limite, são mulheres que têm um pouco esta “síndrome” de salvadoras, mas antes de chegar a isso, são mulheres mais empáticas, com capacidade de escutar o outro e de entender o outro. E, portanto, vão sempre encontrando algo que justifica aquilo; porque, claro, as dificuldades da história de vida do parceiro existem. Mas não lhes cabe a elas estar a viver toda aquela violência e drama por causa disso. Não todas, mas algumas podem ter uma identidade um pouco frágil, e sentir que parte do seu valor vem das relações que elas têm, e se estão numa relação em que elas contribuem para a felicidade da outra pessoa, têm ainda mais valor. E claro que nós, quando estamos numa relação dita saudável, queremos que a nossa contribuição na relação seja boa e queremos estar ali com a outra pessoa. Mas nós não deixamos de ter valor se não tivermos uma relação, nem quando identificamos algo daquela pessoa que não é da minha conta, e sobre a qual eu não posso fazer nada, nem tenho de fazer nada. As mulheres que têm síndrome de salvadora muitas vezes têm até profissões de ajuda, como a minha. Mas mesmo que não tenham, costumam ser pessoas muito disponíveis para o outro. Também podem ser pessoas que já tiveram relações tóxicas anteriormente e não ficaram bem recuperadas, ou que vêm de famílias muito disfuncionais. Ou podem ainda ser pessoas muito românticas, que acreditam que para ser verdadeiro, o amor tem de doer muito e de passar por muitas provações, com muito sacrifício. Mas não é verdade, porque as relações custam e dão trabalho, mas não são só dor e sacrifício, senão para que queríamos o amor?
E quão fácil, ou difícil, é sair de uma relação tóxica?
É muito difícil. Na minha experiência, as mulheres saem; mas muitas precisam mesmo de ajuda especializada. Depende também das características mais específicas daquela relação e do grau de violência que teve, porque há este terrorismo que destrói completamente a identidade. Eu chamo-lhe “terrorismo emocional”. Nem todas necessitarão de ajuda especializada, mas muitas sim – é muito difícil, porque é uma relação traumática. Todos nós já saímos de uma relação, e é sempre difícil. Mas aqui, não falamos de sair de uma relação dita normal; é toda uma outra situação, devido ao trauma. É uma relação onde a pessoa perdeu o Norte, a noção dos seus objectivos, e passou a fazer uma série de coisas que são contra os seus valores e a suas crenças.
Muitas vezes, a vítima até já nem se reconhece a si mesma no final da relação, como refere também no livro.
Já nem se reconhece, às vezes já nem percebe porque entrou naquela relação, não conhece aquele companheiro, nem sabe como é que a relação chegou ali. Muitas vezes tem vergonha e sensação de culpa, e são emoções que bloqueiam muito a pessoa. Sente culpa, primeiro, porque foi convencida de que a relação estava a correr mal por culpa sua, porque o parceiro o diz. Mas depois, quando as mulheres já perceberam que a relação tem tudo para o correr mal, há muita vergonha porque a maioria permanece durante muito tempo, e às vezes até com várias roturas pelo meio. E esses sentimentos muitas vezes requerem ajuda, e que a pessoa reorganize toda a sua vida. Note-se que esta pessoa provavelmente perdeu os amigos, ou se ainda tem alguns, geralmente não sabem nem da missa a metade, porque tiveram vergonha de contar, ou não o fizeram para proteger o companheiro, ou porque não queriam “ouvir” das amigas. Os familiares, às vezes também já não são tão próximos e não sabem da situação. Também ficam desestruturadas no seu trabalho – não é incomum vermos mulheres que tinham carreiras em franca ascensão, mas que de repente já não produziam aquilo que nas empresas estavam habituadas, ou perderam a confiança para lançar-se num projecto mais desafiante. Algumas são mesmo demovidas pelos parceiros de tentar.
Eles próprios as convencem a não tentar alcançar os seus objectivos.
Sim, porque isso é poder; alimenta a auto-estima, a folha de vencimento. E, portanto, muitas também já não têm a mesma estrutura de trabalho ou o mesmo reconhecimento; as pessoas notam que elas não estão bem, mas mesmo que ninguém note – embora seja difícil –, mas elas já não se sentem capazes, afecta o seu rendimento no trabalho. Porque depois também não dormem, ficam doentes; começam a surgir uma série de sintomas físicos. Então, quando termina, não é só fazer o luto normal de uma relação e de um amor que não resultou; é o perceber que afinal, não era sequer amor nenhum. Todas as memórias de coisas que foram feitas e ditas de que não nos orgulhamos, a vergonha e toda a estrutura que desapareceu, deixou de fazer coisas de que gostava… Portanto, tem de ser tudo reformulado, recuperado. É às vezes, partindo de uma posição que é mesmo de doença mental, de depressão; a pessoa pode até deixar de comer.
Pode, inclusive, ter sintomas de stress pós-traumático?
Pode ter muitos sintomas que são concordantes com o stress pós-traumático, porque é de facto, uma relação traumática que vem daquele vínculo patológico – sedução “forte e feia” no início, e depois o “terrorismo” e a humilhação. Há muitas vezes um Síndrome de Estocolmo, que é o vínculo raptado pelo raptor. A pessoa sabe que está tudo mal, mas procura o parceiro para a consolar. Há uma incapacidade de afastamento, muito baseada também na ideia de que não há ali mais ninguém, na convicção que os parceiros tóxicos incutem na vítima, de que nunca ninguém a irá amar como ele.
E estas dinâmicas relacionais também têm sempre presente a questão da codependência? Ou não necessariamente?
Sim, no limite, podemos estar a falar de pessoas que têm características de dependência emocional. Ou seja, que têm muito estas necessidades de estar uma relação, e dificuldade em imaginar-se sozinhas. Mas o conceito de codependência é muito conhecido também noutras patologias psiquiátricas e psicológicas. Na codependência, há a ideia de que a própria vítima alimenta a agressão; não conhece outra forma de amor que não seja através da agressão. No estereótipo, é aquela pessoa que provoca o agressor para ele lhe bater; ou a mãe que quer que o filho deixe de consumir tóxicos, mas todos os dias lhe dá dinheiro, e sabe perfeitamente que o dinheiro é para as drogas ou o álcool. A pessoa codependente alimenta, de uma forma muito directa, o comportamento patológico. E é claro que isto eventualmente pode acontecer em algumas relações, mas de um modo geral, não é isso que acontece. Regra geral, stamos a falar de mulheres muito capazes, bonitas, com competências intelectuais acima da média e profissões diferenciadas, perfeitamente independentes; muitas delas, até então, tinham vidas totalmente autónomas, mas que depois são apanhadas nesta narrativa de conto de fadas. E quem é que não quer um? Mas depois há uma derrocada. E os parceiros tóxicos são com frequência também muito sedutores, têm sempre “satélites”, e fazem questão que a pessoa saiba que há mais mulheres que o desejam. Na fase inicial, antes de se aperceberem do tipo de relação, as amigas da vítima também lhe dizem que o parceiro é um “sonho”, e que ela não o pode perder. Coisas desse género.
Os parceiros tóxicos seduzem as pessoas mais próximas da vítima e conquistam a sua simpatia?
Sim, seduzem toda a gente, tornam-se muito próximos dos amigos e da família da vítima, para que toda a gente transmita aquela sensação de que saiu à vítima a sorte grande. “Tu agarra esse homem”… E isto também vai minando a identidade daquela pessoa, porque com o tempo já não tem certeza de nada, não confia no próprio julgamento. E claro, há o típico gaslighting – em que o parceiro tóxico nega as percepções da vítima, como se ela estivesse só a ver coisas. Ao fim de anos a ouvir isto, a vítima começa a acreditar, e vai-se tornando dependente daquela relação, porque não há mesmo mais nada. E aquela ideia de que é possível estar numa relação diferente e saudável desaparece; a vítima acredita que só pode ter aquilo.
E qual é a melhor forma de evitar cair numa relação destas? Fomentando uma autoestima saudável?
Pois, essa é a pergunta de um milhão. Eu acho que há algumas coisas que são muito importantes. Uma, é a pessoa, de antemão, saber bem quais são os seus limites. Pode-se gostar muito de alguém e amar muito uma pessoa, mas há coisas que não se vão aceitar. E se estes limites estiverem muito bem definidos, já é mais difícil que um comportamento incorrecto do outro não faça soar o alarme. Se aquilo que nós precisamos e que nos traz segurança estiver bem claro, bem como quais são os limites inultrapassáveis, já sentimos o desconforto mais cedo – aquela “bomba de amor” toda logo na fase de sedução já parece desagradável.
E depois, volto a frisar: as nossas ideias sobre o amor; porque é que nós havemos de esperar que uma pessoa goste de tudo que nós gostamos, ou queira tudo o que nós queremos. Isso não existe. É preciso ter a consciência de que o amor dá trabalho, sim, mas não é sofrido, e os valores de respeito têm de estar acima de tudo. E se a esmola for muito grande, se a pessoa parece tão perfeita que é demasiado bom para ser verdade, se calhar é mesmo. Mas sobretudo, diria que tem muito a ver com os limites, e sim, os limites também têm a ver com a nossa noção de valor. A maioria das pessoas quer muito uma relação, também porque estamos constantemente a ser bombardeados com a mensagem de que isso é importante. E apesar de os tempos estarem muito diferentes, as mulheres ainda estão muito pressionadas para isso, sobretudo nas idades entre os 20, início dos 30 e 40. Muitas vezes, sentem-se confusas se não estiverem numa relação, e isso aumenta a disponibilidade delas para aceitar ou aguentar certas coisas. Acreditam que depois a relação melhora; e quando começamos nisto, já estamos com os nossos limites expostos, no caminho para uma relação tóxica. Então, pode ser muito importante reconstruir estas crenças sobre o amor e sobre o papel que a pessoa quer ter numa relação.
Este livro incide em particular sobre a “toxicidade” nas relações amorosas mas, como explicou, há relações tóxicas entre familiares, amigos ou colegas de trabalho. É mais difícil haver um afastamento de familiares tóxicos? Por se tratar de família, a pessoa sente uma culpa maior em romper?
Sim, sendo que a culpa do afastamento existe em todas as relações tóxicas, mesmo com parceiros amorosos. Mas com os familiares, por exemplo um pai ou uma mãe, é mais difícil porque a relação também é de outra natureza; são as pessoas que me criaram e me colocaram no Mundo. Nós não estamos muito preparados para o corte relacional com os pais; acontece, e acontece muito mais do que as pessoas imaginam, haver cortes de relação com os pais. E cada família terá as suas próprias razões, mas é uma coisa sempre vivida de facto com muita culpa. E lá está, também com muita vergonha, porque ninguém diz de ânimo leve que não fala com a mãe ou com o pai há anos – mesmo que sinta que foi uma dor dilacerante que a levou a tal. Mas, todas as relações que parecem mais “obrigatórias”, parece não haver escolha… Porque o namorado pode deixar de ser namorado, mas a minha mãe não vai deixar de ser a minha mãe.
Mãe só há uma, como se costuma dizer.
Exacto. Todas essas relações tornam este afastamento mais difícil, até porque muitas vezes não pode haver um afastamento físico. E com os pais ainda há uma outra coisa: teoricamente, na maioria dos casos, aquelas pessoas criaram-nos, desde o momento “zero”, em que não conhecíamos outra coisa. Então, pode imaginar-se a derrocada de identidade que isso pode fazer – é que nem chega a haver derrocada, porque aquela identidade nunca esteve verdadeiramente livre para se constituir em si mesma, a não ser sobre aquela depressão, agressividade, e peso da pessoa tóxica. E isso é muito penalizador do desenvolvimento dos miúdos, que serão pessoas adultas, e demora muito até que eles percebam que estavam a viver em famílias num clima de verdadeira opressão, violência e de desqualificação total da sua liberdade, e de como foram restringidas no seu crescimento e no seu desenvolvimento. Isto é uma marca muito maior. Todos nós sabemos, por mais saudável que seja nossa família, que trazemos sempre essa história connosco. Porque são aquelas pessoas que estavam lá quando não havia mais nada, houve um momento em que o mundo era só aquilo. Depois, as relações com os chefes, por exemplo, também podem ser muito complicadas, porque às vezes a pessoa não pode simplesmente vir-se embora. Pode sempre sair de um emprego, mas se calhar não pode no momento, ou da maneira que quer. E essa relação também é “obrigatória”, porque pelo menos durante um tempo, até que as coisas mudem, a pessoa está sujeita àquela relação e sabe que todos os dias tem de lidar com isso. E aqui não há tanto a questão da culpa, mas é a sensação de poder que existe. A pessoa sente que o chefe a trata mal, faz-lhe mal, inibe-a na maneira de estar, de ser e de trabalhar. E também cria verdadeiras hecatombes de falta de confiança, em que a pessoa não consegue fazer o seu trabalho. E não pode sair da relação no instante em que quer.
Sim, implica todo um processo.
Sim, nós dizemos que se a pessoa está a sofrer muito, tem de sair. E sim, tem de sair, mas isto é diferente de dizer logo “saia!”. Temos de ser realistas. Não se pode esperar que se diga à pessoa que o seu chefe é um grandessíssimo narcisista, e a pessoa se vá logo despedir e nunca mais volte. E isso pode ser também muito destrutivo; é como se fosse água mole em pedra dura. Mas a água não é assim tão mole, e vai minando, desfazendo, até a pessoa sentir que não tem opções. E isto vale para qualquer uma destas relações.
As últimas três fotografias foram tiradas por Daniela Ventura
“No passado, muitos déspotas e governos quiseram fazê-lo, mas ninguém compreendia o suficiente sobre biologia, e ninguém tinha meios computacionais e dados para hackear milhões de pessoas. Nem a GESTAPO, nem o KGB podiam fazê-lo. Mas, em breve, pelo menos algumas corporações e governos serão capazes de hackear sistematicamente todas as pessoas. Nós, humanos, temos de nos habituar à ideia de que já não somos almas misteriosas”. Estas sinistras palavras são do (também sinistro) historiador e escritor israelita Yuval Noah Harari – conhecido por best-sellers como Sapiens – numa reunião anual do World Economic Forum em 2020.
Mesmo com todos os progressos científicos, não sei se é verdade que já não sobra qualquer réstia de mistério ao ser-humano, mas, em todo o caso, parece-me que estas declarações são essenciais para entendermos a realidade actual e das últimas décadas. Desde logo, porque as palavras de Harari, proferidas no palco da elite que controla o Mundo a seu bel-prazer, mostra-nos – para quem queira ver e ouvir, em vez de enfiar a cabeça na areia – o futuro distópico que os nossos overlords têm planeado para nós. Não há como dizer que é teoria da conspiração; é abertamente assumido.
Mas a frase “nós, humanos, temos de nos habituar à ideia de que já não somos almas misteriosas” ecoou em mim, sobretudo porque é um ponto nevrálgico do monstro com que nos defrontamos. Sublinhe-se: quem manda em nós – Governos, grandes corporações, elites – conhece-nos de “ginjeira”. Para eles, somos como marionetas que manipulam habilmente através da propaganda, da comunicação social (por vezes, confundem-se), enfim, das acções que encabeçam. No fundo, há muito que já fomos manietados e “hackeados” por meio de técnicas sofisticadas de manipulação psicológica. Fazem de nós gato-sapato, levam-nos a caminhar em direcção ao precipício, sem que nos apercebamos, enquanto mantêm em nós a ilusão de que estamos a agir de livre vontade. Mas o nosso livre arbítrio é o mesmo dos habitantes da caverna da Alegoria de Platão, que julgam conhecer a realidade, quando apenas têm poder de vislumbrar as sombras.
Hoje, não há necessidade de instaurar uma ditadura no Ocidente. As mentes estão controladas, e por isso, as pessoas também. Julgamos eleger quem nos representa, mas o leque de candidatos que nos oferecem não representa os nossos interesses. Aqueles que estão na política para, de facto, servir o país, não têm grande margem de manobra – ou se portam bem e se conformam, ou são afastados. O poder apenas pode cair nas mãos de quem convém, e é isso que acontece, com a preciosa ajuda de uma comunicação social corrompida que os promove.
Os candidatos a governantes já foram há muito empacotados e estão prontos a servir no dia das eleições. A máquina de propaganda já tratou de os “vender”, para que possamos exercer a nossa “escolha”. Os exemplos deste processo são vários.
Mas olhemos para o nosso “pequeno mundo”, para o caso de Portugal.
Do lado do PSD, não parece arriscado apostar que Carlos Moedas sucederá a Luís Montenegro. Quanto ao Partido Socialista, ainda esta semana Pedro Nuno Santos inaugurou o seu espaço de comentário na SIC. O caminho rumo ao “trono” que António Costa ainda ocupa faz-se, assim, ao colo de supostos “jornalistas”. Na verdade, os mesmos que permitiram que o actual primeiro-ministro “açambarcasse” o poder com laivos ditatoriais, sem que fosse por isso mal visto – primeiro a António José Seguro, e depois a Pedro Passos Coelho. Na sua governação, pouco mais fez do que destruir o país, em uníssono com os interesses de organizações supranacionais.
António José Seguro, que de acordo com várias “fontes”, como se diz em ‘jornalês’, é uma pessoa (inconvenientemente) honesta, foi obliterado antes de ter sequer chance de se tornar primeiro-ministro. Chegou, aliás, a denunciar, numa entrevista, a existência de um “partido invisível na sociedade portuguesa, que tem secções em todos os partidos, fundamentalmente nos partidos do Governo”, e acrescentou que “é este poder fáctico que precisa de ser escavacado, de ser destruído”. Será que a sua posição sobre este “poder fáctico” teve algum peso no seu afastamento abrupto?
Porventura, o antigo líder socialista seria demasiado bom para governar – pelo menos, para a elite parasitária que se move nas sombras, para a comunicação social vendida, e para desgraça dos portugueses que, em vez de um político vertical, ficaram com um manipulador exímio que não olha a meios para atingir fins e que conseguirá dormir descansado enquanto vê o país a definhar e a apodrecer.
Talvez hoje, tenhamos perdido o “direito” de escolher um líder que, independentemente da sua ideologia, coloque os interesses colectivos à frente dos seus. Fala-se muito de uma “alternativa” ao Partido Socialista, e é verdade que parece não existir, nem à esquerda nem à direita. Nem tão pouco, arrisco dizer, nos partidos sem assento parlamentar. Mas, tendo em conta estes poderes fácticos que corroem a democracia, quem procura apenas uma alternativa ao Partido Socialista, falha o alvo.
Urge uma alternativa à corrupção e à subversão e que grassa em todos os partidos e demais agremiações de poder. Dito de forma simples, é preciso que o povo desperte do torpor, e que, pegando na afirmação de Harari que citei no início, devolva a “tirada” aos poderes instalados, e lhes diga: “têm de se habituar à ideia de que já não são um mistério para nós, e já não nos conseguem manipular”.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
É hoje um dos temas ‘tabu’. Salvo algumas excepções, e descambando sempre numa discussão ideológica e pouco racional, o debate sobre a imigração desenfreada – e repita-se, a imigração desenfreada – não encontra espaço nem tempo na sociedade civil. Tal como sucedeu na pandemia, ou em outras questões “fracturantes”, cria-se aqui um eixo onde apenas um lado é consensualmente aceite e as demais opiniões são proibidas. Não há lugar sequer ao meio-termo: ou se está visceralmente contra, ou incondicionalmente a favor.
Aqueles que divergem, rapidamente são apodados de insensíveis e desumanos vilões que encolhem os ombros perante a desgraça alheia, ou pior – com sorte são xingados simplesmente de fascistas. Por outro lado, quem aceita sem reservas as crescentes remessas de imigrantes são os humanistas, os evoluídos, os solidários e os altruístas; enfim, os cidadãos exemplares com um lugar reservado no céu. Este compasso moral foi, nas últimas décadas, sendo paulatinamente estabelecido, até se cristalizar como uma verdade inquestionável. O problema disto é ser uma dicotomia simplista, e por isso errónea, que ignora a complexidade do tema e rejeita qualquer nuance.
Em Portugal, os imigrantes têm aumentado de uma forma galopante, sobretudo desde que António Costa é primeiro-ministro. Por exemplo, em Setembro noticiou-se que só este ano se passou de 781.915 imigrantes, no final de 2022, para os 980.000. São quase 200 mil. Por ano, nascem apenas cerca de 80 mil crianças e esse número apresenta uma tendência decrescente há décadas também porque muitos jovens portugueses tiveram de emigrar – e nos países onde lhes deram melhores condições lá têm os seus filhos.
Sempre podemos dizer que os imigrantes que escolhem o nosso país procuram o mesmo, mas convém, já agora, ver se a “troca” faz sentido, sobretudo porque os nossos emigrantes, além de portugueses (o que, salvo melhor opinião, não é desonroso), saem agora com um curso superior, que é um investimento também público a ser aproveitado por países terceiros.
Em Março, com as autorizações de residência automáticas para cidadãos da Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP), Portugal passou de uma política de portas abertas para portas “escancaradas”. Atendendo às enormes dificuldades na Habitação e na Saúde, é pertinente interrogarmo-nos sobre o porquê de tal decisão. Qual o intuito? É por pensar que duas ou três dezenas de emigrantes se podem encaixotar num T1 na Mouraria? É mesmo disto que o país precisa? É, sequer, uma medida recíproca e proporcional? Não. Facto é que, em apenas seis meses, mais de 151 mil vistos já foram concedidos.
Bem conhecemos as declarações diárias de personalidades políticas, incluindo membros do Governo , assumindo que tanto a população portuguesa como a europeia estão em queda livre, e apontando a chegada de imigrantes como a única saída para esta crise, para o aumento do PIB e para a sustentabilidade da Segurança Social. Mas esta será sempre uma solução artificial, além de ser um argumento facilmente desconstruído.
Perante um Governo que não só permite, pela inacção, a debandada de portugueses – não criando condições para os jovens se estabelecerem como famílias –, forçoso é concluir que não existe vontade política de assegurar a renovação das gerações com portugueses de origem. Renovar é sempre bom, mas qual seria o mal se fosse sobretudo com portugueses. Ou ser humanista é abrir os braços aos imigrantes e escorraçar os portugueses?
Quem defende uma imigração descontrolada costuma invocar um imperativo moral, que teoricamente faz sentido: gozando de um nível de vida superior, a Europa deve abrigar todos os estrangeiros porque é o “correcto”. Mas onde é que começa, e onde acaba, exactamente, a solidariedade destes bons samaritanos? Quando é que uma “ajuda” deixa de ser razoável e se torna contraproducente? E será que as objecções à imigração não têm legitimidade?
Quem responde “não” a esta questão, por regra faz vista grossa a consequências negativas; a começar pela perda de coesão e da identidade nacionais – Roma e Pavia não se fizeram num dia, e também a ausência de conflitos regionais (vd. Espanha) deve-se ao facto de sermos um país uno há mais de 800 anos. Mas esse nem é o pior mal, e os outros males são pouco humanistas. Receber imigrantes de braços abertos e deixá-los depois amontoarem nas ruas ou em habitações sem condição, atirando-os à pobreza, não é ser humanista. Deixá-los cair em redes de tráfico humano ou de extorsão, não é ser humanista.
Bem sei qual é o outro lado da moeda: se um Estado restringe a entrada de imigrantes, esse Estado é xenófobo e racista. E também sei que se pode ser preso por ter e não ter cão: se aceita, então é-se acusado de não fazer o suficiente na integração. Nada de novo debaixo do sol, ou no “reino de Portugal” (leia-se, Dinamarca) : faça o que fizer, as culpas de todos os males do mundo recaem sobre o Ocidente. Não há avé-marias nem pais-nossos que lhe dêem a Salvação, depois de todos os pecados cometidos.
Contudo, aqueles que fazem escárnio do legítimo direito do Ocidente em preservar o seu património cultural e identidade nacional, defendem-no curiosamente, na maior parte dos casos, esse direito para outros países. Na verdade, não é que desprezem a afirmação da nacionalidade: apenas parecem fazê-lo com aqueles que lhes são culturalmente mais próximos. Não preconizam a abolição de fronteiras ou a diluição de todos os países num mosaico multicultural de cidadãos sem noção de pertença e de raízes históricas, como expatriados dentro dos próprios países. Caso contrário, não poderiam condenar – como condenam – o colonialismo nem defender a soberania das antigas colónias e a sua independência e autonomia.
A sua aversão àquilo que denominam, com desdém, de “nacionalismo”, não se aplica, por exemplo, a nações africanas, árabes, ou aos países que empregam políticas estritas para “proteger” a sua composição demográfica, como a China ou Israel. A “conversa” da inclusão e da diversidade revela-se, assim, pura demagogia, ou uma flagrante hipocrisia. Apregoam o respeito pela singularidade dos diversos países e respectivos povos; mas só para alguns.
Na verdade, e perdoe-se o pleonasmo, a verdadeira diversidade pressupõe a existência de países e culturas fortes, coesas e heterogéneas, que interagem saudavelmente entre si, em vez de um (ou muitos) melting pot (em) que nos querem “cozinhar”, sem se saber se, no fim, ficamos todos fritos, assados ou esturricados.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Jornalista veterano, Mário Carneiro anda no ramo há mais de 30 anos, já passou pelos três principais canais de televisão portugueses, e é, desde Março de 2020, director de Informação do portal Sapo. Juntamente com o também jornalista António Luís Marinho, publicou ainda os livros 1974:o ano que começou em Abril, 1975: o ano que terminou em Novembro, e Portugal à lei da bala. A febre do “wokismo” levou-o agora a despir a pele de “jornalista sério”, para encarnar uma postura mais humorística e provocadora: com Uma noite descansada: dez contos tradicionais politicamente correctos faz uma paródia do clima de censura actual, que tudo quer “corrigir”, e reescreveu dez conhecidas histórias infantis, de forma a não ferir quaisquer susceptibilidades…
Não é o primeiro livro que escreve, mas este Noite descansada: dez contos tradicionais politicamente correctos destoa bastante dos anteriores. Que motivo o levou a escrevê-lo?
Isto tem uma motivação muito antiga: há cerca de 30 anos, quando se começou a ouvir falar do politicamente correcto, tive a ideia de fazer uma coisa enorme, que era um dicionário de português para português politicamente correcto. Era um bocado a onda deste livro, só que em dicionário, e comecei. Só que 30 anos depois, ainda estava para em “Abóbora”, quer dizer, ainda não tinha passado da letra A. E é um trabalho muito chato, que nunca mais acaba, e é desgarrado, não tem a continuidade de uma narrativa. E, sinceramente, o que me motivava, por um lado, era achar que tinha de ser feito e, por outro lado, tinha medo que alguém fizesse aquilo antes de mim, e eu iria ficar doido por causa de todo o trabalho que tive e que ia para o lixo. Até que decidi que não era aquilo, de facto. E agora, mais recentemente, quando vi aquela censura – que não tem outro nome – aos contos de Roald Dahl, achei que era um bocado demais. Ao princípio, eu ria-me com isto. E depois, muitas pessoas com quem me dou, começaram-me a chamar a atenção que, se calhar, não era motivo para rir tanto assim. Mesmo assim, eu continuava-me a rir, porque tenho uma atitude de riso perante a vida e perante o bizarro. Mas comecei a achar que isto se calhar não é tão inocente e não é tão ‘simplesmente parvo’ como parece, se calhar merece uma outra abordagem. E achei que a abordagem interessante era mesmo esta. Então, pensei, ok, vou jogar o jogo deles: vou pegar nos contos tradicionais, e vou fazer uma versão dos contos – não como eles fariam –, mas muito para lá do que eles fariam, e expor todo o ridículo deste tipo de argumentação e de comportamento e de censura.
Portanto, já “detectou” os primeiros sinais do politicamente correcto há 30 anos.
Sim, há 30 anos era em pequenas coisas. Eram pequenas coisas, se calhar mais ou menos inocentes e, talvez até, bem-intencionadas. Só que depois isto começou a alastrar e agora está em todo o lado. E a atitude, ou de ignorarmos, ou de rirmos, pode ser perigosa, porque de repente isto pode estar de tal forma instalado que é difícil de desconstruir. Portanto, dei o meu contributo para começar a ‘desconstrução’.
Parece ser consensual que este fenómeno começou nos Estados Unidos. Também tem essa percepção?
Sim, também tenho essa ideia. Isto é engraçado porque se nós olharmos para o que isto é – e estou a ser o mais honesto que consigo ser em relação a transmitir aquilo que eu penso mesmo –, eu acho que isto é uma mistura de 30% de patetice, 30% de paternalismo e 30% de puritanismo. E depois sobram 10% de boas intenções, e metade delas são parvas. Portanto, eu acho que isto tem muito pouco que se aproveite, mas nestes 3 P’s que eu vejo aqui, quer o puritanismo, quer o paternalismo, são conceitos muito presentes na cultura norte-americana. Este cuidado ultra paternalista e ultra puritano tem muito a ver com eles. E é um modelo que, eu sei, e todos sabemos, que até nos Estados Unidos é contestado por muita gente. E o que diríamos cá? É que o ultra paternalismo e puritanismo não têm raízes na nossa civilização, muito pelo contrário. Ou já tiveram, se calhar, mas não têm neste momento.
Mas mesmo assim está a pegar por cá…
Está a pegar por uma razão simples: porque é um discurso fácil. É um discurso “da moda”, e é um discurso que não obriga nem a ter background nem a fazer nada, é só ‘desmontar’. Ninguém tem de apresentar uma alternativa, tem só de desconstruir o que já está feito. Isto é extremamente fácil, e permite a desresponsabilização também. E é preocupante porque nós, em termos civilizacionais, temos todo o direito à indignação e é bom que nos indignemos, nos revoltemos e que lutemos pelos direitos dos outros e pela igualdade… Seja pelo que for, temos todo o direito, e se calhar até o dever, de nos indignarmos. Mas acontece que estamos a viver uma época em que as pessoas vão atrás de quem é o indignado e não de qual é a indignação. Basta pensar que há uns anos estávamos todos, a meu ver, legitimamente indignados, porque os talibãs destruíram as estátuas dos Buda com dinamite. Agora, não conseguimos ter o mesmo tipo de indignação quando vemos estátuas nossas, da nossa civilização, da nossa cultura ocidental, a serem pichadas, derrubadas e escondidas. Porquê? Porque a indignação é a mesma, mas o indignado é outro. Portanto, isto de escolher lados e causas conforme quem é um indignado e não conforme qual é a indignação, é altamente preocupante. E estas selectividade também é própria do politicamente correcto.
Talvez a razão dessa indignação selectiva seja porque não se trata de uma questão de valores?
Não, não!, trata-se de abrir as redes sociais e olhar e ver: “quem é que hoje está no pelourinho? O que é que lhe estão a atirar? Vou contribuir também com a minha batata ou com o meu pedregulho e atirar”. Não exige nada, desresponsabiliza, começa e acaba hoje, for preciso… Não há melhor.
Para além da reedição dos contos de Roald Dahl, houve mais algum episódio ou notícia que o tenha chocado particularmente?
Sim, há coisas que me chocam. Quer dizer, só nos podem chocar… A história da professora de Artes nos Estados Unidos, que foi demitida da escola porque mostrou aos alunos um PowerPoint ou uma fotografia que tinha a estátua de David, e como os pais não tinham sido avisados, no início do ano, de que ela ia mostrar material “pornográfico”… É assustador: “pornográfico”! E ela foi demitida. Quando nós começarmos a consentir isto… Obviamente que eu – como qualquer pessoa normal – acho que as crianças de qualquer idade, sobretudo em idade escolar e em meio escolar, não podem ser submetidas a ver pornografia. Como é óbvio. Só que, caramba, se a estátua do David é pornografia, onde é que nós vamos parar?
Tenho a percepção de que muitos jornalistas parecem “alinhar” com e promover, de certa forma, o politicamente correcto: em peças, reportagens, e artigos de opinião. Nesse aspecto, o Mário sente-se muito diferente da generalidade dos jornalistas?
Espero que não. Sinto-me diferente, mas espero que não seja diferente da maioria. Defendo com a vida que as pessoas possam escrever o que quiserem em artigos de opinião, porque são espaços de opinião, assinados. Portanto, se um jornalista com carteira profissional quiser fazer um artigo de opinião a defender rigorosamente o contrário daquilo que eu estou a defender, acho lindamente. Nas notícias, já não acho graça nenhuma que esteja presente qualquer tipo de contaminação por qualquer tipo de corrente ou de “moda ideológica” que esteja em vigor. Há aqui uma questão, que é: há muita gente que quer ficar bem na fotografia, e faz o que for preciso para ficar bem na fotografia. Eu não quero ficar bem na fotografia – eu nem faço questão de ficar na fotografia. Agora, não vou permitir é que transformem a História numa caricatura do que é a História. A História tem um papel lixado: é sempre um réu. Nunca nos julga. E nós, no passado, cometemos erros grotescos, idiotas, cruéis, hediondos. E enormes virtudes também! As mesmas mãos que fizeram a bomba atómica, fizeram as catedrais góticas. As mesmas mãos que compuseram as sinfonias de Beethoven, fizeram câmaras de tortura. Portanto, nós, para trás, temos do melhor e do pior. Agora, nós não podemos ter o desplante de achar que podemos julgar a História. Aliás, alterar a História: esse é que é o ponto-chave. Olhar para trás e ter um juízo crítico, e pensar “isto foi um disparate tão grande que aquilo que nós mais queremos é que não se repita”, é-nos exigível. Olhar para trás e ‘dourar a pílula’ ou alterar as coisas… Nascer com um sentimento de culpa! Esta coisa, que acaba por ser quase judaico-cristã, que é: nós, enquanto comunidade, estamos todos a pedir desculpa por coisas que os nossos antepassados fizeram. E que estão ultrapassadas! O mais importante é que nós, no futuro, não façamos igual ao que fizemos anteriormente, e integrarmos os erros e as pessoas que foram vítimas desses erros no passado. Agora, esta autoflagelação constante… Ainda agora nasci e já tenho culpa? Não faz sentido nenhum. E sinto, sim, que algum jornalismo – e aí, eu sou um optimista, espero mesmo estar certo –, e não a maior parte do jornalismo, segue essa corrente. É uma corrente facilitista. Portanto, não é de espantar.
Mas nota-se bem?
Sim, nota-se, aqui e ali. Não posso dizer que é este órgão de comunicação, ou este jornal ou aquela rádio, não. Se isto continuar assim, daqui a uns anos, talvez até se note. Mas não, por enquanto, o que noto é mais a nível individual: esta ou aquela pessoa, ou este tipo de artigos. Aí sim, nota-se.
Portanto, diria que se calhar uma parte boa dos seus colegas na comunicação social mainstream não ia achar muita piada a este livro?
[pausa] Duas coisas. Primeiro: acho que alguns nem iam perceber. Não iam perceber. Explico-me, para não parecer que é uma sobranceria intelectual. Não iam perceber porque iam ficar na dúvida sobre o que eu estava, afinal, a fazer: se era um exercício de sarcasmo ou se era um exercício de exposição de uma causa. E em segundo lugar – já no outro dia disse a alguém, e sublinho –, este livro tem uma coisa óptima. É um excelente presente para dar uma pessoa de quem gostamos, e é também um excelente presente para darmos a uma pessoa de quem não gostamos [risos]. Portanto, acho que isto diz tudo. Mesmo dentro da classe profissional, tão depressa ofereceria este livro a um jornalista que eu admiro e de quem goste, como a um jornalista que não gosto tanto ou cujo trabalho não respeito tanto.
Este livro é uma reescrita de contos em jeito de paródia, mas já temos visto remakes de histórias e filmes da Disney, por exemplo, em nome da diversidade e da inclusão. Em relação às crianças, vê com alguma preocupação que estejam a viver em ambientes cada vez mais “assépticos” onde é já proibido chamar qualquer ‘nome’, em jeito de brincadeira, a um colega?
Não; ofender, acho sempre péssimo. Uma brincadeira só uma brincadeira quando as duas pessoas estão a brincar. Não defendo que as pessoas possam ser ofendidas, nem que possam ser ostracizadas por serem diferentes. Mas também não defendo uma “cultura” do melindre permanente: tudo pode melindrar as pessoas, tudo pode fazer mal e tem de se ter cuidado com tudo… Isso não. Educar é preparar as crianças para um mundo que vai ter dias de sol e dias de chuva. Portanto, não é só oferecer, ‘em termos comportamentais’, t-shirt e protector solar. É, também, oferecer botas e guarda-chuvas, porque há dias que não vão ser bons. Os miúdos vão ter dias bons e dias maus. E educar é prepará-los para os dias bons, prepará-los ainda melhor para os dias maus, e nunca esquecer que tanto nos dias bons como nos dias maus, uma coisa que têm de fazer é estar atentos para dar a mão a alguém que esteja ao lado e ajudar. É tão simples quanto isto. Tudo o resto, esta forma de estar na vida em que se tem de ter um cuidado excessivo para não melindrar, e em que já estamos nós a medir a capacidade de os outros ficarem melindrados… Isto é o paternalismo levado ao extremo. E uso um exemplo, que é: os cegos, em geral, não gostam de ser tratados por “invisuais”. Quem criou a expressão “invisual” foram as pessoas que veem, e começaram a tratar os cegos por assim. Sem lhes perguntar a opinião – e eles não gostam. É um ultra paternalismo. As pessoas têm uma doença que se chama cegueira, portanto, são cegas. Eles próprios não querem, ou não apreciam, ser tratados por “invisuais”. E este cuidado extremo, esta paranoia com o melindre, não prepara as crianças. E isso preocupa-me. As crianças terem só uma versão da História, isso já tem a ver com a educação que os pais lhes dão. Agora, não estão a preparar melhores adultos, de todo. Estão a preparar adultos indefesos, porque nem toda a gente está a fazer isso. Se toda a gente estivesse a fazê-lo – eu acharia na mesma que era patético, mas pronto –, as sociedades vindouras seriam assim. Mas não é o caso. Esses miúdos ultraprotegidos vão estar lado a lado, nos campos de futebol a jogar à bola, nas salas de aulas e nas filas para o emprego, com miúdos que foram educados com os princípios – e aqui vou ter de usar a expressão – “normais”. E vão estar em desvantagem.
Pois, porque já não nasceram e cresceram nesse ambiente e não ganharam “anticorpos”.
É engraçado; há uns anos, lembro-me de ter lido um artigo, que faz todo o sentido, e que dizia que as crianças estavam a perder imensas imunidades por terem deixado de ter animais dentro de casa, como cães e gatos. Antes, os miúdos andavam com os cães e com os gatos, metiam-lhes a mão e depois metiam na boca… E os miúdos apanhavam umas viroses, e ganhavam uma série de imunidades. Quando os cães e os gatos começaram a estar mais afastados, os miúdos começaram a perder imunidade, porque não estavam expostos a essas “agressões”. Portanto, eu não sou adepto de que os miúdos devam ser postos dentro de pocilgas e de currais, para andarem ali a rebolar na ‘caca’ dos animais e saem de lá todos fortes. Mas se calhar os cães e os gatos que nós tirámos de dentro de casa há uns anos, fazem falta. E aqui é a mesma coisa: esta ultra cultura de melindre que não se pode dizer nada ao menino, isto não prepara ninguém! Retira-lhes defesas naturais e anticorpos. Vamos ver o que acontece daqui a uns anos… Hoje, já nos queixamos que esta gente toda tem é muitos direitos e poucas obrigações. No outro dia, alguém dizia, com uma certa graça, que aquilo que estas gerações dizem que é uma exigência, para as anteriores era uma ambição. Andam-se a perder aqui passos pelo meio, e se calhar não é boa ideia.
Parece que é tudo cada vez mais fácil?
Sim, e é mentira, porque não é nada fácil. Se há coisa que nós aprendemos à medida que vamos vivendo, é que a vida não é fácil. Mas se calhar também faz parte da magia dela.
Disse que este politicamente correcto é uma mistura de puritanismo, com paternalismo e patetice. Portanto, não vê que haja, também, más intenções por parte de algumas pessoas?
Pois, eu sei que existe um bocadinho, digamos, a tese de que isto é um movimento, e que tem qualquer coisa por detrás. Eu acho que isto não é orgânico, e acho que a estupidez, felizmente, não é orgânica. Portanto, há núcleos de estupidez e, actualmente, com as redes sociais, as pessoas começam a encontrar mais pontos de contacto e razões para se identificarem. E, se calhar, começam-se a sentir mais normais por serem estúpidas. O que eu acho é que existe muita estupidez, que está espalhada, e com a facilidade que temos hoje com as comunicações, esta estupidez se calhar liga-se com mais facilidade, e dá a ideia de que é um movimento. Não me parece que seja um movimento, mas se calhar posso estar enganado e a ser ingénuo. Talvez haja três ou quatro pessoas mais organizadas que querem fazer alguma coisa disto, mas não me parece que seja.
Uma das consequências deste fenómeno, é que aqueles que se opõem, acabam por se alinhar mais com movimentos de direita como uma forma de tentar combatê-lo.
Sim, é mais ou menos fácil isso acontecer, mas também é um bocado tonto. Vamos lá ver: o puritanismo, levado ao extremo, é um conceito muito mais caro à direita do que à esquerda. É quase uma questão de rigidez moral. A esquerda é que tinha, ou costuma ter, quase o exclusivo das grandes liberdades morais, dos livres-arbítrios morais… Eu sei que de vez em quando parece colar, mas depois acaba por ser contra-natura. Lá está, eu acho que isto é estupidez, e a estupidez é transversal. Há estupidez à esquerda e à direita, génios à esquerda e à direita… Isto é um comboio de estúpidos [risos]. Não, também estou a exagerar… Mas é uma coligação de estupidezes.
E na sua visão, combate-se com o humor?E o jornalismo, também pode ter um papel?
O jornalismo, se for sério, tem sempre um papel. E o jornalismo tem de ser sério. Tem sempre um papel, que é pôr um travão a coisas que não façam sentido. Portanto, o jornalismo tem o seu papel – não pode ser permeável às modas. Não pode! Nem às modas linguísticas, nem às modas ideológicas ou morais. O jornalismo é um espelho da sociedade e do tempo em que vivemos. Se calhar, com o tempo, esta permeabilidade torna-se uma inevitabilidade. Agora, enquanto é só uma moda, o jornalismo não pode andar atrás de modas.
Quanto ao humor, eu diria que é uma boa ferramenta. Usando a linguagem dos contos – que é de contos que estamos a falar –, isto é um bocadinho a história do traje novo do rei, do miúdo que diz “o rei vai nu”. Este exercício de apontar o ridículo de o rei ir nu, e toda a gente estar a gabar a roupa nova do rei, é um exercício que tem um bocadinho de humor, um bocadinho de sarcasmo, mas também tem um bocadinho de tristeza por ter de estar a fazer isso. Mas acho que tem de ser feito. Eu não ficava bem com a minha consciência se visse isto a acontecer e não fizesse nada, se me mantivesse só a comentar com amigos, a dizer “que estupidez, já viste”, e por aí fora. Eu acho que o humor não vence guerras, mas resiste.
Pois, há quem ache que o melhor a fazer é mesmo ridicularizar e usar o humor como “arma”.
Sim, é resistência. Isto não é uma guerra, e ainda bem que não é. Mas também se fosse uma guerra – lá está –, o humor não vence guerras, o humor ajuda na assistência. A Segunda Guerra Mundial tem excelentes anedotas, e muitas delas – até li um livro há uns anos –, contadas por judeus que estavam a passar o pior que se pode imaginar e que perceberam que, se calhar com o humor, não ganhavam a guerra, mas resistiam.
Até agora, já teve algumas reacções ou feedback ‘engraçados’ ao livro?
Até agora, as pessoas têm sido todas muito simpáticas e têm gostado muito, eu acho [risos]. Muito honestamente, não é por ter sido eu a escrever, mas acho que o livro está muito divertido. Eu diverti-me imenso a escrevê-lo. Acho que o livro está divertido e que as pessoas se divertem a ler. E ainda não tive – eventualmente terei, e estou pronto para isso, para debater alguma coisa que alguém não goste, ou que alguém, justificadamente, queira contrapor… Mas não, até agora, as reacções têm sido mesmo muito positivas.
Fronteiras e “muros”: se o mundo precisa de mais ou de menos é uma questão polémica e fracturante. Há quem defenda um reforço das fronteiras a nível global, e quem gostasse que as linhas que dividem as nações fossem mais permeáveis. Escritor, locutor e agente literário escocês, James Crawford investigou os arquivos arqueológicos e arquitectónicos durante mais de uma década e está entre os que acreditam ser possível um Mundo onde as fronteiras dividem menos e agregam mais. Através de dados históricos, viagens, e até Mitologia, este escocês procurou entender como começaram e evoluíram, até aos dias de hoje, as dinâmicas em torno das fronteiras. O resultado foi o livro O poder das fronteiras, recentemente editado em Portugal pela Saída de Emergência, e que foi o foco de uma conversa com o PÁGINA UM.
Em O poder das fronteiras, explica que foi uma semana específica de 2018 que despertou em si a vontade de compreender a origem das fronteiras e a forma como moldam o nosso Mundo. Quando decidiu escrever este livro, o que tinha em mente?
Foi o tipo de sensação que se tem quando a pressão acumulada sobre alguma coisa se começa a intensificar. Claramente, existem problemas em torno das fronteiras, e sempre existiram, mas pareciam estar a tornar-se cada vez mais sérios. E eu tinha esta questão: serão as fronteiras um sintoma? Toda a tensão, conflitos e pressão em redor das linhas fronteiriças, seriam um sintoma de outras questões, ou, até certo ponto, seriam as próprias fronteiras que estavam a causar estes problemas? A forma como operam já não resulta… Foi essa questão que eu me propus a responder. Esse sentimento, de que falo no início do livro, essa semana em que eu via, em todo o lado, notícias sobre a fronteira dos Estados Unidos com o México, ou o conflito israelo-palestiniano, ou as Coreias do Sul e do Norte; e depois, o então primeiro-ministro do meu país a dizer: “fizemos um acordo que vai acabar, de vez, com a livre circulação”, como se isso fosse uma coisa boa. Senti que o Mundo tinha enlouquecido, o meu país tinha enlouquecido.
Não percebeu os motivos dessa alegria…
Perguntei: que é que estava a acontecer? Então, tudo aquilo me colocou numa missão, digamos assim… Eu acho que as pessoas não entendem realmente de onde vêm as fronteiras. Qual é a sua origem. Onde começaram. Como mudaram ao longo do tempo. E como estão a funcionar actualmente. E será que as fronteiras conseguem realmente subsistir no Mundo Moderno? Há tantas situações, e não apenas com fronteiras, mas com outros assuntos, em que estabelecemos uma maneira de fazer as coisas, e depois o Mundo muda e essa maneira deixa de funcionar. Mas agarramo-nos a isso, porque é o que conhecemos; e eu acho que as fronteiras são um dos exemplos mais extremos disso. Foram criadas para resolver um problema específico, que foi uma guerra religiosa em meados do século XVII. Mas não funcionam quando lidamos com fenómenos como a globalização, a Internet, as alterações climáticas e a migração em massa, porque são problemas diferentes. Então, o livro é sobre tentar entender se as fronteiras, como operam actualmente, serão sustentáveis. E se não forem, o que podemos fazer?
Para falar no presente e no futuro, recua até à fronteira mais antiga que se conhece: a Mesopotâmia…
Falar sobre essa primeira fronteira, este pedaço de um pilar que marcou aquilo que temos a certeza de que foi uma fronteira; vê-la e retirá-la do armazém do Museu Britânico e tê-la à minha frente… Não era muito grande, e estava cheia de inscrições. Pela tradução, alguns sugerem que o que está lá escrito foi a primeira tentativa de fazer História. Antes disso, tudo acontecia num eterno presente; não se tentava juntar uma sequência de eventos, que é como reconstruímos a História. Esta fronteira “explicava” porque é que lá estava. Nessa primeira tentativa de escrever História, temos o primeiro registo de sempre do uso da frase “Terra de Ninguém”. Tocar naquele objecto com os meus dedos, e pensar no facto de ter sido escrito 4500 anos antes de eu lhe ter tocado, e saber o impacto que essa frase teve no Mundo ao longo do tempo, sobretudo no início do século XX, com a Primeira Guerra Mundial… E a forma como a Primeira Guerra Mundial foi quase como uma guerra fronteiriça, em que se criaram estas duas longas linhas, que vão desde o Mar do Norte até à fronteira da Suíça, nos Alpes, e enviaram pessoas através dessa linha para lutarem umas contra as outras; é tão grotesco. Mas o facto de haver uma conexão entre esse pilar fronteiriço, que eu toquei, que é de 2400 a.C., e a Primeira Guerra Mundial, foi realmente chocante.
Visualização da “primeira” fronteira do mundo no Museu Britânico
Fez várias viagens para escrever este livro. Que descoberta ou momento destacaria?
Ir para West Bank, e ficar no Walled Off Hotel, do artista Banksy, mesmo ao pé do muro da Cisjordânia, foi uma experiência muito estranha. O hotel é ao mesmo tempo uma piada e uma provocação, e uma forma de arte de protesto, mas também é muito real para as pessoas que vivem lá, para os palestinianos. Eu acho que nós, no Ocidente, não conseguimos sequer imaginar como será viver ao lado de um muro de cimento de oito metros de altura, que nos separa de uma terra que sempre conhecemos. É algo tão surreal. E sei que é muito difícil, mas se tirarmos a religião e a política do West Bank, durante um segundo, o que temos é quase o futuro sombrio das fronteiras. Se as coisas correrem mal no Mundo, veremos mais destes muros a aparecer em todo o lado e, em certa medida, é o que estamos a ver. E já não se trata de dividir dois países, que foi o que as fronteiras começaram por fazer. Agora, as fronteiras servem para impedir a entrada de certas pessoas e para a divisão entre ricos e pobres. Essa parece ser a tendência; tentar conter o fluxo de migração em massa a nível global, em vez de ser uma questão entre duas nações. É sobre a circulação de pessoas, e o que se vê em Israel é um exemplo de quão extremo isso se pode tornar.
Vista da varanda do Walled Off Hotel, do famoso artista britânico Banksy, para o muro da Cisjordânia, em Belém. O hotel é conhecido por ter “a pior vista do mundo”.
Fala também na queda do Muro de Berlim, e de como esse momento fez com que alguns antecipassem um mundo com menos fronteiras, mas que não foi bem assim. Na sua opinião, o mundo ficou mais ou menos dividido, desde então?
As evidências sugerem uma maior divisão. A queda do Muro de Berlim parecia abrir a possibilidade, não de um Mundo sem fronteiras, mas de um Mundo onde o impacto das fronteiras se faria sentir menos. E nós, obviamente, vivemos isso, experienciámo-lo dentro da União Europeia, com o Acordo de Schengen. Grande parte das infraestruturas fronteiriças entre países europeus foram desmanteladas e podíamos circular com bastante liberdade; milhões e milhões de pessoas podiam circular livremente. Esta era a liberdade de movimento, que Theresa May, a antiga primeira-ministra britânica, falou em terminar, como se isso fosse algo positivo. Quando o Muro de Berlim caiu, havia apenas 12 muros fronteiriços em todo o mundo. Neste momento, há mais de 74, e há mais a serem construídos. A maioria foi construída desde o início dos anos 2000, nos últimos 20 anos. Então, apenas com base na evidência física de separação, é um aumento de seis vezes desde 1989.
Um paradoxo…
De certa forma, a fronteira que era o Muro de Berlim, que fazia parte da Cortina de Ferro, dividiu o mundo em dois, mas agora dividimos o Mundo em muitas partes diferentes. Porém, sem dúvida, o sentido do Norte global e do Sul global é onde estão as maiores divisões e de onde brotam as maiores tensões. Seja com a fronteira dos Estados Unidos e do México, seja o Mar Mediterrâneo, como esta espécie de fronteira marítima que as pessoas estão sempre a tentar atravessar, e todos os problemas que tivemos com barcos de migrantes. Depois, vemos coisas como o Governo britânico a tentar enviar refugiados para Ruanda, a terceirizar uma fronteira a 643 quilómetros a sul do Reino Unido. Todas estas tendências, na minha opinião, são uma última tentativa de nos agarrarmos a uma forma antiga de fazer as coisas.
Não está muito optimista…
E diria que há duas maneiras de ver isto: uma optimista, que é interpretar como um estágio de negação que se tem sempre antes de as coisas mudarem, e quase forçam mais, porque se trata de simbolismo… E acho que muitos dos muros que construímos, seja o muro de Donald Trump no México, ou o movimento “parem os barcos” na Inglaterra, ou os muros que estão a ser construídos entre a Grécia e a Turquia, ou entre a Polónia e a Bielorrússia… Sabemos que estes muros não são, na verdade, muito eficazes a impedir que as pessoas circulem. São construídos para apelar aos eleitores, para que os partidos de direita, em particular, pareçam fortes. Por isso, tornam-se um símbolo, mesmo que sejam ineficazes enquanto políticas.
No seu entender, foi o que aconteceu com o Brexit?
Acho que foi uma espécie de olhar nostálgico para o passado, um dos aspectos que espoletou o Brexit, no meu país: uma sensação de tentar recuperar a grandeza do Império Britânico, virando as costas à Europa. E obviamente falhou redondamente. Podemos ver economicamente o que aconteceu ao meu país desde então, mas também podemos ver o poder de uma fronteira através disso. As fronteiras permitiram o desenvolvimento das nações. Antes de haver fronteiras, a palavra “nação” não existia. Não pensávamos em identidade nacional, porque as fronteiras não eram desenhadas tão duramente como foram depois de meados do século XVII. E agora há quase a sensação de que as próprias fronteiras são a fonte do nosso nacionalismo, por isso definimo-nos em oposição a outras pessoas. E acho que foi isso que aconteceu no Reino Unido, definirmo-nos em oposição à Europa. Podemos ver que na América há uma política isolacionista que define a posição americana em relação aos outros países, que tenta virar as costas para o mundo e ter essa política de “América Primeiro”. Mas com o impacte das alterações climáticas, a pressão que vai ser colocada nas fronteiras será tão extrema, que penso que vamos ser confrontados com a realidade de mudar a forma como funcionam.
Então, que modelo imagina para o funcionamento das fronteiras? Um modelo mais cooperativo, ou um mundo sem fronteiras?
Eu não acredito que alguma vez possa haver um Mundo sem fronteiras. Logisticamente, seria muito complicado. Mas já tivemos conflitos por causa de fronteiras, vimos isso a acontecer. Aconteceu na Europa, e lidámos com isso de uma forma, de certo modo, que o mundo nunca viu. Sempre que alguém fala dos problemas com as fronteiras, as pessoas dizem: “não é possível um mundo sem fronteiras, é utópico e louco”. E sem dúvida que não é o que eu defendo. Se recuarmos, como eu tentei fazer no livro, e desconstruirmos o que é uma fronteira, vemos que, no final de contas, cada fronteira é uma história. É uma história que contamos. Nenhuma fronteira política alguma vez existiu de forma natural, e nunca existirá. Quando se ergue uma fronteira política, trata-se de uma história. E quem é que a está a contar? É contada por algum motivo em particular. Mas também é possível contar uma versão diferente da história, e é aí que reside a questão: estas histórias não são eternas. As fronteiras, que criamos, sugerindo que nunca se movem, não é verdade, porque movem-se o tempo inteiro. No livro dou exemplos. Um dos mais reveladores é a dos Estados Unidos com o México, que estava num lugar completamente diferente até há 200 anos. Cerca de 805 quilómetros quadrados do que é agora os Estados Unidos era México até o ano de 1848. Portanto, a ideia de que as fronteiras actuais são uma estrutura fixa e eterna, é obviamente ridícula.
No livro fala também no conceito de nicho climático humano, como a única verdadeira fronteira que existe para a Humanidade…
É a ideia de que cada espécie na Terra tem um nicho climático, e um dos exemplos mais óbvios é a “linha de árvores”, em que acima de uma determinada altura numa montanha, uma árvore não cresce porque a temperatura é demasiado baixa. Há um matemático ecologista com quem falei sobre isto, que investigou sobre se haverá ou não um nicho climático humano. Ou seja, se as condições sob as quais os humanos tenderam a prosperar, e as áreas do planeta onde têm vivido, estão dentro deste nicho climático. E ele descobriu que sim, muito claramente, e que os seres humanos sempre tenderam a viver em lugares com temperaturas entre 11 e os 15 graus centígrados. E cerca de 95 a 97% de toda a população global vive dentro desse nicho, mas com o impacte das mudanças climáticas, esse nicho vai mudar nos próximos 50 anos mais do que mudou nos últimos 6.000 anos. E se mudar como foi projectado, com as estimativas para o aumentar das temperaturas do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, em vez de ser 97% da Humanidade a viver nesse nicho, será apenas 70 ou 75%. Portanto, cerca de 25% da população mundial viverá em sítios com temperaturas mais elevadas do que se costumava viver. E estamos a falar de dois mil milhões de pessoas. Portanto, a questão é, se dois mil milhões de pessoas viverem em regiões sem condições, o que irão fazer? Presumivelmente, deslocar-se-ão, e isso colocará uma pressão sem precedentes nas fronteiras.
As bordas de um glaciar no vale de Ötztal, no Tirol, nos Alpes austríacos, na fronteira entre Áustria e Itália (Áustria à esquerda, Itália à direita)
Acredita que as alterações climáticas terão um impacte assim tão significativo, que obrigue a redefinir as fronteiras?
Temos de reflectir sobre a gestão de um fluxo de pessoas por causa das alterações climáticas. Obviamente, neste Verão, com as ondas de calor, as secas e os incêndios florestais no Sul da Europa e na América do Norte, acho que as pessoas estão a perceber quão severos podem ser os impactes das alterações climáticas. E isso faz com que as fronteiras, como estão actualmente, se tornem insustentáveis. Vemos que as outras espécies, sejam plantas ou animais, estão a deslocar-se. Mas as pessoas não. É como se tivéssemos desistido da liberdade de movimento que as outras espécies têm; e isso vai tornar-se cada vez mais um problema. Então, é nisso que temos de trabalhar em cooperação. E uma das coisas que o matemático ecologista me disse é que, na verdade, existem linhas fronteiriças na Natureza, que se chamam ecótonos. Por exemplo, quando se passa da savana para o deserto, ou para uma floresta tropical. Esses ecótonos são os lugares onde se encontra a maior biodiversidade, porque muitas coisas se juntam. E, portanto, a forma como uma fronteira funciona na Natureza é exactamente o oposto das fronteiras que criámos, que é um corte abrupto entre os dois lados. Na Natureza, é um lugar de troca, comunidade e agregação. E se pudéssemos repensar as fronteiras dessa forma, acho que seria uma transformação de como o Mundo funciona. E já há exemplos disso.
Numa moto de neve, no lago gelado que forma a fronteira entre a Suécia e a Finlândia
A Grande Muralha Verde, em África, de que fala no final do livro, é um desses exemplos?
Sim, esta ideia de criar uma espécie de mosaico na paisagem, de um extremo de África até ao outro, ao longo do Sahel, em parte para combater as alterações climáticas. Plantaram-se árvores, ajudou-se a agricultura, criou-se uma agrofloresta… É um muro que foi concebido para aproximar as pessoas, em vez de as afastar. Portanto, há exemplos, não é apenas um desejo utópico, e acho que esse é o ideal para o qual devíamos apontar. Mas precisamos de dialogar, e o perigo actual é que estamos simplesmente a virar costas aos problemas e a construir muros, mesmo sabendo não ser essa a solução. É uma medida de curto prazo, em grande parte para conseguir votos e para que certos partidos políticos se mantenham no poder.
Seria possível que se construíssem mais Grandes Muralhas Verdes? Para si, é uma expressão positiva que os muros, geralmente com uma conotação negativa, podem ter?
Sim, eu falei com uma das responsáveis pelo projecto, que trabalha na Grande Muralha Verde para as Nações Unidas, e ela disse que adoraria vê-las em todo o lado. E eu perguntei-lhe se conseguia imaginar uma na fronteira dos Estados Unidos com o México, e ela respondeu que não podia comentar esse assunto [risos]. Mas é um exemplo perfeito. O Sahel é um território que se tem degradado muito com as alterações climáticas. Está a caminho da desertificação. E a ideia de tentar fazer deste lugar um sítio de intercâmbio e comunidade, em vez de um lugar de confronto e oposição… Não há nada que nos impeça de fazer o mesmo, a não ser as narrativas políticas que contamos. E acho que é isso que é tão interessante sobre o que precisamos de fazer, e os paralelos com as alterações climáticas são exactamente os mesmos. Temos a tecnologia e o conhecimento necessários para mudar os nossos comportamentos. A questão é: podemos mudar a forma como nos comportamos? Não é se é possível fazê-lo, mas se é possível mudar a nossa mentalidade.
Estabelece também uma metáfora entre as fronteiras e as defesas do organismo humano contra os vírus, como a covid-19. A intenção era mostrar, através de comparações, como funcionam as fronteiras?
Sim, eu comecei a escrever o livro antes da pandemia, e estava a meio quando eclodiu. Uma das histórias que conto, quando estava na Noruega, é sobre o povo Sámi, a última população indígena da Europa, e o impacto das fronteiras. Quando me vim embora da Noruega, foi o dia em que o país fechou as suas fronteiras a todos os estrangeiros, em Março de 2020 [risos]. A partir daí, o Mundo encolheu progressivamente. Eu estava a viajar por causa do livro, e a partir daí, o Mundo encolheu à minha volta. Pelo menos, eu tinha um propósito, porque estava a escrever o livro. Antes, tinha pensado em escrever sobre a possibilidade de pandemias e o que elas faziam às fronteiras. E depois, dei por mim a viver uma pandemia. Por isso é que, em vez de dedicar apenas meio capítulo ao tema, foi praticamente um capítulo inteiro. E é fascinante ver como a “tecnologia” em torno das fronteiras se desenvolveu como uma forma de controlar a propagação de doenças, desde a Peste Negra até a cólera. Antes de se implementar um passaporte, era mais importante ter documentos a comprovar que não se tinha doenças, para poder atravessar lugares. Depois, falei com biólogos sobre as fronteiras. Porque começamos a pensar no que realmente acontece quando o SARS-CoV-2 entra no nosso corpo: o vírus está a cruzar um “limiar”, é uma metáfora para uma fronteira. E é tão interessante ouvir um virologista falar sobre o que acontece, porque, na verdade, o problema está, particularmente com a primeira onda, na reacção exagerada do corpo ao vírus. E como o corpo, os diferentes órgãos, reagem exageradamente a esta espécie de “invasão”, começam a autodestruir-se. Parece uma metáfora certeira! Tantos destes problemas são espoletados pelo medo, ao tentar ser-se forte nas fronteiras. E é esse stress constante e sentido de se estar sob ataque, que leva a um colapso. Então, parecia que havia paralelos realmente fortes entre a covid-19 e o que estava a acontecer, em geral, a nível geopolítico.
Faz quase uma visão “panorâmica” de diferentes tipos de fronteiras [risos].
Sim, acho que o livro foi sobre tentar entender todas as diferentes dimensões de fronteiras, sejam físicas, celulares ou paisagísticas. Eu não tenho formação em Biologia. Por isso, falar com um biólogo, que estava a ser pago pelo Governo americano para entender como a covid-19 actuava, foi incrível; ter a sua visão e depois ver como as fronteiras se tornaram tão importantes durante a pandemia… Estávamos a fechar as fronteiras, mas claro que o vírus passou de qualquer maneira. Portanto, foram importantes, mas totalmente ineficazes. A única verdadeira fronteira era a nossa própria pele, as nossas células. Isso foi poderoso para mim, na altura, porque não tínhamos a certeza se o Mundo voltaria a recuperar qualquer sentido de normalidade. Todos esses factores conjugados tiveram um grande peso na experiência emocional que foi escrever o livro.
Fala também de fronteiras tecnológicas, nomeadamente a Grande Firewall da China, que mostrou ser possível colocar barreiras ao suposto Mundo livre e que seria a Internet.
A Grande Firewall é algo que considero tão trágico. O início da Internet foi sobre quebrar fronteiras, e qualquer pessoa de qualquer ponto do planeta se poder juntar. E o facto de certos países olharem para isto e dizerem: “não, não gostamos disto, queremos ser capazes de controlar o fluxo de informação e ideias, tal como uma fronteira controla o fluxo de pessoas”… É tão contraditório e totalmente contra o propósito para o qual a Internet foi criada. E é um sintoma da febre de fronteiras que se desenvolveu, mas, além disso, não funciona. As coisas passam, há sempre lacunas, sabemos que os “muros” não resultam. Todas as evidências nos mostram isso. Sempre que se ergue um muro, e a história comprova-o, em algum momento cairá. Não há nenhum muro que tenha durado desde o momento em que foi criado até agora. Eles desaparecem, deslocam-se, alteram-se. E tal como agora estamos a debruçar-nos sobre as alterações climáticas, e com a forma como lidamos com as emissões de carbono; há tanto dinheiro investido na indústria fóssil, tantos interesses instalados, que é difícil ultrapassar isso. E acho que é semelhante ao que acontece com as fronteiras. É um apego, mas acho que é aquele último apego antes da mudança. É isso que eu espero. E temos de ter esperança, porque caso contrário, caímos em desespero. Mas há exemplos, não é que não existam. E foi por isso que escrevi o livro, para contar estas histórias e transmiti-las ao maior número de pessoas possível. O meu livro não é um manifesto, não dou um plano de acção sobre como mudar as fronteiras, mas espero que no final da leitura, se entenda porque é que não estão a funcionar, porque estão a quebrar, e o que temos de fazer para nos adaptarmos e, espero eu, mudarmos para melhor.
Um recente relatório da Entidade Reguladora da Saúde diz que em 2022 realizaram-se 15.616 interrupções voluntárias da gravidez (IGV) em Portugal, um aumento de 15% face ao ano anterior. Soubemos também que, desde 2018, se fizeram 71.651 abortos. Perante estes dados, a primeira coisa que se ocorre na cabeça de certas pessoas é apelar ao alargamento do prazo legal para a prática de IGV, ou “repudiar” os profissionais de saúde objectores de consciência – esses malvados que se arrogam “juízes” morais e se recusam a realizar o procedimento.
Começo por fazer um esclarecimento prévio: defendo a legalização do aborto, e discordo cabalmente de uma parte da direita que, por vezes, produz grande alarido em posições anti-aborto – e que se opõe até mesmo em casos de violação. Porém, também não concordo, e me parece até macabro, que certos grupos – não satisfeitos com o quadro de despenalização do aborto até às 10 semanas (já desde 2007) – façam deste assunto constante cavalo de batalha, e que, de quando em vez, se lembrem de azucrinar a opinião pública com mais reivindicações.
Esta obsessão persistente é sintomática e paradigmática não só de uma sociedade que julga apenas ter direitos, e poucos deveres, como do cerne do movimento feminista, que alardeia ter o bem-estar da mulher no topo das suas prioridades, mas que reduz as suas boas intenções a uma luta fetichista pelo “direito” ao aborto.
Uma vez legalmente garantida a possibilidade de recorrer à IGV, como sucede há vários anos, uma preocupação genuína com as mulheres deveria manifestar-se em redor da seguinte magna questão: o que pode a sociedade fazer para evitar que uma mulher sinta necessidade de recorrer ao aborto? Não (apenas) por eventuais questões morais ou religiosas, mas por se tratar de um procedimento doloroso a vários níveis e, a todos os títulos, obviamente indesejável.
A resposta a esta questão passa indubitavelmente pela literacia, pela educação e pela contracepção, mas, deveria também passar por uma reflexão sobre os efeitos colaterais de uma cultura que promove uma sexualidade inconsequente e isenta de responsabilidades. Isto porque, nos últimos anos, estudos apontaram para uma correlação entre sexo casual e impactos negativos na saúde mental entre jovens adultos. Acresce ainda que este parece ser um problema maior para o sexo feminino, com as mulheres a apresentarem uma maior tendência para arrependimentos em encontros sexuais do que os homens.
Tendo em conta estes dados, seria lógico que, antes de colocarmos o aborto no centro da discussão – como o derradeiro recurso para prevenir uma gravidez indesejada – nos questionássemos antes sobre se a banalização da sexualidade não terá como consequência uma “sexualidade indesejada”. Seja na forma de uma vida sexual iniciada prematuramente, ou de comportamentos sexuais nocivos para a própria mulher.
Por outro lado, num contexto em que cada vez mais mulheres se debatem com o desolador e deveras preocupante problema da infertilidade, e lutam pela possibilidade de engravidar e de levar a termo uma gravidez, não deixa de ser curioso que as brigadas “pró-escolha” não tenham, sobre este assunto, uma palavra de atenção. Ou, como temos visto em Portugal – perante os crescentes casos de mulheres que enfrentam dificuldades para terem os seus partos assegurados pelo Serviço Nacional de Saúde – , os efusivos activistas “pró-escolha” remetam-se ao silêncio.
De facto, entre uma mulher que deseje abortar, e uma que deseje engravidar, apenas a batalha da primeira “faz as delícias” dos contestatários de serviço. Ao contrário do “direito” ao aborto, o “direito” à maternidade não parece, pois, constar sequer da lista de preocupações dos que se autoproclamam defensores da escolha, nem merecer qualquer resquício de indignação.
Hoje, aliás, vemos celebridades internacionais (feministas) que se denominam, com regozijo, de serem child free, como se a escolha de não ter filhos fosse sinónimo de liberdade e empoderamento, e a maternidade não fosse mais do que um pesado fardo a suportar.
Assim, é evidente que o movimento feminista “pró-escolha” tem, ao fim ao cabo, um inequívoco pendor anti-natalista. Quando o seu interesse na liberdade e no bem-estar das mulheres se resume a um intenso fervor pró-abortista, fica claro que as suas motivações se prendem menos com o superior interesse da mulher, e mais com uma vontade sinistra de assegurar que, paradoxalmente, se incorra em tantos comportamentos de risco quanto possível (instigando a promiscuidade e a irresponsabilidade) e, ao mesmo tempo, se possa, com o maior dos facilitismos, impedir um filho de nascer, invocando a autonomia sobre o próprio corpo.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
THEODORE KACZYNSKI (tradução: João Franco e Álvaro Fernandes)
Editora
Libertária (Fevereiro de 2022)
Cotação
15/20
Recensão
Um prodígio da matemática, com um Q.I. de 167, Theodore Kaczynski – mais conhecido como Unabomber –, parecia enquadrar-se na definição de génio, com um futuro promissor, até à primeira metade da sua vida. Contudo, o “génio” transformou-se em “louco” e num terrorista condenado. Depois de obter um doutoramento em Matemática e de, com apenas 25 anos, tornar-se professor na Universidade da Califórnia, em Berkeley, Kaczynski decidiu demitir-se no final dos anos de 1960 e mudou-se para uma cabana no Estado de Montana, adoptando um estilo de vida primitivo, sobrevivendo como agricultor, caçador e recolector.
Foi também nesse período que, em nome dos seus ideais revolucionários e contra o progresso tecnológico, começou a enviar bombas por correio entre 1978 e 1995, que mataram três pessoas e feriram outras tantas – os alvos dos seus ataques eram sobretudo companhias aéreas, faculdades e empresas. Em 1996, prometeu pôr um fim aos seus atentados se o New York Times e Washington Post publicassem o seu manifesto, A sociedade industrial e o seu futuro – condição que os dois jornais norte-americanos aceitaram.
Após a publicação do texto pelos jornais, Kaczynski foi finalmente identificado pelas autoridades e detido, em Abril de 1996. Foi na prisão que passou os seus últimos dias e onde faleceu em Junho deste ano, com 81 anos. A sua história deu origem a filmes, documentários e séries, tendo o mais recente sido o filme Ted K, de 2021.
A sociedade industrial e o seu futuro é, fundamentalmente, um manifesto “anti-tecnologia”. Para Kaczynski, a Revolução Industrial levou a uma cisão entre os cidadãos e a Natureza, transformando o estilo da vida da população de um modo que atenta contra a sua essência. O autor argumenta que os males provocados pelo progresso tecnológico não superam os seus eventuais benefícios, e que, mesmo com todos os desafios que enfrentava, o homem primitivo estava melhor do que o homem moderno.
Na parte inicial do livro, Kacznyski teoriza que os seres humanos têm uma necessidade intrínseca de “empoderamento”, que é satisfeita através da conquista de objectivos por via do seu esforço. Contudo, defende, uma vez que na actual sociedade industrial e tecnológica, todas as pulsões mais primárias do Homem são supridas sem que ele tenha de empreender grandes esforços, o resultado é um sentimento de frustração e impotência.
Como forma de colmatar o vazio e a ausência de sentido na vida pela impossibilidade de assegurar a sua subsistência pelas próprias mãos, o Homem dedica-se a “actividades de substituição” – que incluem todos os trabalhos nos sectores secundário e terciário, ascensão na hierarquia social, estatuto, ciência e tecnologia. Porém, para o autor, estes ofícios nunca preenchem verdadeiramente a necessidade de empoderamento da sociedade.
Kaczynski considera que a única forma de erradicar os danos colaterais do progresso tecnológico é por meio de uma revolução. Nesse sentido, afirma que qualquer tentativa de reforma ou de “remendo” é inútil e não surtirá qualquer efeito; apenas um corte radical e a abolição da tecnologia poderá salvar o mundo da escravidão e de uma distopia de calibre similar à de Admirável Mundo Novo. A este respeito, é irredutível: a liberdade e tecnologia são irreconciliáveis (pág. 77).
Curiosamente, o “esquerdismo” moderno é um dos principais alvos da sua crítica, atribuindo ao movimento uma série de características que considera perniciosas e até mesmo impeditivas da revolução que pretende levar a cabo. Por “esquerdista”, o autor entende, em traços gerais, aquele que simpatiza com as ideologias do “feminismo, dos direitos dos homossexuais, das minorias étnicas, dos animais e politicamente correcto” (pág. 138).
Kaczynski acusa estes esquerdistas de tendências totalitárias e colectivistas, e de um tom moralista, sentimentos de inferioridade, e uma vontade de poder reprimida e frustrada, que os impele ao seu activismo prepotente, hostil, e a queixumes fúteis e constantes.
Sobre a modernidade, o autor também denuncia uma abundância de direitos “no papel”, mas que, na realidade, não são tão “importantes” para o cidadão comum quanto possam parecer. Um dos exemplos que dá é o da liberdade de imprensa:
“(…) a liberdade de imprensa de pouco serve ao cidadão comum enquanto indivíduo. Os mass media estão na sua maioria sob controlo de grandes organizações, integradas no sistema. Quem tiver algum dinheiro pode mandar imprimir o que quiser, ou ainda distribuir conteúdos na Internet ou qualquer coisa que o valha, mas o que tiver a dizer será submerso pelo vasto volume de material publicado pelos mass media, não surtindo qualquer efeito prático. Abalar a sociedade com palavras é, por conseguinte, quase impossível para a maioria dos indivíduos e pequenos grupos.” (pág. 61)
“Excessos” à parte, nomeadamente o ímpeto revolucionário e a apologia da violência, Kaczynski avança ideias válidas, alicerçadas em argumentos sólidos, factuais e coerentes. A sua preocupação com a ameaça de uma tecnocracia em que uma ínfima minoria de burocratas “invisíveis” consideram as massas inúteis e descartáveis – e decidem, sem escrutínio, o seu destino –, utilizando-as apenas como peças bem oleadas de uma engrenagem por si montada não só é plausível, como parece cada vez mais real.
De facto, com a crescente concentração de poderes, possibilitada pela inovação tecnológica, torna-se difícil discordar de Kaczynski quando afirma que “a restrição da liberdade é inevitável na sociedade industrial” (pág. 69).
Nenhum dos cenários que o autor vislumbra para o futuro da sociedade tecnologicamente evoluída é risonho, mas entre as suas previsões, estas farão o topo das mais negras:
“(…) uma vez que o trabalho humano já não será necessário, as massas serão supérfluas, um fardo sem utilidade para o sistema. Se a elite for impiedosa pode simplesmente decidir-se pelo seu extermínio. Caso tenham uma réstia de humanidade poderão usar de propaganda ou outras técnicas, biológicas ou psicológicas, para reduzir a taxa de natalidade até as massas se extinguirem, deixando o mundo para a elite”.
Certo é que, atendendo aos acontecimentos dos últimos anos, o que Kaczynski, que morreu em Junho passado num prisão da Carolina do Norte, vaticinou não parece assim tão descabido. Por isso, a respeito deste revolucionário, à pergunta “louco ou génio à frente do seu tempo?”, a resposta terá de ser, infelizmente: um pouco dos dois!
Depois da covid-19, muitos Governos e a Organização Mundial de Saúde (OMS), e também outras organizações, algumas com ligações ao lucrativo sector farmacêutico, consideram fundamental um acordo internacional que agilize a implementação de medidas globais de saúde pública. Mas há quem veja no previsto Tratado Internacional sobre Prevenção e Preparação para Pandemias uma janela de oportunidades para impor restrições de direitos em países democráticos. Uma petição, lançada na semana passada, está a tentar obter 60 mil assinaturas para a realização de um referendo por iniciativa popular. Além de questionar a aceitação de um tratado nos moldes conhecidos, o documento que acompanha a petição coloca mesmo em causa a manutenção de Portugal no seio da OMS, se este organismo não garantir a sua independência.
Deve Portugal manter-se como membro da Organização Mundial da Saúde (OMS), enquanto esta agência subordinada às Nações Unidas arrecadar a maioria do seu financiamento através de fundações e entidades privadas? Esta é uma das três questões que uma petição, lançada na passada quarta-feira pela médica-dentista Marta Gameiro, pretende levar a referendo.
De acordo com a lei, um referendo por iniciativa popular necessita de juntar 60 mil assinaturas num prazo máximo de seis meses, mas a última palavra cabe sempre aos deputados na Assembleia da República. Até esta tarde, a petição contava ainda com apenas 668 assinaturas.
Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS.
Ao PÁGINA UM, Marta Gameiro, dinamizadora da petição e autora do texto enquadrador intitulado “Referendo pela autodeterminação em Saúde – Portugal e a OMS”, defende que o principal objectivo é a “promoção de um debate“, admitindo porém que pôr em causa a permanência de Portugal na OMS “foi um risco“.
Os críticos deste novo Tratado salientam que, a ser aprovado, concederá poderes ilimitados à OMS, que não é uma entidade com responsáveis eleitos democraticamente, e que, em caso de nova pandemia, podem ultrapassar as directrizes dos Governos e até as Constituições dos países.
Além disso, está prevista a introdução de cerca de três centenas de alterações ao Regulamento Sanitário Internacional, incluindo a suspensão de direitos humanos em situações de crise de Saúde Pública. Em suma, com estes normativos globais, fica ainda mais limitada a capacidade de os países tomarem decisões de forma autónoma numa futura emergência de saúde pública, e ainda mais a forma dos cidadãos se defenderem contra medidas discricionárias que afectem direitos humanos.
Marta Gameiro considera ser fundamental que discutam estas questões. “Aquilo que está em jogo é a possibilidade de uma elite tomar conta de uma organização que supostamente é independente“, salienta, fazendo alusão às ligações da OMS ao sector farmacêutico e a fundações privadas com interesses comerciais.
Apesar destes receios, o director-geral da OMS, Tedros Adhanom, garantiu em 17 de Março passado, numa conferência de impresa, que as propostas em estudo jamais eliminarão a soberania dos países em caso de nova pandemia.
Na pandemia de covid-19, cientistas de topo que se opunham às posições da OMS foram censurados e perseguidos.
“É essencial enfatizar que este acordo está a ser negociado por países, para países, e será adotado e implementado pelos países, de acordo com suas próprias leis nacionais”, enfatizou o antigo ministro da Saúde e dos Negócios Estrangeiros da Etiópia, acrescentando que “a afirmação de alguns de que este acordo constitui uma violação da soberania nacional é manifestamente errada”. “Os países, e só os países, decidirão o que está no acordo, não o pessoal da OMS”, concluiu.
Em todo o caso, os receios de perda de soberania e suspensão de direitos humanos em caso de novas pandemias mantêm-se. No texto da petição dinamizada por Marta Gameiro considera-se que a OMS “está a promover um tratado pandémico e alterações ao Regulamento Sanitário Internacional existente, para aumentar o seu poder durante as emergências sanitárias”. Adianta ainda que “estas propostas também alargam o âmbito das emergências de modo a incluir danos potenciais em vez de danos reais”, além de sugerir “uma definição de ‘One Health’ que engloba qualquer ocorrência na biosfera que possa ter impacto no bem-estar humano”.
Por outro lado, também se critica o excessivo “poder de decisão [que] será colocado nas mãos de uma única pessoa, o director-geral da OMS”, receando-se que a intenção também seja “a de suprimir e censurar as vozes daqueles que questionam os ditames do director-geral“.
Marta Gameiro, autora da petição foi também organizadora do Congresso Internacional sobre Gestão da Pandemia, que decorreu em Fátima em Outubro do ano passado.
Recorde-se que Marta Gameiro é também a promotora de uma outra petição similar, mas que não questionava a adesão portuguesa à OMS, tendo agregado 7.317 assinaturas. Esta petição foi já abordada, numa primeira fase, em audição da Comissão de Saúde da Assembleia da República no passado dia 16 de Fevereiro.
A comissão parlamentar responsável pela apreciação daquela iniciativa ainda não concluiu o processo, e todo o processo tem sido tratado com fraca relevância pelos deputados dos diversos partidos. Esta petição, aliás, nem sequer tem marcado agendamento previsto em plenário.